sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O enigma

Para mim é um verdadeiro enigma a trajetória de Bolsonaro pela vida. Ele já declarou, mais de uma vez, que não nasceu para ser presidente. Que nasceu para ser militar, que ama a farda. Como compreender, portanto, que ele tenha cursado uma academia militar que permitiu que realizasse um sonho para de lá sair varrido depois de muitas quizumbas e implicâncias com seus chefes?

Resolveu então que seria político. Depois de muitos anos como deputado, sem realizar nada pelo Brasil, candidatou-se a presidente da República e como um fenômeno, foi eleito. Isso mesmo, de deputado inepto, como um relâmpago, virou chefe da Nação. E o que mais alimenta minha curiosidade: queixa-se da posição que ocupa e diz que sua vida ficou insuportável depois que foi parar no Planalto.

Para quem vive neste país tão grande com um governo tão minúsculo, esse é um verdadeiro enigma.


Bolsonaro se queixa e nós o que fazemos? Aturamos e vamos em frente à espera de um milagre. Aturamos o quê? perguntam os desmemoriados ou os distraídos. Para esses sugiro a página 3 de O Globo de ontem, um verdadeiro tesouro para os historiadores do futuro.

O jornalista Ascânio Seleme ocupa seu espaço com um “ajuda-memória” que será de grande auxílio para quem for estudar o Enigma. Ele lista os atos e fatos que ocuparam nossas manchetes neste janeiro que hoje finda. Impressiona saber que tudo aquilo ocorreu sem nenhuma consequência imediata para o país.

Consequências virão, é só ter paciência. Nada fica impune neste mundo de Deus.

Seleme só deixou de fora de sua listinha de horrores um comentário fantástico do ex-capitão numa de suas lives absolutamente fakes: “os índios só querem ser como a gente, querem ser humanos”. Se não foram essas suas palavras exatamente, esse é o sentido principal do que ele disse. Pois é.

Também na ótima página 3, a coluna de Luis Fernando Veríssimo. Como sempre nosso maior colunista brilha a ponto de ofuscar nossos olhos. Ele recorda o “Marielle presente” da arquibancada do Sambódromo no Carnaval de 2019. Lembra “o grande silêncio em meio à batucada” sobre o assassinato de Marielle, silêncio que afronta o carioca. Na verdade, Luis Fernando nos faz sentir que Marielle está presente e Moro ausente.

Luis Fernando encerra sua coluna dizendo que espera que, nas arquibancadas da vida, não nos esqueçamos de gritar, sempre, “ Marielle presente!”.

Melhor gritar “Marielle presente e Moro ausente!”. A insistência às vezes provoca milagres.

Tenhamos fé.
Maria Helena RR de Sousa

Melhor, senhor presidente, que os índios se pareçam cada vez menos conosco

O presidente Bolsonaro, em uma frase infeliz e ofensiva aos indígenas, disse que “o índio está evoluindo e cada vez mais é um ser humano igual a nós”. A pergunta que deveríamos fazer, ao contrário, é se não seríamos nós que estaríamos nos tornando cada vez menos humanos e querendo que eles se desumanizem.

A afirmação do presidente Bolsonaro carrega o preconceito de que os índios ainda não são seres humanos como nós e que somente abraçando nossa modernidade, nossa fúria de destruidores e consumistas compulsivos, serão humanos completos em nossas cidades de cimento.

É paradoxal que o presidente brasileiro afirme que os índios estão começando a se humanizar quando todos os antropólogos e filósofos dizem que a crise do Homo sapiens consiste em que somos nós, e não os indígenas, que estamos esquecendo de onde viemos. Isso por termos abandonado nossas raízes naturais, as que nos conectam com a natureza, para nos tornarmos robôs e feixes de fios elétricos.


É possível que a infeliz declaração de Bolsonaro tenha sido um daqueles lapsos de linguagem estudados pela psicanálise de Freud e Lacan, que refletiria o conceito que o presidente tem do humano em seu subconsciente. Talvez isso reflita, antes, que ele não consegue ver os indígenas como humanos completos. Eles o serão, em sua opinião, na medida em que forem se contaminando com a nossa “incivilização” de destruidores da natureza que seria o nosso verdadeiro habitat, onde o ser humano se reconhece. Até Deus, ao criar a terra, exclamou que “era boa”. E dessa terra criou o homem e a mulher. Nós a estamos maltratando.

A Terra é nosso berço, nossa seiva, da qual se nutre não apenas nosso corpo, que é feito, como dizem os astrônomos, do “mesmo pó das estrelas”, mas também nosso pensamento e nossos desejos mais profundos e originais.

Somos feitos das mesmas moléculas do barro da terra, das águas dos rios e do oxigênio das florestas. Só conseguiremos ser humanos completos na medida em que não percamos nossas raízes com a mãe Terra, que foi a primeira deusa criada pelo homem.

Pelo contrário, são os povos indígenas que, com suas culturas ancestrais, com seus ricos deuses da floresta, com seus pensamentos amalgamados pelo sol, ainda conseguem manter a conexão com o cosmos, com a vida e seus mistérios mais ocultos. Somos nós que, depois de termos nos desconectado da natureza para nos conectarmos à fria tecnologia que não tem aroma nem cor, estamos nos afastando da nossa verdadeira humanidade para nos tornarmos alienígenas que acabarão sem saber o que é um tomate ou um cacho de uvas. Também já não somos capazes de distinguir, por exemplo, em uma floresta, mais de dois ou três tons de verde. Os indígenas conseguem detectar até sessenta.

A pena é que não é fácil se alimentar de conexões elétricas ou se regozijar com frios robôs sem alma e sem vida. Até uma pedra contém mais vida e conserva melhor as batidas do cosmos do que um computador. São essas batidas que chegam da eternidade do mundo que realmente nos fazem humanos.

Seremos mais humanos não na medida em que nos pareçamos menos com os indígenas que continuam sendo os guardiões da terra, mas em que, como eles, não nos desconectemos daquilo que são nossas verdadeiras raízes, que não são as da tecnologia. Ela é apenas um instrumento que facilita nossa vida e ajuda a nos conectarmos melhor uns com os outros, mas nunca será um substituto que nos torne mais humanos, mais espirituais, mais com gosto de terra.

Por que as crianças gostam tanto de brincar e se sujar de barro? Ou tomar banho nuas nos rios? Ou subir em uma árvore para saborear uma fruta madura? Uma mulher indígena me ensinou uma vez na Itália que os figos mais doces são os que foram bicados pelos pássaros porque eles só comem os mais maduros.

Não, não são os índios que estão se humanizando porque começam a se parecer mais com o homem moderno, a amar a fria tecnologia e a se separar da natureza. Como escreveu em sua coluna em O Gobo o agudo analista Arnaldo Bloch, não são os índios que estão começando a se humanizar, mas é o presidente Bolsonaro que “cada vez menos é um ser humano igual a nós”. Pelo menos assim parece àqueles que acreditam que ainda temos muito a aprender com os que chamamos de índios e que certamente entendem melhor do que tantos outros o que significa ser verdadeiramente humanos.

Eles estão unidos à natureza desde sempre e são capazes de ainda sentir os primeiros gemidos da criação do mundo. Nós parecemos estrangeiros em uma Terra que estamos destruindo com cada vez mais afinco e crueldade. Ainda é possível ter uma fresta de esperança? Ela só nos virá do ventre dessa Terra cada vez mais maltratada e mais necessária. Aquela que nos devolve o sabor áspero e forte do barro de onde viemos.

Dupla do barulho

O presidente pode demitir o ministro da Justiça? Pode, mas sabe que não deve. Uma que Sergio Moro não dá motivo, outra que ele tem mais a perder que a ganhar. O ministro da Justiça pode se demitir? Pode, mas está ciente de que não deve. Uma que os pretextos criados por Jair Bolsonaro lhe soaram até agora insuficientes, outra que ele tem mais a perder que a ganhar; a visibilidade do cargo é essencial, sejam quais forem seus planos futuros.

Portanto, salvo alguma loucura presidencial incontornável, ainda não será neste nem no próximo Carnaval que Bolsonaro e Moro brincarão separados. A performance do morde e assopra tem feito bem a ambos. Ao ministro, as mordidas só proporcionaram consolidação da popularidade; ao presidente, os assopros propiciam recuos usados como “provas” das intrigas de oposição.

A depender da preferência política do freguês, são vistos alternadamente nos papéis do “bom” e do “mau”. Assim vão caminhando ambos ao molde de um esquete de humor nem sempre de bom gosto. Nenhum dos dois se aflige, enquanto na plateia (dentro e/ou fora do governo) os desesperados se contorcem, de regozijo ou dissabor, a cada novo episódio da série cujo epílogo ainda está para ser escrito.

Ainda não é agora que Moro e Bolsonaro vão brincar o Carnaval separados


Não é que se trate de uma encenação com roteiro bem pensado e escrito a quatro mãos. Há evidentes e reais insatisfações, desconfortos e divergências de parte a parte. Estas estão patentes no noticiário desde o capítulo inicial, em fevereiro de 2019, do veto a uma indicada (Ilona Szabó) de Moro para suplente no Conselho Nacional de Política Criminal.

Foi o único caso em que Bolsonaro ganhou a parada de Moro nas redes sociais, dado o não alinhamento da cientista política à cartilha bolsonarista. De lá para cá, quando esteve do lado oposto ao do interesse do presidente, o ministro posicionou-se em consonância com as expectativas daquele eleitorado. Donde sentou praça no topo da popularidade governamental e na antessala das preferências de voto para presidente em 2022.

Vamos ser francos: ninguém é imune à inveja, e Bolsonaro talvez se remoa quando vê Moro fazendo as vezes de uma versão civilizada dele em entrevistas, debates e confrontações em geral. Se, e quando, o ministro diz alguma barbaridade, a gente nem sente, tal a fidalguia no trato.

O então juiz provavelmente não tinha na cabeça (embora pudesse ter no radar) uma candidatura presidencial quando aceitou o cargo de ministro. Fez sentido a alegação de dar um “upgrade” na tarefa que se impôs no combate à corrupção. Meio ingênuo no começo, nesse um ano ele aprendeu várias coisas.

Uma delas, que perspectiva de poder é poder. Daí a forte probabilidade de, incensado pela mulher, já ter incluído a Presidência no cardápio. Outra lição é sobre o valor da frieza e as vantagens da paciência.

Assegura apoio à reeleição do presidente e qualifica indicação ao Supremo como “interessante” para manter frio o outro tema. Já Bolsonaro se debate um pouco mais, dá bandeira, embora não seja louco de rasgá-la. É uma dupla do barulho, mas cada qual age do seu jeito de modo a aproveitar, e usar adiante, os frutos do sucesso garantido pela plateia que aplaude, vaia e os mantém em cartaz.

Paisagem brasileira

Frederico Bracher (1961)

A luta entre desigualdade e moralismo

O Brasil é um dos países mais complexos do mundo. A variedade de seus problemas torna muito difícil escolher um único caminho ideológico como remédio a todos os males. Só que a disputa política geralmente produz a contraposição de visões de mundo. No momento, predominam duas delas que resumem bem as soluções colocadas à mesa. De um lado, um grupo que vai da esquerda até parte do centro defende que a agenda básica deve ser o combate à desigualdade. De outro, um agrupamento que capta parte da centro-direita e chega até à extrema-direita propõe que a questão central deve ser a reordenação moral da sociedade e do Estado brasileiros.

Obviamente que nenhuma liderança política vai dizer que é a favor da corrupção ou defender que não haja políticas públicas para os mais pobres. Posições tão extremas não estão em questão. Mas o embate político pode ser sintetizado pela luta entre a visão centrada no combate à desigualdade versus uma concepção mais orientada por questões morais, tanto públicas como privadas.

Somada à luta contra o autoritarismo, a redemocratização teve como slogan o resgate da dívida social. O país havia tido uma enorme transformação econômica desde o varguismo, porém, mantivera uma enorme desigualdade. Para mudar essa realidade, a sociedade levou uma série de demandas represadas aos constituintes e as lideranças políticas criaram aquilo que Ulysses Guimarães acertadamente chamou de Constituição cidadã. Assim, um cardápio amplo de direitos foi criado, buscando aumentar o acesso aos serviços públicos, principalmente aos mais pobres.


Construiu-se um consenso social democrata, que vigorou por mais de 20 anos, capaz de produzir várias medidas contra a desigualdade. A maioria no campo social, mas também se constituiu um olhar econômico preocupado não só com o crescimento, mas também com a redistribuição. O Plano Real seguiu esta trilha, bem como as políticas de salário mínimo.

Políticas como Fundef/Fundeb, ações do SUS (sobretudo na atenção básica), o Bolsa Família, as cotas sociais nas universidades, entre outras, foram medidas muito bem-sucedidas. Os indicadores sociais melhoraram bastante quando comparados à realidade da ditadura. O combate à desigualdade, no entanto, ainda tem muitos problemas. A qualidade da escola pública deixa a desejar, os mais pobres têm enorme dificuldade de marcar exames na rede de saúde e a população da periferia ainda sofre com as más condições habitacionais, de locomoção, acesso à cultura e, o mais importante, segurança. Vale ressaltar que a violência é um dos retratos mais fortes da desigualdade no Brasil: são os jovens negros os que mais sofrem com essa situação.

A luta contra a desigualdade não se resumiu às políticas sociais. Foram ampliados os direitos civis em medidas como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e o Código de Defesa do Consumidor. Aumentou-se a igualdade também no campo dos direitos políticos, algo que começou ainda no governo Sarney com a permissão do voto ao analfabeto. Todas essas legislações, ademais, abriram as portas para que diversos grupos historicamente desfavorecidos buscassem seus direitos, incluindo aí demandas comos a da população indígena, das organizações LGBT e dos movimentos negro e feminista.

Mesmo com tais avanços, permaneceram regras e lógicas que garantiam privilégios a determinados grupos. Isso vale para o corporativismo do setor público, para benesses tributárias ou de crédito a empresas e, ainda, para forma como a população negra e pobre é tratada por parte do Estado brasileiro. De todo modo, a agenda da desigualdade foi predominante e teve bons resultados se levarmos em conta a profunda tradição escravocrata do país.

É inegável que a desigualdade ainda se constitui no maior problema do país quando analisamos os dados do IBGE e de outras pesquisas sobre as condições de vida dos brasileiros. Mas a partir de 2013, exatamente num ponto em que o Brasil tinha avanços de duas décadas em prol da igualdade, houve uma mudança na visão de boa parte da sociedade. O tema da moralidade ganhou terreno, com a ideia, primeiro, de que se deveria tornar o combate à corrupção o tema número um da agenda pública, e, num segundo momento, num questionamento sobre políticas sociais e a intervenção do Estado em assuntos privados, que devem ser resolvidos pelos indivíduos, suas famílias e suas associações religiosas.

O moralismo como guia da ação política não é algo novo na política brasileira. A UDN fez isso por quase duas décadas e sua ação teve como desaguadouro um golpe civil-militar. O PT das décadas de 1980 e 1990 também cresceu por ter se colocado como o paladino da ética e a eleição de Lula em 2002 estava tão ligado a esse discurso quanto ao combate à desigualdade. O jacobinismo que se desenvolveu nas últimas três décadas em parcelas do Ministério Público tem nítido DNA petista.

As sucessivas crises de corrupção durante o período do PT no poder foram um dos estopins das jornadas de junho de 2013. Decerto que as demandas eram mais amplas e difusas, mas o mote vencedor foi o da luta contra um sistema político que estaria carcomido e que precisava de uma reforma moral. Neste contexto, a Operação Lava-Jato tornou-se o espírito de uma época. Suas ações atingiram fortemente o petismo e outros políticos que a ele se aliaram. A prisão de importantes membros da elite brasileira e a revelação de alguns episódios de corrupção convenceram uma boa parte da população que estaria nesta visão de mundo a solução para os problemas brasileiros.

O lavajatismo ainda é o espírito de nossa época, todavia, outros elementos de moralidade foram colocados nesta agenda. Primeiro, a defesa de uma visão mais conservadora em relação aos costumes. Neste sentido, é interessante como o MBL, que fora criado para levar adiante a bandeira do liberalismo, abraçou muito rapidamente a censura a uma exposição num museu paulistano. Foram menos liberais do que pensavam ser, mas conseguiram maior apoio social porque havia uma onda conservadora crescente.

A defesa desses valores mais conservadores veio junto com o ataque a políticas públicas que, em tese, favoreceriam visões contrárias à moralidade do brasileiro, enfraquecendo as famílias. Dessa perspectiva vem a Escola sem Partido, a proposta de abstinência sexual como instrumento de combate à gravidez precoce, o ataque às agendas identitárias e a proposta de reduzir a separação entre Igreja - no caso, as evangélicas - e o Estado. Se o ministro Moro é o líder do lavajatismo, Damares é a representante mais orgânica da agenda moral no campo dos costumes.

O bolsonarismo soube se apropriar dessas duas vertentes da moralidade na eleição de 2018, embora esteja bem mais próximo do damarismo do que do morismo - até porque, muitos bolsonaristas participaram do patrimonialismo corrupto que dizem combater. Vários fatores explicam a vitória de Bolsonaro, mas com certeza no topo está a capacidade de abraçar e representar essa nova agenda moralizante, que em boa medida está guiando o governo contra o antigo predomínio da visão de combate à desigualdade.

Vale ressaltar outro ponto que o bolsonarismo acrescentou à essa nova agenda. Trata-se de uma defesa de uma ampla liberdade individual contra o “discurso vitimista” que, para os bolsonaristas, orientava a agenda de combate à desigualdade. Por esta lógica, Bolsonaro defende o uso amplo das armas, uma forte desregulamentação do trânsito, uma visão cultural contra o politicamente correto e o apoio às forças de segurança contra a bandidagem - voltamos aqui à Primeira República, quando a questão social era antes de tudo uma questão de polícia.

Bolsonaro acredita estar do lado do cidadão comum, que nas últimas décadas viu seu modelo tradicional de vida ser questionado. Neste sentido, seria preciso restituir a antiga moralidade, com a família, a religião e os papéis sociais de gênero bem definidos. É essa agenda, e não o liberalismo, o carro-chefe do governo.

A redução da relevância da agenda da desigualdade já está muito clara. O desastre da política educacional, o péssimo tratamento dos que buscaram seus direitos previdenciários ou o Bolsa Família nos últimos meses, o incentivo à visão de que talvez os mais pobres tenham de morrer para se combater a violência e mesmo o liberalismo de Guedes - que já disse não ter a desigualdade no centro de suas preocupações - são sinais evidentes da vitória da concepção moralista ao estilo Bolsonaro, por ora com o apoio silencioso do lavajatismo.

Tão ruim quanto o enfraquecimento das políticas de combate à desigualdade, o que piorará a vida da maioria da população brasileira, é a polarização entre o discurso pelo social e a proposta de moralização da vida pública brasileira. A republicanização do Estado é peça-chave para qualquer projeto de modernização, do mesmo modo que é preciso entender a lógica das famílias pobres da periferia que optaram em 2018 pelo conservadorismo. Por isso, se um amplo arco que vai do centro à esquerda quer mesmo lutar contra os retrocessos crescentes, ele terá de mostrar como o combate à desigualdade pode não só se casar, mas ser o alicerce de uma nova ética pública.
Fernando Abrucio

Palavras ao sabor do freguês

Hoje as torturas são chamadas de “procedimento legal”, a traição se chama “realismo”, o oportunismo se chama “pragmatismo”, o imperialismo se chama “globalização” e as vítimas do imperialismo se chamam “países em via de desenvolvimento”.
 
O dicionário também foi assassinado pela organização criminosa do mundo. As palavras já não dizem o que dizem ou não sabemos o que dizem
Eduardo Galeano

Sem governo fica difícil ter reeleição

Jair Bolsonaro voltou animado do Taj Mahal. De uma só tacada, cortou a cabeça do ministro-substituto da Casa Civil por ter voado num jatinho da FAB para compromissos em Davos e na Índia; chamou de “garoto” e praticamente puxou as orelhas do presidente que colocou no BNDES por causa dos gastos com a auditoria que descobriu que a tal caixa preta estava vazia; levantou a suspeita de sabotagem nos erros da correção do Enem; e ainda defendeu o chefe da Secom acusado de corrupção por receber pagamentos em sua empresa de emissoras de TV contratadas pelo órgão em que trabalha. Na narrativa bolsonariana, alternam-se bravatas, abobrinhas e atos demagógicos.

Mas a cada dia faz mais barulho o silêncio do presidente da República sobre problemas da vida real que começam a mostrar, um ano depois da posse, que seu governo é muito ruim de serviço. Talvez não tenha muito a dizer sob a ótica da solução séria para essas questões. E prefira adotar um estilo à la Jânio Quadros, que proibiu o biquini e a rinha de galos, para distrair as platéia.


Mas afirmar que pode ter havido sabotagem — e essa conjugação verbal que denota incerteza e introduz sempre um palpite ou chute não deveria fazer parte do discurso de um presidente — não consola nem resolve o problema dos estudantes que fizeram o Enem e se sentem lesados.

As filas de aposentadorias e outros benefícios do INSS ainda não encurtaram nem um centímetro. A óbvia decisão de demitir o presidente do INSS veio com duas semanas de atraso. O vaivém na decisão de contratar temporariamente militares aposentados, e agora também civis (depois de uma advertência do TCU), mostra que o governo vai administrando na base do improviso, sem consultas ou discussões prévias com quem entende do assunto. Anuncia medidas e tem que voltar atrás porque são inexequíveis. E tudo isso é feito com muito desgaste e exposição negativa.

Ao fim de um ano, as pontas soltas da gestão vão aparecendo a cada dia. O Bolsa Família, aquele programa emergencial que socorre os brasileiros afundados na extrema pobreza, também começa a ratear. Acumulou, no governo Bolsonaro, uma fila de quase 500 mil pessoas — que, em governos passados, costumavam ser atendidas em no máximo 45 dias. E assim vai. Qual será a próxima?

É possível até que alguns aplaudam a decisão presidencial de cortar a cabeça de um auxiliar que usou um avião da FAB de forma inadequada — embora não ilegal e, muito certamente, repetindo o comportamento de dezenas de outros. Mas o cidadão que comparar esse caso ao do ministro da Secom, por exemplo, não verá ali dois pesos e duas medidas? Mais: demitir o viajante vai resolver problemas de setores não atendidos da população, cada vez mais expressivos?

A questão política que se impõe agora é saber por quanto tempo mais o discurso ideológico-demagógico de Bolsonaro vai sustentá-lo. Porque a vida dos governantes é assim: chega um momento em que jogar para a platéia não adianta mais, e nem toda a espuma espalhada em performances diárias esconde as barbeiragens e a incompetência do governo para (ora, vejam só) governar!

O presidente da República parece a cada dia mais imbuído do propósito de turbinar sua candidatura à reeleição em 2022. Só pensa nisso. Mas alguém precisa avisar a ele que, sem governo, fica difícil ter reeleição.

O epidemiologista digital

Enquanto boa parte do mundo se preparava para celebrar o Ano Novo, pesquisadores da consultoria canadense BlueDot disparavam um alerta para seus clientes. Havia um novo vírus na praça com potencial de se espalhar rapidamente. Os especialistas ainda apontaram para o epicentro: a cidade de Wuhan, na China. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano deu o alerta em 6 de janeiro. A Organização Mundial de Saúde, no dia 9. A diferença entre os competentes organismos tradicionais e a BlueDot é só uma: inteligência artificial.

A BlueDot não foi apenas a primeira a avisar do coronavírus, que nesta quinta-feira fez a OMS declarar que estamos em estado de emergência de saúde internacional. Ela também previu, corretamente, que as primeiras cidades fora China a perceberem casos do vírus seriam Bangkok, Seul, Taipei e Tóquio.


Já era previsível que este dia ia chegar. A última vez em que um vírus assim perigoso se espalhou foi em 2003 — a epidemia do SARS. O fundador da BlueDot, Kamran Khan, era um especialista em doenças infecciosas que trabalhava em Toronto, naquela época. A Wired o entrevistou. “Em 2003, percebi como o vírus tomou a cidade e pôs o hospital de joelhos”, ele conta. “Foi um processo de exaustão física e mental.” Ele criou a empresa para que isso não se repetisse.

O que chamamos de inteligência artificial é, na verdade, um tipo específico de IA. Aprendizado de máquina. Quando falamos de Big Data, aqueles grandes bancos de dados em geral desorganizados, apenas um apanhado de informações que não parecem fazer sentido no conjunto, falamos por causa de aprendizado de máquina. São algoritmos que buscam padrões que se repetem. Aí os identificam.

Para fazer um carro andar sozinho, o algoritmo acompanha vários motoristas dirigindo e compara com o que os muitos sensores do automóvel veem. Ao semáforo vermelho captado pela câmera, se os motoristas sempre param, ele aprende que deve parar. Se sempre que o radar detecta uma pessoa em movimento, o motorista pisa no freio — ele também fará isso. O software aprende os padrões dos dados que recebe, sinais dos sensores e comportamentos dos motoristas. Ao fim, criou-se um programa capaz de tornar um carro autônomo.

O que as muitas startups fazem é criar algoritmos de aprendizado de máquina para usos específicos. Como, no caso do doutor Khan, sua preocupação era alertar e prevenir doenças altamente infecciosas, foi para isto que dirigiu sua tecnologia. A BlueDot trabalha com três fontes para alimentar seus bancos de dados. O noticiário publicado por sites jornalísticos em 65 línguas diferentes, tráfego aéreo e relatórios de epidemiologia animal. 

Cruzando as notícias, às vezes apenas pequenas notas, com os relatórios de doenças infecciosas em animais, são capazes de perceber uma epidemia nascendo. Junte-se ao pacote o ir e vir de aviões e conseguem estabelecer, probabilisticamente, para que lugares estão indo as pessoas que foram expostas ao novo vírus.
O coronavírus não foi sua primeira história de sucesso. A BlueDot também previu o surgimento da Zika na Flórida. Mas aquele foi um caso menor, localizado. Mais um teste de caso do que um exemplo comprovado. Agora já dá para dizer: ninguém detecta mais rápido o surgimento e o comportamento de uma epidemia do que um computador.

A partir de agora, será assim. Estas tecnologias estão entrando nas nossas vidas por todos os lados. Os nossos anos 20 que ora começam vão marcar o momento em que nos habituaremos a conviver com inteligências artificiais por toda parte. Muito em breve, vamos nos perguntar: como era mesmo que fazíamos sem?<

Disforme como Frankenstein, ministério de Bolsonaro clama por uma reforma

Ao esvaziar o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, num processo muito parecido com um esquartejamento político, Jair Bolsonaro contradiz o discurso segundo o qual o governo não precisa de reforma ministerial. De acordo com a superstição difundida por Bolsonaro, seu ministério é técnico, opera sem viés ideológico e introduziu na administração pública brasileira um grau de eficiência sem precedentes. Tudo conversa fiada.

A equipe ministerial de Bolsonaro revelou-se heterogênea e disforme como um Frankenstein. O pedaço do governo que funciona, puxado pela área econômica, é atrapalhado pela ala dos trapezistas ideológicos, que insistem em botar fogo no circo, à frente Meio Ambiente e Educação. Bolsonaro diz que não precisa de reforma ministerial. Outra lorota. Na verdade, o ministério já foi reformado, só que piorou. O ministro palaciano Gustavo Bebianno teve a cabeça levada à bandeja. Ricardo Vélez, caiu de maduro da pasta da Educação. E foi substituído por Abraham Weintraub, que dá ao país erros e polêmicas como a bananeira dá bananas.

Foram enviados para o olho da rua também os generais Santos Cruz, da Secretaria de Governo; e Floriano Peixoto, que havia sucedido Bebianno na secretaria-geral e foi rebaixado para a presidência dos Correios. Incluindo-se na dança de cadeiras gente do segundo escalão, como presidente do BNDES Joaquim Levy, substituído pelo "garoto" Gustavo Montezano, e o nazi-secretário de Cultura Roberto Alvim, trocado por Regina Duarte, as demissões passam de 20. O derretimento da equipe ajuda a envelhecer precocemente o governo.

Embora Bolsonaro relute em admitir, a Esplanada clama por uma reforma. Uma pessoa que não sabe nadar não se afoga por cair na água. Ela morre afogada por permanecer lá. No alvorecer do segundo ano de mandato, Bolsonaro comanda uma equipe precária. Um pedaço do ministério naufraga num mar de incompetência e suspeição. Como Bolsonaro demora a promover substituições que parecem óbvias, sua autoridade afunda junto com os ministros que ele frita ou esquarteja.

Pensamento do Dia


Brasil vive crise democrática

A satisfação com a democracia atingiu seu patamar mais baixo das últimas décadas no mundo, afirma um relatório publicado nesta semana pela Universidade de Cambridge, que analisou dados disponíveis desde 1995.

Na média mundial, o número de pessoas insatisfeitas com o sistema democrático em seus países é recorde e chegou a 57,5%, ficando 9,7 pontos percentuais acima de 1995.

A tendência negativa é especialmente forte desde 2005, ano que marca o "início de uma recessão democrática global", segundo os pesquisadores. Naquele ano, apenas 38,7% dos cidadãos estavam insatisfeitos.

Entre os motivos listados para a atual situação estão eventos políticos e sociais como a crise financeira de 2008, a subsequente crise do euro de 2009 e a crise dos refugiados na Europa, em 2015. A insatisfação com a democracia subiu 6,5 pontos percentuais após o colapso do banco Lehman Brothers, em outubro de 2008, afirma o relatório.


No Brasil, a insatisfação pública com a democracia alcançou níveis recordes em meio à série de escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato, afirma o relatório. Menos de 20% dos brasileiros estão satisfeitos com o sistema democrático, aponta.

"Uma breve exceção ocorreu durante a primeira década do século 21, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2010", observa o relatório. "Colhendo os frutos de um boom global de commodities, o governo Lula investiu em programas para reduzir a pobreza amplamente disseminada e reduzir a desigualdade."

"Em retrospecto, porém, esse foi apenas um hiato entre dois períodos de instabilidade – um marcado pelos efeitos da crise dos mercados emergentes do final dos 1990, e outro que começou com a Lava Jato [...] Ao que parece, o futuro foi mais uma vez adiado para o Brasil."

O relatório separa os países analisados em quatro grupos: satisfação com a democracia, casos de preocupação, mal-estar e crise. O Brasil está no quarto, ao lado de Venezuela, México, Ucrânia, Colômbia, Peru e Moldávia, onde há democracias que enfrentam uma "real 'crise' de legitimidade" e três quartos dos cidadãos ou mais declaram insatisfação com o sistema democrático.

Os únicos países onde as pessoas estão satisfeitas com a democracia são Suíça, Dinamarca, Luxemburgo, Noruega, Irlanda, Holanda e Áustria.

A maioria dos países está nas duas categorias intermediárias. A Alemanha está entre os casos de preocupação. Reino Unido, Estados Unidos, Espanha, Itália e França estão abaixo, na categoria "mal-estar".

O relatório também observa que a perda de confiança na democracia pode ter consequências futuras. "Muitos dos países que, nos anos 1990, tinham os menores níveis de confiança na democracia – como Rússia, Venezuela e Belarus – são exatamente aqueles que experimentaram uma erosão democrática na década seguinte, geralmente com a eleição de homens-fortes que, uma vez no cargo, começaram a minar direitos civis e liberdades."

Deutsche Welle

Nem se liga

O brasileiro suprimiu dos seus hábitos o ponto de exclamação
Nelson Rodrigues

A dor do outro

É a mais difícil de sentir. Exige compaixão. Sentimento, parece, em desuso.

Com mais ou menos intensidade, sentimos morte e desditas dos próximos. Aos distantes, reservamos certa perplexidade, indignação de curto prazo. Compaixão é mais difícil. Não somos treinados para exercê-la.

Compaixão é palavra precisa – sentir a dor do outro, estar na dor do outro. Não importa quem, nem onde.

Já vimos algum candidato a cargo eletivo prometer: meu governo, meu mandato, será de compaixão?

Não faltam motivos para que alguém, que se proponha representar cidadãos, prometa – e pratique compaixão por todas as dores. Particularmente pelos mais vulneráveis – crianças, idosos, mulheres, negros, comunidade LGBTS+, índios, migrantes e imigrantes, pelas florestas, rios, mares e animais. Pelos pobres e abandonados, que habitualmente contêm esses já citados e que estão sujeitos a tudo – humilhação, desrespeito, preconceito, fome, violência e impiedades de todos os calibres.

Fosse a compaixão cultivada, em especial por governantes, não faltariam escolas e leitos de hospitais para quem precisa; nem vacinas e remédios básicos e fundamentais, ou as filas do INSS e os seis meses de espera para ter direitos atendidos; nem trabalho escravo, nem os mortos de Mariana e Brumadinho, ou o desamparo dos atingidos pelas enchentes de todo verão.

Sentimento real de compaixão não permitiria a veiculação de propagandas de empresas responsáveis por tragédias – como a Vale - até que todos os atingidos fossem devidamente atendidos em suas dores, suas necessidades, seu recomeço de vida. A compaixão estaria acima do lucro. E nós mais humanizados.

A compaixão daria fim às balas perdidas que alcançam filhos, mães, pais; zeraria o padecimento e o desamparo dos que vivem sob a violência das botas e dos desmandos das milícias, das polícias.

Compaixão faria melhores as sentenças de juízes, verdadeiras e comprovadas as acusações.

Se obrigatório, o exercício da compaixão geraria respeito e atendimento real aos que pagam os impostos que sustentam o Estado em pé.

Confiar no reaprendizado da compaixão não é sonho ou ingenuidade. Pode ser alimento e cura para a desesperança dos que enxergam e sofrem com a prevalência da impiedade, que é chocante, anormal e desumana.

Normal seria aprender a sentir como nossa a dor do outro. Normal será a revolta de muitos contra as dores reais de tantos, que assistimos, conformados e pacíficos, como se fossem só deles e bem distante de nós.

O preço do frio em Portugal

A chegada do inverno provoca arrepios nos portugueses. E não é só de frio. A conta de energia mais cara da Europa faz com que 19,4% da população de Portugal — quase 2 milhões de pessoas — não tenha dinheiro para aquecer adequadamente suas casas. A consequência é trágica: o país registra o segundo maior aumento de mortes durante a estação no continente, atrás apenas de Malta, um arquipélago no Mediterrâneo.

Segundo um estudo da Universidade de Oxford, publicado no European Journal of Public Health, há, no inverno em Portugal, um acréscimo de mortes sazonais em torno de 28% em comparação com o número de óbitos em outras estações do ano. Em Malta, esse aumento é de 28,3%. Já a média europeia é de 15%.

No inverno de 2017-2018, foram contabilizadas 3.700 mortes acima do esperado no país. A maior parte delas ocorreu dentro de imóveis sem aquecimento central ou revestimento adequado para suportar as baixas temperaturas. Os mais atingidos foram idosos com 85 anos ou mais. Com a queda nos termômetros, aumentam os problemas cardiovasculares e as complicações causadas pela gripe.


Países escandinavos, que no inverno registram temperaturas de até -15 graus célsius, têm casas mais preparadas e índices abaixo da média do continente. Na Islândia, a taxa é de 8,5%; na Finlândia, de 9,2%; na Noruega, na Dinamarca e na Suécia, cerca de 12%. França (13,5%) e Alemanha (11,9%) também ficam abaixo da média. O Reino Unido está acima da média (15,9%), assim como a Bélgica (15,7%) e a Itália (15,2%). Na Espanha, vizinha a Portugal, a taxa é de 18,6%.

Portugal tem fama de ter um clima aceitável no inverno em comparação com o norte da Europa. Não é raro os termômetros ultrapassarem máximas de 13 graus célsius durante algumas semanas da estação. A ideia de que é um “país quente” foi disseminada através de gerações de portugueses e, por isso, as casas não foram construídas com isolamento térmico. Em geral, no país, a temperatura mínima pode cair para 4 graus célsius e, em algumas regiões, para abaixo de zero. Sem aquecimento central, as habitações ficam úmidas e geladas ao longo do dia. De madrugada, a sensação térmica fica ainda mais baixa.

Somente em 2006 foi criada uma lei para obrigar novas construções a usarem janelas duplas e materiais resistentes ao inverno. Contudo, fazer a conversão em imóveis antigos é caro, e, muitas vezes, a modificação em habitações de interesse histórico ou patrimonial enfrenta obstáculos junto aos órgãos governamentais.

Mesmo quem tem aquecimento central ou aquecedores elétricos portáteis espalhados pelos cômodos não deixa os aparelhos ligados o tempo todo, para poupar na conta de luz, que pode triplicar durante a estação. Foi a solução encontrada por Fernanda Silveira para evitar que a mãe, Laurinda, de 85 anos, passasse pela mesma situação de alguns anos atrás. Com problemas cardiovasculares, Laurinda sofreu um AVC dentro de casa, no Porto, durante o inverno.

“Não é possível deixar os aquecedores ligados o tempo inteiro, porque a conta de luz vem muito cara. Mas é preciso ligá-los alternadamente quando está muito frio dentro de casa”, disse Silveira.

Classificados como “consumidores energeticamente vulneráveis” pelo Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat), os cerca de 20% de portugueses nessa situação ultrapassam em muito a média continental — 8% dos europeus não têm como aquecer a casa. Para não passar frio, eles precisariam gastar entre € 27,50 e € 40,70 a mais com a conta de luz durante os três meses do inverno. Valores que um em cada cinco portugueses diz não poder pagar, de acordo com uma pesquisa do Instituto Superior de Economia e Gestão (Iseg), da Universidade de Lisboa, sobre a pobreza energética.

A relação negativa entre consumo e bem-estar levou o Eurostat a apontar Portugal como o país com a conta de energia mais cara da Europa. O sistema de apuração foi baseado nos Padrões de Poder de Compra (PPC) por quilowatts. Quanto mais alto o número atribuído, mais salgada a conta. Em Portugal, a eletricidade representa 38,03 PPC. Na Holanda, onde foi registrado o menor índice, 14.

Quanto ao gás natural, os portugueses pagam 10 PPC por 100 quilowatt-hora e apenas 22% têm acesso a esse tipo de energia, o que aumenta a dependência da eletricidade. No Reino Unido, o índice é de 4,5 PPC por 100 quilowatt-hora, e ainda há o Cold Weather Payment, um apoio financeiro no inverno para pensionistas e desempregados. Em Portugal, desde 2016 funciona a tarifa social, um desconto automático concedido trimestralmente a clientes economicamente vulneráveis.

Parte do valor pago na conta de luz pelos portugueses reflete o peso da carga fiscal e de taxas públicas. Em uma fatura de € 63,22, por exemplo, é adicionado 23% de Imposto sobre Valor Acrescentado (o IVA, € 15,10) e uma contribuição audiovisual de € 3,02 para financiamento da rede pública de TV e rádio, a RTP. O total chega a € 81,47. No início do ano, uma das maiores empresas de energia do país enviou aos clientes um aviso de aumento dos preços das potências contratadas.

Em um debate no Parlamento para discutir o orçamento do Estado para 2020, o governo disse que aguarda autorização da Comissão Europeia para diminuir o IVA na conta de eletricidade. O Bloco de Esquerda propôs a redução para 13% a partir deste ano e para 6%, a menor faixa possível, em 2022.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

A muleta da conspiração

Jair Bolsonaro tem um caso antigo com as teorias da conspiração. Desde que virou deputado, em 1990, ele descreve o Brasil como um país à beira do comunismo. O fantasma vermelho nunca existiu, mas o ajudou a acumular sete mandatos.

No Planalto, o capitão continuou a combater inimigos imaginários. Ao enfrentar as primeiras dificuldades no Congresso, ele insinuou que haveria um complô para derrubá-lo. Ao ser criticado pelas queimadas na Amazônia, acusou o ator Leonardo DiCaprio de participar de uma trama contra a floresta.


Ontem Bolsonaro voltou a investir na ficção. Ao chegar da viagem à Índia, ele declarou que os problemas do Enem podem ter sido fruto de sabotagem. Na mesma entrevista, levantou suspeitas sobre a auditoria que não identificou fraudes no BNDES. “Tem coisa esquisita aí”, garantiu. Em ambos os casos, o presidente não apresentou nenhum fato concreto para sustentar o que disse.

A tese de um conluio para melar o Enem não para em pé. A lambança é de responsabilidade do Ministério da Educação, que permitiu a troca de gabaritos e demorou a reconhecer a extensão do problema.

Se houve sabotagem, ela foi promovida pelo próprio governo. Bolsonaro disse que escolheria todos os ministros por critérios técnicos, mas entregou o MEC a dois seguidores de Olavo de Carvalho. Ao nomear Ricardo Vélez e Abraham Weintraub, premiou a incompetência a serviço da guerra ideológica.

No caso do BNDES, o discurso conspiratório ajuda o presidente a disfarçar um vexame. Desde a campanha, ele prometia abrir a “caixa-preta” do banco. A tal auditoria custou R$ 48 milhões e não encontrou nenhum sinal de corrupção.

Bolsonaro não parece acreditar nas próprias cascatas, que usa como muletas para desviar a atenção de problemas. Mesmo assim, suas teorias ainda convencem muita gente. Segundo pesquisa do Instituto da Democracia, 45% dos brasileiros não confiam na contagem de votos do TSE. O presidente é o primeiro na fila para desacreditar as urnas eletrônicas.

As águas de janeiro

A cobertura de deslizamentos de terra na Região Serrana do Rio de Janeiro, provocados por fortes chuvas em janeiro de 2011, foi talvez a mais chocante que já fiz. Centenas de pessoas morreram soterradas em baixo de lama, rochas e casas destruídas. Era destruição total nos vales, com pedras gigantes passando por cima de casas, e rios de lama, pedras e árvores levando pessoas embora. As autoridades juravam, na época, que algo assim nunca mais iria se repetir. Nos últimos dias, no entanto, mais de 60 pessoas morreram por causa das chuvas fortes em Minas Gerais e no Espírito Santo. Outra vez, casas foram levadas embora pelas correntezas.

É verdade que resolver os problemas não é fácil. As chuvas no Brasil caem com muita força, o solo desliza facilmente, e a urbanização desordenada dos últimos 50 anos, com muitas casas construídas de forma ilegal nas encostas, dificulta qualquer ação das autoridades. E retirar moradores de áreas de risco geralmente gera conflitos – principalmente porque não há uma oferta de moradias alternativas para essas pessoas. E, tendo em vista o número grande de construções nessas condições, solucionar o problema realmente demanda um esforço gigantesco.

Mas há, também, um aparente despreparo das autoridades, ou, talvez até uma certa indiferença. Os problemas não são novos – então por que não se vê um esforço para solucioná-los? Em 2019, o governo federal usou apenas um terço dos recursos previstos no orçamento para prevenção de desastres naturais, atingindo o menor patamar em 11 anos.

O governo federal joga a culpa para os governos locais, ou seja, estaduais e municipais, dizendo que eles não realizaram as obras previstas. O empurra-empurra de sempre. Fica a impressão de que resolver esses problemas não é prioridade para os governos.


Desde que cheguei ao Brasil, há 20 anos, os problemas são os mesmos, e pouco se fez para melhorar a situação. O esgoto toma conta dos rios que atravessam as cidades – até mesmo a mais rica de todas, São Paulo, com os rios Tietê e Pinheiros fedendo a dejetos. Apesar de investimentos pesados, o problema continua. Falta saneamento básico.

No caso do Rio de Janeiro, nada de concreto é feito para resolver a poluição dos rios, lagoas e da Baía de Guanabara. Centenas de milhões de reais foram investidos na despoluição, mas o cenário continua o mesmo.

Recentemente, a situação até piorou, com o esgoto se misturando à água potável. Habitantes reclamam de doenças causadas pela água suja, procurando se abastecer com garrafas pet de água, produto escasso em muitos supermercados da cidade. Ambientalistas previam há anos a atual situação vivida pela segunda maior cidade brasileira. Mas o governo estadual nega que a água tenha ficado imprópria para o consumo. O governador Wilson Witzel simplesmente fala em "alarmismo".

Para o governo do Rio, lucrar com a prevista privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) é essencial para sair da crise financeira. Valorizar a estatal antes da venda parece ser prioridade para o governo, que, com a finalização da nova estação de tratamento de Gandu, espera mais que dobrar o valor da Cedae, para 15 bilhões de reais.

Enquanto a Cedae obteve um lucro histórico de 832 milhões de reais em 2018, as reclamações explodiram. Aparentemente existe um sucateamento das instalações, que provoca problemas de abastecimento. Há meses, a mídia relata problemas na estação de Guandu, onde, desde o começo de janeiro, o esgoto se mistura à água potável.

Fica a impressão de que lucrar é mais importante do que resolver os problemas. E isso não é exclusividade dos governos. Os desastres de Mariana e Brumadinho levam a acreditar que empresas privadas tampouco colocam a segurança em primeiro lugar. Me pergunto: onde está a pressão popular para exigir uma melhoria?
Thomas Milz

Brasil endemoniado


Por ora, o risco maior é o 'Viabra', vírus da incompetência aguda brasileira

O coronavírus pode diminuir de um quinto a um terço do crescimento da China neste trimestre, a gente lê por aí em relatórios financeiros e em textos de consultorias. É uma diferença brutal de estimativa (rir, rir, rir), ainda mais para um PIB grande como o chinês, equivalente a um sexto da economia mundial.

A tolice não para por aí, embora a doença seja séria e possa matar milhares de pessoas. Por ora, no entanto, a gente corre mais risco com o Viabra (“Vírus da Incompetência Aguda Brasileira”), que infecta evidentemente o INSS ou a Educação, para ficar só em dois exemplos, mas pode infectar até a medula da política econômica.

A gente não tem informação confiável nem sobre a doença, que dirá de seus efeitos na economia da China ou do mundo. Não se sabe bem o número de casos chineses, com o que não se conhece a velocidade de expansão da infecção nem quão letal é.


Cientistas de Hong Kong criticam os números da China (pode haver mais infecções). Há dúvidas sobre qualquer contagem porque, afora a confusão que esses surtos provocam, duvida-se que ora existam profissionais e testes em quantidade suficiente para fazer exames.

O coronavírus vai ter efeito pior do que seu primo que causava a Sars (síndrome respiratória aguda grave), epidemia de 2002-2003? Pelo que se tem registro, a Sars matou cerca de 800 pessoas e infectou umas 8 mil, de novembro de 2002 a julho de 2003. Uns estudos do efeito econômico da doença dizem que a epidemia tirou cerca de um décimo do crescimento do PIB chinês, que corria então ao ritmo de 10% ao ano. Além de Hong Kong e Singapura, no restante do mundo, o efeito foi na prática irrelevante, afora para os mortos, suas famílias e seus amigos.

Isto posto, o vírus parece bastante agressivo, escreve gente que estuda o assunto, em revistas científicas. Um baque significativo na economia chinesa pode ter efeitos diretos no Brasil (preços de minério e petróleo) e indiretos. Até a semana passada, o FMI e bancões pareciam animadinhos com alguma retomada da economia mundial. Para o FMI, o crescimento global passaria dos 2,9% estimados para 2019 para 3,3% neste 2020. Se houver desgraça maior na China, não vai rolar.

Enquanto seu vírus não vem, o nosso principal problema somos nós mesmos e o Viabra, o vírus da incompetência. Além de gente desclassificada, há gente desqualificada em postos-chave do governo.

Desgraçar a vida de gente na fila do INSS ou infernizar vestibulandos do Enem, no curto prazo nem causa danos econômicos, pode-se congratular barbaramente o governo. Mas o Viabra está espalhado pela administração federal, um risco enorme para a economia, doente grave que convalesce devagar. Nesse ano, seria preciso haver outra rodada de redução duradoura de gasto, um programa de obras na rua e algum conserto tributário, pelo menos. Se nem ao menos o pacotão rudimentar e antissocial de ajuste econômico for adiante, o caldo azeda.

Exagero? Note como o Ministério da Economia diz “a” e Jair Bolsonaro diz “não a” ou “b” sobre tantos assuntos. O governo cria crises políticas do puro ar, do nada. A maioria delas tem sido espuma tóxica, daninha, mas que se dissipa.

E quando não for? Esperar que Rodrigo Maia governe o grosso da economia com uns economistas de Bolsonaro e controle suas atrocidades maiores pode até ser uma expectativa razoável, mas o mero fato de que as coisas tenham funcionado assim, e olhe lá, não diz boa coisa sobre o nosso arranjo.

Notória negligência

A responsabilidade quando temos perdas de vidas humanas é da negligência do poder público que não soube ouvir o que os cientistas estão alertando há muito tempo e tomar medidas
Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima
 

Recorde de mortes por policiais e a queda de homicidios no Rio são fenômenos desconectados

A letalidade policial bateu um novo recorde no Rio de Janeiro em 2019, enquanto a criminalidade teve uma queda histórica no Estado, tendência que se estende ao resto do Brasil, um dos países mais violentos do mundo. Segundo dados oficiais do Governo fluminense, 1.810 pessoas morreram em intervenções policiais no ano passado, a cifra mais alta em duas décadas. Os 3.995 homicídios registrados, por outro lado, representam um resultado histórico, o menor desde 1991. Embora os políticos partidários da linha dura com a criminalidade apontem para a eficácia dessa posição, numerosos especialistas brasileiros em segurança pública advertem que os dois fenômenos não estão vinculados.

Ao conhecer o balanço anual da violência, o governador de Rio, Wilson Witzel, tuitou na semana passada: “Nossa política de segurança vem gerando resultados positivos mês após mês”. Quando fazia campanha para o cargo que ocupa há pouco mais de um ano, o mesmo Witzel prometeu: “A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo” contra os suspeitos armados com fuzis. Em seus tuítes, o governador, que foi juiz e militar, enumerou as estatísticas, que também refletem notáveis quedas nos latrocínios e apreensões de armas. Mas Pablo Nunes, especialista da Rede de Observatórios da Segurança, explica que “é improvável que as variações nas taxas de homicídios e mortes por policiais estejam relacionadas. Quando analisamos os bairros e cidades do Estado do Rio, na maioria dos casos onde as mortes por policiais aumentaram, os homicídios também aumentaram ou se estabilizaram, e vice-versa”.

Ilona Szabó, especialista em segurança pública, adverte de que “às vezes as reduções da criminalidade são utilizadas para legitimar o abuso da força. A relação, entretanto, é falsa”, escreve nesta quarta-feira na Folha de S.Paulo. Daniel Cerqueira, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concorda: “Essa retórica do governador é falsa. Estatisticamente não vemos relação”. O especialista acrescenta que, em todo caso, “a violência policial estimula a violência em geral”.


A queda dos homicídios no decorrer de 2019, que foi também o primeiro ano de mandato presidencial do ex-militar Jair Bolsonaro, estende-se pelo Brasil inteiro. É um dos dados que o ultradireitista mais alardeia e que influi no recente aumento de sua popularidade neste país que está há anos entre os mais violentos do mundo, excetuando as nações em guerras. A especialista Szabó alerta que existem “líderes que estão reduzindo problemas complexos a discussões binárias e reforçando a violência como solução”. Justamente nesta quarta-feira, o Governo autorizou que os donos de armas legais possam comprar quatro vezes mais munição por ano do que antes.

Os tiroteios são tão frequentes no Rio que quatro crianças foram alcançadas por balas perdidas desde o início de 2020. A última delas, de cinco anos, assistia a um jogo de futebol amador. Uma bala atingiu o menino nesta segunda-feira na cabeça depois de perfurar a mão de seu pai, que tentava protegê-lo da troca de tiros entre policiais e bandidos. O garoto sobreviveu, mas está em estado muito grave.

O Rio de Janeiro ―Estado onde vivem 17 milhões de brasileiros― se destaca em nível nacional e internacional pelo tanto que sua polícia mata. Para que se tenha uma ideia, as 1.810 pessoas mortas por disparos de agentes em 2019 representam mais do que o dobro das 800 vítimas assassinadas pela organização terrorista ETA na Espanha durante quatro décadas, ou metade das mortes no conflito da Irlanda do Norte. O assunto alcançou tal magnitude que a ONU expressou sua preocupação em setembro passado. E também tem seu reflexo na cultura popular. A telenovela mais vista da atualidade no Brasil, Amor de Mãe, tem entre seus vilões um policial corrupto que mata um policial honesto.

Na comparação nacional, as forças de segurança do Rio também se destacam, como indica a comparação com São Paulo. A taxa de mortes cometidas pela polícia fluminense supera a soma de homicídios perpetrados por bandidos e policiais em São Paulo, segundo a Folha. Um dos fatores que explica essa diferença é que o grupo criminoso mais poderoso de São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC), proíbe matar sem autorização no território que domina.

É muito pouco provável que um policial seja denunciado no Brasil por abater um suspeito, muito menos julgado ou condenado. Nem um só agente do Rio foi levado à Justiça em 2019, segundo uma investigação da revista Época, que analisou os casos dos 195 mortos pela polícia em julho, o mês mais letal. Revela que foram abertos 151 inquéritos, que 11 casos foram arquivados, e que não foram encontradas informações sobre outros 19. A revista descobriu que os boletins de ocorrência revelavam um padrão: incursões em favelas de patrulhas compostas por dois a seis policiais com fuzis para reprimir o tráfico de drogas; são atacados, respondem, fazem buscas no local, localizam a vítima e a levam ao hospital. Ressalta a Época que em 60% dos casos os agentes não retornaram ao local dos fatos para investigar. A imensa maioria das vítimas da violência policial é composta por homens negros, pobres e moradores de favelas.

O professor Cerqueira salienta que as mortes violentas vêm diminuindo no Rio do Janeiro desde 2003, com a única exceção do biênio 2016-2017, quando se registrou uma alta coincidindo com a crise socioeconômica generalizada na cidade depois das Olimpíadas do Rio.

A estagnação brasileira

Um olhar sobre a trajetória da economia brasileira nas últimas quatro décadas, quando o ritmo de crescimento caiu para um patamar bem inferior ao registrado nas décadas anteriores, mostra que, muito provavelmente, o país ainda não acabou de desmontar o modelo de desenvolvimento que faliu em 1982. Naquele ano, por causa da elevação da taxa de juros nos Estados Unidos a inacreditáveis 20% ao ano, países em desenvolvimento, como o Brasil, que se endividaram na década de 1970 simplesmente quebraram.

Em vez de reconhecer o fato de que, dali em diante, o modelo de Estado-empresário e de substituição de importações não teria mais como ser mantido por causa da enorme e abrupta restrição fiscal e creditícia surgida em 1982, os governantes optaram, nos anos seguintes, principalmente durante o governo Sarney (1985-1990), por insistir na salvação do que não tinha mais como dar certo.


A extensão do modelo de forte intervenção do Estado na economia e de fechamento comercial criou dificuldades que visivelmente até hoje impedem o país de voltar a crescer de acordo com seu potencial histórico. A insistência, ademais, permitiu que os setores da sociedade beneficiados por aquele regime econômico - a burocracia estatal e a indústria - se organizassem e reagissem a mudanças. A fatura do atraso - a escalada permanente dos preços a níveis crônicos e depois hiperinflacionários - foi paga por todos, mas especialmente pelos pobres, de quem o chamado “imposto inflacionário” mais retira renda.

Crises econômicas costumam ser semeadas durante períodos de bonança, quando cidadãos e empresas perdem a noção do risco ao acreditar que o ciclo econômico em que estão jamais acabará. A explosão do preço do petróleo no início da década de 1970 elevou a níveis impensáveis a liquidez mundial. A derrama de “petrodólares” derrubou fortemente as taxas de juros cobradas pelos bancos internacionais. Ato contínuo, essas instituições ofereceram crédito a um custo muito baixo a países como o Brasil, que, sendo estruturalmente uma economia importadora de capitais, foi à banca buscar esses recursos.

O país terminara a década de 1960 com dívida externa em torno de US$ 6 bilhões. Dez anos depois, graças ao funding dos “petrodólares”, essa dívida saltou para algo próximo de US$ 100 bilhões. O Brasil precisava desse dinheiro? Não se tenha dúvida. Foi isso que permitiu promover um ambicioso investimento em infraestrutura, absolutamente necessário para uma economia que, naquele momento, crescia acima de 10% ao ano, o ritmo mais veloz do planeta.

Com o dinheiro da dívida externa, o país criou um sistema elétrico integrado nacionalmente, expandiu fortemente a capacidade geradora de energia, implantou um sistema de telefonia federal razoavelmente moderno, construiu rodovias federais cortando praticamente todo o território, inspiradas no modelo americano, ampliou aeroportos, ferrovias etc. A crença de que a dívida seria honrada se baseava na percepção, correta, de que, como a economia avançava num ritmo veloz, não faltariam receitas para pagar os débitos.

O problema é que as taxas de juros, embora baixas, eram flutuantes. Como a segunda crise do petróleo, em 1979, provocou nova escalada nos preços dos combustíveis, a inflação americana assanhou-se, chegando a atingir mais de 20% A reação do Federal Reserve (Fed) foi a que se espera de um banco central independente: elevar a taxa de juros para conter a demanda e, consequentemente, os preços. A pancada no custo do dinheiro bateu nos juros flutuantes das dívidas dos países do chamado Terceiro Mundo e então a quebradeira foi generalizada.

Na reunião anual do Fundo Monetário Internacional (FMI), o “pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos” - na célebre frase de um de seus ex-presidentes, Porfirio Díaz - foi o primeiro a se declarar incapaz de honrar os vencimentos das dívidas contraídas na década anterior. Na sequência, outras economias fizeram o mesmo, generalizando o calote e iniciando um período terrível de nossa história econômica, marcado pela falta de acesso a poupança externa para financiar nosso desenvolvimento.

Os calotes se sucederam, o país foi obrigado a promover maxidesvalorizações de sua moeda frente ao dólar para elevar a competitividade das exportações e, assim, gerar saldos positivos na balança comercial, suficientes para pagar os vencimentos da dívida externa. Numa decisão drástica, o Banco Central centralizou o câmbio - basicamente, passou a definir a quem pagaria a dívida lá fora, uma vez que não havia divisas para pagar a todos.

As consequências vieram em forma de mais inflação, arrocho salarial, imprevisibilidade dos principais indicadores econômicos, enfim, uma situação que apenas os brasileiros com mais de 40 anos hoje viveram na pele. E, a partir dali, sem acesso a poupança externa e com inflação fora de controle, a taxa média de crescimento caiu a níveis nunca vistos nas três décadas anteriores.

Olhemos os números: da primeira década do século XX até a década de 1970, o Brasil cresceu a uma taxa média anual de 4,6%; de 1971 a 1980, esse ritmo saltou para 8,8%; na década de 1980, a taxa média de expansão recuou para 3%; na década de 1990, caiu para 1,8%; nos primeiros dez anos deste século, aumentou para 3,4% ao ano; na última década, a década perdida do novo século, o crescimento anual médio da economia brasileira foi de apenas 1,4%, a menor das 12 décadas desde 1900.

“Muita gente continua falando da recessão que acabou, mas alguns ignoram que estamos ainda numa depressão e, mais ainda, que estamos numa estagnação que acaba de completar quatro décadas”, diz o economista Roberto Macedo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Essa grave estagnação não vem sendo pautada pela mídia e tampouco está na pauta dos políticos. Meu objetivo é fazer com que cresça a percepção dessa tragédia, com a esperança de que venham ações para saná-la. É humilhante o fato de que a década passada foi a de pior desempenho do PIB desde 1901.”

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Defeitos de fabricação do governo Bolsonaro são cada vez mais evidentes

Ao anunciar a saída do chefe do INSS, o governo disse esperar "que não haja descontinuidade" nas atividades do setor. Seria um sinal de autoconfiança se não fosse a fila de 1,3 milhão de pedidos de aposentadoria encalhados no órgão. A equipe de Jair Bolsonaro age como se pudesse trocar uma peça e deixar o calhambeque rodando ladeira abaixo.

Os burocratas alegam que uma falha no sistema da Previdência acabou represando a concessão de benefícios. É mais honesto afirmar que esse é mais um dos defeitos de fabricação deste governo. A falta de planejamento, comunicação e articulação já foi vendida como item de série.


O governo tratou a reforma das aposentadorias como prioridade, mas não preparou as agências do INSS para a aplicação das novas regras. Encomendou planos megalomaníacos para dar nova cara ao Bolsa Família enquanto deixava cidadãos miseráveis na fila de espera. Bateu bumbo para a realização do Enem, mas não conseguiu garantir uma correção precisa de todas as provas.

Dez dias depois de admitir falhas no exame, o Ministério da Educação ainda não convenceu os estudantes de que os erros foram reparados. Nem o presidente foi capaz de dar um voto de confiança total ao chefe da pasta. Bolsonaro não quis responsabilizar o boquirroto Abraham Weintraub, mas emendou que ele continua no cargo "por enquanto".

Com tanta desordem, ineficiência e falta de controle, não é surpresa que tantos integrantes do governo pareçam estar pendurados por um fio —de um secretário de Comunicação em flagrante conflito de interesses ao presidente do BNDES.

Foi o presidente, aliás, quem reafirmou as dúvidas sobre um contrato de auditoria ampliado pela cúpula do banco. "Parece que alguém quis raspar o tacho", disse, chamando o chefe da instituição de "o garoto lá".

Bolsonaro talvez tenha passado a reconhecer os problemas do governo depois de alguma revelação espiritual durante sua viagem à Índia. Algumas coisas simplesmente não têm como dar certo.

Brasil muy amigo


Ares, água e lugares

Florestas queimadas, contaminação da água e pessoas dormindo debaixo de marquises causam doenças que podem ser prevenidas. Desde o século V a.C., os escritos hipocráticos distinguiram ciência de religião e admitiram possibilidades de evitar elementos ambientais nocivos. O prognóstico, uma das principais conquistas da tradição hipocrática, baseia-se na compreensão dos encadeamentos e rupturas entre passado, presente e futuro, que também fundamentam os ideais da Pólis sem tirania. Uma compreensão abrangente da saúde permitiu prever, predizer e buscar alterar desfechos negativos.

Séculos depois, a experiência com a péssima qualidade da água no Rio de Janeiro dispensa o debate grego sobre as causas naturais ou religiosas das patologias. Qualquer pessoa de bom senso intui que as características predatórias das relações humanas e o extrativismo voraz dos recursos da natureza são responsáveis pela piora das condições de vida.


Água potável é um requisito para vida e fator-chave para a saúde. As crianças são particularmente vulneráveis aos efeitos da água insegura. Diarreias e exposição a poluentes inorgânicos, como arsênico, cobre, fluoreto, chumbo e nitrato, podem comprometer o desenvolvimento infantil. Existe algum consenso sobre o diagnóstico. O desafio é passar da constatação sobre o meio ambiente malsão e acusações entre governantes para o prognóstico. O que ocorrerá, caso essas tendências não sejam alteradas? Quais são as melhores estratégias para evitar mais danos à saúde? A geosmina tem mau cheiro, mas a causa da proliferação deste composto orgânico produzido por bactérias é a morte de rios pelo manejo inadequado de dejetos. Saber a origem do fedor da água e que o carvão ativado o atenua é importante, porém insuficiente para influenciar um prognóstico favorável sobre o acesso à água potável de boa qualidade.

Pesquisadores afirmam que a melhor solução seria a despoluição dos rios. Mas o governo estadual atacou, como se fosse um grande feito, apenas um dos sintomas do problema. Decidiu importar equipamento de São Paulo e carvão do Paraná para fornecer água inodora e anunciou a proposta de desviar o curso de rios. Não haverá mudança nos padrões de desigualdade do acesso à água e saneamento e na introdução de substâncias e resíduos em aquíferos, que tornam grandes quantidades de água inadequadas para vários usos.

Seria como se nos contentássemos em saber que o coronavírus do surto de Wuhan é novo e diferente do que causa SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), e não houvesse preocupação com a letalidade, velocidade de contágio, espalhamento dos novos casos e com as estratégias globais de prevenção e tratamento. Quando a atenção se desloca da população sob risco para os patógenos, para os microrganismos, o prognóstico é deixado para segundo plano.

Outra rota de fuga de soluções mais efetivas para os problemas ambientais se expressa na confusão entre fatos e valores. A água é considerada por instituições internacionais de distintos matizes ideológicos como um bem comum; deveria, portanto, ter uma distribuição equânime. Houve melhoria do acesso à água no Brasil e estagnação dos serviços básicos de saneamento. Sob a discussão sempre válida, a respeito da estatização ou privatização das empresas estaduais de água e saneamento, cresce a hiper apropriação privativa da água. O fato é que a água é comercializada por caminhões-pipa e empresas que a engarrafam.

O afastamento de atitudes hipocráticas, especialmente omissão de prognósticos, estimula previsões simplificadoras. As considerações sobre as mudanças dos fatores que determinam os problemas ao longo do tempo e seus resultados dinâmicos requerem o compartilhamento de informações preditivas e reavaliações periódicas. O famoso tratado hipocrático “Ares, águas e lugares” continua atual porque estimula a adoção de processos decisórios coletivos e democráticos e questiona a conversão da abundância de recursos naturais em escassez e doenças.

Sabotagem

O ano de 2020 na Educação começou marcado por uma palavra trazida à moda pelo ministro da pasta: balbúrdia. Confusão na correção do Enem e, consequentemente, na divulgação do resultado do Sisu, o sistema unificado que usa as notas do exame para direcionar os alunos para as universidades.

Ontem, com liminar concedida pelo Superior Tribunal de Justiça, estudantes conseguiram ter acesso aos resultados, mas muitas dúvidas ainda pairavam quanto aos critérios de atribuição das notas e escolha de vagas.

Diante de evidente falha técnica e administrativa do MEC, Jair Bolsonaro optou pela sua saída padrão quando as coisas vão mal por ineficiência dos assessores que ele considera leais, ideologicamente alinhados e suficientemente lacradores nas redes sociais: apontou sabotagem, provavelmente da esquerda infiltrada na pasta.

Isso, claro, sem ter qualquer dado ou evidência – uma sindicância, uma auditoria, alguma denúncia em canais oficiais – de que tenha havido algo do gênero. Diversionismo para enganar aquele exército bovino das redes sociais sempre disposto a amparar qualquer absurdo que venha do governo.


Acontece que numa pasta que lida com estatísticas, como a Educação, o sedimento formado pelo aparelhamento ideológico, pela inépcia administrativa e pelo desprezo à ciência vai deixar marcas que ficarão associadas ao governo Bolsonaro para a História. E neste caso não será possível apontar um complô alienígena para culpar.

Enquanto tudo isso acontecia em seu quintal, o ministro Abraham Weintraub ocupava os últimos dias com mais postagens nas redes sociais divulgando fake news contra jornalistas ou brandindo um vidro de água sanitária numa receita caseira para aplacar o suposto mau hálito de outro. Sim, isso mesmo. Dentro do gabinete do MEC. Está no Twitter, com orgulho indisfarçado da própria capacidade de fomentar a “guerra cultural”.

Também se dispôs a encaminhar “diretamente ao Inep” o caso da filha de um apoiador, uma das milhões de estudantes que apontaram erro na correção do Enem, sempre por meio da rede social favorita. Não é só. Nos últimos dias, decreto assinado por Bolsonaro abre uma brecha para que este MEC, assim aparelhado, em que o titular da Capes, responsável por pesquisas, se revela orgulhosamente defensor do criacionismo, produza livros didáticos.

Não foi por acaso o ataque de Bolsonaro aos livros adquiridos por meio do Programa Nacional do Livro Didático, aqueles que, no gosto presidencial, tinham muita coisa escrita.

O filão dos livros didáticos sempre foi uma espécie de galinha dos ovos de ouro dos pupilos de Olavo de Carvalho que foram encastelados no MEC na gestão de Ricardo Vélez Rodríguez, caíram por intervenção do general Santos Cruz, mas continuam orbitando em torno do poder. Vários desses olavetes inflamados têm participações em editoras e esperam só uma chance para abocanhar esse rentável mercado. E, de quebra, fazer aquela doutrinaçãozinha ideológica, porque ninguém é de ferro.

É esse estado de coisas que compromete de maneira séria a Educação brasileira. Exumar Paulo Freire e malhá-lo como um Judas diante de uma massa que não sabe nada a respeito da obra do educador é um jeito de criar uma cortina de fumaça para o verdadeiro plano de utilizar educação e cultura como correia de transmissão do reacionarismo (e nunca conservadorismo, porque os conservadores de fato se contorcem diante dessa marcha batida rumo às piores práticas autoritárias).

O Congresso, que tem em suas cadeiras alguns bons parlamentares com foco nessa área, precisa, no retorno do recesso, voltar os olhos para os desmandos no MEC, já que, pelo jeito, Bolsonaro continuará apontando inimigos imaginários enquanto seu ministro pinta e borda.

Bolsonaro, entre o ilegal, o imoral e o simplesmente humano

José Vicente Fantini, até ontem o número 2 da Casa Civil da presidência da República, nada fez de ilegal, mas fez de imoral, segundo Jair Bolsonaro, ao usar um jatinho da FAB para voar à Davos, na Suíça e, de lá, para a Índia. Poderia ter viajado em avião comercial. Foi demitido.

A preocupação de Bolsonaro com a moralidade, se não fosse recente, o teria poupado de protagonizar episódios que mancham sua biografia e envergonham o país. Obrigar o filho Carlos, com 17 anos, a ser candidato a vereador para impedir a mãe de se reeleger, foi imoral.

Depois disso, Carlos passou anos sem falar com o pai. Seus desvios de comportamento se devem em grande parte a isso. É o filho mais ligado a Bolsonaro e dependente de suas atenções. Vez por outra, contrariado, desliga o celular e o pai entra em pânico, sem conseguir despachar.


Bolsonaro se elegeu como candidato contra a corrupção e prometendo combatê-la com todo rigor. Afastou-se do combate tão logo estourou o caso da rachadinha da dupla Flávio e Queiroz. Foi Bolsonaro quem pôs Queiroz para cuidar do filho. A imoralidade, agora, bate à sua porta.

O Secretário da Comunicação da presidência da República foi intimado para se defender da acusação de que se valeu do cargo para beneficiar clientes de suas empresas. Contudo, tão logo voltou da Índia, Bolsonaro disse que ele não fez “nada demais”. Não foi nem um pouco imoral?

O presidente há de concordar que pode não ter sido ilegal, mas imoral foi acreditar com base em intrigas familiares que o general Santos Cruz, ministro do seu governo, o criticara no WhatsApp. Demitiu-o por isso. Restou provado que tudo não passou de uma armação contra o general.

Fakenews! Como fake foi Bolsonaro dizer que o nazismo teve sua origem na esquerda. Fakenews é uma coisa imoral. Porque não passa de uma mentira para enganar o maior número possível de pessoas. Bolsonaro sabe disso, mas não desiste de recorrer a elas para extrair benefícios.

Manter no cargo o atual ministro da Educação nem é ilegal, nem imoral. O presidente tem o direito de cercar-se de auxiliares desastrados. Mas é burrice. Faz mal à sua reputação. Como fez mal quando ele afirmou outro dia que “índio cada vez mais é um ser humano igual a nós”.

Quanto a recusar-se a enviar um avião às Filipinas para trazer uma família de brasileiros infectados pelo coronavírus, nem é ilegal, nem imoral, nem burrice. É, apenas, desumano.

Copo mais para vazio que para cheio

Em sua avaliação da economia mundial divulgada este mês durante a conferência anual de Davos, o FMI (Fundo Monetário Internacional) apresentou uma expectativa mais positiva do crescimento do PIB brasileiro para 2020. Em vez do magro 1.0% registrado em 2019, poderemos crescer 2.2%, graças principalmente à Reforma da Previdência e a prospectos mais favoráveis no setor de mineração.

Uma boa notícia, e melhor ainda na comparação com a média da América Latina, que ficará em torno de 1.6%, ainda segundo o FMI. Evitemos, porém, um entusiasmo prematuro, pois, além de percalços internos, dos quais falarei adiante, nossos 2.2% ficam bem abaixo dos 3.4% de crescimento previstos para a economia mundial e correspondem exatamente à metade dos 4.4% esperados para os chamados países “emergentes”.


Permanecemos, portanto, presos no que o jargão dos economistas denomina “armadilha da renda média”, ou “armadilha do baixo crescimento”. Essa armadilha se configura quando, após diversas décadas de crescimento relativamente fácil, baseado na incorporação de mão de obra pouco qualificada e em empreendimentos pouco exigentes em tecnologia, o País empaca. Falta-lhe empuxo, econômico e político, para retomar o crescimento.

Para bem entender o quadro acima esboçado, é preciso desfazer um equívoco comum. Há quem pense que o tamanho de nossa economia, situada mais ou menos em oitavo lugar no ranking mundial, é por si só um indicador de riqueza. Os que sustentam esse ponto de vista se esquecem de fazer duas ressalvas essenciais. O tamanho da economia mantém relação direta com o tamanho da população, que em nosso caso anda pelos 210 milhões, e com a nossa ampla disponibilidade de recursos naturais (minérios, soja, alimentos) que nos asseguram uma posição relativamente forte no comércio internacional. Mas aí acabam as boas notícias. A reforma da Previdência foi um avanço importante, mas ainda não está se refletindo em grandes investimentos, domésticos ou internacionais.

Sem isso, as condições da infraestrutura e a produtividade do trabalho permanecerão num patamar muito aquém do necessário. Nosso nível educacional, e consequentemente o nível de capacitação da força de trabalho, são lastimáveis, contrastando dramaticamente com o quadro de acelerado avanço tecnológico que está emergindo por toda parte. Vamos, pois, com calma. O copo não está cheio como à primeira vista se possa imaginar.