quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Pensamento do Dia

 


Eleitor


Aquele que usufrui o sagrado direito de votar em alguém que foi escolhido por outra pessoa
Ambrose Bierce

Isentão, não

Deu um prazer danado ler a entrevista do cantor e compositor Martinho da Vila, em O Globo desse domingo. Aos 84 anos, Martinho não se esconde. Nem na vida, nem na política. Mesma alegria ao ler declarações de Andrea Beltrão e Marieta Severo, divas do teatro brasileiro. Elas e ele são diretos, posição cristalina, pensam de fato num Brasil de esperança.

“Você vai participar da campanha do Lula?”, perguntou o repórter a Martinho. “Se ele quiser, claro. Para os amigos, faço qualquer coisa”.

Tem Chico, Wagner Moura, Caetano, Gil, Pablo Vittar, Marcelo Serrado, Bruno Gagliasso, Popozuda, José de Abreu … Juliette, Gil do Vigor… e outros mais. A magnitude do respeitável apoio desses artistas não está, certamente, na soma de votos que trarão a Lula, mas na volta por cima da democracia, soterrando anos de sufoco na mão de golpistas, família Bolsonaro e radicais extremistas.

A herança do bolsonarismo é ruinosa. Inflação de dois dígitos, o pior flagelo. Acumulada desde dezembro de 2014 a outubro de 2021, bateu 47,5%. Empobrece o trabalhador, e aumenta ferozmente a miséria extrema. Hoje, segundo a FGV, já são cerca de 30 milhões de brasileiros passando fome no Brasil.

O desemprego, em 2022, baterá recorde com Bolsonaro. Serão 13,5 milhões em dezembro, e o pior índice num ano eleitoral – contabilizadas as sete últimas campanhas presidenciais. Saúde? Bem estar? Educação? Segurança? Cultura? O espólio é catastrófico em todas as áreas. O atraso social é incontestável.

Bolsonaro bateu recorde de desmatamento da Amazônia. Garimpos ilegais proliferam na região. Há pouco tempo, O BNDES, banco de fomento para o desenvolvimento do País, emprestou quase R$ 30 milhões a fazendeiros punidos pelo Ibama por estarem desmatando. Apesar do histórico de infrações, receberam dinheiro publico com juros subsidiados. As informações são da Rede Brasil Atual.

O que esperar, num segundo mandato, de um sujeito que nega a ciência? Dizimar a população que não reza pela sua cartilha? Bolsonaro levou o País a ser o segundo em óbitos pelo coronavirus em todo o mundo, e o terceiro com mais casos confirmados, dados recentes. Somos o sexto país mais populoso e só estamos atrás dos Estados Unidos nessa macabra estatística.

É trágico na área cultural. Regina Duarte e Mário Frias, perversos. Perigosos. Que outro candidato teriam os artistas bem intencionados e que preferem não estar em cima do muro? Ciro Gomes, para Fabio Porchat, e outros tantos. Ok. Primeiro passo. Primeiro turno. Ciro é destemperado, para dizer o mínimo, fugiu do combate em 2018, não tem estratégia política, mas não se pode dizer que não se preocupa com o País.

Em numero menor, talvez, e de menor importância, certamente, é o apoio declarado de alguns artistas ao Capitão. Votos garantidos desse grupo? Há os que se dizem arrependidos. Hoje, Bolsonaro patina nos 22% da preferência nas pesquisas eleitorais, mas é cedo para dizer que o panorama está posto.

A mesma luz que ilumina Lula não alcança o Capitão. Mas é bom lembrar que ele tem a caneta e a chave do cofre. Dá sinais claros de que avançará sobre o orçamento para beneficiar grupos de interesse, e fará tudo e mais alguma coisa para tentar se reeleger. Manchete desta segunda, 14, da Folha de SPaulo diz que pressão da base no Congresso pode fazer explodir bomba fiscal de R$ 230 bilhões. Só a PEC dos combustíveis terá impacto fiscal de R$ 100 bilhões.

Com o País pegando fogo, o Capitão sem noção foi a Rússia, ignorando advertência sobre o péssimo momento de visitar um país literalmente em pé de guerra. Alegou interesses econômicos. De fato, relações desequilibradas. Enquanto o Brasil exportou, em 2021, U$ 1,6 bilhões para a Russia, os russos exportaram para o Brasil nada menos que U$ 5,7 bilhões. A conta não favorece Bolsonaro.

A conjuntura é cada vez mais favorável a Lula. Dificilmente, o governador (dizem bem avaliado em SP) Doria vai decolar na disputa pela Presidência. Moro virou piada, terá enorme trabalho para convencer o eleitorado de que a fala pró-nazismo de seu apoiador Kataguiri foi apenas “uma gafe”. Simone Tebet? Pode surpreender, mas não deve superar Lula.

Ainda é cedo para dizer que estão todos fora do páreo. Mas nunca é cedo para se ter esperança de um Brasil feliz de novo. Isenção, não. Bora fazer campanha. Bora declarar voto.

O governo Bolsonaro nos distrai do que é importante

Está na galeria Tate Modern, em Londres, a instalação British Library (Biblioteca Britânica), feita pelo nigeriano Yinka Shonibare. Trata-se de um salão com milhares de livros revestidos com tecidos estampados. Cada livro representa um imigrante ou filho de imigrante que contribuiu para a cultura inglesa, ou um pensador oposto à imigração.

Instalação é aquela parte da arte tão abstrata que mesmo o ex-diretor do Metropolitan Museum Thomas Hoving achou difícil definir, e que consiste (pela explicação dele) em preencher um salão com itens que evocam complexos e múltiplas associações, pensamentos, desejos, e humores. É como uma imensa pintura, escultura, poema ou prosa em três dimensões.

Shonibare quis celebrar a diversidade da população inglesa, e de fato ao passear pela biblioteca tem-se a sensação de estar num espaço complexo e vivo, as lombadas coloridas simbolizando diferentes pontos de vista, experiências e ideias. Mais que isso, o que o visitante sente é o prazer ocular, as cores fortes alimentam os olhos, e esse prazer passa a ideia de que a imigração é enriquecedora, e faz com a população o que as lombadas fizeram com os olhos.

Desde que vi a instalação não consigo pensar em diversidade sem associá-la à biblioteca conceitual. É o paradoxo desse tipo de arte: ao se permitir o devaneio ela consegue transmitir a mensagem com nitidez. Senti-me inclusive inclinada a me aventurar pela arte experimental, porque uma instalação nada mais é do que uma gigantesca figura de linguagem, com a pessoa dentro da metáfora ou sinestesia.

Eu escolheria replicar o último ano do governo Bolsonaro. E faria assim: os prédios da Esplanada dos Ministérios como retângulos revestidos por portas de banheiro público, vandalizadas e pichadas com piadas chulas e mensagens de ódio. O visitante passaria entre os retângulos rumo a um Congresso Nacional inexistente e visível por holograma. Em alto-falantes, o ruído constante de gente raivosa falando besteira. Num canto escuro uma pilha de jornais com as manchetes que importam, como essa: menino de 9 anos filho de líder rural é assassinado em Pernambuco.

Antes do pesadelo bolsonarista se impor no Brasil, Trump deixava americanos perplexos com sucessivos disparates. Era exaustivo acompanhar, e me lembro de entender a estratégia pela explicação de um jornalista: quando algo não vai bem, Trump grita — olha um esquilo! — e desvia a atenção do que interessa para um assunto banal. Bolsonaro faz o mesmo, e cercou-se de gente que nos apavora, como um presidente da Fundação Palmares que chama um negro linchado de vagabundo e um secretário da Cultura que discute projetos culturais com um lutador de jiu-jítsu. É um caso assustador de meta-polêmica, o governo não precisa criar distrações porque só precisa existir para distrair. Muita gente pendurando melancia no pescoço, e pedindo para que olhemos com horror.

A gente olha, e também se deixa levar por polêmicas que só beneficiam quem as cria, e se esquece de focar no que realmente importa, como o silêncio imposto ao líder rural Geovane Santos, do engenho Roncadorzinho em Pernambuco, que teve o filho de 9 anos assassinado por sete homens encapuzados e armados. É o silêncio imposto a Geovane e outros líderes (e que passa ao largo da acalorada discussão sobre liberdade de expressão), que vai definir as eleições de novembro e vai reeleger a bancada ruralista, num congresso que numa instalação artística, e na prática, permanecerá tão ilusório quanto um holograma.

Não sei onde fica Roncadorzinho. E provavelmente pouco saberei sobre o desenrolar do caso do menino assassinado. Mas isso sei: depois das eleições em novembro, quando nos assustarmos com a reeleição da bancada ruralista, e não nos reconhecermos num congresso-holograma, ele terá sido eleito porque muita atenção foi dada a ruído, e pouca para o que perpetua o sistema.