sexta-feira, 20 de junho de 2025
Esta é a história de como se começa a perder a democracia: eu vi, ninguém me contou
São quase oito da noite, na Place de la République, no centro de Paris. É um final de tarde quente e as esplanadas em torno da estátua da Marianne, borbulham de vida e animação. Quando me aproximo da imagem da República Francesa, saltam-me à vista as pichagens que lhe mancham a pedra. Só então reparo que a placa central da praça tem um cordão de polícias de choque, parados à sua volta. Por entre eles vão passando jovens com lenços palestinianos ou bandeiras da Palestina. Cumprimentam-se à medida que se dirigem para a rua que fica mesmo em frente do local cercado pelos polícias. Uma das raparigas, que traz ao pescoço uma máscara antigás pimenta amarela, cumprimenta efusivamente um rapaz que, como ela, se aproxima de um grupo de manifestantes que não chegará aos 60. Juntos dizem vivas à Palestina e pedem a sua libertação, em Francês, Inglês e Espanhol. E aí ficam. Gritando e saltando ao ritmo das palavras de ordem.
Começa, então, a sentir-se a tensão subir. Os jovens continuam nos seus cânticos animados. Mas os polícias começam a convergir das bordas da praça para o centro. Chegam mais polícias. São todos muito jovens, mas ainda assim mais velhos do que os manifestantes. Reparo num rapaz de barbas ruivas, cuidadosamente aparadas, que comenta a cena com outro polícia moreno, enquanto se aproximam devagar, mas decididamente, para a pequena manifestação pacífica que decorre a poucos metros.
Há sensação de que está a alguma coisa para acontecer. Os polícias medem nas mãos os cassetetes e avançam. É como se estivesse prestes a começar uma caçada. Estão cada vez mais tensos. E começam a surgir mais polícias, vindos de todos os cantos da praça.
Quando são já mais de uma centena, os que estavam no centro da praça disparam a correr. À sua frente, o punhado de manifestantes para os cânticos e começa a fugir. A sua corrida instiga os polícias, que passam por mim num galope desenfreado. Os cassetetes em riste, que alguns metros à frente caem sobre as costas desprotegidas dos jovens. Vejo-os fugir em várias direções, perseguidos por agentes a pé, ao mesmo tempo que umas duas dezenas de motas, cada uma das quais com dois polícias em cima, se aproxima da praça.
Fujo também, evitando correr, com medo de ser confundida com um dos manifestantes e acabar como eles, espancada pelos polícias que agora já têm capacetes e, em alguns casos, máscaras negras a cobrir-lhes a face. Ando devagar, mas firmemente. Tão firmemente quanto me é possível, agora que as pernas me tremem e o coração se acelera.
À minha volta, nas esplanadas a vida segue. Bebem-se copos de final da tarde, petisca-se qualquer coisa nas brasseries. Não tenho sequer a coragem de olhar para trás. Não quero ver ao vivo as cenas de violência e repressão policial que quase todos os dias me aparecem nos vídeos do Instagram, mas que só agora presencio ao vivo, vendo do princípio ao fim toda a cena. Vendo o suficiente para afirmar, com a certeza de quem viu e ninguém lhe contou, que não houve provocações nem violência dos manifestantes.
À medida que me afasto da praça, com as pernas bambas, há uma ideia que não me sai da cabeça. Não havia um único jornalista presente. Não havia uma câmara, um microfone, nada, a não ser um videografo que estava claramente com os manifestantes, certamente para fazer um daqueles vídeos com que me deparo uma e outra vez nas redes sociais e em relação aos quais há sempre alguém que diz que a cena está descontextualizada, que a violência policial é justificada com as provocações de quem se manifesta.
Não há um único jornalista a registar a cena. E isso não me sai da cabeça enquanto me afasto.
No dia seguinte, um taxista reage com indiferença à pergunta sobre o incidente. “É assim todos os sábados”, responde com um encolher de ombros. E a resposta encaixa bem no ar coreografado da cena que vi. Os caçadores e os caçados, cientes desde o início dos papéis que lhes cabem, prontos para encenar uma e outra vez o momento em que uns atacam e os outros fogem, em que uns protestam e os outros batem.
E a violência policial? Era um punhado de gente pacífica, não fizeram nada de mal. “Oh, isto é a França”, reage o taxista. “Isto não é o Brasil. Vocês são do Brasil, não são?”. Não, não somos. “Bem, então, isto não é Portugal”. Calo-me. Por quanto mais tempo isto não será assim em Portugal?
Penso na vez em que, ao atravessar a Alameda com os meus filhos, passámos pelo meio de uma manifestação pela paz na Palestina. O relvado estava cheio de famílias, algumas com carrinhos de bebés, outras com crianças que brincavam entre os cartazes, enquanto os pais conversavam descontraidamente. Expliquei aos miúdos os cartazes e as bandeiras e passámos por dois polícias, que assistiam à cena de braços cruzados, junto a um carro-patrulha, que entusiasmou muito mais as crianças do que a manifestação. “Podemos tirar uma fotografia?”, perguntaram. A resposta foi um sorriso do agente, que se pôs em pose para o retrato.
“Bem, então, isto não é Portugal”, dizia o taxista. E a questão é também essa. É que a cena que eu vi não é na China nem na Rússia. É num dos berços das democracias representativas ocidentais. É em França. Não é na Coreia do Norte. É em França. É em França, repito para mim mesma.
Podemos encontrar todas as explicações que quisermos. Mas não podemos negar que aquela demonstração de força policial não serve para controlar o punhado de miúdos que gritava pela Palestina. Não seriam precisos tantos meios para o fazer. Menos de metade dos polícias serviria bem esse propósito. Não. O que ali está em jogo é uma ação de comunicação. Fica bem evidente o preço a pagar por divergir do que o Estado entende ser uma posição aceitável.
Aqueles jovens sabem bem ao que vão. E os que estão nas esplanadas estão a ser instruídos a ignorar o que se passa. Acontece todos os sábados. E não há nenhum jornalista presente. É claro que o que se passa em Gaza deve ser silenciado e é claro o preço que se paga por defender o contrário.
Um dos pilares da democracia ocidental é a liberdade de expressão e de manifestação. E é isso que está em erosão. As sucessivas crises, a ideia de estado de exceção, abriram caminho para que a força musculada do Estado seja usada para reprimir direitos que achávamos adquiridos. Está tudo a acontecer à nossa frente. Mas, claro, escolhemos não olhar. Talvez até ao dia que nos bata à porta. Talvez até ao dia em que não seja preciso ter a coragem daqueles miúdos para levar com cassetetes nos lombos.
A Marianne continua lá. Tem, sob os pés inscritas na pedra a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Mas a divisa parece, cada vez mais, uma letra morta. Um refrão que já quer dizer pouco.
Começa, então, a sentir-se a tensão subir. Os jovens continuam nos seus cânticos animados. Mas os polícias começam a convergir das bordas da praça para o centro. Chegam mais polícias. São todos muito jovens, mas ainda assim mais velhos do que os manifestantes. Reparo num rapaz de barbas ruivas, cuidadosamente aparadas, que comenta a cena com outro polícia moreno, enquanto se aproximam devagar, mas decididamente, para a pequena manifestação pacífica que decorre a poucos metros.
Há sensação de que está a alguma coisa para acontecer. Os polícias medem nas mãos os cassetetes e avançam. É como se estivesse prestes a começar uma caçada. Estão cada vez mais tensos. E começam a surgir mais polícias, vindos de todos os cantos da praça.
Quando são já mais de uma centena, os que estavam no centro da praça disparam a correr. À sua frente, o punhado de manifestantes para os cânticos e começa a fugir. A sua corrida instiga os polícias, que passam por mim num galope desenfreado. Os cassetetes em riste, que alguns metros à frente caem sobre as costas desprotegidas dos jovens. Vejo-os fugir em várias direções, perseguidos por agentes a pé, ao mesmo tempo que umas duas dezenas de motas, cada uma das quais com dois polícias em cima, se aproxima da praça.
Fujo também, evitando correr, com medo de ser confundida com um dos manifestantes e acabar como eles, espancada pelos polícias que agora já têm capacetes e, em alguns casos, máscaras negras a cobrir-lhes a face. Ando devagar, mas firmemente. Tão firmemente quanto me é possível, agora que as pernas me tremem e o coração se acelera.
À minha volta, nas esplanadas a vida segue. Bebem-se copos de final da tarde, petisca-se qualquer coisa nas brasseries. Não tenho sequer a coragem de olhar para trás. Não quero ver ao vivo as cenas de violência e repressão policial que quase todos os dias me aparecem nos vídeos do Instagram, mas que só agora presencio ao vivo, vendo do princípio ao fim toda a cena. Vendo o suficiente para afirmar, com a certeza de quem viu e ninguém lhe contou, que não houve provocações nem violência dos manifestantes.
À medida que me afasto da praça, com as pernas bambas, há uma ideia que não me sai da cabeça. Não havia um único jornalista presente. Não havia uma câmara, um microfone, nada, a não ser um videografo que estava claramente com os manifestantes, certamente para fazer um daqueles vídeos com que me deparo uma e outra vez nas redes sociais e em relação aos quais há sempre alguém que diz que a cena está descontextualizada, que a violência policial é justificada com as provocações de quem se manifesta.
Não há um único jornalista a registar a cena. E isso não me sai da cabeça enquanto me afasto.
No dia seguinte, um taxista reage com indiferença à pergunta sobre o incidente. “É assim todos os sábados”, responde com um encolher de ombros. E a resposta encaixa bem no ar coreografado da cena que vi. Os caçadores e os caçados, cientes desde o início dos papéis que lhes cabem, prontos para encenar uma e outra vez o momento em que uns atacam e os outros fogem, em que uns protestam e os outros batem.
E a violência policial? Era um punhado de gente pacífica, não fizeram nada de mal. “Oh, isto é a França”, reage o taxista. “Isto não é o Brasil. Vocês são do Brasil, não são?”. Não, não somos. “Bem, então, isto não é Portugal”. Calo-me. Por quanto mais tempo isto não será assim em Portugal?
Penso na vez em que, ao atravessar a Alameda com os meus filhos, passámos pelo meio de uma manifestação pela paz na Palestina. O relvado estava cheio de famílias, algumas com carrinhos de bebés, outras com crianças que brincavam entre os cartazes, enquanto os pais conversavam descontraidamente. Expliquei aos miúdos os cartazes e as bandeiras e passámos por dois polícias, que assistiam à cena de braços cruzados, junto a um carro-patrulha, que entusiasmou muito mais as crianças do que a manifestação. “Podemos tirar uma fotografia?”, perguntaram. A resposta foi um sorriso do agente, que se pôs em pose para o retrato.
“Bem, então, isto não é Portugal”, dizia o taxista. E a questão é também essa. É que a cena que eu vi não é na China nem na Rússia. É num dos berços das democracias representativas ocidentais. É em França. Não é na Coreia do Norte. É em França. É em França, repito para mim mesma.
Podemos encontrar todas as explicações que quisermos. Mas não podemos negar que aquela demonstração de força policial não serve para controlar o punhado de miúdos que gritava pela Palestina. Não seriam precisos tantos meios para o fazer. Menos de metade dos polícias serviria bem esse propósito. Não. O que ali está em jogo é uma ação de comunicação. Fica bem evidente o preço a pagar por divergir do que o Estado entende ser uma posição aceitável.
Aqueles jovens sabem bem ao que vão. E os que estão nas esplanadas estão a ser instruídos a ignorar o que se passa. Acontece todos os sábados. E não há nenhum jornalista presente. É claro que o que se passa em Gaza deve ser silenciado e é claro o preço que se paga por defender o contrário.
Um dos pilares da democracia ocidental é a liberdade de expressão e de manifestação. E é isso que está em erosão. As sucessivas crises, a ideia de estado de exceção, abriram caminho para que a força musculada do Estado seja usada para reprimir direitos que achávamos adquiridos. Está tudo a acontecer à nossa frente. Mas, claro, escolhemos não olhar. Talvez até ao dia que nos bata à porta. Talvez até ao dia em que não seja preciso ter a coragem daqueles miúdos para levar com cassetetes nos lombos.
A Marianne continua lá. Tem, sob os pés inscritas na pedra a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Mas a divisa parece, cada vez mais, uma letra morta. Um refrão que já quer dizer pouco.
Quer perguntar? Primeiro, peça licença
Nas democracias, os jornalistas gritam em conferências de imprensa. Querem que a sua pergunta seja ouvida – e respondida – e gritam.
É um pouco selvagem, mas é prática comum.
Vemos isso no Reino Unido, em França ou nos EUA, às vezes também em Portugal, mas pouco, e em todos os países com tradição e hábitos democráticos. Por contraste, nas ditaduras, das duas uma: não há perguntas ou, se há, são ordeiras, simpáticas e obedientes.
Esta semana, Chris Sommerfeldt, que “faz” Câmara Municipal de Nova Iorque para o tablóide Daily News – ou seja, cobre todas as reuniões de câmara e conferências de imprensa, tem fontes que vão do porteiro ao chefe de gabinete do mayor e procura notícias sobre a câmara todos os dias – tentou fazer uma pergunta a Eric Adams, presidente da câmara de Nova Iorque, e gritou:
– Se só pode escolher uma…
Conseguiu meia frase ou nem isso. O jornalista interrompeu o mayor e, em resposta, o mayor interrompeu o jornalista.
Adams tinha acabado de dizer que vai recandidatar-se como independente – e não como democrata – concorrendo com duas entradas no boletim de voto: End Anti Semitism e Safe & Affordable.
Tendo já sido debatido nos media nova-iorquinos o facto de a lei eleitoral do estado de Nova Iorque exigir que os candidatos tenham uma única linha no boletim de voto, o jornalista interrompeu e tentou fazer a tal pergunta.
Ao que o mayor respondeu:
– Estás a gritar muito, Chris – disse “com uma voz provocadora e cantada”, na descrição do New York Times. – Pára de gritar. Deves ter feito isso na escola.
Diz ainda o New York Times: “O Sr. Sommerfeldt tentou fazer a sua pergunta novamente. O Sr. Adams cortou-lhe a palavra. ‘Se ele voltar a fazer isso, não pode vir às nossas conferências’, disse o presidente da Câmara à sua equipa, acrescentando: ‘Não vai entrar nesta conferência, o meu off-topics, e ser desrespeitoso, e gritar, e pensar que faz o que quer. Se voltar a fazer isso, não passará por aquela porta.’ O Sr. Sommerfeldt tentou mais uma vez fazer a pergunta. ‘Ele fê-lo outra vez’, disse o Sr. Adams. ‘Certifiquem-se de que a segurança sabe que ele não pode voltar a entrar nesta sala.'”
Os off-topics são as conferências de imprensa de rotina sem tema fixo ou pré-anunciado, não servindo para comunicar políticas públicas ou comentar um acontecimento. É na rotina dos off-topics que os jornalistas podem perguntar aos políticos o que querem, sem serem cortados com um “não foi isso que nos trouxe aqui hoje”.
No fim da conferência de imprensa, Kayla Mamelak Altus, porta-voz de Adams, confirmou que Sommerfeldt está a partir de agora impedido de cobrir as conferências de imprensa de Adams. Disse que a proibição não afectava o Daily News em geral, mas Sommerfeldt em particular, que o jornalista fora banido por estar a “calling out”, a gritar perguntas, e a “falar por cima dos outros repórteres”, tendo sido “desrespeitoso”. Altus disse também que o seu objectivo é assegurar que todos os media têm igual acesso ao presidente da Câmara.
Pequeno problema: há três meses que Sommerfeldt levanta o braço para indicar que tem uma pergunta a fazer e há três meses que não lhe dão voz. As conferências off-topics de Adams são semanais – é fazer as contas. A fonte é o jornal, mas repórteres que cobrem a câmara e assistem às repetidas tentativas de Sommerfeldt fazer perguntas confirmaram.
Segundo problema: a porta-voz de Adams disse ao New York Times que não sabia que Sommerfeldt não tinha conseguido fazer nenhuma pergunta há três meses, mas a 5 de Maio houve uma pergunta numa off-topics na qual, justamente, isso lhe foi perguntado: porque é que a câmara não deixa Sommerfeldt fazer perguntas?
“Os nossos repórteres têm o direito a fazer perguntas e os contribuintes não estão a financiar a polícia para manter os repórteres fora das conferências de imprensa da Câmara Municipal”, disse Andrew Julien, director do Daily News. Numa carta dirigida ao presidente da Câmara, o Daily News Union, unidade do News Guild de Nova Iorque, pediu que Adams anule a proibição, disse que Sommerfeldt “estava a fazer o seu trabalho”, que o seu trabalho “não é ficar à espera que lhe dêem autorização para fazer perguntas” e que “a única pessoa que foi desrespeitosa” naquele dia foi Adams.
Um caso grave, mas isolado?
Terceiro problema: não é bem assim.
Em fevereiro, o Presidente Donald Trump abriu um novo capítulo na relação do políticos com os media quando baniu a Associated Press (AP), agência de notícias norte-americana, das conferências de imprensa na Sala Oval.
O bloqueio começou quando a AP continuou a escrever “golfo do México”, ignorando a ordem executiva de Trump que o mudou para “golfo da América”.
Em abril, num tribunal, a AP ganhou – com um juiz nomeado por Trump –, mas logo a seguir, e tendo sido derrotado, Trump mudou a política de acesso dos media à Casa Branca.
Agora, nenhuma das três agências de notícias tem lugar permanente na Sala Oval. A AP, a Reuters e a Bloomberg News passaram a fazer parte da pool de 30 media, incluindo jornais, podcasts, rádios e televisões, cujos lugares rodam.
Em teoria, poder-se-ia dizer que a mudança de Trump acolhe os novos media, mais digitais, alguns chamados “independentes”, e que isso é bom para a democracia.
O problema é que os supostos “independentes” têm-se revelado, sem surpresa, de uma simpatia extrema em relação a Trump. Não é só o facto de elogiarem o Presidente enquanto fazem perguntas nas conferências de imprensa. Grave é que não escrutinam, não verificam, não incomodam.
É um pouco selvagem, mas é prática comum.
Vemos isso no Reino Unido, em França ou nos EUA, às vezes também em Portugal, mas pouco, e em todos os países com tradição e hábitos democráticos. Por contraste, nas ditaduras, das duas uma: não há perguntas ou, se há, são ordeiras, simpáticas e obedientes.
Esta semana, Chris Sommerfeldt, que “faz” Câmara Municipal de Nova Iorque para o tablóide Daily News – ou seja, cobre todas as reuniões de câmara e conferências de imprensa, tem fontes que vão do porteiro ao chefe de gabinete do mayor e procura notícias sobre a câmara todos os dias – tentou fazer uma pergunta a Eric Adams, presidente da câmara de Nova Iorque, e gritou:
– Se só pode escolher uma…
Conseguiu meia frase ou nem isso. O jornalista interrompeu o mayor e, em resposta, o mayor interrompeu o jornalista.
Adams tinha acabado de dizer que vai recandidatar-se como independente – e não como democrata – concorrendo com duas entradas no boletim de voto: End Anti Semitism e Safe & Affordable.
Tendo já sido debatido nos media nova-iorquinos o facto de a lei eleitoral do estado de Nova Iorque exigir que os candidatos tenham uma única linha no boletim de voto, o jornalista interrompeu e tentou fazer a tal pergunta.
Ao que o mayor respondeu:
– Estás a gritar muito, Chris – disse “com uma voz provocadora e cantada”, na descrição do New York Times. – Pára de gritar. Deves ter feito isso na escola.
Diz ainda o New York Times: “O Sr. Sommerfeldt tentou fazer a sua pergunta novamente. O Sr. Adams cortou-lhe a palavra. ‘Se ele voltar a fazer isso, não pode vir às nossas conferências’, disse o presidente da Câmara à sua equipa, acrescentando: ‘Não vai entrar nesta conferência, o meu off-topics, e ser desrespeitoso, e gritar, e pensar que faz o que quer. Se voltar a fazer isso, não passará por aquela porta.’ O Sr. Sommerfeldt tentou mais uma vez fazer a pergunta. ‘Ele fê-lo outra vez’, disse o Sr. Adams. ‘Certifiquem-se de que a segurança sabe que ele não pode voltar a entrar nesta sala.'”
Os off-topics são as conferências de imprensa de rotina sem tema fixo ou pré-anunciado, não servindo para comunicar políticas públicas ou comentar um acontecimento. É na rotina dos off-topics que os jornalistas podem perguntar aos políticos o que querem, sem serem cortados com um “não foi isso que nos trouxe aqui hoje”.
No fim da conferência de imprensa, Kayla Mamelak Altus, porta-voz de Adams, confirmou que Sommerfeldt está a partir de agora impedido de cobrir as conferências de imprensa de Adams. Disse que a proibição não afectava o Daily News em geral, mas Sommerfeldt em particular, que o jornalista fora banido por estar a “calling out”, a gritar perguntas, e a “falar por cima dos outros repórteres”, tendo sido “desrespeitoso”. Altus disse também que o seu objectivo é assegurar que todos os media têm igual acesso ao presidente da Câmara.
Pequeno problema: há três meses que Sommerfeldt levanta o braço para indicar que tem uma pergunta a fazer e há três meses que não lhe dão voz. As conferências off-topics de Adams são semanais – é fazer as contas. A fonte é o jornal, mas repórteres que cobrem a câmara e assistem às repetidas tentativas de Sommerfeldt fazer perguntas confirmaram.
Segundo problema: a porta-voz de Adams disse ao New York Times que não sabia que Sommerfeldt não tinha conseguido fazer nenhuma pergunta há três meses, mas a 5 de Maio houve uma pergunta numa off-topics na qual, justamente, isso lhe foi perguntado: porque é que a câmara não deixa Sommerfeldt fazer perguntas?
“Os nossos repórteres têm o direito a fazer perguntas e os contribuintes não estão a financiar a polícia para manter os repórteres fora das conferências de imprensa da Câmara Municipal”, disse Andrew Julien, director do Daily News. Numa carta dirigida ao presidente da Câmara, o Daily News Union, unidade do News Guild de Nova Iorque, pediu que Adams anule a proibição, disse que Sommerfeldt “estava a fazer o seu trabalho”, que o seu trabalho “não é ficar à espera que lhe dêem autorização para fazer perguntas” e que “a única pessoa que foi desrespeitosa” naquele dia foi Adams.
Um caso grave, mas isolado?
Terceiro problema: não é bem assim.
Em fevereiro, o Presidente Donald Trump abriu um novo capítulo na relação do políticos com os media quando baniu a Associated Press (AP), agência de notícias norte-americana, das conferências de imprensa na Sala Oval.
O bloqueio começou quando a AP continuou a escrever “golfo do México”, ignorando a ordem executiva de Trump que o mudou para “golfo da América”.
Em abril, num tribunal, a AP ganhou – com um juiz nomeado por Trump –, mas logo a seguir, e tendo sido derrotado, Trump mudou a política de acesso dos media à Casa Branca.
Agora, nenhuma das três agências de notícias tem lugar permanente na Sala Oval. A AP, a Reuters e a Bloomberg News passaram a fazer parte da pool de 30 media, incluindo jornais, podcasts, rádios e televisões, cujos lugares rodam.
Em teoria, poder-se-ia dizer que a mudança de Trump acolhe os novos media, mais digitais, alguns chamados “independentes”, e que isso é bom para a democracia.
O problema é que os supostos “independentes” têm-se revelado, sem surpresa, de uma simpatia extrema em relação a Trump. Não é só o facto de elogiarem o Presidente enquanto fazem perguntas nas conferências de imprensa. Grave é que não escrutinam, não verificam, não incomodam.
Um mundo com mais guerras e Trump
Guerra no Oriente Médio suscita discussões estereotipadas a respeito do preço do petróleo, além de especulações sobre a "escalada do conflito", hipótese debatida, no entanto, sob a perspectiva do impacto econômico. É fácil perceber que uma carestia grande e persistente de combustíveis causa dano econômico imediato.
É mais difícil discutir esta situação mundial em que há muito menos meios de contenção do risco de novas guerras muito perigosas —e logo. Torna-se frequente a menção ao uso de armamento nuclear, como voltou a fazer a Rússia, a respeito das consequências de um ataque americano contra o Irã. Trump agrava um estado de coisas degradado faz década e meia.
Pelo menos no núcleo ideológico ou na propaganda, o trumpismo e o MAGA seriam "isolacionistas". Isto é, a favor do corte do financiamento militar de aliados, enxugamento de bases militares no exterior e indiferença a guerras que não envolvam o interesse direto dos EUA.
O "isolacionismo", porém, não é empecilho para novos tipos de intervenções americanas (a anexação da Groenlândia apenas parece piada).
Isto posto, em menos de uma semana de guerra, Trump passou a insinuar que poderia atacar o Irã e matar o dito "líder supremo", Ali Khamenei. Nesta quinta, disse que pensaria melhor no assunto.
Boa parte do trumpismo continua a se opor a um ataque. Segundo pesquisa YouGov/Economist, 60% dos americanos e 53% dos republicanos também.
Um conflito descontrolado pode colocar (mais) areia na economia americana e na popularidade presidencial. São esses os riscos ponderados por Trump? De fora, vemos apenas o "reality show" a serviço do projeto de tirania e nenhuma estratégia de estabilização política do mundo —ao contrário.
O que sabemos faz mais tempo é que os limites do jogo de poder internacional se esfarelaram. Trump espalha essa farofa de maneira mais assustadora.
O conflito sino-americano intensificou o uso de armas econômicas na política: nacionalismo e política industrial nos EUA, restrições a exportações e a investimentos na China e outras sanções, o que não é novo, mas foi escancarado sob Trump. A China ataca e contra-ataca nos mesmos termos. Mais: nos comunicados em que relata negociações comerciais com os EUA, manda que não se metam em Taiwan.
A epidemia havia suscitado reações autárquicas (segurança de abastecimento e produção de bens ditos essenciais ou estratégicos). O ataque da Rússia contra Ucrânia reforçou a preocupação com segurança energética, mas não só (vide o medo brasileiro com o risco de ficar sem fertilizantes).
A Europa começa a se rearmar. O confisco das reservas russas pelo dito Ocidente (entre outras sanções) colocou mais barbas de molho. Para dar um exemplo rápido, a China passou a diminuir as reservas que mantém nos EUA.
Trump arruinou o sistema de regulação comercial mundial, que já vinha sendo detonado desde Barack Obama. Ameaça países recalcitrantes de boicotes econômicos e militares.
O salve-se quem puder na economia tem sido radicalizado (nunca deixou de ser assim). A ideia de ter mais autonomia militar ou de se juntar a um bloco bem armado é assunto forte outra vez. O rearmamento agrava problemas fiscais e, pois, prejudica crescimento e políticas sociais.
Dizer que as instituições multilaterais foram à breca é pouco. Não há concerto de países poderosos, acordo para colocar ordem no mundo, nem segundo os interesses deles.
É mais difícil discutir esta situação mundial em que há muito menos meios de contenção do risco de novas guerras muito perigosas —e logo. Torna-se frequente a menção ao uso de armamento nuclear, como voltou a fazer a Rússia, a respeito das consequências de um ataque americano contra o Irã. Trump agrava um estado de coisas degradado faz década e meia.
Pelo menos no núcleo ideológico ou na propaganda, o trumpismo e o MAGA seriam "isolacionistas". Isto é, a favor do corte do financiamento militar de aliados, enxugamento de bases militares no exterior e indiferença a guerras que não envolvam o interesse direto dos EUA.
O "isolacionismo", porém, não é empecilho para novos tipos de intervenções americanas (a anexação da Groenlândia apenas parece piada).
Isto posto, em menos de uma semana de guerra, Trump passou a insinuar que poderia atacar o Irã e matar o dito "líder supremo", Ali Khamenei. Nesta quinta, disse que pensaria melhor no assunto.
Boa parte do trumpismo continua a se opor a um ataque. Segundo pesquisa YouGov/Economist, 60% dos americanos e 53% dos republicanos também.
Um conflito descontrolado pode colocar (mais) areia na economia americana e na popularidade presidencial. São esses os riscos ponderados por Trump? De fora, vemos apenas o "reality show" a serviço do projeto de tirania e nenhuma estratégia de estabilização política do mundo —ao contrário.
O que sabemos faz mais tempo é que os limites do jogo de poder internacional se esfarelaram. Trump espalha essa farofa de maneira mais assustadora.
O conflito sino-americano intensificou o uso de armas econômicas na política: nacionalismo e política industrial nos EUA, restrições a exportações e a investimentos na China e outras sanções, o que não é novo, mas foi escancarado sob Trump. A China ataca e contra-ataca nos mesmos termos. Mais: nos comunicados em que relata negociações comerciais com os EUA, manda que não se metam em Taiwan.
A epidemia havia suscitado reações autárquicas (segurança de abastecimento e produção de bens ditos essenciais ou estratégicos). O ataque da Rússia contra Ucrânia reforçou a preocupação com segurança energética, mas não só (vide o medo brasileiro com o risco de ficar sem fertilizantes).
A Europa começa a se rearmar. O confisco das reservas russas pelo dito Ocidente (entre outras sanções) colocou mais barbas de molho. Para dar um exemplo rápido, a China passou a diminuir as reservas que mantém nos EUA.
Trump arruinou o sistema de regulação comercial mundial, que já vinha sendo detonado desde Barack Obama. Ameaça países recalcitrantes de boicotes econômicos e militares.
O salve-se quem puder na economia tem sido radicalizado (nunca deixou de ser assim). A ideia de ter mais autonomia militar ou de se juntar a um bloco bem armado é assunto forte outra vez. O rearmamento agrava problemas fiscais e, pois, prejudica crescimento e políticas sociais.
Dizer que as instituições multilaterais foram à breca é pouco. Não há concerto de países poderosos, acordo para colocar ordem no mundo, nem segundo os interesses deles.
Mundo das emoções
Primeiro, as pessoas não funcionam racionalmente e sim a partir de emoções. As pesquisas mostram isso. As pessoas não veem o noticiário para se informar, mas para se confirmar. Não vão ler algo de outra orientação cultural, ideológica ou política. A segunda razão para esse comportamento é que vivemos em uma sociedade de informação desinformada. Temos mais informação do que nunca, mas a capacidade de processá-la e entendê-la depende da educação e ela em geral, mais particularmente no Brasil, está em muito mau estado.
Manuel Castells
Manuel Castells
Este foi o pior ano da história
Ouvimos frequentemente que tudo vai de mal a pior, especialmente quando falamos sobre o estado atual do mundo. Não é surpresa, então, que muitos considerem os piores momentos da humanidade como recentes, como 2020, com a pandemia da COVID-19. Ou, para quem para para pensar um pouco mais, anos devastadores antes, como 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial; ou 1939, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Ou, se você conhece mais história, quando a Peste Negra começou a devastar a Europa em 1347.
No entanto, o fascinante é que entre vários historiadores há um consenso sobre qual foi realmente o pior ano para se estar vivo: 536 d.C.
"Foi o início de um dos piores períodos para se viver, senão o pior ano", disse o historiador medieval Michael McCormick, da Universidade Harvard, à revista Science em 2018. E ele não está exagerando. Aquele ano marcou o início de uma catástrofe global que mergulharia o mundo na escuridão — literalmente —, no frio e no desespero por mais de um século.
Em um estudo publicado na revista Antiquity em 2018, McCormick e o glaciologista Paul Mayewski revelaram a causa desse desastre: durante a primavera daquele ano, uma erupção vulcânica colossal no Hemisfério Norte ejetou tanta cinza na atmosfera que o sol praticamente desapareceu. Por mais de um ano, uma densa neblina acinzentada bloqueou a luz solar, envolvendo a Europa, o Oriente Médio e grande parte da Ásia em uma penumbra constante.
Os pesquisadores chegaram a essas conclusões após analisar núcleos de gelo de geleiras suíças que continham partículas microscópicas de vidro vulcânico, que correspondiam quimicamente às rochas vulcânicas da Islândia.
O historiador bizantino Procópio, testemunha da época, descreveu o fenômeno de forma arrepiante: "Durante este ano, ocorreu o sinal mais terrível. Pois o Sol emitia sua luz sem brilho, como a Lua, durante todo o ano, e assemelhava-se completamente ao Sol eclipsado, pois seus raios não eram tão claros como de costume. E a partir do momento em que isso aconteceu, os homens não ficaram livres da guerra, nem da peste, nem de qualquer coisa que não levasse à morte. E isso aconteceu na época em que Justiniano estava no décimo ano de seu reinado."
Por sua vez, o senador romano Cassiodoro escreveu em uma carta de 538 d.C.: "O sol parece ter perdido sua luz habitual e tem uma cor azulada. Ficamos maravilhados por não vermos as sombras de nossos corpos ao meio-dia e por sentirmos como o poderoso vigor de seu calor se transforma em fraqueza."
As consequências foram devastadoras. As temperaturas despencaram — chegando a 2,5°C na Europa e na Ásia, como documentou o historiador de Oxford Miles Pattenden em The Conversation —, causando perdas totais nas colheitas e desencadeando uma fome implacável que se espalhou da Irlanda para a China, onde houve até registro de queda de neve em pleno verão.
Esta catástrofe não foi temporária: análises de anéis de árvores e camadas de gelo revelam que o que tornou 536 um ano particularmente terrível foi a cadeia de calamidades que se seguiu. Duas erupções vulcânicas adicionais, em 540 e 547, prolongaram esse período gélido, dando origem ao que os cientistas chamam de Pequena Era Glacial da Antiguidade Tardia, um fenômeno climático que durou mais de um século.
E como se um inverno vulcânico não bastasse, a situação piorou drasticamente cinco anos depois. Em 541, a peste bubônica chegou ao Egito, espalhando-se rapidamente por todo o Mediterrâneo, no que os historiadores hoje chamam de "Peste de Justiniano".
Segundo a IFL Science , essa pandemia devastou particularmente Constantinopla, o coração do Império Romano do Oriente, dizimando entre um terço e metade da população do império. Milhões de pessoas pereceram nas décadas seguintes, contribuindo significativamente para o declínio do outrora poderoso império.
Os efeitos desse desastre climático se estenderam muito além do Mediterrâneo. Segundo a IFL Science, nas condições mais frias e secas da Ásia Central, a diminuição das pastagens forçou diversas tribos nômades a migrarem para o leste, em direção à China. Esses movimentos migratórios levaram a conflitos e alianças que, surpreendentemente, contribuíram para a queda do Império Sassânida da Pérsia.
No entanto, nem todas as regiões foram negativas. Enquanto a Europa e partes da Ásia sofreram, a Península Arábica experimentou um aumento nas chuvas, tornando-se mais verde. Com os antigos impérios enfraquecidos e a península agora mais verde, as condições estavam maduras para a ascensão de uma nova potência. Assim, entre outros fatores, o Império Árabe emergiu no século VII, tornando-se uma das forças mais influentes da história.
Da mesma forma, pesquisas recentes revelam que as comunidades ancestrais Anasazi do sudoeste americano não apenas sobreviveram a esse período, mas emergiram mais fortes do que nunca.
Diante das duras condições climáticas, essas comunidades desenvolveram laços sociais e práticas cooperativas mais complexas que lhes permitiram não apenas sobreviver, mas também prosperar. Por exemplo, a prática de criação de perus domesticados, inicialmente limitada a Cedar Mesa e Grand Gulch, espalhou-se pela região por volta de 550 d.C., demonstrando como o conhecimento era compartilhado para diversificar as fontes de alimento.
O fascinante sobre o nosso conhecimento sobre o ano 536 é que a maior parte das informações não provém de fontes escritas tradicionais, mas sim de técnicas científicas modernas. A dendroclimatologia (o estudo dos anéis das árvores) e a análise de núcleos de gelo permitiram aos historiadores reconstruir este período com uma precisão impressionante.
Esta nova "ciência da história climática" está revolucionando nossa compreensão do passado, especialmente de períodos para os quais não existem registros escritos abundantes. Como aponta o dendroclimatologista Ulf Büntgen, os padrões de crescimento dos anéis das árvores revelam claramente as erupções vulcânicas de 536, 540 e 547.
Embora os habitantes de 536 provavelmente não soubessem que estavam vivendo "o pior ano da história", as consequências foram sentidas por gerações. Como Pattenden cita Thomas Hobbes em seu Leviatã, a vida muitas vezes foi "desagradável, brutal e curta", mas o ano de 536 se destaca mesmo nesta longa história de sofrimento humano.
No fim das contas, o ano 536 nos lembra que a humanidade enfrentou e superou catástrofes inimagináveis. À medida que navegamos pelos nossos próprios desafios modernos, podemos encontrar algum consolo no fato de que, pelo menos, nossos céus não foram escurecidos por uma enorme erupção vulcânica que mergulhou o mundo em 18 meses de escuridão. E se essas sociedades conseguiram encontrar maneiras de perseverar e, eventualmente, prosperar, talvez nós também consigamos.
Felipe Espinosa Wang
No entanto, o fascinante é que entre vários historiadores há um consenso sobre qual foi realmente o pior ano para se estar vivo: 536 d.C.
"Foi o início de um dos piores períodos para se viver, senão o pior ano", disse o historiador medieval Michael McCormick, da Universidade Harvard, à revista Science em 2018. E ele não está exagerando. Aquele ano marcou o início de uma catástrofe global que mergulharia o mundo na escuridão — literalmente —, no frio e no desespero por mais de um século.
Pieter Bruegel, o Velho pinta "O Triunfo da Morte" (1562)
Em um estudo publicado na revista Antiquity em 2018, McCormick e o glaciologista Paul Mayewski revelaram a causa desse desastre: durante a primavera daquele ano, uma erupção vulcânica colossal no Hemisfério Norte ejetou tanta cinza na atmosfera que o sol praticamente desapareceu. Por mais de um ano, uma densa neblina acinzentada bloqueou a luz solar, envolvendo a Europa, o Oriente Médio e grande parte da Ásia em uma penumbra constante.
Os pesquisadores chegaram a essas conclusões após analisar núcleos de gelo de geleiras suíças que continham partículas microscópicas de vidro vulcânico, que correspondiam quimicamente às rochas vulcânicas da Islândia.
O historiador bizantino Procópio, testemunha da época, descreveu o fenômeno de forma arrepiante: "Durante este ano, ocorreu o sinal mais terrível. Pois o Sol emitia sua luz sem brilho, como a Lua, durante todo o ano, e assemelhava-se completamente ao Sol eclipsado, pois seus raios não eram tão claros como de costume. E a partir do momento em que isso aconteceu, os homens não ficaram livres da guerra, nem da peste, nem de qualquer coisa que não levasse à morte. E isso aconteceu na época em que Justiniano estava no décimo ano de seu reinado."
Por sua vez, o senador romano Cassiodoro escreveu em uma carta de 538 d.C.: "O sol parece ter perdido sua luz habitual e tem uma cor azulada. Ficamos maravilhados por não vermos as sombras de nossos corpos ao meio-dia e por sentirmos como o poderoso vigor de seu calor se transforma em fraqueza."
As consequências foram devastadoras. As temperaturas despencaram — chegando a 2,5°C na Europa e na Ásia, como documentou o historiador de Oxford Miles Pattenden em The Conversation —, causando perdas totais nas colheitas e desencadeando uma fome implacável que se espalhou da Irlanda para a China, onde houve até registro de queda de neve em pleno verão.
Esta catástrofe não foi temporária: análises de anéis de árvores e camadas de gelo revelam que o que tornou 536 um ano particularmente terrível foi a cadeia de calamidades que se seguiu. Duas erupções vulcânicas adicionais, em 540 e 547, prolongaram esse período gélido, dando origem ao que os cientistas chamam de Pequena Era Glacial da Antiguidade Tardia, um fenômeno climático que durou mais de um século.
E como se um inverno vulcânico não bastasse, a situação piorou drasticamente cinco anos depois. Em 541, a peste bubônica chegou ao Egito, espalhando-se rapidamente por todo o Mediterrâneo, no que os historiadores hoje chamam de "Peste de Justiniano".
Segundo a IFL Science , essa pandemia devastou particularmente Constantinopla, o coração do Império Romano do Oriente, dizimando entre um terço e metade da população do império. Milhões de pessoas pereceram nas décadas seguintes, contribuindo significativamente para o declínio do outrora poderoso império.
Os efeitos desse desastre climático se estenderam muito além do Mediterrâneo. Segundo a IFL Science, nas condições mais frias e secas da Ásia Central, a diminuição das pastagens forçou diversas tribos nômades a migrarem para o leste, em direção à China. Esses movimentos migratórios levaram a conflitos e alianças que, surpreendentemente, contribuíram para a queda do Império Sassânida da Pérsia.
No entanto, nem todas as regiões foram negativas. Enquanto a Europa e partes da Ásia sofreram, a Península Arábica experimentou um aumento nas chuvas, tornando-se mais verde. Com os antigos impérios enfraquecidos e a península agora mais verde, as condições estavam maduras para a ascensão de uma nova potência. Assim, entre outros fatores, o Império Árabe emergiu no século VII, tornando-se uma das forças mais influentes da história.
Da mesma forma, pesquisas recentes revelam que as comunidades ancestrais Anasazi do sudoeste americano não apenas sobreviveram a esse período, mas emergiram mais fortes do que nunca.
Diante das duras condições climáticas, essas comunidades desenvolveram laços sociais e práticas cooperativas mais complexas que lhes permitiram não apenas sobreviver, mas também prosperar. Por exemplo, a prática de criação de perus domesticados, inicialmente limitada a Cedar Mesa e Grand Gulch, espalhou-se pela região por volta de 550 d.C., demonstrando como o conhecimento era compartilhado para diversificar as fontes de alimento.
O fascinante sobre o nosso conhecimento sobre o ano 536 é que a maior parte das informações não provém de fontes escritas tradicionais, mas sim de técnicas científicas modernas. A dendroclimatologia (o estudo dos anéis das árvores) e a análise de núcleos de gelo permitiram aos historiadores reconstruir este período com uma precisão impressionante.
Esta nova "ciência da história climática" está revolucionando nossa compreensão do passado, especialmente de períodos para os quais não existem registros escritos abundantes. Como aponta o dendroclimatologista Ulf Büntgen, os padrões de crescimento dos anéis das árvores revelam claramente as erupções vulcânicas de 536, 540 e 547.
Embora os habitantes de 536 provavelmente não soubessem que estavam vivendo "o pior ano da história", as consequências foram sentidas por gerações. Como Pattenden cita Thomas Hobbes em seu Leviatã, a vida muitas vezes foi "desagradável, brutal e curta", mas o ano de 536 se destaca mesmo nesta longa história de sofrimento humano.
No fim das contas, o ano 536 nos lembra que a humanidade enfrentou e superou catástrofes inimagináveis. À medida que navegamos pelos nossos próprios desafios modernos, podemos encontrar algum consolo no fato de que, pelo menos, nossos céus não foram escurecidos por uma enorme erupção vulcânica que mergulhou o mundo em 18 meses de escuridão. E se essas sociedades conseguiram encontrar maneiras de perseverar e, eventualmente, prosperar, talvez nós também consigamos.
Felipe Espinosa Wang
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