domingo, 5 de dezembro de 2021

Um conselho a André Mendonça

O medo da maior parte das pessoas com Bolsonaro emplacar no STF um ministro “terrivelmente evangélico” é que André Mendonça, ao se deixar adjetivar dessa forma, coloque em risco a laicidade do Poder Judiciário.

Não tenho esse medo. Não me importo com o adjetivo atribuído a ele, mas com o advérbio. O problema é ser escolhido como alguém que é terrivelmente alguma coisa, seja qual for.

Meu incômodo gramatical pode parecer uma preocupação tola, mas não é. De todas as classes de palavras da língua portuguesa, os advérbios são os mais traiçoeiros: deslizam pela frase, modificam o sentido, tonteiam o leitor. Nada disso ocorre com adjetivos, sempre dependentes e acessórios do substantivo.

Não há mal nenhum em um ministro ser evangélico; há tantos que são e foram ligados a religiões e nada disso os fez melhores ou piores. Ministros têm religião, time de futebol, preferências culinárias. São seres humanos como nós, embora nem sempre assim se enxerguem.

Também não há mal nenhum em ser a indicação de Bolsonaro destinada especificamente a um evangélico. Se o exercício da magistratura não pode ser político, a indicação de um magistrado pelo presidente – falemos a verdade – sempre é, e isso não começou nesse governo. Para Bolsonaro, é essencial fazer política com sua base aliada de evangélicos, faz parte do jogo.

Portanto, nessa história toda não é descabido Bolsonaro escolher um evangélico ou ele aceitar assim ser adjetivado, o descabido é ele ser terrivelmente algo.

Um julgador –evangélico ou não – precisa aplicar ao caso concreto a justa medida de forma equilibrada, como há tantos e tantos séculos já recomendava Aristóteles em suas lições de Ética sobre a arte de decidir. E ninguém será capaz de alcançar o necessário equilíbrio agindo terrivelmente.

O novo ministro, no exercício de seu cargo, não precisa disfarçar suas crenças, não precisa deixar de ser evangélico, pois sua religião faz parte de sua cultura, e é também investido dela que um juiz examina um caso.

Meu conselho, André Mendonça, se me permite, é: se afaste do advérbio. Fuja dele. Enquanto juiz, corra dessa traiçoeira classe de palavras, e não seja terrivelmente nada. Do contrário, os adjetivos que o povo e a imprensa lhe darão não serão dos melhores.

Pensamento do Dia

 


PIB per capita do Brasil está estagnado há 12 anos

Os indicadores econômicos mais recentes confirmam o que muitos temiam: a economia brasileira está novamente em recessão. E o crescimento não deve voltar no próximo ano.

É um bom sinal, disse na quinta-feira o ministro da Economia, Paulo Guedes, que a Bolsa esteja subindo apesar do desempenho ruim do PIB (Produto Interno Bruto). Isso mostra, segundo ele, que o "Brasil está condenado a crescer".

Mas é exatamente o contrário. O Brasil, ou melhor, os brasileiros, estão condenados porque a economia não cresce. E isso há doze anos.

Os últimos indicadores econômicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acabam de ser divulgados. A economia encolheu 0,1% no terceiro trimestre. Isso se deve principalmente ao fato de que o setor agropecuário, que sempre foi capaz de compensar os pontos fracos do PIB, produziu muito menos desta vez devido à seca e à geada. Como a economia já tinha retraído 0,4% no segundo trimestre em comparação com o trimestre anterior, a economia brasileira está em recessão.

Os bancos de investimento projetam um crescimento anual de somente cerca de 4,8% em 2021, o que colocaria a economia brasileira no final do ano no ponto onde estava antes do início da pandemia, no final de 2019. Dois anos perdidos, então.

Mas se você dividir o PIB pelo número de brasileiros, o resultado é ainda mais decepcionante. Cada brasileiro teria hoje um PIB per capita equivalente ao que foi registrado pela última vez em 2009, o que significa que a economia brasileira vem patinando há doze anos.

Isso dificilmente mudará no próximo ano. Ao contrário do que Guedes afirma, a maioria dos economistas espera uma economia estagnada, e possivelmente até recessiva, em 2022.

Por um lado, isso se deve à alta inflação, que deve chegar a 10% até o final do ano. Para conter a alta dos preços, o Banco Central terá que manter a taxa de juros alta, o que limitará o consumo. Ao mesmo tempo, serão realizadas eleições no ano que vem, cujo resultado ainda está completamente indefinido. Os investidores ficarão cautelosos enquanto não souberem quem irá governar pelos próximos quatro anos.

Somente com investimentos, desenvolvimento tecnológico ou reformas, a renda per capita brasileira poderá crescer novamente no médio prazo.

No curto prazo, apenas o aumento do consumo poderia acelerar o crescimento do Brasil. Afinal, o consumo de massa é o motor tradicional da economia brasileira. Mas o cenário parece ruim nessa área. Devido à alta taxa de desemprego de 12,6%, a média salarial está caindo. Neste ano, caiu 9% em termos nominais. Se considerarmos também a inflação, é possível dizer que o poder de compra dos brasileiros diminuiu em cerca de um quinto neste ano.

E é exatamente aí que reside a tentação populista do governo. É bem possível que o presidente Jair Bolsonaro reaja à sua crescente impopularidade no ano eleitoral com novos programas de gastos. Que ele e Guedes, por exemplo, aumentem ainda mais o valor de benefícios sociais, como acaba de acontecer, a fim de comprar votos no Congresso e, por fim, nas eleições.

Em um primeiro momento, os brasileiros pobres se beneficiariam disso. Mas eles terão que pagar a conta depois com inflação mais alta e recessão. As perspectivas não são boas para os próximos doze meses.

Bolsonaro e Moro talvez se pareçam mais do que se imagina

A política brasileira está em plena ebulição e, enquanto se multiplica o número de pessoas com fome que pegam restos de comida no lixo, todos os olhos estão voltados às próximas eleições presidenciais. Curiosamente, enquanto a cada dia se multiplica o número de pretendentes ao trono, vão se estreitando as possibilidades de vitória e a incerteza sobre o novo Brasil que pode emergir das urnas. Toda uma série de imponderáveis foram se cruzando nas últimas semanas e turvaram ainda mais as águas já agitadas dos candidatos à presidência.

Duas novidades recentes trouxeram novas incógnitas: a aparição na vida política do discutido e enigmático ex-juiz da Lava Jato, Sergio Moro, e a vitória em São Paulo de João Dória nas primárias do PSDB, o que o transforma em um candidato forte e ambicioso que irá agitar as águas políticas.

Enquanto cresce a caravana dos que pretendem disputar as eleições, os candidatos com força e possibilidade de vitória vão se estreitando. Nesse momento, se tivesse que explicar a um estrangeiro, diria que os candidatos hoje indiscutíveis com possibilidade de sucesso se reduzem aos dedos de uma mão, talvez menos.

E a disputa está se tornando cada dia mais estreita porque as pesquisas vão anunciando que a força de Bolsonaro à reeleição está desmoronando com uma aprovação a cada dia menor e um repúdio ainda maior ao seu Governo. Ao mesmo tempo, o único que se mantém firme como vencedor em todas as pesquisas é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que poderia vencer até mesmo no primeiro turno. Sem contar que Lula, com a possível decisão de escolher o ex-governador paulista Geraldo Alckmin como seu vice, uma das figuras históricas do PSDB hoje em crise de identidade, se transforma ao mesmo tempo em um candidato do centro, tranquilizando os que ainda o veem como amigo das ditaduras de esquerda.

Tudo isso sem contar a chegada, que assusta a todos, do ex-juiz Moro. Ele aparece, como na história do deus Jano dos romanos, o das duas caras e duas portas, como um duplo de Bolsonaro na substância, ainda que totalmente diferente na forma, o que poderia fazer com que ficasse com os órfãos do bolsonarismo menos fanático, incluindo o mundo empresarial cansado do modo tosco de governar do ex-capitão.



O presidente Bolsonaro e Moro são hoje dois personagens curiosos, porque na aparência não podem ser mais diferentes e na substância podem se parecer mais do que se possa imaginar. Ambos são de uma extrema direita dura, mas aparecem como dois extremos, o que pode confundir muita gente. Enquanto Bolsonaro é um aprendiz de fascista, disperso, sem cultura, imprevisível, atrevido e até vulgar em suas expressões, todas elas marcadas por um forte cunho sexual de bar de periferia, Moro, pelo contrário, é contido, de sua maneira de se vestir aos seus movimentos e palavras, e até refinado, de riso difícil e que esconde mais do que revela, mas que pode acabar sendo tanto ou mais perigoso em matéria de autoritarismo e de aparente falta de sentimentos.

Não por acaso, o partido Podemos, que o abrigou politicamente em suas fileiras, está tentando fazer com ele uma metamorfose que vai das roupas, abandonando a gravata e os ternos escuros e aparecendo sorrindo. E mais, a cada dia revela que tenta suplantar Bolsonaro como mito, até como um chamado por Deus. Como ele mesmo confessou que sua entrada na política foi “uma missão”, algo que equivale a um pedido divino para acabar com os dois extremos que hoje disputam o poder: a extrema esquerda e a extrema direita.

Se a personalidade dispersa e histriônica do capitão reformado já é conhecida e até mais repudiada a cada dia por seus excessos de mau gosto e sua vocação ao autoritarismo e à violência, a de Moro está em boa parte ainda por ser revelada, algo complicado já que, ao contrário de Bolsonaro, que não esconde nada e até confessa que se tranca sozinho no banheiro para chorar e fazer alarde de que em algumas noites satisfaz sua esposa, ele é fechado como uma ostra. É enigmático. Talvez mais rígido e autoritário do que o ex-capitão, mas também mais racional, mais dissimulado, que pode esconder mais surpresas.

Talvez por tudo isso e por suas primeiras reações como político começa a se impor como uma peça perigosa e complexa que veio, talvez, para revolver as águas ainda mais do que muitos esperavam.

Hoje o Brasil conhece o Moro juiz implacável, quase insensível, que não hesitou no momento de enviar à cadeia e de o manter lá por quase dois anos o ex-presidente mais popular da história do Brasil com grande projeção mundial. O que ainda não se sabe e será possível observar somente nos dois próximos meses é sua força política. Se será capaz de aparecer rígido, como é, e ao mesmo tempo mais confiável do que Bolsonaro na manutenção da democracia, e se será ou não apreciado pelas classes mais favorecidas, que sabem muito bem que é um liberal na economia e um direitista convicto, do que pela população que hoje passa fome e às que já começou a se apresentar como portador de uma “missão”. Missão que não é difícil de interpretar que se trata de algo de cunho religioso e um primeiro aceno aos evangélicos que acreditaram que Bolsonaro era um enviado por Deus que o salvou da morte no ainda obscuro atentado durante a campanha eleitoral que deu a ele a vitória.

Se no começo a chegada de Moro à política era vista como uma brincadeira que acabaria estourando como uma bolha de sabão, hoje, em poucas semanas, já começa a ser vista como peça fundamental no xadrez das eleições. Há quem tente minimizar sua presença política e aposte que acabará se apagando por si própria. Outros, entretanto, da velha política, acostumados a navegar nas águas escuras e revoltas da vida pública, começam a temer que a chegada do ex-juiz, que nunca hesitou no momento de condenar, possa acabar no mínimo levantando uma tempestade perigosa no mar a cada semana mais agitado do país.

O que esse país precisa é de alguém com capacidade de salvá-lo com as armas da democracia e da esperança do inferno a que foi arrastado pela extrema direita fascista de um presidente não só desacreditado internacionalmente, como considerado incapaz psicologicamente de conduzir um país da envergadura econômica, política e social do Brasil.

Perdeu o juízo

Será que o ministro Paulo Guedes acredita mesmo que a economia brasileira está decolando ou apenas tenta criar uma narrativa otimista para esconder um enorme fracasso?

É intrigante: não há como responder.

Por um lado, os números são avassaladores. Eliminados os indicadores que parecem positivos por causa da comparação com uma base muito baixa, o ano passado, o resto aponta para uma paradeira inequívoca. Números do PIB trimestral (duas quedas seguidas), da produção industrial mensal (cinco quedas em série), do Índice de Atividade Econômica do Banco Central (duas quedas seguidas), do varejo e dos serviços — tudo do IBGE — mostram que, numa visão generosa, a economia está estabilizada em torno de zero. Às vezes cresce um pouco acima, outras um tanto abaixo.

Na verdade, a discussão relevante entre economistas do primeiro time — de visões variadas — trata do seguinte: o Brasil se encaminha para a estagnação, a recessão ou estagflação?

Sim, porque a inflação, passando dos 10% ao ano, já comeu nada menos que 11% da renda do trabalho, reduzindo drasticamente a capacidade de consumo das famílias.

Como o ministro Guedes poderia desconhecer esses fatos? Entretanto, na última quinta-feira, ao comentar os dados do PIB, ele disse que a B3 (a Bolsa brasileira) havia subido 3% em comemoração aos bons resultados da economia real e do equilíbrio das contas públicas.

Ora, como um economista do mercado financeiro, Guedes tinha de saber que aquela alta foi episódica, provocada por investidores que foram às compras de pechinchas. No ano, até novembro, a B3 caiu 14% em reais e quase 20% em dólares. É o pior desempenho entre países relevantes.

Quanto às contas públicas, ficou evidente que a PEC dos Precatórios é uma manobra para legalizar o estouro dos gastos e o rompimento do teto orçamentário.


Com esse conjunto de indicadores, é preciso concluir que Guedes sabe, sim, que a economia vai devagar quase parando, mas inventa uma narrativa para agradar ao chefe e sua turma. É verdade que esse pessoal é ignorante em economia (e em muitas outras coisas, inclusive saúde), mas a narrativa é tão descolada da realidade, tão absurda, que leva as pessoas de mínimo bom senso a perguntar: o ministro perdeu o juízo?

Ou, por outro lado: não é possível que Guedes, com seu conhecimento de economia e mercados, creia que alguém (fora da turma de fanáticos) acreditará nessa incrível farsa.

Então, como ficamos?

Hipótese: a economia brasileira deteriorou-se muito rapidamente neste segundo semestre. No início do ano, esperava-se um PIB crescendo acima de 5%, mais 2,5% em 2022, com inflação controlada e juros reais baixos.

Hoje, mudou tudo. A inflação segue em alta persistente e espalhada, os juros em rota de elevação, o risco Brasil também subindo, e o real como moeda mais desvalorizada entre os emergentes. Mesmo com o avanço da vacinação.

De onde vem essa deterioração? Há fatos: a crise hídrica, que fez aumentar a tarifa de energia, e a alta do petróleo (e, pois, da gasolina, do gás e do diesel). Mas o preço da energia em geral subiu no mundo todo, e muitos países relevantes, mesmo com inflação mais alta, mantêm bom ritmo de crescimento.

Qual a diferença?

O governo.

A gestão Bolsonaro não é “apenas” politicamente equivocada. É de uma incompetência brutal. E destruidora. Acrescente a isso a entrega dos cofres públicos à turma do Centrão — e, pronto, está explicada a enorme falta de confiança que se observa no país.

Isso deve ter virado no avesso a cabeça do ministro Guedes. Ou o que mais seria?

E, por falar em cabeças viradas no avesso, Lula entrou no debate para dizer que o Brasil estava num momento raro, histórico, de crescimento zero. Deve estar fazendo contas de 2017 para cá, pois em 2015 e 2016 o país acumulou uma queda de quase 8% do PIB, consequência da gestão devastadora de Dilma Rousseff.

Lula também não lembra a corrupção na Petrobras, assim como os Bolsonaros juram que não tem rachadinha.

É isso aí. Estamos entre birutas, esquecidos e/ou farsantes.

Carlos Alberto Sardenberg

O menino e a árvore no lixão, o cartão natalino do Brasil dilacerado pela fome

No cenário mais improvável, um tesouro. Entre sacolas plásticas, caixas de papelão e lixo revirado, o menino abre a boca em um sorriso que também é um grito de surpresa e segura entre as mãos um objeto que, aos seus olhos, é quase precioso, apesar de não passar de uma árvore de Natal de 30 centímetros, retorcida, com luzes quebradas e enfeites faltantes. Gabriel, maranhense de 12 anos, não sabia, mas aquele instante de alegria fugaz no lixão em Pinheiro (MA), capturado pelo fotógrafo João Paulo Guimarães, passaria a ser o retrato triste do Brasil em que 20 milhões de pessoas passam fome, de acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), e, como ele, recorrem ao lixo para sobreviver.

Naquela segunda-feira, 8 de novembro, Gabriel revirava o lixão a 112 quilômetros de São Luís ao lado da mãe, Maria, desde as sete da manhã, em busca de alimentos. Um caminhão havia despejado por ali restos de comida de um restaurante e muitas das quase 500 pessoas que compõem as famílias de catadores de Pinheiro faziam o mesmo. Até que, por cerca de dois minutos, Gabriel pode esquecer o imperativo da sobrevivência e viver sua infância. “Parece que tudo aconteceu em câmera lenta. Vi quando ele achou a sacola, abriu um sorriso e começou a puxar a árvore de dentro. Aí, automaticamente, comecei a fotografar”, narra João Paulo Guimarães, natural de Belém (PA), que registrava o abandono e miséria daquela comunidade. “Mãe, olha só, achei essa árvore! Ela está torta, mas a gente pode desentortar, consertar as luzes e colocar na sala no dia do Natal”, ele ouviu o menino dizer.


Muito envergonhado até aquele momento, Gabriel aceitou a oferta do fotógrafo de guardar sua árvore-tesouro enquanto ele voltava à tarefa de revirar os detritos em busca do que levar para casa —feita de barro, onde vive com a mãe e um irmão de três anos. Em seus 13 anos de fotojornalismo, Guimarães registrou diversas imagens que definem momentos do país, desde as onças mortas nos incêndios do Pantanal, profissionais da saúde desolados diante da morte de pacientes por covid-19 ou jovens lideranças indígenas marchando em Brasília por seus direitos. Ele sabe, no entanto, que nenhuma delas é tão representativa quanto a do garoto negro e sua árvore retorcida no meio do lixão de onde tira seu sustento. No Brasil da miséria, a dignidade do menino preto e pobre que, sem sequer ter consciência disso, reivindica seu direito de sonhar com o Natal. Quase imediatamente, a imagem publicada pelo fotógrafo foi reproduzida à exaustão em noticiários e redes sociais.

A foto de Gabriel é a mais recente de uma sequência de imagens que compõem o álbum do Brasil degradado, famélico, cada vez mais desigual, onde além dos 20 milhões que já passam fome hoje, 24,5 milhões não sabem se vão comer amanhã —de acordo com os mesmos trágicos números do relatório da Rede Penssan. Não bastaram os ossos expostos da menina yanomami de oito anos e 12 quilos, um esqueleto retrato do descaso do país com os povos originários. Não bastou o vídeo de pessoas atracando-se por sobras de verduras, frutas e carnes num caminhão de lixo em Fortaleza (CE). O Brasil onde cidadãos madrugam na fila da doação de ossos com retalhos de carne para não morrer de fome —e onde frigoríficos passaram a vender “ossos de primeira e de segunda” nas periferias das grandes cidades— parece estar fadado a repetir cenas de seu mercado da miséria.

Com uma inflação de 10,7%, depois de aumentos mensais nos preços de mercadorias no último ano, uma “recessão técnica”, e cerca de 14 milhões de desempregados, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o país amarga mais do que uma crise econômica. “É uma crise moral”, como bem diz João Paulo Guimarães, que lembra dos preços inflacionados e da crise alimentar dos anos oitenta, marcados pela “fila do leite” ou “fila da carne”. “Hoje temos a fila do osso. Como um restaurante diz que não vai te dar o resto de comida e sim vender? Como um supermercado se atreve a cobrar as pessoas por pedaços de ossos?”, questiona, indignado, ele que voltou para casa “destruído psicologicamente” depois de retratar Gabriel.

O Lixão da Piçarreira, onde o menino e sua família catam os restos de sua sobrevivência, existe há aproximadamente 30 anos, segundo o defensor público Fernando Eurico Arruda, que trabalha há seis meses com a comunidade local. A Lei nº 12.305, que prevê, desde 2 de agosto de 2010, que todos os rejeitos do país tenham uma disposição final ambientalmente adequada não foi eficaz para extinguir os locais que hoje servem como os “mercados” daqueles que estão abaixo da linha da pobreza. “Só em Pinheiro são quase 200 famílias que dependem desses dejetos. Abaixo deles não existe mais miséria, estão no último degrau na degradação humana. É uma realidade humilhante, que gera perplexidade mesmo para quem já está acostumado a lidar com mazelas sociais”, comenta Arruda.

Também ele faz referência à crise moral que faz com que fotos trágicas se repitam em um looping de choque e consternação da opinião pública. “Tem coisas que vão se banalizando em nossa sociedade. As pessoas se chocam, mas, passados alguns dias, tudo volta ao normal. Nossa preocupação é o que vai acontecer depois da viralização”, diz ele, que realizou uma audiência pública para criar a Associação de Catadores de Pinheiro, com o objetivo de organizar o trabalho e a busca por políticas públicas para a comunidade que sobrevive da reciclagem.

Depois de comporem juntos —e involuntariamente— o triste cartão natalino do Brasil para o mundo, o menino e o fotógrafo voltaram a se encontrar. Graças às doações de diferentes pessoas que se comoveram com sua foto, Gabriel recebeu de João Paulo uma árvore de Natal grande, nova e inteiramente decorada, além de nove cestas básicas. Até esta quinta-feira, uma campanha de doação online já havia arrecadado mais de 38.000 reais para que sua mãe termine de construir uma casa de alvenaria para a família. Ambos sabem que a cena que compartilharam é irrepetível. Oxalá fossem irrepetíveis os demais retratos de um país tão desigual.

Cansei de lutar contra o moinho de vento

Eu já estava isolado em casa antes da pandemia. Um isolamento que, em parte, era por motivos econômicos – a crise no mundo da arte é violentíssima há bastante tempo, mesmo antes do Bolsonaro, e para sobreviver fui dando cambalhotas. E fui ficando deprimido. Para me concentrar nos meus trabalhos, me recolhi, deixei de gastar dinheiro indo para a rua. Fui forçado a um retiro sabático, mas passei a ter mais problemas de saúde, porque dentro de casa a cabeça fica girando, sem a reação do mercado. E aí veio a pandemia. Aquela sensação de estar sozinho, isolado, passou a valer para todos. Quando as pessoas se isolaram dentro de casa, em 2020, até brinquei com meus amigos: parecia corrida de Fórmula 1. Eu só vinha tomando volta dos outros carros, mas aí veio esse desastre que obrigou o carro madrinha a entrar na pista e a realinhar todo mundo no ponto de partida.

Hoje moro na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, mas nasci em Campo Grande (MS). Foi lá que comecei minha carreira de chargista. Acho que entrei para a profissão por causa do meu temperamento. Sempre fui contestador, não aceito resposta sem argumentar. Além disso, tive os estímulos certos. Meu pai era um cara à frente do tempo: era caminhoneiro, mas falava quatro idiomas e assinava revistas internacionais para que a gente pudesse ler. Por isso eu quis ser desenhista. Aos 15 anos fui trabalhar no Diário da Serra fazendo tirinhas, e em pouco tempo me arrisquei nas charges políticas, desenhando o prefeito, um vereador da cidade… Passei a me enxergar no Ziraldo e em todo o pessoal do Pasquim, que eram os meus ídolos, os heróis da resistência. Foi assim que me descobri chargista.

Aos 21 anos me mudei para o Rio de Janeiro. Pouco depois de chegar, fui contratado como desenhista pela DeMuZa, a empresa que Dedé, Mussum e Zacarias criaram depois de terem se separado do Renato Aragão. Trabalhei num filme deles, Atrapalhando a Suate. Essa foi minha escola de cinema, de roteiro, de tudo o que eu gostava na vida. Ali eu mergulhei no caldeirão do Asterix. Queria simplesmente beber aquilo e sair mais forte.

Em seguida, cheguei aonde queria chegar: no Jornal do Brasil. Conheci o Lan, meu grande amigo. Quando ele teve problemas de saúde, me indicou para ficar no lugar dele. Ele apareceu com um atestado médico de um ano e me disse assim: “Você tem um ano para se virar.” Com vinte e poucos anos eu me tornei o principal chargista do Jornal do Brasil. Acabei ganhando dois Prêmios Esso, em 1990 e 1991. Sou o único chargista que recebeu esse “Oscar” do jornalismo. Trabalhei no JB durante 26 anos, somando todas as minhas passagens por lá. Fiquei até o fim do jornal impresso, em agosto de 2010.

Quando o Jornal do Brasil acabou de vez, pensei que eu conseguiria voltar ao mercado rapidamente. Mas, infelizmente, naquele momento o jornalismo já vinha se enxugando, largando pedaços vitais pelo caminho. Para que um grande jornal iria querer um chargista contundente, que incomoda, que cria problema? Nós fomos descartados.

Sem ter o respaldo de um Exército, fui para a trincheira sozinho. Nunca vou deixar de ser jornalista, e minha indignação sempre foi maior do que tudo, então segui minha vida como chargista independente. Eu sentia que minha missão era continuar dando aquele recado, chovesse pau, chovesse pedra. Fui fazendo charges e publicando nas redes sociais.

Acontece que as coisas não foram como eu planejava. As redes sociais recebem conteúdo gratuitamente e, em contrapartida, elas deveriam dar visibilidade proporcional à qualidade desse conteúdo. Mas não é isso que elas fazem. Elas ditam as regras e ponto. Acaba que um conteúdo relevante é tratado com menos atenção que uma dancinha de TikTok.

Última charge

Com isso, acabei me encontrando numa trincheira escura, isolada no campo de batalha. Sem o respaldo da imprensa, fiquei dando tiro sozinho. Só atingia a bolha, criada por um algoritmo. Me deparei com uma invisibilidade impressionante: eu desenhava uma charge de política, mas só as mesmas pessoas viam. O que vou fazer então para aumentar meu público? Vou pagar a rede social para impulsionar a postagem. Aí eles acendem uma lâmpada na sua trincheira, e você fica mais visível por alguns momentos. Depois disso, mais tiros no vazio. É um jogo comercial em que você entra perdendo, sem chances.

No fim das contas, fui percebendo que meu trabalho de certa forma validava essa bandalheira que acontece hoje na política. Eu acabava divulgando esses bandidos por meio das charges, mesmo eles sendo retratados de forma negativa. Era hora de repensar tudo.

A verdade é que, como artista, estou exausto de lutar contra o moinho de vento – e sozinho. Na pandemia, tudo ficou mais sensível para mim. Pessoas que eu tinha como amigos me surpreenderam de maneira assustadora. Deixaram de ser minhas amigas não por causa de política, não porque votaram no Bolsonaro, mas porque passaram a ter um comportamento tão fascista quanto o do presidente. Essas pessoas saíram dos ralos, dos bueiros, mostrando quem são de verdade. Não sou radical, longe disso: sou maleável, sou carinhoso com as pessoas à minha volta. Mas com algumas coisas eu não consigo mais conviver.

Tudo isso foi se somando dentro de mim e me adoecendo. Eu precisava me preservar para sobreviver. Aproveitei a pandemia e me isolei ainda mais dessa galera que não me fazia bem. Fiquei na minha, enquanto a cabeça girava tentando achar uma saída que me permitisse continuar sendo artista. Fiz esculturas, pinturas, desenhos, projetos, amadureci muito como homem, como pai e como companheiro. Minha relação com a família se fortaleceu. Percebi que era hora de largar as charges. Embora eu seja apaixonado por esse trabalho, não estou mais conseguindo sobreviver com ele – nem economicamente, muito menos emocionalmente.

No final de outubro, publiquei uma mensagem de despedida nas minhas redes sociais. Mas eu já vinha fermentando essa ideia há mais tempo. A gota d’água, o momento em que tomei a decisão de abandonar as charges, foi o Sete de Setembro. É inimaginável que o presidente da República use helicóptero e dinheiro público para ir à rua rasgar a Constituição, pedir a prisão de integrantes do STF, incitar violência, e nenhuma instituição reaja à altura. Isso não existe. Ele está fazendo mal a milhões de pessoas, e nada acontece. Só negociatas e fake news. Foi o momento em que constatei que nós estamos à deriva, e que um grande acordão vai enterrar as denúncias e provas contra essa corja.

Ali eu me dei conta de que a charge, hoje, é inócua. Ela não funciona mais como jornalismo, como arte ou como instrumento político para absolutamente nada. Não tem alcance. Eu, na minha pequena trincheira analógica, era invisível. Pensava que estava dando tiros de canhão, mas na verdade só estava perdendo tempo. Me sinto lisonjeado com minha tribo virtual me aplaudindo, mas só isso não me preenche. Já que meu trabalho não está tendo efeito, penso que agora preciso lutar como cidadão. É hora de partir para outra trincheira.

Para mim, o mais importante dessa decisão é que ela deu um freio de arrumação na minha vida, na minha cabeça e na minha história. Por isso foi importante tornar isso público. Se eu não escrevesse uma despedida, volta e meia eu ficaria pensando: “E agora, faço ou não faço uma charge?” Acho que eu nunca sairia do lugar. Então eu precisava trilhar esse caminho de forma que eu não pudesse dar um passo para trás. Tinha que saltar e ponto.


Estou interrompendo um ciclo para começar um novo, que ainda não sei o que é. Mas só de fazer isso já me senti mais leve. No dia em que anunciei minha aposentadoria das charges, tive a primeira noite de sono ininterrupto em dez anos. Não acordei para tomar água, não tive nenhum pesadelo. Acordei no dia seguinte com uma sensação de euforia. Posso estar falando coisas desconexas, mas é que ainda estou meio tonto. É um momento de virada.

Estou finalizando um livro de charges e textos de humor que fiz durante a pandemia. Também tenho dois livros infantis para terminar, além de alguns projetos de escultura. O artista precisa se reinventar, e é isso que pretendo mostrar: minha arma agora é outra. Vou fazer 60 anos, tenho muita energia e estou muito focado. Acho que posso ser muito mais útil usando minha arte em prol da educação, da cultura, da luta contra o racismo. Tenho vontade, por exemplo, de fazer uma série de esculturas homenageando mulheres negras.

O que eu sei é que não há nada mais delicioso do que recomeçar. Foram 44 anos sendo chargista em tempo integral. Você já acorda pensando na charge que vai fazer naquele dia. No Jornal do Brasil, trabalhei sete dias por semana, sem folga, por mais de dez anos seguidos. Eu não tirava nem férias. Então esse stop mental foi importante para mim e para minha família. Eles são os mais afetados, acabam sofrendo tudo o que eu sofro. Às vezes eu ficava impaciente, irritado. Deixei isso tudo para trás.

A pandemia produziu muita tristeza, mas trouxe novos sentimentos e, para mim, a alegria indescritível de ganhar dois netos. Um deles eu ainda nem conheço. De quebra, é claro, nasceu também um avô. Um avô babão, que tem muito amor para dar e receber. Acho que, no fundo, a decisão de largar esse trabalho cresceu dentro de mim quando chegaram meus netos. Nessa hora, tudo mudou. É como se eu dissesse para eles: “Vovô chegou. Vamos pintar o sete, espalhando arte, espalhando arte, cor, e muito amor nesse mundo. É isso.”
Ique Woitschach, cartunista, jornalista, artista plástico, escultor, autor roteirista