terça-feira, 9 de julho de 2024
Filosofia dos epitáfios
Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios.
E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos.
Machado de Assis, "Memórias Póstuma de Brás Cubas"
Labirinto do conservadorismo.
Quando os filósofos iluministas abjuram o ancien régime para alçar os servos ao inédito patamar de cidadãos, o absolutismo monárquico, obscurantista e medievalista é defenestrado. Nasce a Idade Moderna – a dúvida, o progresso. Questiona-se o habitus das cidades, a memória das nações, as superstições e os preconceitos aos quais, anteriormente, se atribuía importante papel na coesão da sociedade para perdurar o senso comum nas relações sociais e inibir a ênfase nos fins individuais.
Teórico político e membro do parlamento londrino pelo Whig Party, Edmund Burke (1729-1797) é o mestre assumido da teoria conservadora. Nas Reflexões sobre a Revolução Francesa, enumera os argumentos contrários ao acontecimento sob três eixos: (a) a negação dos valores do modernismo (liberté, égalité, fraternité) por serem mistificadores, abstratos e também descolados da realidade; (b) a defesa do estado de natureza, não como ponto de partida, mas chegada do processo histórico que culmina nas iniquidades e hierarquias sociais e; (c) o fato de a moral, os costumes e as tradições não pertencerem à geração presente, e sim a todas as épocas torna-as perenes. O conservadorismo leva a sério Paul Valéry: “O problema de nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser”.
Dos séculos XVI ao XVIII, os conservadores acolhem a mundanização da vida sem se afastar da dimensão transcendente. A agulha do equilíbrio espiritual dos indivíduos, então, desloca-se de modo paulatino para o lugar das atividades criativas de mudanças – o mundo exterior. Os nostálgicos da interioridade acreditam na communitas orgânica fechada, onde os atos de rebeldia têm por única função ilustrar os comportamentos inaceitáveis pela divindade. A crença de que a coletividade não é uma reunião de átomos isolados, mas peças de uma engrenagem, empresta um sentido à existência.
Por definição, as pessoas realizam-se na esfera sociofamiliar que tem normas próprias, desestimula intervenções para alterar o status quo e recomenda ir devagar com o andor. O sonho de consumo é a suspensão da passagem do tempo, na esperança de cancelar os conflitos. Com sabedoria ancestral, em Grande sertão: Veredas, Riobaldo alerta: “Viver é negócio muito perigoso”. Com certeza, é.
Nos séculos XIX e XX, a coleção de dogmas no labirinto do conservadorismo mantém ainda sua essência, com o desafio de preencher alguns hiatos com concessões à marcha do individualismo. Balanceava-se a entrada em cena das massas; o pesadelo das noites do aristocrático José Ortega y Gasset. É errado imaginar que a razão seja a medida do real e a sociedade, o barro para modelar as utopias. Intentos emancipadores por via insurrecional provocam a desagregação. O Homo sapiens não é uma criatura exclusivamente histórica e tampouco é capaz de ser modificado e melhorado pelos esforços reeducativos. Sem chance. Está condicionado pela vontade divina, sobre-humana.
O olhar dos que veem o futuro no retrovisor reage com violenta emoção à diversidade. A evocação do “direito a ter direitos”, que promove o empoderamento do feminismo, do antirracismo e da anti-homofobia, suscita as reações intempestivas. As cruas estatísticas policiais registram os resultados. Vide os feminicídios e o assassinato de pretos e de trans. O antimodernismo inspira os intelectuais da extrema-direita, como o estadunidense Steve Bannon e o brasileiro Olavo de Carvalho. O último não matriculou a filha na escola. Afinal, menina não precisa saber ler. Coube à tia inscrever a pré-adolescente, tardiamente, numa turma frequentada por menores em idade normal de alfabetização.
O excesso emocional explica por que o empenho para proteger os emblemas da ordem idealizada, descamba para as agressões, simbólicas e práticas. “Sentimentos foi tudo o que o ‘conservadorismo’ reuniu ao longo da história”, consta no verbete do Dicionário do pensamento social do século XXI. Inclusive as religiões atuais são alvo de restrições por guardar apenas os resíduos da matriz indo-europeia. Não por nada, a influencer cristã do Rio Grande do Sul atribuiu a responsabilidade pelas enchentes à profusão dos “terreiros de macumba” na região, mais do que o rastreado na Bahia. A deformação do rito ariano dos colonizadores teria despertado “a ira de Deus” – e o dilúvio gaúcho.
O conservadorismo articula-se com o liberalismo econômico, no discurso. “Sou conservador nos costumes e liberal na economia”. De uso corriqueiro, a expressão traz embutida a contradição que consiste em, de um lado, apoiar uma organização imutável para os seres humanos com posições congeladas na pirâmide social; e de outro, avalizar o sistema onde tudo que é sólido se desmancha no ar – fora da estrutura social e moral. A assertiva não teme ser essa metamorfose ambulante.
No ínterim, a casta evangélica toma gosto nas fartas emendas orçamentárias do Congresso Nacional e ensaia a disputa para voos superiores. A aliança com a extrema-direita catapulta a distopia satânica dos profetas do atraso. A cruzada contra o aborto, per se, mas não em prol das crianças, fixa a linha entre “eles” e “nós” no nicho de mercado do subproletariado. Sem os devidos cuidados pelo Estado democrático, a ralé perde a condição de credora de direitos; vira carente da generosidade alheia e é aliciada por moedeiros falsos. No novo exército da salvação, os templos forjam os rebeldes a favor.
Existem 109,5 mil centros evangélicos, no país. Somando os terreiros, as igrejas e as sinagogas são 579,7 mil auditórios religiosos; 286 por lote de 100 mil habitantes. A legislação permitiu a abertura das comportas de que se aproveita a linha (neo) pentecostal. Tais aparelhos ideológicos privados militam para a alienação. Conforme o Censo do IBGE, somente seis unidades da federação possuem mais postos de saúde e escolas do que locais para a fé: São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Piauí. A laicidade está em flagrante desvantagem entre os crentes.
Para o relator do PL 1904/2024, a acintosa perversidade contra a infância negra de 8 a 12 anos – que conforma a maioria das vítimas de estupro – visa “testar” o mandatário do Palácio do Planalto. O cinismo e as fake news são o refúgio estratégico dos idólatras do passado mítico. Como nos versos do poeta Ferreira Gullar: “Inútil pedir / perdão / dizer / que o traz no coração”. Teologicamente o Segundo Testamento bíblico (o Deus do amor) está em baixa. Volta à moda o Primeiro Testamento (o Deus do castigo). A bondade cede à chantagem de pulhas na tribuna, à descomedida ambição, à premeditada vingança. Prevalece a lei de talião – lex de talionis, a exigência idêntica da mesma laia.
A frase que traduz o pensamento conservador é sintetizada por Giuseppe Tomasi de Lampedusa, no romance popular Il gattopardo, que Luchino Visconti eterniza no cinema com um grande elenco: “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. As classes dominantes repetem a saga, nas transições pelo alto. As classes trabalhadoras devem desnudar a pantomima com a arma da crítica.
O conservadorismo e o neoliberalismo formam um triângulo com o neofascismo para combater: (a) a decisão dos indivíduos sobre seu corpo ou sua mente; (b) o exercício da cidadania num ambiente laico de equidade republicana e; (c) a emancipação da dialética de dominação e subordinação. Daí a opção pelo regime de exceção com um aventureiro de perfil miliciano, sem nenhuma competência administrativa e nem empatia com o sofrimento do povo. Um escroque de aluguel para desmontar a democracia e os órgãos estatais de regulação; submisso aos interesses acumulativos da plutocracia.
O Estado participativo de bem-estar social e ambiental é o antídoto à propagação do ódio irracional, que retorna no século em curso com mais periculosidade e letalidade. Com o desenvolvimento das tecnologias bélicas e os drones militares de vários portes, matar se assemelha a jogar videogame por diversão. Hoje o terror se afigura pior do que o original propagado na década de trinta, na Europa. O potencial de destruição é maior. No Brasil, a vitória do presidente Lula 3.0 bloqueia o espectro da barbárie, o que convoca uma insistente reafirmação com as bandeiras nas ruas. A participação social concentra os valores fundadores da modernidade. A estrela da manhã prenuncia um tempo de lutas.
Teórico político e membro do parlamento londrino pelo Whig Party, Edmund Burke (1729-1797) é o mestre assumido da teoria conservadora. Nas Reflexões sobre a Revolução Francesa, enumera os argumentos contrários ao acontecimento sob três eixos: (a) a negação dos valores do modernismo (liberté, égalité, fraternité) por serem mistificadores, abstratos e também descolados da realidade; (b) a defesa do estado de natureza, não como ponto de partida, mas chegada do processo histórico que culmina nas iniquidades e hierarquias sociais e; (c) o fato de a moral, os costumes e as tradições não pertencerem à geração presente, e sim a todas as épocas torna-as perenes. O conservadorismo leva a sério Paul Valéry: “O problema de nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser”.
Dos séculos XVI ao XVIII, os conservadores acolhem a mundanização da vida sem se afastar da dimensão transcendente. A agulha do equilíbrio espiritual dos indivíduos, então, desloca-se de modo paulatino para o lugar das atividades criativas de mudanças – o mundo exterior. Os nostálgicos da interioridade acreditam na communitas orgânica fechada, onde os atos de rebeldia têm por única função ilustrar os comportamentos inaceitáveis pela divindade. A crença de que a coletividade não é uma reunião de átomos isolados, mas peças de uma engrenagem, empresta um sentido à existência.
Por definição, as pessoas realizam-se na esfera sociofamiliar que tem normas próprias, desestimula intervenções para alterar o status quo e recomenda ir devagar com o andor. O sonho de consumo é a suspensão da passagem do tempo, na esperança de cancelar os conflitos. Com sabedoria ancestral, em Grande sertão: Veredas, Riobaldo alerta: “Viver é negócio muito perigoso”. Com certeza, é.
Nos séculos XIX e XX, a coleção de dogmas no labirinto do conservadorismo mantém ainda sua essência, com o desafio de preencher alguns hiatos com concessões à marcha do individualismo. Balanceava-se a entrada em cena das massas; o pesadelo das noites do aristocrático José Ortega y Gasset. É errado imaginar que a razão seja a medida do real e a sociedade, o barro para modelar as utopias. Intentos emancipadores por via insurrecional provocam a desagregação. O Homo sapiens não é uma criatura exclusivamente histórica e tampouco é capaz de ser modificado e melhorado pelos esforços reeducativos. Sem chance. Está condicionado pela vontade divina, sobre-humana.
O olhar dos que veem o futuro no retrovisor reage com violenta emoção à diversidade. A evocação do “direito a ter direitos”, que promove o empoderamento do feminismo, do antirracismo e da anti-homofobia, suscita as reações intempestivas. As cruas estatísticas policiais registram os resultados. Vide os feminicídios e o assassinato de pretos e de trans. O antimodernismo inspira os intelectuais da extrema-direita, como o estadunidense Steve Bannon e o brasileiro Olavo de Carvalho. O último não matriculou a filha na escola. Afinal, menina não precisa saber ler. Coube à tia inscrever a pré-adolescente, tardiamente, numa turma frequentada por menores em idade normal de alfabetização.
O excesso emocional explica por que o empenho para proteger os emblemas da ordem idealizada, descamba para as agressões, simbólicas e práticas. “Sentimentos foi tudo o que o ‘conservadorismo’ reuniu ao longo da história”, consta no verbete do Dicionário do pensamento social do século XXI. Inclusive as religiões atuais são alvo de restrições por guardar apenas os resíduos da matriz indo-europeia. Não por nada, a influencer cristã do Rio Grande do Sul atribuiu a responsabilidade pelas enchentes à profusão dos “terreiros de macumba” na região, mais do que o rastreado na Bahia. A deformação do rito ariano dos colonizadores teria despertado “a ira de Deus” – e o dilúvio gaúcho.
O conservadorismo articula-se com o liberalismo econômico, no discurso. “Sou conservador nos costumes e liberal na economia”. De uso corriqueiro, a expressão traz embutida a contradição que consiste em, de um lado, apoiar uma organização imutável para os seres humanos com posições congeladas na pirâmide social; e de outro, avalizar o sistema onde tudo que é sólido se desmancha no ar – fora da estrutura social e moral. A assertiva não teme ser essa metamorfose ambulante.
No ínterim, a casta evangélica toma gosto nas fartas emendas orçamentárias do Congresso Nacional e ensaia a disputa para voos superiores. A aliança com a extrema-direita catapulta a distopia satânica dos profetas do atraso. A cruzada contra o aborto, per se, mas não em prol das crianças, fixa a linha entre “eles” e “nós” no nicho de mercado do subproletariado. Sem os devidos cuidados pelo Estado democrático, a ralé perde a condição de credora de direitos; vira carente da generosidade alheia e é aliciada por moedeiros falsos. No novo exército da salvação, os templos forjam os rebeldes a favor.
Existem 109,5 mil centros evangélicos, no país. Somando os terreiros, as igrejas e as sinagogas são 579,7 mil auditórios religiosos; 286 por lote de 100 mil habitantes. A legislação permitiu a abertura das comportas de que se aproveita a linha (neo) pentecostal. Tais aparelhos ideológicos privados militam para a alienação. Conforme o Censo do IBGE, somente seis unidades da federação possuem mais postos de saúde e escolas do que locais para a fé: São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Piauí. A laicidade está em flagrante desvantagem entre os crentes.
Para o relator do PL 1904/2024, a acintosa perversidade contra a infância negra de 8 a 12 anos – que conforma a maioria das vítimas de estupro – visa “testar” o mandatário do Palácio do Planalto. O cinismo e as fake news são o refúgio estratégico dos idólatras do passado mítico. Como nos versos do poeta Ferreira Gullar: “Inútil pedir / perdão / dizer / que o traz no coração”. Teologicamente o Segundo Testamento bíblico (o Deus do amor) está em baixa. Volta à moda o Primeiro Testamento (o Deus do castigo). A bondade cede à chantagem de pulhas na tribuna, à descomedida ambição, à premeditada vingança. Prevalece a lei de talião – lex de talionis, a exigência idêntica da mesma laia.
A frase que traduz o pensamento conservador é sintetizada por Giuseppe Tomasi de Lampedusa, no romance popular Il gattopardo, que Luchino Visconti eterniza no cinema com um grande elenco: “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. As classes dominantes repetem a saga, nas transições pelo alto. As classes trabalhadoras devem desnudar a pantomima com a arma da crítica.
O conservadorismo e o neoliberalismo formam um triângulo com o neofascismo para combater: (a) a decisão dos indivíduos sobre seu corpo ou sua mente; (b) o exercício da cidadania num ambiente laico de equidade republicana e; (c) a emancipação da dialética de dominação e subordinação. Daí a opção pelo regime de exceção com um aventureiro de perfil miliciano, sem nenhuma competência administrativa e nem empatia com o sofrimento do povo. Um escroque de aluguel para desmontar a democracia e os órgãos estatais de regulação; submisso aos interesses acumulativos da plutocracia.
O Estado participativo de bem-estar social e ambiental é o antídoto à propagação do ódio irracional, que retorna no século em curso com mais periculosidade e letalidade. Com o desenvolvimento das tecnologias bélicas e os drones militares de vários portes, matar se assemelha a jogar videogame por diversão. Hoje o terror se afigura pior do que o original propagado na década de trinta, na Europa. O potencial de destruição é maior. No Brasil, a vitória do presidente Lula 3.0 bloqueia o espectro da barbárie, o que convoca uma insistente reafirmação com as bandeiras nas ruas. A participação social concentra os valores fundadores da modernidade. A estrela da manhã prenuncia um tempo de lutas.
Há fome no jardim europeu e nós estamos a ignorá-la
“Daqui a dez anos, terei 30. E só estou a pedir os básicos: um tecto sobre a minha cabeça, ser capaz de comer confortavelmente, sem me preocupar com o dia seguinte. E, se tiver filhos, não quero ter de me preocupar com a alimentação deles ou deixar de comer durante o dia para lhes dar comida”. Jamie-Lea não vive num país em guerra, não está numa parte do mundo em desenvolvimento, não é racializada, não é migrante. Vive em Leigh, no Reino Unido, um antigo bastião industrial, a poucos quilómetros de Manchester.
É a primeira da sua família a chegar à Universidade, mas para conseguir estudar tem de ter três empregos, que lhe ocupam 40 horas por semana. Sonha com a Suécia, um país aonde nunca foi. “Se tiver uma família, não quero que seja neste país, porque não os quero pôr nessa situação”, diz a Helen Pidd, jornalista do The Guardian, a quem conta estar há anos a tentar aprender sueco sozinha. Para o ano, se conseguir juntar dinheiro suficiente, vai finalmente conhecer o país que lhe parece hoje à distância uma promessa de prosperidade, tal como a consegue conceber quem vê como privilégio a garantia da sobrevivência.
Helen Pidd foi a Leigh em busca de perceber como é que o “último tijolo na parede vermelha” que sustinha o Partido Trabalhista iria votar quatro anos depois de ter guinado à direita, dando uma inédita vitória aos conservadores. Mas o que revela esta viagem é muito mais do que um sentido de voto.
Uma e outra vez, a jornalista encontra pessoas que lhe falam da dificuldade em alimentar-se a si e aos seus filhos e de como desejam ter de “deixar de pedir” para sobreviver. Há uma tensão no ar. E Helen Pidd tem dificuldade em encontrar votantes trabalhistas, apesar do desencanto total com o Partido Conservador. É mais fácil tropeçar em apoiantes do partido de extrema-direita Reform UK de Nigel Farage.
Porquê Farage? Porque não?, perguntam-se os eleitores desencantados de tudo, fartos de viver numa incerteza constante, atomizados nas suas indignações, desconfiados daqueles com quem possam vir a ter de ser obrigados a partilhar as suas migalhas.
O discurso é semelhante quando se ouvem as reportagens sobre as eleições francesas. Não é incomum aparecer um eleitor que confessa a impossibilidade de comer carne, a dificuldade de chegar ao fim do mês, a luta para se aquecer.
Há um fosso fundo entre a imagem projetada deste velho continente e o dia a dia concreto de muitos dos seus habitantes. “Nós construímos um jardim. Tudo funciona. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade económica e coesão social que a humanidade foi capaz de construir – as três coisas juntas”, dizia em 2022 o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, num discurso construído para alimentar a ideia de que este “jardim” deve ser protegido da “selva” do resto do mundo, com muros se preciso for.
O que é interessante é perceber o quão longe estão deste idílico jardim muitos daqueles que votam em quem quer construir os muros. A sua escolha não é, contudo, completamente irracional, ela decorre de uma narrativa poderosa que elude do discurso e das práticas a solidariedade e o sentido colectivo.
Os habitantes de Leigh estão a defender o seu jardim, mesmo que ele esteja cheio de pedras e ervas daninhas, porque é tudo o que têm, enquanto sonham com outras paragens mais verdes, sem contar com a cerca que outros por lá poderão construir para os afastar.
Estas classes empobrecidas, precárias, que se tentam agarrar aos escombros do que foram em tempos poderosos estados de bem-estar, são quase invisíveis para todos, menos para os que lhes oferecem no ódio um escape para o ressentimento. A sua luta diária pela sobrevivência não faz parte da imagem que temos dos europeus. A sua experiência está tão longe das bolhas políticas e mediáticas que nos parece grotesca e exagerada. Ela contraria as estatísticas oficiais de progresso, a ideia de mérito, a própria noção que temos daquilo que é a Europa. E, no entanto, eles existem. E, no entanto, eles votam.
Temos estado a ignorá-los. Em breve talvez seja impossível continuar a fazê-lo.
É a primeira da sua família a chegar à Universidade, mas para conseguir estudar tem de ter três empregos, que lhe ocupam 40 horas por semana. Sonha com a Suécia, um país aonde nunca foi. “Se tiver uma família, não quero que seja neste país, porque não os quero pôr nessa situação”, diz a Helen Pidd, jornalista do The Guardian, a quem conta estar há anos a tentar aprender sueco sozinha. Para o ano, se conseguir juntar dinheiro suficiente, vai finalmente conhecer o país que lhe parece hoje à distância uma promessa de prosperidade, tal como a consegue conceber quem vê como privilégio a garantia da sobrevivência.
Helen Pidd foi a Leigh em busca de perceber como é que o “último tijolo na parede vermelha” que sustinha o Partido Trabalhista iria votar quatro anos depois de ter guinado à direita, dando uma inédita vitória aos conservadores. Mas o que revela esta viagem é muito mais do que um sentido de voto.
Uma e outra vez, a jornalista encontra pessoas que lhe falam da dificuldade em alimentar-se a si e aos seus filhos e de como desejam ter de “deixar de pedir” para sobreviver. Há uma tensão no ar. E Helen Pidd tem dificuldade em encontrar votantes trabalhistas, apesar do desencanto total com o Partido Conservador. É mais fácil tropeçar em apoiantes do partido de extrema-direita Reform UK de Nigel Farage.
Porquê Farage? Porque não?, perguntam-se os eleitores desencantados de tudo, fartos de viver numa incerteza constante, atomizados nas suas indignações, desconfiados daqueles com quem possam vir a ter de ser obrigados a partilhar as suas migalhas.
O discurso é semelhante quando se ouvem as reportagens sobre as eleições francesas. Não é incomum aparecer um eleitor que confessa a impossibilidade de comer carne, a dificuldade de chegar ao fim do mês, a luta para se aquecer.
Há um fosso fundo entre a imagem projetada deste velho continente e o dia a dia concreto de muitos dos seus habitantes. “Nós construímos um jardim. Tudo funciona. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade económica e coesão social que a humanidade foi capaz de construir – as três coisas juntas”, dizia em 2022 o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, num discurso construído para alimentar a ideia de que este “jardim” deve ser protegido da “selva” do resto do mundo, com muros se preciso for.
O que é interessante é perceber o quão longe estão deste idílico jardim muitos daqueles que votam em quem quer construir os muros. A sua escolha não é, contudo, completamente irracional, ela decorre de uma narrativa poderosa que elude do discurso e das práticas a solidariedade e o sentido colectivo.
Os habitantes de Leigh estão a defender o seu jardim, mesmo que ele esteja cheio de pedras e ervas daninhas, porque é tudo o que têm, enquanto sonham com outras paragens mais verdes, sem contar com a cerca que outros por lá poderão construir para os afastar.
Estas classes empobrecidas, precárias, que se tentam agarrar aos escombros do que foram em tempos poderosos estados de bem-estar, são quase invisíveis para todos, menos para os que lhes oferecem no ódio um escape para o ressentimento. A sua luta diária pela sobrevivência não faz parte da imagem que temos dos europeus. A sua experiência está tão longe das bolhas políticas e mediáticas que nos parece grotesca e exagerada. Ela contraria as estatísticas oficiais de progresso, a ideia de mérito, a própria noção que temos daquilo que é a Europa. E, no entanto, eles existem. E, no entanto, eles votam.
Temos estado a ignorá-los. Em breve talvez seja impossível continuar a fazê-lo.
Assinar:
Postagens (Atom)