terça-feira, 30 de abril de 2024

CEFEs e Lula

Louvável o elogio do presidente Lula ao ex-governador Leonel Brizola por implantar os chamados Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) no Rio de Janeiro, nos anos 1980. Entre o Merenda Escolar (1955) e o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2023), o Brasil lançou dezenas de leis. Sete décadas depois do primeiro, a necessidade desse último mostra o fracasso dos anteriores: os bisnetos ainda estão precisando de pacto federativo para realizar, aos oito anos, o que deveria ter beneficiado seus bisavós, aos cinco.

Fracassamos porque, no lugar de projetos executivos nacionais ambiciosos, optamos por intenções legais e com execução municipal. Brizola não fez leis, implantou escolas. Mas os CIEPs já não comportam as inovações pedagógicas surgidas nas últimas décadas; além disso, a estratégia de mudar a educação do país por unidades escolares isoladas não dá a continuidade necessária para atingir todo o sistema escolar. No lugar de escolas, o Brasil precisa de Cidades inteiras com Educação Federal (CEFEs) até formar um sistema de educação de base com qualidade e equidade para todos.


A solução para a qualidade e a equidade já existe e é praticada: ampliar para todas as crianças o sistema escolar das públicas federais. Essas escolas federais já demonstram qualidade superior à média nacional e às próprias escolas particulares de boa qualidade. Faltam-lhes pouco para poderem oferecer a todos seus alunos a formação para terminarem a educação de base plenamente preparados para o mundo contemporâneo: falar e escrever bem o idioma português; fluente em pelo menos mais um idioma; conhecer os fundamentos da matemática, ciências, geografia, história, artes, filosofia; debater os temas do mundo moderno; usar as ferramentas digitais; dispor de pelo menos um ofício; ser capaz de administrar suas finanças particulares; adquirir solidariedade com os vizinhos, com a humanidade e com a natureza; ser capaz de obter educação continuada até o fim da vida; disputar vaga em curso superior de qualidade em condições iguais com os demais brasileiros. Com esse conhecimento, todos concluiriam sua educação de base dispondo do mapa para caminhar em busca da felicidade pessoal e das ferramentas para construir um Brasil com pleno desenvolvimento sustentável.

Sucessivos governos nacionais substituiriam as escolas municipais de cada cidade por federais, todas em horário integral, com edificações e equipamentos modernos; professores de uma carreira nacional com elevada remuneração, formação, dedicação e avaliação de resultados. Ao final, estaria implantado o sistema nacional com o padrão das atuais escolas federais de reconhecida qualidade.

Há décadas, essa solução é limitada para um pequeno número de brasileiros que podem pagar custosas escolas particulares ou que conseguem acesso em competentes escolas federais: um sistema injusto, porque exclusivo para poucos, e ineficiente, porque desperdiça milhões de cérebros, principal recurso do mundo atual. Além da injustiça, o Brasil continua barrando o potencial de 80% de seus cérebros. Sem uma política nacional ambiciosa e com instrumentos federais efetivos, em 2041, apenas 50% dos 2,5 milhões dos brasileiros que nasceram em 2023 terminarão o ensino médio; no máximo, a metade deles plenamente preparados para as exigências do mundo contemporâneo. Hoje, pagamos elevado preço por esse descuido histórico. Está no momento de fazer a inflexão necessária para construirmos o país que desejamos.

Nenhum governo será capaz de implantar esse sistema em todo o território nacional durante um ou dois mandatos, mas o governo Lula ainda tem condições de espalhar o padrão federal em 50 a 100 cidades, com 10 mil alunos cada. Seu governo estaria dando início à revolução que o país precisa se quiser aproveitar o recurso intelectual de cada brasileiro e dar oportunidades iguais a todos eles.

Outros presidentes adotaram estratégias nacionais para indústria e infraestrutura, sucessivos governos desde a redemocratização investiram no aumento do número de alunos no ensino superior, mas nenhum assumiu a responsabilidade nem definiu metas e rumos ambiciosos para a base do progresso, que é a educação básica. O presidente Lula tem a oportunidade de deixar essa marca originada em seu governo com ambição transformadora para todo o Brasil. Se ele não quiser, esperemos que, em 2026, algum candidato apresente a proposta das CEFEs em sua plataforma eleitoral. E que os eleitores o escolham.

Relaxe

Estupidez de morte


Deus nos acuda. Contra a estupidez até os deuses lutam em vão
Kurt Vonnegut, "Um pássaro na gaiola"

Contarás

Contarás de Abril o assombro, o desassossego, as súbitas visões de beleza longamente sonhadas, o assanhamento da hora vesperal; o renascer, meu e teu. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas docemente nossas que rimam connosco, as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas docemente nossas que rimam connosco , as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril os gritos, as imprecações, as cóleras, o idioma ressurecto na fraternidade de frases efusivas, no estertor. Contarás de Abril aquele haver viagem, aquele cheiro antigo de chuva de infância, a peca sombra, o chouto curto, o bêbado de rua que te assustou, temulento, a frugal manhã. Contarás de Abril o lado esquerdo da madrugada; cíclicos, os sismos: o chão em fissuras laceradas; de vagarosa, a capa da terra a recobrir o oco, as galerias naturais do ódio, onde rebramia o mar, sobre o qual haviam colocado o pinho e pedra e reconstruído a cidade, longa história de uma frustração. Contarás de Abril, os passos. Contarás de Abril , os sons , ínsitos na paisagem nocturna, nas betesgas. Contarás de Abril que me viste trajado de briche e holandilha, seteira ao ombro, num baixel de antigamente, soletrando palavras felizes, sem direcção nem sentido, como tudo o que é feliz. Contarás de Abril, aos meus filhos, filhos teus, que os meus olhos míopes, ardidos, urbanos, ficaram cheios de um ofício de dizer coisas singelas, humildes e absurdas: como amor, liberdade.
 
(...) Contarás de Abril o renascer da essencial frescura.
Contarás de Abril.
Contarás , meu amor.

Baptista-Bastos , " Contar de Abril" 

Em algum momento, toda guerra vira sumidouro de vidas

É sabido que somente cada um de nós pode construir a ponte em que atravessará o rio da vida. Nessa trajetória, somos únicos e estamos sozinhos. O caminho de fuga mais fácil para essa travessia, esse navegar pela vasta e complexa realidade que escapa a nosso controle e compreensão, é acumular certezas. Só que certezas de porteira fechada, além de daninhas para nós mesmos, em nada ajudam o convívio em sociedade. Como escreveu o espirituoso ensaísta americano George Saunders, neste mundo cheio de pessoas que confundem certeza com poder, é um alívio encontrar alguém que não teme a própria insegurança. Não raro são mentes privilegiadas, perpetuamente curiosas, que sabem como a realidade é plural, não singular, planície para vários pontos de vista, não ponto de observação com foco único.

A bebê Sabreen al-Rouch Jouda não teve tempo para esse tipo de elucubração existencial. Nasceu prematuramente, arrancada do ventre materno no Hospital Emirati de Rafah, em Gaza, no sábado, dia 20. Mãe, pai e irmã haviam morrido nos escombros da casa familiar atingida pelo bombardeio israelense. Sobreviveu por cinco dias envolta em orações dos parentes. “Agora”, contou o tio à Associated Press, depois de enterrá-la numa franja de cemitério ainda intacta, “a família do meu irmão está completamente erradicada. Será deletada do registro civil. Não restará nenhum vestígio dele”.


Em algum momento, toda guerra vira sumidouro de vidas — quanto mais longa, mais nos entorpecemos com o noticiário repetitivo. Só por vezes, quando a rotina da desgraceira acusa algum pico de desumanidade, voltamos a prestar alguma atenção ao horror. Foi assim com a recente descoberta de mais de 700 cadáveres palestinos no perímetro de dois grandes complexos hospitalares do enclave — o Nasser, em Khan Younis, e o Al-Shifa, em Gaza.

Durante seis dias, uma única escavadeira (só resta uma em funcionamento na região) desenterrou mais de 320 corpos de valas comuns na área do hospital Nasser. Semanas antes, perto de 400 outros haviam sido descobertos entre as ruínas do Al-Shifa, desossado pelas Forças de Defesa de Israel depois de um cerco de duas semanas em abril. Segundo testemunho de entidades humanitárias, a cada corpo encontrado acorrem dezenas de pessoas na esperança de identificar algum parente desaparecido. Algumas lápides improvisadas têm inscrições rudimentares: “Sujeito alto. Cabelo comprido. Camiseta cinza”. Fiapos de informação deixados por alguma alma caridosa. Cabe então a cada parente tentar lembrar o que filho, mãe, irmão, mulher usavam quando foram mortos. Felicidade, em Gaza, é poder salvar os seus mortos da invisibilidade de um não enterro.

De onde surgiram tantos cadáveres de uma só vez? De acordo com a Defesa Civil do enclave, seriam, originalmente, túmulos temporários para quem morreu no perímetro hospitalar durante o cerco israelense regado a bombas. Com os hospitais cercados, era impossível levar qualquer morto até um cemitério. O próprio Exército de Israel, em comunicado, confirma que os cadáveres de palestinos apressadamente enterrados “foram examinados” pelas forças invasoras, na tentativa de “localizar nossos reféns e desaparecidos”. Acrescenta o comunicado que “a perícia foi realizada de forma cuidadosa”, e os cadáveres não pertencentes a israelenses foram “devolvidos a seu lugares”. Não há menção de haver sido encontrado qualquer um dos 133 reféns ainda em mãos dos terroristas do Hamas.

De Washington a Berlim, passando por Londres, Bruxelas e Paris, e inevitavelmente pela ONU, houve um surto de inquietação com pedido de “apuração transparente, clara e crível”, conduzida por investigadores independentes. O jornalista palestino Akram al-Satarri, entrevistado pelo portal Democracy Now!, dá de ombros. Exerce o jornalismo há 16 anos e perdeu a conta de comissões independentes, investigações, relatórios internacionais, missões de averiguação vazias. “A comunidade internacional falhou ao não observar a lei humanitária, que sabe ser tão rica em termos e palavreado. Precisamos de algo tangível, já.”

Esse algo ainda tímido veio à luz nesta semana, na forma de um apelo capitaneado por um emparedado presidente Joe Biden em conjunto com 16 outras nações (inclusive o Brasil), para que o Hamas aceite a proposta de libertar todos os reféns que mantém cativos em condições inimagináveis por mais de 200 dias. Em troca, um cessar-fogo imediato e prolongado — o que, para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, equivaleria a admitir que sua guerra ao Hamas fracassou, que a realidade é plural e que o acúmulo de certezas é sinal de fraqueza. A estudantada mundial, com seus erros e acertos de DNA, já compreendeu o essencial. Falta aos adultos no poder fazerem o mesmo.

A nova espiritualidade sem os deuses da extrema direita

Talvez a paixão pela Bíblia dos novos movimentos fascistas e nazistas de extrema direita não seja uma coincidência. O livro considerado o maior monumento literário religioso de todos os tempos é hoje contestado politicamente pelos partidos que ressurgem das cavernas da intransigência e da violência. E confesso o meu desconforto ao ver esta publicação da Bíblia, usada mais como arma envenenada do que como remédio para a alma, erguida bem alto, como uma bandeira pelas mãos dos novos ditadores no poder: de Trump a um Bolsonaro que veio para querer impor a Bíblia como único livro didático nas escolas.


É verdade que a Bíblia contém a mais sublime e a mais baixa das paixões humanas porque é, na realidade, uma visão do céu e do inferno que todos carregamos dentro de nós. É a fotografia da complexidade do ser humano, meio deus e meio demônio. O que acontece é que no ressurgimento de novos fascismos, quase sempre com conotações religiosas, o que é interessante na Bíblia é apenas a fotografia que ela faz do Deus da vingança, dos massacres, dos medos ancestrais da condenação eterna.

Assim, mesmo os movimentos modernos das igrejas evangélicas e pentecostais que tanto atraem os novos ditadores, acabam apresentando aos fiéis Deus como vingador ao invés do misericordioso que abençoa os pacíficos e os que sofrem perseguições. É a religião da violência contra o Deus do perdão e da solidariedade, mais o Deus das guerras do que o Deus da paz.

Acredito que a Bíblia é o melhor compêndio que existe da complexidade do Homo sapiens com suas mais variadas pulsões e contradições. O livro que melhor nos retrata e que mais se presta a tornar-se um manual guerreiro, sublimando o manual do perdão e da paz.

Talvez por esta razão, embora me deixe visivelmente desconfortável ver a Bíblia nas mãos dos novos ditadores no poder que incitam guerras e praticam a religião do olho por olho, sinto uma certa ternura quando a vejo nas mãos de gente simples e humilde que mal sabe ler. Apenas dois exemplos vividos pessoalmente aqui no Brasil . A primeira foi a de uma trabalhadora que veio da favela do Turano, no bairro Rio Comprido, no Rio. Eu estava passeando com meu cachorro quando vi aquela mulher sentada em uma pedra lendo a Bíblia. Ela provavelmente estava esperando uma Van para ir trabalhar, para limpar uma casa.

Não ousei perguntar que parte da Bíblia ela estava lendo, mas percebi que era o Livro dos Salmos. Nós nos cumprimentamos apenas com os olhos. Percebi que as mãos que seguravam o exemplar já desgastado eram mãos que traziam marcas de muito trabalho. A cena produziu em mim ternura e não pouca reflexão.

Aqui na pequena e alegre cidade pesqueira de Saquarema, famosa por seus campeonatos mundiais de surf, tomando um café com leite e um pão de queijo em um bar, notei alium exemplar aberto da Bíblia. Quando perguntei à proprietária por que seu pequeno bar abria tão tarde, ela me disse que eles tinham uma filha com uma deficiência grave e que precisavam esperar alguém para cuidar dela enquanto trabalhavam.

Comecei a olhar o exemplar aberto da Bíblia e perguntei se ela gostava dele. Ela me respondeu algo que ainda não foi apagado da minha memória anos depois: “Isso me ajuda a não me desesperar”. A verdade é que o Deus da Bíblia daquela mãe que sofreu para sempre a dor da filha doente, não era, como o do trabalhador da favela do Rio, o dos novos ditadores de plantão, os Trumps e os Bolsonaros ou o Deus do ditador espanhol Francisco Franco que manteve a Espanha afastada do mundo durante 50 anos, atolada na pobreza e que parece ameaçar ressuscitar novamente.

Entretanto, pela primeira vez na história, surge uma nova espiritualidade sem deuses e menos ainda sem os deuses dos ditadores. Pela primeira vez, está a surgir um movimento que tenta reconciliar a fé e a esperança com a ciência moderna. É esse diálogo novo e criativo entre ciência e fé que nos redime dos nossos medos, das nossas depressões e angústias psíquicas modernas. Mesmo nas famosas universidades americanas, coisas tão simples e profundas ao mesmo tempo como a gratidão, a amizade, a esperança, a compaixão por quem sofre e a verdadeira amizade são estudadas através de experiências pessoais como novas realidades, até religiosas e libertadoras.

A novidade do nosso tempo, tão complexo e em plena evolução existencial, é que é precisamente a ciência e não os velhos feiticeiros que descobrem os laços estreitos que existem, como antídoto para o desespero existencial que nos persegue, e não as virtudes divinas de tempos antigos, mas os verdadeiramente humanos, aqueles que nos são oferecidos pela força curativa da natureza, que mais consola do que castiga, que no final nos reconcilia com o que de melhor existe no nosso complexo labirinto humano que, ao querer divinizá-lo, acabou desumanizando-o.