domingo, 15 de junho de 2025

Um primeiro passo em busca da Palestina

Desde outubro de 2023, compreendi que minha formação em História em uma destacada universidade pública brasileira, minha trajetória profissional e militante no campo das relações raciais e do antirracismo, e, sobretudo, uma educação marcada por valores como justiça e igualdade — transmitidos por minha mãe —, precisavam ter alguma utilidade. Afinal, assistíamos o início de uma das etapas mais escancaradas do genocídio palestino — resultado de décadas de apartheid, limpeza étnica e desumanização sistemática —, e eu não poderia ser apenas mais uma testemunha silenciosa diante da barbárie. Foi então que decidi dedicar minha parca e limitada presença pública à causa palestina.

Naquele momento, a questão que me atravessava era: como contribuir não apenas para a denúncia do genocídio em curso, mas também para o aprimoramento do debate público, tão viciado pela perspectiva sionista? Como enfrentar os estereótipos e caricaturas que desumanizam os palestinos — e os árabes, em geral — e que servem, na maior parte do tempo, para justificar a violência brutal a que estão submetidos há décadas? Cada pessoa usa as
ferramentas que tem à disposição. As minhas são unicamente — feliz ou infelizmente — as palavras.

Foi assim que nasceu o livro  "Gaza no coração: história, resistência e solidariedade na Palestina", que organizei em 2022 pela Editora Elefante, reunindo mais de 40 autoras e autores comprometidos com a causa palestina. Foi com esse mesmo espírito que também editei — sob a supervisão de Laura Di Pietro — e organizei — com Atef Abu Saif e Abd Al-Salam Atari — o primeiro volume da coleção Diários de Gaza, a que dei o sugestivo título de A memória é uma casa indestrutível, que conta com textos de 14 mulheres e homens palestinos que vivem em Gaza. 

Acredito no poder dos livros — não necessariamente de transformar a realidade de forma imediata, mas de nos transformar como pessoas. Livros criam brechas: abrem caminhos para mudanças de consciência, para a escuta, para a empatia. Aproximam pessoas do sentimento de justiça e, sobretudo, aproximam as pessoas umas das outras.

Comerciantes vendem uvas, romãs e passas no mercado (1920-1933)

É por isso que iniciamos agora este especial  Biblioteca Palestina: uma jornada guiada por livros, um programa de leitura que busca nos aproximar da Palestina e dos palestinos, e que nos ajude a construir as conexões necessárias para compreender, denunciar e combater o genocídio em curso. Espero que este percurso literário seja um guia para quem ainda não sabe por onde começar, mas deseja conhecer mais sobre a Palestina. E que seja, também, um espaço de encontro entre leitoras e leitores experientes, estudiosos e todas as pessoas interessadas na história, na literatura, na memória e na luta anticolonial do povo palestino.

Iniciamos nossa jornada com um dos mais importantes escritores palestinos de todos os tempos — e um dos maiores poetas da literatura mundial: Mahmud Darwich, e seu primeiro livro em prosa, publicado em 1973, Diário da tristeza comum (no Brasil, pela editora Tabla, em 2024). Mas por que começar por este título, e não por algum dos muitos livros que oferecem uma síntese da questão palestina, disponíveis nas livrarias?

Chegaremos a eles. No entanto, se eu tivesse que indicar um único livro capaz de articular os aspectos históricos da Palestina moderna com a dimensão subjetiva e poética de seu povo — ou seja, que una os processos históricos à experiência vivida dos sujeitos —, este Diário de Darwich, sem dúvida, seria o melhor primeiro passo que poderíamos dar.

Nascido em 1941 na aldeia de Albirwe — uma vila que foi destruída pelo exército israelense durante a Nakba de 1948 —, Darwich experimentou o exílio desde a infância, após sua família fugir para o Líbano para escapar da violência sionista. Ao retornar clandestinamente à Palestina pouco depois, sua condição passou a ser a de “ausente presente”, um termo usado pelo Estado de Israel para classificar palestinos deslocados internos, privados de direitos plenos sobre sua própria terra.

Essa marca de desenraizamento e resistência atravessa toda a sua obra poética e política. Ainda jovem, Darwich começou a publicar poemas em jornais árabes e logo se tornou um símbolo da luta nacional palestina por meio da poesia. Trabalhou como jornalista e editor, foi preso diversas vezes por suas palavras e, em 1970, partiu para o exílio, vivendo em Beirute, Moscou, Cairo, Paris e retornando para Ramallah, onde morreu em 9 de agosto de 2008, aos 67 anos, após complicações de uma cirurgia cardíaca.

Como já mencionamos, Diário da tristeza comum foi o primeiro livro de prosa de Mahmud Darwich. A obra reúne nove ensaios que entrelaçam memórias pessoais do autor com fragmentos fundamentais da história palestina. O primeiro texto, “A lua não caiu no poço”, é um mergulho na infância de Darwich, em que ele revive a experiência da expulsão e do exílio. Esse ensaio inicial constitui, portanto, uma excelente porta de entrada para a compreensão da Nakba — a catástrofe palestina de 1948, marcada pela destruição de vilas, o deslocamento forçado de centenas de milhares de pessoas e a impossibilidade do retorno.

Já nesse primeiro capítulo, Darwich formula uma pergunta que atravessará todo o livro: o que é a pátria? Trata-se de uma questão central para os palestinos, que vivem sob o paradoxo de possuir uma identidade nacional sem um Estado nacional reconhecido. É a partir dessa angústia que ele afirma: “Um lugar não é apenas uma área geográfica, é também um estado de espírito” (p. 24).

Ao longo dos ensaios, a ideia de “pátria palestina” assume múltiplas formas, deslocando-se entre paisagem, memória, língua, infância e ausência. Mas há momentos em que Darwich adota uma definição precisa, sobretudo quando confronta a narrativa colonial israelense de pertencimento: “O fato de os conquistadores se reproduzirem na terra de outro povo não lhes garante o direito de chamá-la de pátria” (p. 17).

Esse é um ponto nevrálgico do livro: ao longo da leitura, Darwich nos conduz por um mosaico de experiências e reflexões que tanto revelam quanto desmontam o caráter colonial da ocupação sionista na Palestina — um paradigma incontornável para qualquer debate honesto sobre a questão, ainda que frequentemente negado, inclusive em setores que se dizem progressistas.

No ensaio seguinte, “A pátria: entre a memória e a história”, a pergunta se aprofunda — “pátria” não é apenas um lugar fixo no mapa, assume um sentido movente, mutável e, sobretudo, profundamente político. De forma instigante, o texto se transforma em uma crítica contundente às práticas narrativas do Estado israelense, revelando como a disputa pela memória é, também, uma forma de guerra. Para Darwich, memória e história não são apenas registros do passado, mas territórios de enfrentamento.

“A cultura israelense insiste em saturar a memória dos cidadãos com o Holocausto na Europa, a fim de intensificar seus sentimentos de isolamento e alienação do resto do mundo. Esses sentimentos constituem uma parcela fundamental da psique e do temperamento israelense. Como resultado, o cultivo da memória israelense é dedicado a um único objetivo político: continuar lembrando ao povo que ele está sempre sujeito à aniquilação, e que retornar à ‘Terra de Israel’ e permanecer nela são as únicas garantias políticas e históricas de segurança — além de promover a reivindicação sionista da Palestina.” (p.44).

Sem dúvida, este é um dos textos mais poderosos do livro, pois oferece ao leitor chaves fundamentais para compreender o que está em jogo na relação colonial entre israelenses e palestinos. Darwich desmonta, logo de início, a ideia de uma simetria possível entre opressor e oprimido. Mas não se detém aí: sua investigação sobre o significado de “pátria” no contexto da disputa violenta pela memória o conduz a uma das definições mais sofisticadas que já li: “Quando você luta, você pertence. E a pátria é essa luta. Entre a memória e a mala não há solução senão a resistência.” (p. 56)

Caso ainda restem dúvidas sobre a assimetria da relação entre israelenses e palestinos — ou sobre o caráter colonial da ocupação sionista —, o próximo ensaio dissipa qualquer equívoco de forma definitiva. Em Diário da tristeza comum, que dá título ao livro, somos conduzidos por Darwich a uma série de fragmentos do cotidiano palestino. São 17 cenas aparentemente banais, triviais, rotineiras — mas que revelam, justamente por sua simplicidade, o horror e o absurdo que moldam a vida sob ocupação.

Ir ao mercado, escrever uma peça teatral, andar pela rua, comemorar o Ano-Novo, dormir, pegar um táxi, viajar, celebrar o próprio aniversário, alugar um apartamento, visitar a família, sonhar. Atos cotidianos, corriqueiros para muitas pessoas, tornam-se, para os palestinos, experiências carregadas de angústia, frustração e medo. Cada gesto banal carrega um gosto amargo — o peso de uma existência vigiada, controlada, interrompida.

É neste ensaio que mais se evidencia aquela característica já mencionada: a articulação entre a experiência subjetiva do indivíduo e a violência estrutural da história. Aqui, a tristeza comum — diária, repetida, silenciosa — deixa de ser um sentimento individual para se tornar um retrato coletivo, a marca da vida palestina sob o regime colonial. O título, longe de ser apenas lírico, nomeia uma condição histórica.

É à história que boa parte dos ensaios seguintes se dedica. “Quem mata cinquenta árabes perde um centavo” é a reflexão de Darwich sobre o massacre de Kafar-Qassim, ocorrido em 1956, quando 49 palestinos foram brutalmente assassinados por forças israelenses. Mas o horror não se encerrou nas mortes: os responsáveis pelo massacre foram “punidos” com o pagamento simbólico de uma moeda de um centavo. Darwich conclui, sem rodeios: “A matança a sangue-frio e a violência armada constituem a filosofia israelense” (p. 102).

Neste capítulo, torna-se evidente que a violência não é um desvio ocasional, tampouco um erro isolado de governos de extrema-direita. A violência é a própria estrutura que sustenta a arquitetura do sionismo. Como afirma o autor:

“Os crimes que Israel comete contra civis árabes, dos quais o massacre de Kafar-Qassim é um exemplo chocante, não decorrem de uma ‘má’ aplicação da ‘excelente’ herança sionista, mas sim de uma excelente aplicação da terrível herança sionista.” (p. 105)

E, como sempre em Darwich, a história retorna à terra. Ao fim do ensaio, depois do horror, reencontramos a pátria — agora como resistência encarnada: “O povo palestino sabe vingar seus mortos: agarra-se ao solo da pátria com unhas e dentes.” (p. 107). 

Os ensaios seguintes abordam os acontecimentos que culminaram e se seguiram aos acontecimentos de junho de 1967 — episódio conhecido mundialmente como Guerra dos Seis Dias, mas que, para os palestinos, representa a Naksa (em árabe, “o retrocesso”): o marco da ocupação israelense da Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental, Colinas de Golã e Península do Sinai.

A Naksa aprofunda, de forma brutal, o processo iniciado em 1948 com a Nakba (“a catástrofe”), isto é, a criação do Estado de Israel e a expulsão de cerca de 750 mil palestinos. Se a Nakba representou o início do deslocamento forçado em massa, da destruição sistemática de centenas de vilarejos e da negação do retorno, a Naksa consolidou a ocupação militar de quase toda a Palestina histórica e deu início à política de assentamentos ilegais, especialmente na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental.

No ensaio “A alegria quando trai”, Darwich expõe a instabilidade e a fragilidade de qualquer ideia de paz ou normalidade para os palestinos, que são ciclicamente confrontados com a perda de território, de vidas e, sobretudo, da possibilidade concreta de constituir um Estado.

Os textos de Diário da tristeza comum são assustadoramente atuais. Denunciam a anterioridade da tragédia palestina, o que desmonta a narrativa de que a história teria começado em outubro de 2023. Essa atualidade se torna ainda mais chocante ao lermos o ensaio “Silêncio por Gaza”. Mas, mais do que o espanto, esse texto oferece uma lição que deveríamos aprender antes de emitir opiniões apressadas sobre a Operação Dilúvio de Al-Aqsa, lançada pelo Hamas em 7 de outubro de 2023:

“O segredo de Gaza não é mistério: suas massas estão unidas na resistência popular. Ela sabe o que quer: expulsar o inimigo das roupas dela. Em Gaza, a relação entre resistência e massas é a de carne e osso, e não a de professor e aluno.” (p. 138)

É importante lembrar que, quando Darwich escreveu essas palavras, o Hamas ainda nem existia — sua fundação só ocorreria em 1987. Ainda assim, a chave para compreender a realidade palestina já estava ali, clara e irrefutável: “Os únicos valores que uma pessoa que vive sob ocupação pode defender são os da resistência à ocupação.” (p. 136). Que essa lição não seja ignorada.

Ao final do livro, mais uma pergunta nos é lançada: “O peso da questão palestina é maior do que o que qualquer ombro pode suportar. Então por que razão deveríamos carregá-lo sozinhos?” (p. 161). Encerrando o livro com esse questionamento, Mahmud Darwich não apenas nos interpela — ele nos convoca. Convoca a estar ao lado do povo palestino em sua luta por libertação, justiça e dignidade. Não é possível, após a leitura destes ensaios, ainda restarem dúvidas sobre a justeza da causa palestina e sobre a urgência de sua defesa.

Enquanto escrevo estas palavras, doze ativistas humanitários — entre eles o brasileiro Thiago Ávila — se aproximam da costa de Gaza, a bordo da Flotilha da Liberdade, levando alimentos, medicamentos e suprimentos médicos ao povo palestino, após mais de 600 dias da etapa mais letal do genocídio em curso. Mas eles não carregam apenas itens essenciais, criminosamente negados: levam também a resposta à pergunta de Darwich. Os palestinos não carregarão esse fardo sozinhos.

Além da bela tradução da professora Safa Jubran e do tocante posfácio do escritor Milton Hatoum, que compõem a edição brasileira publicada pela editora Tabla, em 2024, este livro é a melhor porta de entrada para quem deseja se aproximar da questão palestina. Primeiro, porque oferece um mergulho na realidade cotidiana dos palestinos, destacando a perspectiva subjetiva e poética de Darwich. Não se trata apenas de um relato de fatos — trata-se de um convite à reflexão sobre o que esses fatos significam para aqueles que os vivem.

Em segundo lugar, porque o livro demonstra com clareza a anterioridade do martírio palestino — uma história que não começou em outubro de 2023, como muitos ainda acreditam. Para quem só recentemente ouviu falar da Palestina, este livro é uma chave fundamental de compreensão da profundidade da questão.

Em terceiro lugar, Darwich aborda momentos cruciais da história palestina — da Nakba, em 1948, aos desdobramentos trágicos da Naksa, em 1967. Compreender esses eventos é indispensável para entender a estrutura da ocupação e seus efeitos profundos sobre a sociedade palestina.

Em quarto lugar, o autor realiza uma investigação crítica da mentalidade e da cultura israelense — e não o faz por meio de caricaturas, mas revelando como uma sociedade inteira pode ser moldada por um projeto colonial. O sionismo, como ele mostra, não se reduz a decisões políticas ou governos de ocasião: é uma lógica de dominação enraizada na cultura, na educação, na mídia, na memória coletiva e, claro, nas práticas militares cotidianas.

Em quinto lugar — e atrelado a isso —, este livro desmonta de maneira contundente a “teoria dos dois lados”, que insiste em forjar uma falsa simetria entre colonizador e colonizado, entre ocupante e ocupado. Essa visão, ainda dominante mesmo entre setores progressistas no Brasil, é desafiada por Darwich com firmeza e lucidez, reafirmando o caráter estruturalmente colonial da ocupação sionista. Isso nos obriga, no mínimo, a repensar profundamente nossas leituras sobre a resistência palestina.

E, por fim, este livro é imprescindível na Biblioteca Palestina porque registra as experiências, as ideias e a sensibilidade de um dos maiores escritores de todos os tempos — um patrimônio cultural do povo palestino, que deve ser celebrado, preservado e lido com atenção.

Por tudo isso, Diário da tristeza comum é uma excelente indicação para quem deseja iniciar uma jornada em direção à Palestina. Tenho certeza de que essa leitura promoverá um encontro poderoso, necessário e inesquecível.
Rafael Domingos Oliveira

No pântano cultural

Quando você vê no horário nobre da TV um vídeo mostrando que ninguém mais pode confiar num vídeo, pode ter certeza de que a crise de credibilidade da imagem bateu no limite do insuportável, até mesmo para os profissionais de televisão. E é isso, rigorosamente isso, o que estamos vendo agora.

No domingo passado, o Fantástico pôs no ar esse alerta: duvide do vídeo. Numa reportagem impecável (embora leve, informal e quase sorridente), a telerrevista da rede Globo mostrou que os recursos de Inteligência Artificial já conseguem fabricar cenas perfeitas com personagens que nunca existiram – ou, o que é pior, cenas mais do que convincentes com personagens que existem, mas nunca fizeram nada daquilo que se vê na tela.


Sim, a crise de credibilidade é real e chega até nós como um terremoto. É bom pensar duas vezes, ou mais de duas, antes de acreditar nos filminhos ou filmões que se se insinuam para os seus olhos. Você talvez escape das armadilhas. A grande maioria das pessoas, porém, continuará caindo em cada uma delas.

Antes de qualquer outra consideração, reconheça-se o mérito do Fantástico. O programa, que é inteiramente feito de pixels, teve a coragem de expor a falseabilidade dos pixels. A ousadia se justifica. Apontar as fraudes digitais, que se banalizam aceleradamente, é o melhor caminho, e talvez seja o único, para resguardar a autenticidade que só a imprensa profissional é capaz de oferecer.

A confiabilidade da informação não poderá mais se lastrear no esmero plástico dos enquadramentos, mas na palavra de honra de quem gravou, de quem editou e de quem pôs no ar. O vídeo pode ser rudimentar – como aqueles que, trepidantes, esmiúçam a destruição em Gaza – e ser honesto, ou pode ter ares de refinamento – como alguns dos que, durante a pandemia, fizeram publicidade de um certo vermífugo – e não passar de mentira criminosa.

Os olhos não poderão mais separar o falso do verdadeiro. O que importa não é mais a dosagem da luz ou o movimento estável da câmera do telejornal, mas o compromisso de quem assina embaixo. O padrão de qualidade não será mais técnico – terá de ser ético. O Fantástico sabe disso e aposta nisso, mas a massa de telespectadores ainda vai demorar para entender a gravidade do que está em curso.

Estamos numa transição que afetará em definitivo a nossa forma de contemplar e conhecer o mundo. A fotografia e o vídeo deixarão de ser registros confiáveis dos acontecimentos. Parece um detalhe desprezível dentro do vasto mundo da comunicação social, mas esse detalhe terá consequências monstruosas. Um close pode até divertir, encantar, emocionar, hipnotizar, pode até gerar lucros polpudos, mas não é mais prova de nada.

A função recreativa das câmeras deglutiu a função documental que elas tinham. Só o que ainda merece alguma confiança, vale repetir, é a palavra (de honra), e mesmo essa se esfarela nas fantasmagorias fluorescentes dos passatempos públicos.

Tudo aconteceu muito rápido. Em 1991, no livro Vida e morte da imagem, Régis Debray escrevia que somos “a primeira civilização que pode julgar-se autorizada por seus aparelhos a acreditar em seus olhos”. Ele disse mais: “uma foto será mais ‘crível’ do que uma figura, e uma fita de vídeo do que um bom discurso”. O tom era de profecia, mas era também de cética: Debray criticava com acidez a fé nas imagens eletrônicas, apontando a inconsistência dessa fé profana.

Ele tinha razão. Hoje, a mesma civilização que achava “crível” sua videografia é chamada a duvidar dos próprios olhos. Mas ela terá força para duvidar do vídeo? Dificilmente. Será que ela deseja realmente duvidar do vídeo? Todos os sintomas disponíveis dizem que não.

O mais provável é que a tal civilização ainda sucumba muitas e muitas vezes às manipulações grosseiras. O mais provável é que caia em armadilhas previsíveis e seriais, como vem caindo, para deleite dos extremistas, dos populistas, dos autocratas e dos espertalhões junkies que são donos de big techs. Em vez de duvidar dos olhos, as sociedades que aí estão parecem preferir ter prazeres – vis, vãos e vadios – com suas retinas cínicas.

Democracias em risco. Se você pensar um pouco, perceberá que, quando a função recreativa das câmeras deglutiu a função documental que elas um dia tiveram, deglutiu junto umas franjas consideráveis da razão e corroeu a qualidade do debate público. Manipulações cibernéticas ainda farão muito estrago.

Diante do que está vindo aí, as perversidades de Joseph Stalin, que mandou apagar o semblante de Leon Trótsky da memória fotográfica da Revolução Russa e assim tapeou multidões de todos os continentes, parecerão uma travessura infantil. O problema hoje é de outra ordem. O falseamento não é mais exceção, mas a regra.

Nos nossos dias, já sabemos: um vídeo vale menos que um discurso e uma foto vale menos que uma figura. Mas como despertar a sociedade? Foi bom ver a denúncia no Fantástico, mas foi pouco. No pântano cultural em que nos atolamos, uma imagem fingida ainda valerá mais do que mil palavras sinceras. Por muito tempo.