domingo, 24 de novembro de 2024
O cruzado que Trump escolheu para a Defesa
Aos 44 anos, o veterano Pete Hegseth mantém o corpanzil sarado dos tempos em que foi soldado de elite do Exército americano. Prestou serviços no Iraque, no Afeganistão e na abominável prisão militar de Guantánamo antes de se tornar personalidade cultuada da Fox News. Ali ancorava um dos programas de maior audiência e estridência do canal, até ser pinçado por Donald Trump para ocupar o cargo de futuro secretário da Defesa.
Em condições mínimas de razoabilidade, a indicação de Hegseth teria poucas chances até de chegar ao Senado, ainda menos de ser aprovada na sabatina — os legisladores democratas, somados a alguns republicanos pensantes, pareciam decididos a impedir tamanha insânia. Antes, porém, era preciso abortar outra indicação de Trump: a do agora ex-deputado federal Matt Gaetz como procurador-geral. A pressão contra Gaetz funcionou. Detestado por seus pares e retratado como predador sexual contumaz em relatório da Comissão de Ética da Câmara, ele desistiu do cargo antes de precisar ser sabatinado.
À primeira vista, uma derrota indigesta para o triunfal vencedor da eleição de 5 de novembro. Mas só à primeira vista. É possível que Trump tenha usado Gaetz como isca calculada. Os republicanos dificilmente correrão o risco de implodir também, de forma tão frontal e acelerada, mais um candidato do firmamento Make America Great Again (Maga). Trump não perdoaria a infiel reincidência, e da ira vingativa do futuro presidente muitos no Senado já provaram.
Para explicar quem é e o que significaria Hegseth chegar ao comando do Departamento de Defesa, vale começar pelas tatuagens que traz no corpo. Cobrindo boa parte do tórax direito, está a Cruz de Jerusalém (também conhecida como Cruz das Cruzadas). Apesar de datar da Idade Média, ela voltou a ser cultuada por extremistas de direita e protofascistas. Na cerimônia de posse do democrata Joe Biden em 2021, Hegseth chegou a ser excluído da equipe que fazia proteção presidencial por causa dessa tatuagem. Explica-se: duas semanas antes, no fatídico 6 de Janeiro, supremacistas e trumpistas inconformados haviam tentado impedir pela força a diplomação de Biden no Capitólio.
— Este momento de nossa história clama por uma Cruzada Americana — escreve Hegseth num de seus livros mais perturbadores.
Tem mais. Na parte interna do braço esquerdo, a tatuagem de uma sinuosa serpente evoca a libertação americana da Inglaterra; no antebraço, uma frase em latim: Deus Vult (Deus o quer), apropriada das Cruzadas por neonazistas como grito de guerra contra a disseminação do islamismo. Uma bandeira dos Estados Unidos, uma imensa cruz com espada e dizeres em hebraico, um “We the People”, do preambulo da Constituição americana, em letras gigantes, também fazem parte do ideário gravado no corpo de Hegseth. Seus disparates verbais também assustam:
— Germes não existem. Não consigo vê-los, portanto não são reais — sustentou do sofá curvilíneo que ocupou por uma década no programa Fox & Friends.
Certa vez Hegseth rasgou seu diploma de Harvard ao vivo e leu um trecho do livro “American Crusade” em que desanca as universidades de elite que “envenenam a mente de nossos filhos”. Na vida real, porém, adora mencionar, en passant, que tem graduação em Princeton e pela John F. Kennedy School of Government (Harvard).
É sua obra mais recente, “War on Warriors” (guerra contra guerreiros), que aponta melhor para a temeridade de deixar Hegseth comandar um orçamento militar anual de quase US$ 900 bilhões, um arsenal nuclear e convencional sem paralelo na História, um pessoal ativo de 1,36 milhão de fardados, 811 mil reservistas, um poderio global com 800 bases militares espalhadas pelo planeta, e muito mais.
— Enquanto patriotas da geração do 11 de Setembro lutaram contra inimigos lá fora, permitimos que os inimigos em casa dominassem nosso território cultural, espiritual e político. Nossa retaguarda ficou exposta, e o inimigo avançou — avisa ele.
Lutar contra “extremistas domésticos” como o ex-presidente Barack Obama, os democratas e liberais seria a segunda etapa de uma guerra pela liberdade. O livro é de 2020, mas há poucas chances de os fantasmas de Hegseth terem sumido. Com visão apocalíptica da sociedade, vê no outro uma ameaça existencial. Por isso exorta outros cruzados a “desprezar, humilhar, intimidar e esmagar” o inimigo interno.
— O tempo está acabando para o país — anuncia. — Será uma guerra sagrada de 360 graus pela causa da liberdade (...) até a aniquilação total da esquerda. Nos veremos na zona de combate! Juntos, com a ajuda de Deus, salvaremos a América. Deus vult!
Socorro.
Em condições mínimas de razoabilidade, a indicação de Hegseth teria poucas chances até de chegar ao Senado, ainda menos de ser aprovada na sabatina — os legisladores democratas, somados a alguns republicanos pensantes, pareciam decididos a impedir tamanha insânia. Antes, porém, era preciso abortar outra indicação de Trump: a do agora ex-deputado federal Matt Gaetz como procurador-geral. A pressão contra Gaetz funcionou. Detestado por seus pares e retratado como predador sexual contumaz em relatório da Comissão de Ética da Câmara, ele desistiu do cargo antes de precisar ser sabatinado.
À primeira vista, uma derrota indigesta para o triunfal vencedor da eleição de 5 de novembro. Mas só à primeira vista. É possível que Trump tenha usado Gaetz como isca calculada. Os republicanos dificilmente correrão o risco de implodir também, de forma tão frontal e acelerada, mais um candidato do firmamento Make America Great Again (Maga). Trump não perdoaria a infiel reincidência, e da ira vingativa do futuro presidente muitos no Senado já provaram.
Para explicar quem é e o que significaria Hegseth chegar ao comando do Departamento de Defesa, vale começar pelas tatuagens que traz no corpo. Cobrindo boa parte do tórax direito, está a Cruz de Jerusalém (também conhecida como Cruz das Cruzadas). Apesar de datar da Idade Média, ela voltou a ser cultuada por extremistas de direita e protofascistas. Na cerimônia de posse do democrata Joe Biden em 2021, Hegseth chegou a ser excluído da equipe que fazia proteção presidencial por causa dessa tatuagem. Explica-se: duas semanas antes, no fatídico 6 de Janeiro, supremacistas e trumpistas inconformados haviam tentado impedir pela força a diplomação de Biden no Capitólio.
— Este momento de nossa história clama por uma Cruzada Americana — escreve Hegseth num de seus livros mais perturbadores.
Tem mais. Na parte interna do braço esquerdo, a tatuagem de uma sinuosa serpente evoca a libertação americana da Inglaterra; no antebraço, uma frase em latim: Deus Vult (Deus o quer), apropriada das Cruzadas por neonazistas como grito de guerra contra a disseminação do islamismo. Uma bandeira dos Estados Unidos, uma imensa cruz com espada e dizeres em hebraico, um “We the People”, do preambulo da Constituição americana, em letras gigantes, também fazem parte do ideário gravado no corpo de Hegseth. Seus disparates verbais também assustam:
— Germes não existem. Não consigo vê-los, portanto não são reais — sustentou do sofá curvilíneo que ocupou por uma década no programa Fox & Friends.
Certa vez Hegseth rasgou seu diploma de Harvard ao vivo e leu um trecho do livro “American Crusade” em que desanca as universidades de elite que “envenenam a mente de nossos filhos”. Na vida real, porém, adora mencionar, en passant, que tem graduação em Princeton e pela John F. Kennedy School of Government (Harvard).
É sua obra mais recente, “War on Warriors” (guerra contra guerreiros), que aponta melhor para a temeridade de deixar Hegseth comandar um orçamento militar anual de quase US$ 900 bilhões, um arsenal nuclear e convencional sem paralelo na História, um pessoal ativo de 1,36 milhão de fardados, 811 mil reservistas, um poderio global com 800 bases militares espalhadas pelo planeta, e muito mais.
— Enquanto patriotas da geração do 11 de Setembro lutaram contra inimigos lá fora, permitimos que os inimigos em casa dominassem nosso território cultural, espiritual e político. Nossa retaguarda ficou exposta, e o inimigo avançou — avisa ele.
Lutar contra “extremistas domésticos” como o ex-presidente Barack Obama, os democratas e liberais seria a segunda etapa de uma guerra pela liberdade. O livro é de 2020, mas há poucas chances de os fantasmas de Hegseth terem sumido. Com visão apocalíptica da sociedade, vê no outro uma ameaça existencial. Por isso exorta outros cruzados a “desprezar, humilhar, intimidar e esmagar” o inimigo interno.
— O tempo está acabando para o país — anuncia. — Será uma guerra sagrada de 360 graus pela causa da liberdade (...) até a aniquilação total da esquerda. Nos veremos na zona de combate! Juntos, com a ajuda de Deus, salvaremos a América. Deus vult!
Socorro.
Juan Arias, o homem feliz da praia de Saquarema
“E se você tiver dúvidas, pergunte a Juan Arias , que mora lá.” Esse foi o principal conselho que meus chefes me deram quando me enviaram para São Paulo em 2014 como correspondente e chefe de delegação da edição brasileira do EL PAÍS. Liguei para Juan logo que cheguei: não entendi nada daquele país fascinante e difícil onde há quem vá de helicóptero para fugir dos engarrafamentos de São Paulo e quem viaje de canoa para vender frutas na Amazônia. Juan me atendeu ao telefone com sua voz doce de uma pequena cidade do Estado do Rio de Janeiro e sempre me livrou de problemas com aquela mistura de lucidez, sabedoria e paciência que logo reconheci como parte de sua personalidade requintada. Aos poucos fui ligando para ele cada vez mais, e para mais e mais coisas. E algumas semanas depois fui visitá-lo em sua casa naquela cidadezinha do Estado do Rio de Janeiro.
A cidade se chama Saquarema e a casa tinha paredes coloridas, pouca mobília, muita luz e dava para um mar azul e uma praia linda e infinita. Naqueles dias falamos muito do Brasil e deste jornal, mas também do Papa – muitos papas –, da Itália, dos livros, do jornal Pueblo, da religião ou do presunto serrano. Fazíamos isso em casa, acompanhados de sua esposa, a maravilhosa Roseana Murray, escritora e poetisa, mas também em longas caminhadas pela orla. Digo que conversamos, mas tentei deixá-lo falar, porque ele tinha muito mais coisas para dizer e o fez com aquele misto de sabedoria, paciência e lucidez que eu já começava a admirar. Naquele fim de semana, ele e Roseana me contaram sua história de amor: como Juan deixou tudo para trás quando tinha mais de 60 anos e se mudou para o Brasil e como Roseana deixou todo o Brasil para trás e se mudou para Saquarema. Quando voltei para São Paulo naquele domingo e vi os dois se despedindo de mim na porta de sua casa, com toda a luz do mar no rosto, pensei que, como naquele famoso filme argentino de Adolfo Aristarain, Juan Arias foi um daqueles poucos homens de sorte que encontrou seu lugar no mundo.
Fora filho da guerra, seminarista, sacerdote, teólogo, ex-padre, jornalista de Pueblo , correspondente em Roma do EL PAÍS, membro da revista Babelia, Defensor do Leitor, escritor e, por fim, correspondente no Brasil. Talvez ele tenha te dado uma palestra sobre Giulio Andreotti que decifrou Lula da Silva ou te orientado onde plantar uma orquídea. Foi um verdadeiro professor para todos, especialmente para os jovens jornalistas que compunham o EL PAÍS Brasil, brasileiros e espanhóis, a quem ajudou generosamente desde o primeiro dia, sem conhecê-los, e a quem posteriormente acompanhou ao longo de toda a carreira. Mas sempre me lembrarei dele caminhando sorridente pela praia de Saquarema com as mãos nos bolsos da calça jeans. Além disso, nestes últimos dias, quando eu já sabia que ele estava morrendo, ele me disse no WhatsApp, com a lucidez, sabedoria e paciência de sempre, que não tinha o direito de reclamar, porque havia tido uma vida muito longa e feliz.
A cidade se chama Saquarema e a casa tinha paredes coloridas, pouca mobília, muita luz e dava para um mar azul e uma praia linda e infinita. Naqueles dias falamos muito do Brasil e deste jornal, mas também do Papa – muitos papas –, da Itália, dos livros, do jornal Pueblo, da religião ou do presunto serrano. Fazíamos isso em casa, acompanhados de sua esposa, a maravilhosa Roseana Murray, escritora e poetisa, mas também em longas caminhadas pela orla. Digo que conversamos, mas tentei deixá-lo falar, porque ele tinha muito mais coisas para dizer e o fez com aquele misto de sabedoria, paciência e lucidez que eu já começava a admirar. Naquele fim de semana, ele e Roseana me contaram sua história de amor: como Juan deixou tudo para trás quando tinha mais de 60 anos e se mudou para o Brasil e como Roseana deixou todo o Brasil para trás e se mudou para Saquarema. Quando voltei para São Paulo naquele domingo e vi os dois se despedindo de mim na porta de sua casa, com toda a luz do mar no rosto, pensei que, como naquele famoso filme argentino de Adolfo Aristarain, Juan Arias foi um daqueles poucos homens de sorte que encontrou seu lugar no mundo.
Fora filho da guerra, seminarista, sacerdote, teólogo, ex-padre, jornalista de Pueblo , correspondente em Roma do EL PAÍS, membro da revista Babelia, Defensor do Leitor, escritor e, por fim, correspondente no Brasil. Talvez ele tenha te dado uma palestra sobre Giulio Andreotti que decifrou Lula da Silva ou te orientado onde plantar uma orquídea. Foi um verdadeiro professor para todos, especialmente para os jovens jornalistas que compunham o EL PAÍS Brasil, brasileiros e espanhóis, a quem ajudou generosamente desde o primeiro dia, sem conhecê-los, e a quem posteriormente acompanhou ao longo de toda a carreira. Mas sempre me lembrarei dele caminhando sorridente pela praia de Saquarema com as mãos nos bolsos da calça jeans. Além disso, nestes últimos dias, quando eu já sabia que ele estava morrendo, ele me disse no WhatsApp, com a lucidez, sabedoria e paciência de sempre, que não tinha o direito de reclamar, porque havia tido uma vida muito longa e feliz.
Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar de que lado está
A direita que se diz civilizada ganhou mais uma chance de mostrar que é de fato civilizada. Em 2018, ela apoiou a eleição de Bolsonaro por querer acreditar que ele governaria dentro das quatro linhas da Constituição. Embora lhe faltasse preparo, Bolsonaro saberia cercar-se de pessoas competentes. O mercado estava repleto delas.
Não foi o que aconteceu. Com apenas um ano e quatro meses no cargo, em ato público defronte ao QG do Exército em Brasília, Bolsonaro falou a manifestantes que pediam abertamente a volta da ditadura. Censurou-os? Pelo contrário. Exaltou-os do alto de uma camionete ao dizer entre outras coisas:
– Não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos, sem exceção, têm que ser patriotas e acreditar e fazer a sua parte para que possamos colocar o Brasil em lugar de destaque. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder.
Não foi o que aconteceu. Com apenas um ano e quatro meses no cargo, em ato público defronte ao QG do Exército em Brasília, Bolsonaro falou a manifestantes que pediam abertamente a volta da ditadura. Censurou-os? Pelo contrário. Exaltou-os do alto de uma camionete ao dizer entre outras coisas:
– Não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos, sem exceção, têm que ser patriotas e acreditar e fazer a sua parte para que possamos colocar o Brasil em lugar de destaque. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder.
– Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza, todos nós juramos um dia dar a vida pela pátria. E vamos fazer o que for possível para mudar o destino do Brasil. Chega da velha política.
A turba rugiu satisfeita e em êxtase.
Salvo poucos nomes, Bolsonaro cercou-se de auxiliares tão medíocres quanto ele, de preferência militares. Nem os governos da ditadura empregaram tanta gente fardada em lugares quase reservados a civis. A política arrombou de vez as portas do quarteis e começou a sangrar a disciplina. Deu no que vimos.
A direita dita civilizada também viu. Mas isso não impediu que parte dela, jamais mensurada, apoiasse a reeleição de Bolsonaro. Foi por um suspiro que ele não se reelegeu, derrotando Lula, o candidato da tal frente ampla pela democracia. E não foram apenas os extremistas da direita que votaram nele.
Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor. Foi o Estado Democrático de Direito que esteve em perigo e por um triz o golpe não se consumou. Quem o reverteria se Lula, Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes tivessem sido mortos? Os generais que acolheram gentilmente os golpistas acampados?
Uma junta militar convocaria novas eleições. O plano era esse. Bolsonaro teve em mãos várias versões do plano e estabeleceu um prazo para que o golpe fosse aplicado – até o final de dezembro de 2022. Como não deu certo, escafedeu-se para os Estados Unidos e de lá assistiu o levante popular nada espontâneo do 8/1.
Indiciado pela Polícia Federal nos crimes que quis ocultar, próximo de ser denunciado pela Procuradoria-Geral da República, de que lado ficará a direita dita civilizada quando Bolsonaro e os demais golpistas sentarem no banco dos réus? Não se diga que ele é um problema da justiça e de mais ninguém.
Não há meio termo. Não cabe isenção. Escolha seu lado. Bolsonaro é um problema dos que votaram nele e de todos que arcaram com as consequências de sua gestão desastrosa e reacionária.
A turba rugiu satisfeita e em êxtase.
Salvo poucos nomes, Bolsonaro cercou-se de auxiliares tão medíocres quanto ele, de preferência militares. Nem os governos da ditadura empregaram tanta gente fardada em lugares quase reservados a civis. A política arrombou de vez as portas do quarteis e começou a sangrar a disciplina. Deu no que vimos.
A direita dita civilizada também viu. Mas isso não impediu que parte dela, jamais mensurada, apoiasse a reeleição de Bolsonaro. Foi por um suspiro que ele não se reelegeu, derrotando Lula, o candidato da tal frente ampla pela democracia. E não foram apenas os extremistas da direita que votaram nele.
Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor. Foi o Estado Democrático de Direito que esteve em perigo e por um triz o golpe não se consumou. Quem o reverteria se Lula, Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes tivessem sido mortos? Os generais que acolheram gentilmente os golpistas acampados?
Uma junta militar convocaria novas eleições. O plano era esse. Bolsonaro teve em mãos várias versões do plano e estabeleceu um prazo para que o golpe fosse aplicado – até o final de dezembro de 2022. Como não deu certo, escafedeu-se para os Estados Unidos e de lá assistiu o levante popular nada espontâneo do 8/1.
Indiciado pela Polícia Federal nos crimes que quis ocultar, próximo de ser denunciado pela Procuradoria-Geral da República, de que lado ficará a direita dita civilizada quando Bolsonaro e os demais golpistas sentarem no banco dos réus? Não se diga que ele é um problema da justiça e de mais ninguém.
Não há meio termo. Não cabe isenção. Escolha seu lado. Bolsonaro é um problema dos que votaram nele e de todos que arcaram com as consequências de sua gestão desastrosa e reacionária.
Esbórnia orçamentária é ataque ao crescimento
De repente, acorre à memória uma historinha infantil versejada: "Ratusca Boduça de Rafo Rafuça morava na roça / por voracidade, quis ir à cidade com toda essa troça / os cinco fedelhos de Rafo Rafelhos que filhos lhe são / pois lá na cidade tem uma comadre que habita o porão / da gorda ricaça Fifica Fogaça, que tem na despensa / mui ricas pitanças pra suas papanças e nem sequer pensa...". E adiante narra a ouvidos ainda inocentes um assalto sistemático de ratos à desprevenida Fifica Fogaça. Outro nome para o tesouro da "Viúva", mote de um arguto historiógrafo das mazelas nacionais.
Essa nota ressalta aos olhos quando o governo se debate para anunciar um pacote de corte de gastos, tido como indispensável ao equilíbrio econômico do país. Educação e saúde são os alvos de sempre, mas se suplica o quinhão de outros Poderes, como a magistratura e o parlamento.
As mordomias são ofensivas, senão obscenas. Juízes têm direito a 120 dias de folgas, fora os 60 de férias tradicionais. Parlamentares dispõem de R$ 44,67 bilhões para esbanjar em emendas aleatórias. O custo das isenções tributárias para empresas é de R$ 97,7 bilhões. E, para defender o país de ameaças supostamente internas (como se depreende do sinistro conspiracionismo "punhal verde e amarelo"), pois inexistem as externas, as Forças Armadas ficam com R$ 86, 8 bilhões.
No campo social, as despesas são modestas, mas é premente o caso das universidades federais, que consomem R$ 5,5 bilhões em meio a enormes dificuldades. Neste mês de novembro, a UFRJ, aliás com um reitor competentíssimo à frente, deu nó em pingo d´água para não ficar sem luz. É caso representativo porque se trata da maior universidade federal do país, uma das melhores da América Latina, com professores de alta qualidade, laboratórios e pesquisas relevantes para a sociedade nos campos da tecnologia, da saúde, da matemática e das ciências sociais.
Para o economista João Sicsú, "quem corta a luz da universidade é o governo federal, não a concessionária de energia. Ela forneceu o serviço, quem não pagou a conta foi o governo" (Sintufrj, 14/11/2024). Este argumento sugere uma revisão de prioridades na elaboração do orçamento, que entenda "valor" não como o monetarista da meta de redução a zero do déficit público, e sim como uma atribuição desejável, dotada de conteúdo acessível a todos os agentes sociais e de uma significação apta como objeto de atividade útil.
É patético confrontar dificuldades mesquinhas de um centro de excelência do conhecimento, indispensável ao crescimento econômico, com facilidades triviais da esbórnia orçamentária. Na historinha, o gato conteve dona Ratusca Boduça. Na história vivida, déficit zero não pode continuar a ser álibi da rataria que rói há séculos, sem dó, o baú patrimonial da nação.
A memória foi acionada pela burlesca assonância de uma notícia: no Maranhão, o ministro dos Esportes, André Fufuca, visitou o estádio Fufucão, batizado em homenagem ao avô. Além do Fufucão, uma areninha em Pindaró, cidade governada por Fufuca Dantas, pai de André Fufuca. Cerca de R$ 90 milhões foram reservados para a construção de novos campinhos-soçaite, com grama sintética e dependências confortáveis.
Essa nota ressalta aos olhos quando o governo se debate para anunciar um pacote de corte de gastos, tido como indispensável ao equilíbrio econômico do país. Educação e saúde são os alvos de sempre, mas se suplica o quinhão de outros Poderes, como a magistratura e o parlamento.
As mordomias são ofensivas, senão obscenas. Juízes têm direito a 120 dias de folgas, fora os 60 de férias tradicionais. Parlamentares dispõem de R$ 44,67 bilhões para esbanjar em emendas aleatórias. O custo das isenções tributárias para empresas é de R$ 97,7 bilhões. E, para defender o país de ameaças supostamente internas (como se depreende do sinistro conspiracionismo "punhal verde e amarelo"), pois inexistem as externas, as Forças Armadas ficam com R$ 86, 8 bilhões.
No campo social, as despesas são modestas, mas é premente o caso das universidades federais, que consomem R$ 5,5 bilhões em meio a enormes dificuldades. Neste mês de novembro, a UFRJ, aliás com um reitor competentíssimo à frente, deu nó em pingo d´água para não ficar sem luz. É caso representativo porque se trata da maior universidade federal do país, uma das melhores da América Latina, com professores de alta qualidade, laboratórios e pesquisas relevantes para a sociedade nos campos da tecnologia, da saúde, da matemática e das ciências sociais.
Para o economista João Sicsú, "quem corta a luz da universidade é o governo federal, não a concessionária de energia. Ela forneceu o serviço, quem não pagou a conta foi o governo" (Sintufrj, 14/11/2024). Este argumento sugere uma revisão de prioridades na elaboração do orçamento, que entenda "valor" não como o monetarista da meta de redução a zero do déficit público, e sim como uma atribuição desejável, dotada de conteúdo acessível a todos os agentes sociais e de uma significação apta como objeto de atividade útil.
É patético confrontar dificuldades mesquinhas de um centro de excelência do conhecimento, indispensável ao crescimento econômico, com facilidades triviais da esbórnia orçamentária. Na historinha, o gato conteve dona Ratusca Boduça. Na história vivida, déficit zero não pode continuar a ser álibi da rataria que rói há séculos, sem dó, o baú patrimonial da nação.
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