sábado, 11 de junho de 2022

Tragédia no coração das trevas

A notícia do desaparecimento do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips chegou até mim quando eu desembarcava na Alemanha para um congresso sobre democracia. Havia duas ironias trágicas além dessa. Era o dia 7 de junho, quando se celebra, no Brasil, o Dia da Liberdade de Imprensa. O congresso era no castelo de Hambach, palco de um levante, em 1832, contra um governo que ameaçava, entre outras coisas, o direito à livre expressão.

Viver fora do Brasil e acompanhar as notícias do País trazem, além de angústia, a dimensão de como somos vistos mundo afora. É impossível ficar indiferente às notícias sobre a Amazônia – em especial sobre a questão indígena – de tanto que elas explodem nos noticiários estrangeiros. O desaparecimento de um profissional ligado a vários jornais importantes, como The Guardian e Washington Post, multiplica a visibilidade – na quinta-feira já havia protestos na frente da embaixada brasileira em Londres.


Para além da questão humana, o desaparecimento de Dom e Bruno chama a atenção para uma tragédia nacional. A Amazônia está se tornando o coração das trevas brasileiras. Não é apenas o desmatamento que bate recordes. Junto com ele proliferam crimes de todos os tipos, de acordo com pesquisas do Instituto Igarapé, centro de estudos de segurança pública.

“O crime ambiental não acontece sozinho”, diz Melina Risso, diretora de pesquisas do Igarapé e entrevistada no minipodcast da semana. “Ele ocorre em meio a todo um ecossistema criminal, em que mineração ilegal e extração ilícita de madeira se misturam, por exemplo, com o tráfico de drogas.” Pistas de pouso clandestinas servem tanto aos aviões que carregam cocaína quanto aos transportadores de ouro ilegal.

Os estudos do Igarapé que mapeiam esse ecossistema criminoso estão anexados à versão digital da coluna. O instituto vem radiografando também os conflitos entre os defensores do meio ambiente e os bandidos associados a todas essas modalidades de crime, da turma do pó à turma do ouro. Segundo Risso, ameaças como as que Bruno Pereira sofreu são comuns – e algumas delas resultam em crimes violentos e até homicídios.

Até a conclusão desta coluna Bruno e Dom não haviam sido encontrados. Se algo terrível acontecer a eles, será mais uma tragédia anunciada no coração das trevas, e o Brasil sofrerá outro golpe em sua reputação internacional. Merecemos o golpe, por não cuidar de nosso patrimônio natural nem da segurança de nossos cidadãos – os que defendem nosso maior tesouro, como Bruno, e os que escolheram, como Dom, viver e trabalhar entre nós.

Programa Brasil Sem Fome

 


Combata a violência racial

Entre 2007 E 2018, 553 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. O total de mortos é maior do que o da Síria, país que enfrenta há sete anos uma guerra civil e que, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), contabiliza 500 mil mortos. Portanto, não surpreende que o tema da segurança pública tenha ganhado tanta importância nas últimas eleições.

Mas é preciso lembrar que a vítima preferencial tem pele negra. O Atlas da Violência de 2018, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou que a população negra está mais exposta à violência no Brasil. Os negros representam 55,8% da população brasileira e são 71,5% das pessoas assassinadas. Entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de indivíduos não negros (brancos, amarelos e indígenas) diminuiu 6,8%, enquanto no mesmo período a taxa de homicídios da população negra aumentou 23,1%. Segundo dados da Anistia Internacional, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, o que evidencia que está em curso o genocídio da população negra, sobretudo jovens.

Infelizmente, o assunto só ganha destaque no debate público quando um caso muito violento chega aos noticiários, como o brutal assassinato de Evaldo dos Santos por agentes do Exército, no Rio de Janeiro. No dia 7 de abril de 2019, o carro em que Evaldo e sua família estavam foi alvejado por militares. Inicialmente divulgou-se que foram disparados 83 tiros, mas o total chegou a 257. Na época, muitas pessoas se manifestaram diante desse absurdo. O que muitas dessas pessoas talvez ignorem é que esse não foi um caso isolado: ele integra uma política de segurança pública voltada para a repressão e o extermínio de pessoas negras, sobretudo homens.

Na maior parte das vezes, o Judiciário é uma extensão da viatura policial: não se exige uma investigação detalhada nem se admite o contraditório para quem é acusado pela seletividade do sistema. No entanto, mesmo com tantos casos comprovados de abuso policial, que resultam em prisões descuidadas e injustas, a naturalização dessa violência levou o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a ter como súmula—isto é, uma decisão que de tantas vezes proferida se torna um entendimento cristalizado—admitir como elemento suficiente para a condenação apenas a palavra dos policiais que efetuaram a prisão. A conhecida súmula 80 reflete um entendimento comum a todos os tribunais do país. Segundo um estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça, entre março de 2016 e janeiro de 2018, os policiais foram as únicas testemunhas em 71,14% dos processos envolvendo tráfico. Não se trata aqui de dizer que nenhum policial é digno de crédito, porém um julgamento não pode se pautar única e exclusivamente pela palavra de quem prendeu, pois se corre o risco de tornar o policial juiz e carrasco do caso.

Historicamente, o sistema penal foi utilizado para promover um controle social, marginalizando grupos considerados “indesejados” por quem podia definir o que é crime e quem é o criminoso. No Brasil, foram várias as legislações que visavam criminalizar a população negra, como a Lei de Vadiagem, de 1941, que perseguia quem estivesse na rua sem uma ocupação clara justamente numa época de alta taxa de desemprego entre homens negros.

Hoje, a chamada “guerra às drogas” serve como pretexto para uma guerra contra a população negra. O tema se tornou ainda mais urgente após a Lei n. 11.343 de 2006, que estabeleceu uma diferenciação subjetiva entre traficante e usuário. O que teoricamente parecia ser um avanço na verdade contribuiu para a explosão da população carcerária: isso porque quem define quem é traficante e quem é usuário é o juiz, o que é feito, muitas vezes, com base na discriminação racial.

Em 2015, um homem negro teve sua condenação a quatro anos e onze meses de prisão pelo “tráfico” de 0,02 grama de maconha mantida pelo Superior Tribunal de Justiça. Ele já havia sido julgado por um juiz de primeira instância e pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O exemplo é ilustrativo da produção em massa de uma população carcerária condenada por quantidades muito pequenas de substâncias ilícitas; estão presos, na verdade, por sua cor. O critério subjetivo acentua a já profunda discriminação racial. Para comparação, não há violência policial em ambientes ricos, como festas universitárias, mesmo sabendo-se do uso de drogas nesses lugares, como ocorre nas periferias. Há, portanto, um contexto de criminalização da pobreza.

Sabemos que hoje dois em cada três presos no Brasil são negros. Sabemos também que o tráfico lidera as tipificações para o encarceramento: 26% dos homens estão presos por tráfico, chegando a 62% no caso das mulheres.
Também vale destacar que em quinze anos a prisão de mulheres aumentou 567,4%. Segundo o relatório “‘MulhereSemPrisão: Enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal”, desenvolvido pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), 68% das encarceradas são negras, a maioria é mãe, não possui antecedentes criminais e tem dificuldade de acesso a empregos formais. Como afirma Carla Akotirene em sua dissertação de mestrado, Ó pa í, prezada! Racismo e sexismo institucionais tomando bonde no Conjunto Penal Feminino de Salvador, a prisão precisa ser analisada na contemporaneidade sobre alicerces interseccionais de raça, classe e gênero. Akotirene identifica, na perspectiva das mulheres, 
um aspecto de sexismo e racismo institucionais em concordância com a inclinação observada da polícia em ser arbitrária com o segmento negro sem o menor constrangimento, de punir os comportamentos das mulheres de camadas sociais estigmatizados como sendo de caráter perigoso, inadequado e passível de punição.

Ainda segundo o relatório “MulhereSemPrisão”, o Poder Judiciário brasileiro prende essas mulheres sem oferecer medidas alternativas. A feminista e militante antiproibicionista e antipunitivista Juliana Borges, tomando como base o trabalho da pesquisadora e advogada Luciana Boiteux, denuncia violações de direitos humanos contra essas mulheres:

No caso das mulheres, é muito comum o relato de buscas e “apreensões”, invasões, sem mandado de busca, em seus domicílios, tortura e humilhação para obter informações que sequer elas têm conhecimento; relatos de prisão pela proximidade com algum familiar envolvido com o tráfico; prisões quando transportando pequenas quantidades, sendo que muitas são intimidadas a fazer isso. A imensa maioria dessas mulheres é ré primária, ou seja, jamais teve passagem pelos registros policiais.

Como diz a advogada estadunidense Michelle Alexander:

A confusão da negritude com o crime não ocorreu naturalmente. Ela foi construída pelas elites políticas e midiáticas como parte de um amplo projeto conhecido como Guerra às Drogas. Essa confusão serviu para fornecer uma porta de saída legítima para a expressão do ressentimento e do animus antinegros — uma válvula de escape conveniente agora que as formas explícitas de preconceito racial estão estritamente condenadas. Na era da neutralidade racial, já não é permitido odiar negros, mas podemos odiar criminosos. Na verdade, nós somos encorajados a fazer isso.

Há vários textos para se aprofundar no debate sobre segurança pública, política de drogas e antipunitivismo. O tema é complexo, porém é essencial para entender a realidade do país, especialmente quando temos elementos que indicam que está ocorrendo um genocídio da população negra.

Numa sociedade violenta como a nossa, é natural sentirmos medo. Em especial dessa violência generalizada que o próprio Estado promove—e por isso devemos denunciar a violência policial. Porém, é muito triste constatar que, por outro lado, o Brasil é o país onde mais morrem policiais. A maioria deles vem da classe trabalhadora, muitas vezes dos mesmos lugares onde jovens negros estão sendo assassinados. Se a polícia é o braço armado do Estado opressor, é também um dos lados que cai com essa guerra.

Como já afirmou a socióloga Denise Ferreira da Silva, o assassinato dos jovens negros deveria criar uma crise ética na sociedade brasileira. No entanto, não há revolta com tanto sangue derramado, enquanto há enorme comoção na mídia quando a violência tira a vida de uma pessoa branca. Devemos nos perguntar por que não se dá o mesmo valor a essas vidas. Nos Estados Unidos, após a absolvição do policial George Zimmerman, que matou a tiros o adolescente negro Trayvon Martin, surgiu o importante movimento Black Lives Matter [Vidas negras importam]. Em 2014, o grupo ficou conhecido nacionalmente depois das manifestações contra os assassinatos dos jovens Michael Brown, em Ferguson, e Eric Garner, em Nova York. Desde então, o movimento vem fazendo um trabalho de denúncia da violência policial, questionando políticos e incitando o debate público.

No Brasil, existem vários movimentos e organizações engajadas em questionar o modelo punitivista e em combater abusos por parte do Estado, como a Iniciativa Negra, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, o projeto Movimentos, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre outros. Há várias maneiras de apoiar o trabalho dessas pessoas, quer seja financeiramente, divulgando as iniciativas ou comparecendo a eventos e manifestações.
Djamila Ribeiro, "Pequeno manual antirracista"

'Alemães não percebem dimensão histórica da guerra'

Marian Avramescu (Romênia)
Poltava é uma cidade no leste da Ucrânia, a cerca de 350 quilômetros de Kiev, com uma longa história que remonta à cultura de Tripoli (6000 a 1000 a.C.). O autor alemão Christoph Brumme mora lá. Ele conhece muito bem o Leste: nascido na Alemanha Oriental, em sua juventude pedalou várias vezes de Berlim até o Volga, passando pela Polônia e pela Ucrânia. Ao todo, percorreu cerca de 30 mil quilômetros.

Isso resultou no livro Auf einem blauen Elefanten − 8353 Kilometer mit dem Fahrrad von Berlin an die Wolga und zurück (Sobre um elefante azul − 8.353 quilômetros de bicicleta de Berlim até o Volga e de volta), de 2009. De Poltava, ele escreve para o jornal suíço Neue Zürcher Zeitung, entre outros. Em seu livro atual, Im Schatten der Krieges − Tagebuchaufzeichnungen aus der Ukraine (Na sombra da guerra − Registros diários da Ucrânia), ele descreve de forma sóbria, pessoal, honesta e inequívoca a vida em modo de guerra.

Na guerra, pode-se pensar, o medo é um companheiro constante. Isso em geral é verdadeiro, mas Brumme mostra o outro lado: o anseio pela liberdade, que é mais forte do que a mais leve sensação de medo, a enorme vontade de ajuda e solidariedade do povo, as esperanças e, sobretudo, o humor dos ucranianos.

"Com Oskar na rua, o sol brilha. Eu canto o refrão de uma canção dos pioneiros: 'Sempre viva o sol / Sempre viva o céu / Sempre viva a mãe / E ainda também eu.' Oskar canta junto em russo. Mas em vez de 'sol' ele canta 'vodka'", escreve Christoph Brumme em seu novo livro e cita algumas piadas em moda após o início da guerra. Assim, sem mais delongas e, claro, com um piscar de olhos, o famoso romance Guerra e paz, de Lev Tolstoi, é rebatizado "Operação militar e paz", já que o uso da palavra "guerra" pode acarretar vários anos de prisão na Rússia.

"O humor é parte da estratégia de sobrevivência, que é uma das características nacionais mais importantes dos ucranianos: rir de si mesmos, fazer piadas sobre seu governo ou sobre a União Europeia", disse Brumme à DW. Segundo ele, é uma expressão de soberania. Na Ucrânia, os cidadãos são livres para criticar todas as autoridades – ao contrário da Rússia, onde prevalece uma cultura completamente sem humor.

Surgiu até uma nova piada ucraniana: "Sabe de uma coisa? Na verdade, agora realmente tenho medo de falar russo na rua! − Por quê? Você tem medo de que os nacionalistas venham e o espanquem? − Não, tenho medo de que Putin venha e me proteja".

Mas há momentos em que o riso dos ucranianos fica preso na garganta − por exemplo, quando veem os debates na Alemanha. "A imagem da Alemanha deteriorou-se muito nos últimos meses de guerra", observa Brumme. Os ucranianos se sentem traídos.

Eles estão esperando para ver se as palavras são finalmente seguidas de ações. Em geral, diz ele, o país é visto com bastante ceticismo. "Em momentos de necessidade, pode-se ver quem está prestando ajuda e quem ainda espera, às escondidas ou abertamente, fazer negócios com a Rússia e sacrificar os ucranianos em caso de necessidade."

Quando a guerra eclodiu, o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, pediu uma "mudança de paradigma" no Parlamento, mas faltou determinação e a credibilidade sofreu com isso. O chefe de governo hesitou com a entrega de armas e não se pronunciou a favor de um boicote energético total contra a Rússia.

De acordo com uma pesquisa de opinião realizada pelo instituto Infratest Dimap em abril, apenas uma pequena maioria é a favor do envio de armas pesadas à Ucrânia. "A sociedade alemã está se autoiludindo", diz Brumme. "A crença de que se pode resolver conflitos com Putin e fazer acordos que ele cumprirá, tem caráter paranoico."

Brumme também responsabiliza a mídia, em parte, por essa percepção, e vê com grande ceticismo as reportagens alemãs sobre a Ucrânia. "Em geral, é preciso dizer que a cobertura sobre a Ucrânia foi muito fraca durante anos. As emissoras públicas têm uma obrigação para com o público em geral, mas, em minha opinião, elas não cumprem de forma alguma esta obrigação em relação à Ucrânia."

"O exemplo mais conhecido é a afirmação, repetida 10 mil vezes, de que os separatistas pró-russos vêm lutando no Donbass nos últimos oito anos. Quem está informado sabe que se trata claramente de um projeto russo com liderança e financiamento russos, know-how e tecnologia russos. Assim, durante anos, foi gerada pressão sobre a opinião pública, o que por sua vez leva a decisões políticas que agora são incrivelmente sangrentas para os ucranianos e custam um número inacreditável de vítimas", diz o autor.

"A 'alma russa' consistia em megalomania, autoaversão e sentimentos de inferioridade em relação ao Ocidente", escreve Brumme em seu livro e fala na entrevista sobre os programas de propaganda na televisão russa.

"Quem vê televisão russa regularmente na Alemanha? Quem entende o que dizem os políticos russos? Se você fizer uma pesquisa com mil pessoas, talvez encontre duas com alguma competência. Na Alemanha, é costume falar sobre coisas das quais nada se sabe. E tudo acaba na premissa da liberdade de expressão".

Esse brutal belicismo russo não foi registrado no Ocidente: "Na Alemanha, a dimensão histórica desta guerra e a relação Ucrânia-Rússia não são percebidas de forma alguma, porque também são completamente desconhecidas."
"Rússia também luta pela sua existência"

O escritor está cético sobre um fim precoce da guerra. A Rússia, diz ele, não aceitou até agora nenhuma responsabilidade legal ou moral pelos assassinatos em massa de ucranianos no século 20. E a propaganda dos últimos oito anos fez o resto.

"A maioria dos russos quer esta guerra, e, quanto mais tempo ela durar, mais fanáticos serão". Uma derrota (temporária) da Rússia só faria crescer ad infinitum o desejo de vingança no país. O fim da guerra só pode vir com o fim do Estado russo em sua forma atual. A Rússia agora também está lutando pela própria existência".

A política e o judiciário

Houve um tempo no Brasil em que ministro do Supremo Tribunal Federal era escolhido pelo notável saber jurídico, vida ilibada e convivência na sociedade. Ou seja, uma pessoa normal com alta qualificação na área do direito e absolutamente incorruptível. Distante dos problemas cotidianos, era convocado apenas para dirimir grandes questões nacionais e não manifestava sua opinião em absolutamente nada, além do que viesse ser questionado nos autos de um processo. Que, aliás, não tem capa, como sentencia o ministro aposentado do STF, Marco Aurélio Mello.

Esse entendimento fazia do juiz, desde a primeira instância até os mais elevados tribunais, uma espécie diferente de cidadão. Tranquilo, recluso, confinado pelos limites de seu conhecimento, o comportamento do jurista era tão rigoroso que, vários deles eram professores universitários, não davam opiniões sobre temas que poderiam vir a ser objeto de controvérsia jurídica. Em sala de aula era comum alunos provocarem professores, mas a maioria deles não dava um passo além do sério compromisso com a ética.

Nos anos setenta, quando ocorreram os primeiros movimentos a favor da abertura política, houve um ministro do STF que se declarou claramente a favor do restabelecimento dos direitos do cidadão, do habeas corpus e pelo fim da censura aos jornais. Foi Aliomar Baleeiro, baiano ilustre, que tinha origem na UDN. Na questão política, a posição do ministro era clara, mas nos assuntos contidos nos autos sob sua guarda, ele só se pronunciava no momento certo. Nem antes, nem depois.

A TV Justiça, que faz excelente trabalho na divulgação das decisões do STF, contribuiu para a desinibição dos ministros. Nos momentos de tensão política, a audiência da emissora especializada em assuntos jurídicos é sintonizada em todo o país por advogados, juízes, ministros e a população em geral. Assim, os ministros passaram a ocupar espaço público. Em alguns momentos, disputam exposição com artistas de primeira linha.


O presidente Bolsonaro criou outro quesito a ser preenchido por candidato a ministro do STF. Ele deve ser terrivelmente evangélico. Os ministros Nunes Marques e André Mendonça foram nomeados com base na sua inclinação religiosa, sem embargo de seu conhecimento jurídico. Prevaleceu na nomeação a vocação evangélica que foi louvada em alto e bom som pela primeira-dama. O ministro Nunes Marques reconheceu o favor e reverteu o julgamento feito no TSE que cassou o deputado estadual Fernando Franceschini. A Segunda Turma do STF desfez o entendimento e manteve a cassação.

O resultado do julgamento do deputado bolsonarista enfureceu o presidente da República. Ele perdeu a compostura, xingou os ministros e os qualificou como canalhas. Tudo por causa de uma decisão no outrora discreto e silencioso Supremo Tribunal Federal. Hoje, o tribunal é balançado por violentas discussões internas, querelas pesadas entre ministros, votos tendenciosos de um lado e de outro. Tempos atrás, o ministro Edson Fachin decidiu, monocraticamente, que o julgamento do ex-presidente Lula continha grave erro processual. Não poderia ter sido realizado em Curitiba, mas no Rio de Janeiro ou em Brasília. Sua decisão mudou a política brasileira. Lula foi libertado e hoje disputa com Bolsonaro a presidência da República.

A consequência desse novo caminho empreendido pelo Supremo Tribunal Federal modifica a essência e a qualidade da política nacional. Ministros se deixam envolver por debates de cunho político-partidário. Discutem em público, abrem seus pontos de vistas ao conhecimento geral, e ainda justificam seus votos, como recentemente fez André Mendonça. Não tenho conhecimento de ação semelhante de Ministro do Supremo justificar no twitter voto dado no plenário do mais alto tribunal brasileiro. É o caminho para perder a condição de pretório excelso, colegiado de homens e mulheres acima de qualquer suspeita e donos de invulgar conhecimento jurídico.

Na psicanálise há uma etapa do tratamento que consiste em desconstruir o paciente para reconstruí-lo com base em novas descobertas. O Brasil parece estar passando por fase semelhante. O Tribunal de Contas da União não é órgão do judiciário, é apenas assessor da Câmara dos Deputados, mas seus integrantes são chamados de Ministros. Os ministros dos tribunais superiores participam da política em conversas fechadas e negociações. Quando o judiciário entra na política, a Justiça passa a ser menos isenta. Veja-se a perseguição que está ocorrendo contra Sérgio Moro, que teve a petulância de desafiar o poder judiciário com a operação lava-jato. Colocou a corrupção a vista de todos. Está pagando alto preço pela ousadia.

Bolsonaro em modo milícia

Bolsonaro acionou o modo milícia para a campanha eleitoral. Vocifera como arruaceiro, bafeja ódio, insufla violência, prega a subversão da ordem constitucional vigente. É só o começo.

Vai piorar muito, porque o baderneiro do Planalto sabe que tem apoio de parcela fiel da população e de setores da elite. É o suficiente para levá-lo ao segundo turno e o que precisa para tentar tumultuar as eleições. O método é convocar a turba e inflamá-la. Bastará alguém riscar o fósforo.

A cena repulsiva na Associação Comercial do Rio de Janeiro é evidência de apodrecimento social. Vídeo não tem cheiro, mas se tivesse daria para sentir o odor de mofo na sala em que empresários aplaudiram Bolsonaro quando ele incentivou a desobediência ao STF. Alguém da plateia contestou a incitação ao crime? Ninguém. Ouviram-se aplausos de concordância com o estímulo à anarquia institucional.


Bolsonaro está ciente das pesquisas pré-eleitorais. Sabe que não tem maioria para um golpe. Mas golpes não precisam de maioria. Por isso são golpes. E ele tem sua choldra de bandoleiros incrustados no Congresso e nas instituições de controle a dar garantias para que continue a esbravejar pela ruptura.

O Brasil deu um salto de três décadas para trás no combate à fome. Neste momento, 33 milhões de pessoas não têm o que botar no prato. A pandemia já levou quase 700 mil brasileiros e continua a matar, a adoecer, a infligir dor e sofrimento. É isso que aprovam e aplaudem?

A ascensão de Bolsonaro abalou 30 anos de esforços para reerguer o país com o mínimo de coesão democrática e solidariedade social. Ele soube aproveitar-se da incompletude da obra para tentar destruí-la de vez.

Em sua figura grotesca de desordeiro e predador da democracia, Bolsonaro converteu-se numa arma de destruição em massa. Morre gente, morre o país. Bolsonaro vai passar. Mas deixará a mancha da desonra entre nós cada vez que nos fizermos a pergunta: como não fomos capazes de detê-lo?