quinta-feira, 10 de abril de 2025

Pensamento do Dia

 


Trem fantasma

Há dois meses achei que tinha conseguido desligar Trump das minhas ideias. Foi uma espécie de iluminação, um raro momento zen, como se uma chave tivesse sido simplesmente desligada na minha cabeça. Foi bom enquanto durou, mas passou rápido. A verdade é que estou obcecada com Donald Trump.

Um dia ele deporta dezenas de pessoas (quantas? quais?) para uma prisão em El Salvador, afrontando ordens judiciais; no outro insulta e chantageia o presidente de um país em guerra, na cena mais constrangedora que já se viu na política internacional. Toca o terror entre os imigrantes e os funcionários públicos, demite especialistas e o Estado-Maior, se indispõe com os vizinhos, expulsa a AP da Casa Branca porque a agência se recusa a chamar o Golfo do México de “Golfo da América”, como ele pretende. Ameaça as universidades, persegue escritórios de advocacia, desmonta a ordem econômica mundial.

Não dá para ignorar. É como um trem vindo em direção contrária no túnel.

Quem não está apavorado está mal-informado — e eu, infelizmente, estou super bem-informada. Até porque, como nunca vi um trem vindo em direção contrária no túnel de forma tão explícita e em tamanha velocidade, não consigo deixar de olhar: aquele clássico “não quero nem ver!” com os dedos entreabertos sobre os olhos. É medonho mas é fascinante, como foram fascinantes os vídeos do tsunami, como são fascinantes os vídeos de terremotos, tornados e erupções vulcânicas.

Em vez de correr ou tomar providências, a maior economia do planeta espera petrificada, como quem encara a Medusa.

Ninguém. Faz. Nada.

Mentira: o heroico senador Cory Booker falou durante mais de 25 horas para chamar a atenção do povo, e alguns americanos têm saído às ruas em protesto. Mas é muito pouco, pouco demais, para tudo o que está se vendo. Era para Wall Street estar aos uivos, para as universidades estarem em pé de guerra, para o New York Times circular de luto, com uma tarja preta no cabeçalho todos os dias.

Trump aumenta as tarifas para que em tese as fábricas voltem para os EUA (não existem mais fábricas como ele imagina), mas persegue os imigrantes que, tradicionalmente, trabalhariam nas fábricas (também não existem mais americanos com vontade de trabalhar em fábricas). Reclama da balança comercial, mas não leva em conta o prejuízo que está dando ao turismo na sua própria casa e chantageia países que mal se sustentam nas próprias pernas.

A essa altura as tarifas já são secundárias. O que o país perdeu em credibilidade e soft-power não há mais dinheiro que pague.

É tudo de uma estupidez avassaladora, mas não só isso. É tudo muito perverso. Trump não quer negociar com ninguém. Se engana quem ainda acha que ele é um político; não é. É um astro de reality show fazendo o papel da sua vida, acima da lei e de todos os pactos fundamentais — sociais, morais, institucionais.

Trump não está restaurando a grandeza de nada. Está apenas reduzindo tudo à sua própria escala estreita, raivosa, vingativa. Os aliados históricos se afastam, os acordos se desfazem, os indicadores tropeçam, o país se fecha. A retórica do “America First” virou, na prática, “America Alone” — uma América isolada, desacreditada, com uma liderança que inspira apenas medo e escárnio.

Volta da ultradireita é tragédia contratada

Notável pensador alemão do século 19 fraseou que, na história, a tragédia só se repetia como farsa. No caso dos governos populistas de extrema direita dá-se o oposto: seu primeiro mandato é farsa; o segundo, tragédia.

Donald Trump é prova acabada disso. Desde que voltou à Casa Branca tem produzido destruição inigualável. Na mesma semana em que a imposição de tarifas arbitrárias a uma lista enorme de países virou de ponta-cabeça o sistema de comércio mundial, agentes do Doge (sigla em inglês para Departamento de Eficiência Governamental), comandado por Elon Musk, invadiram o Woodrow Wilson Center.

Seu diretor foi forçado a renunciar e no seu lugar foi instalada uma jovem líder da torcida organizada de Trump; chefias e altos executivos foram demitidos; seus funcionários federais colocados em disponibilidade; o reputado programa internacional de pesquisadores visitantes, desativado.


O Wilson Center, como é conhecido, foi criado pelo Congresso dos EUA —e, até a semana passada, era o mais respeitado think thank de política exterior do país. O ataque ao centro de excelência é mais um episódio da investida trumpista para garrotear as instituições que produzem conhecimento, ou financiam a sua produção, ou promovem o debate livre de ideias —universidades, agências públicas de financiamento da ciência, além dos citados think thanks.

Não há dúvida alguma: o Trump do segundo mandato é muito mais radical do que o do primeiro; tem mais clareza sobre os inimigos que quer destruir; forjou instrumentos mais afiados e cevou novos apoios para fazê-lo. E, até agora, seus desígnios não tiveram de se haver com a resistência das instituições democráticas que poderiam freá-los.

A volta da extrema direita a Washington põe em dúvida teorias caras aos cientistas políticos. A primeira sustenta que a participação no jogo democrático tende a moderar partidos e líderes extremados. A segunda supõe que instituições políticas sólidas —e robustecidas com o passar do tempo— criam freios e contrapesos eficazes à ambição de poder dos governantes. Nada disso parece estar acontecendo nos EUA. Até agora, diria um otimista.

São poucos os casos de populistas de extrema direita bem-sucedidos a ponto de se reeleger ou voltar ao governo em pouco tempo. Assim, são escassos os casos que permitam aceitar ou rejeitar aquelas teorias. Por via das dúvidas, é melhor tentar evitar que o retorno ocorra. Para tanto, levem-se a sério tanto as propostas extremistas como a intenção dos proponentes de cumpri-las.

No Brasil, as instituições democráticas formaram barreira eficaz aos intentos golpistas de Jair Bolsonaro. Mas convém não apostar só nelas. Isolar politicamente o ex-capitão é medida necessária —e urgente— nesta quadra que antecede seu julgamento por crimes contra o Estado de Direito e quando, segundo Datafolha, 52% dos brasileiros acham que deveria ser preso por cometê-los.

Eis porque chega a assustar que no último domingo, na avenida Paulista, todos os pré-candidatos da direita tenham decidido, pouco importa se por convicção ou cálculo eleitoral, curvar-se à liderança de quem tem Trump como ídolo e o autoritarismo como propósito.

Inventário de perdas

Vai-se, com o tempo, perdendo tudo.
Perdi já tantos dos que tanto amava,
perdi sítios, perdi sóis, sobretudo,
perdi poderes, ilusões, e brava

força que punha, no lutar, fervor!
Perdi livros e haveres e tudo
o que à vida dá tanto sabor!
Meu canto triste foi ficando mudo,

ao ver, por todo o lado o atropelo,
o assalto ao poder da liberdade,
o pôr, na destruição, tanto zelo!

Por todo o lado, alastra a iniquidade
e a vida cada vez mais fenece,
neste pobre mundo que anoitece.
Eugénio Lisboa,"Sonetos em Tempo de Guerra Suja"

O passado reprimido do Brasil

O Brasil certamente mudou, mas somos muito incomodados por permanências contraditórias reprimidas na mudança. Testemunhos da incompetência decorrente da ausência de um olhar crítico sobre as simpatias pessoais responsáveis por um sistema jurídico kafkiano, claramente desenhado para anistiar e anular corruptos confessos e inibir conflitos de interesses. Tudo isso produz a certeza desanimadora de que leis e instituições que valeriam para todos são passíveis de particularização se o criminoso tiver o benefício de estar do nosso lado.


O exemplo mais contundente dessa afirmação é o documento que oficializa a descoberta ou achamento de nossa terra por Cabral. Nessa carta-certidão, o escrivão da frota reitera ao rei sua lealdade para, em seguida, solicitar um favor. Vale citar o original:

— Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro — o que d’Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha.

Nesse palaciano pedido de favor, testemunhamos como o costume fabricado pelo relacionamento pessoal obviamente particular — chamado “empenho” em Portugal — engloba a notícia oficial. É como se o oficial não pudesse se separar (como ocorre até hoje) do pessoal. O particular não se isola do universal, como seria o caso nas formas modernas de dominação. O tarifaço trumpista não tem simpatias ou jeitinhos.

Comunica-se ao rei um acontecimento feliz, e seu escrivão — saindo de seu papel institucional — aproveita o evento feliz para pedir um favor para sua filha e seu genro. O particular da casa derrete-se ao oficial, caracterizando uma intrusão vedada pela lógica burocrática existente, mas, como tenho aqui insistido, permanente nos sistemas relacionais.

Numa monarquia, o rei é a fonte da lei; numa burocracia, até mesmo os burocratas que engendram regras são, como diz Max Weber, obrigados a segui-la. Esse, observo enfaticamente, é um detalhe permanentemente reprimido, por isso sistematicamente reformulado na vida pública brasileira.

O rompimento da lei por um costume — um gesto de esperta consideração — é justamente o que permanece em nosso espaço de “modernização”. Nele, mudamos regimes imaginando ingenuamente que formas de governo mudam hierarquias e favores relacionais estabelecidos no código das reciprocidades do parentesco e da amizade. O que Caminha realizou na carta caracteriza o que chamamos de “política”, que os jornais de hoje noticiam e elaboram.

Entre Estado e sociedade; leis e costumes, deveres ligados a cargos públicos e simpatias pessoais, não conseguimos abandonar o relacional. A impessoalidade da lei que concretiza os interesses da coletividade é para os outros e, com certeza, para os inimigos.

A intrusão do familístico (a tal fulanização de um saudoso FH) no mundo público é uma forma de prêmio ou vingança. Nosso estilo político trata tal intrusão como dimensão legítima da “política” que, hoje (graças à revolução digital) promove impasse, ineficiência e atraso. Antigamente desvios “saíam no jornal”, hoje pipocam nos iPhones, destruindo segredos particularistas. Tal novidade demanda uma indesejável sinceridade, esse traço avesso a nossa concepção da esfera “política”. Para nós, ser político é ser Pedro Malasartes, como digo em meu velho livro “Carnavais, malandros e heróis”.

O favor do apadrinhamento confirma o axioma de Oliveira Vianna, segundo o qual temos coragem para tudo, menos para negar o pedido de um amigo. Somos universalistas e igualitários no papel que afirma — a lei vale para todos! — e somos particularistas nas solidariedades que devemos aos familiares e amigos. Governamos o Estado que é da “rua” — e seria de todos — se relativizássemos nossas simpatias.

Se você duvida, leia este jornal!

O ataque trumpista às liberdades de pensamento e expressão

Ainda que seja impotente e sempre perdedora quando colide frontalmente com o poder, a verdade possui uma força que lhe é própria: seja o que possa afirmar e alardear quem detém esse poder, ele sempre será incapaz de descobrir um substituto viável para ela, dizia Hannah Arendt na década de 1950 em um ensaio sobre a verdade e a política escrito. A história revela que a manipulação de informações factuais, a persuasão e a violência podem até destruir a verdade. No entanto, jamais conseguirão substitui-la, concluía.

Quase duas décadas depois, quando o presidente republicano Richard Nixon se envolveu em uma política agressiva e aventureira contra seus adversários democratas e tentou ocultar abusos que o levariam a renunciar ao cargo, Arendt voltaria ao tema. Em seu ensaio sobre a mentira na política, escrito a partir do vazamento de documentos o Pentágono que mostravam como o governo Nixon se preocupava mais com medidas eleiçoeiras do que com o interesse público e o bem seja comum, ela lembrou a Primeira Emenda da Constituição americana de 1787. Esse é o dispositivo que garante a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião pacífica e proíbe o estabelecimento de uma religião oficial ou a limitação do exercício de outras religiões.

Quando são efetivas, essas liberdades norteiam as dimensões públicas da vida social. Elas asseguram direitos básicos a todos os cidadãos, abrindo desse modo caminho para que cada pessoa possa usufruir sua cidadania ao máximo. Ao avaliar se a Primeira Emenda da Constituição americana seria suficiente para proteger o direito às informações não manipuladas dos fatos, Arendt afirmou que, sem ela, a liberdade de opinião não passaria de uma “farsa cruel” ou indiciosa.

Com o retorno do republicano Donald Trump à Casa Branca, sua aversão ao pluralismo, seu desprezo a direitos fundamentais e suas pressões sobre reitores começaram a invadir as universidades americanas, em cujo âmbito a liberdade de opinião e o livre debate sempre estiveram na essência de sua legitimidade e de seu papel na formação das novas gerações. Ou seja, o que Hannah Arendt chamou de “farsa cruel” está de volta novamente.

Uma prova disso foi um ofício enviado por um procurador trumpista ao reitor da Georgetown Law School. Criada há 236 anos por padres jesuítas, ela se destaca pela ênfase, em seus cursos, à diversidade, à equidade e à inclusão. Em seu ofício, o procurador disse que esses princípios são inaceitáveis pelo governo Trump e fez duas ameaças. Em primeiro lugar, se a instituição não abandonasse esses princípios, seus formandos seriam proibidos de trabalhar na administração federal. Em segundo lugar, os funcionários públicos federais que nela se graduaram também seriam demitidos, o que já começou a ocorrer.

Dias depois, a ofensiva trumpista contra a liberdade acadêmica e as mentiras invocadas para justificá-la, por um lado, e para tentar a discricionaridade do Executivo em detrimento das prerrogativas dos demais poderes, por outro, aumentaram. Parte do financiamento às pesquisas científicas no campo da medicina foi simplesmente cortada. Verbas de subsídio no valor de US 420 milhões para a Columbia University deixaram de ser transferidas até que ela reformulasse seus programas com base nos valores trumpistas, o que acabou acontecendo, comprometendo assim a imagem da instituição. A University of Pennsylvania e a Johns Hopkins University foram afrontadas. Professores americanos com descendência libanesa e árabe que foram participar de seminários acadêmicos em outros países foram detidos ao retornar e deportados – uma decisão tomada sem qualquer base constitucional. Magistrados de diferentes instâncias judiciais que acolheram recursos judiciais contra as ilegalidades do governo Trump foram por ele classificados como “corruptos”, “ativistas” e “marxistas radicais”. E escritórios de advocacia contratados por adversários ou por simples intelectuais críticos do trumpismo foram ameaçados pelo governo, o que os levou a perder grandes clientes corporativos.

Argumentos como esses, formulados com o objetivo de desafiar ordens judiciais e testar limites constitucionais cada vez que suas decisões são barradas pelos tribunais, mostram o que ocorre quando o poder político entra em guerra com a verdade em todas suas formas, como dizia Arendt nos ensaios acima mencionados. Contudo, mesmo que cada geração tenha o direito de forjar e afirmar sua própria história, em hipótese alguma pode-se admitir que ela tenha o direito de rearranjar fatos de acordo com sua própria perspectiva.

Uma coisa é discutir opiniões inoportunas, rejeitá-las, chegar a um compromisso acerca delas. É compreender o quanto pesquisas acadêmicas e liberdade de pensamento propiciam a conscientização de uma condição social, de um lado, e entender como o trabalho científico se converte em parte realidade como pensamento e prática, de outro lado. Outra coisa é construir narrativas com base em mentiras, sejam elas ardilosas. A marca distintiva da verdade factual consiste em que seu contrário não é o erro ou a ilusão. É, isto sim, a falsidade deliberada, a manipulação de fatos e opiniões – ou seja, a mentira, lembrava Arendt.

Que Trump sempre foi um embusteiro que construiu tanto sua fama com base no fato de que mentiras públicas são mais plausíveis do que a verdade, isso é sabido há muito tempo. Agora, o problema é saber o quanto de estragos ele fará, desafiando o Judiciário, enfraquecendo o império da lei e corroendo a democracia por meio das ameaças, intimidações e mentiras a que vem recorrendo com o objetivo de investir contra as liberdade de pensamento e de expressão que estão essência da vida acadêmica.

A produção sem censura de conhecimento é a função precípua da Universidade enquanto locus autônomo de poder econômico e político; enquanto espaço de liberdade de criação e de pensamento independente e aberto ao diálogo. Conhecimento não é apenas sinônimo de prestígio e autoridade. É, também, instrumento de poder acadêmico e institucional, ora reproduzindo um padrão de organização econômica, ora criticando suas estruturas para tentar torná-las mais justas. Como poder, o conhecimento está na essência das revoluções paradigmáticas da ciência. No campo social, é instrumento para mobilizações e protestos. No campo político, é instrumento para o questionamento contínuo da ordem estabelecida.

Na dinâmica da produção do conhecimento, as heterodoxias muitas vezes são mais importantes do que as ortodoxias na vida acadêmica. Elas viabilizam o avanço do conhecimento ao propiciar críticas às teorias prevalecentes, identificando suas contradições com relação aos fenômenos que pretendem compreender. Ao questionar o senso comum teórico que assegura a reprodução dos valores dominantes e ao modificar procedimentos convencionais de pesquisa, as heterodoxias também ajudam a abreviar os períodos de pobreza científica.

Contudo, elas têm seu preço. No passado, os Estados Unidos tiveram a caça às bruxas promovidas pelo macartismo. Agora, no âmbito da intolerância, do obscurantismo e da imoralidade trumpistas, esse preço implica o desprezo à tentativa de exercitar uma imaginação criadora capaz de habilitar os americanos a decifrar o sentido dos acontecimentos e a pensar o futuro como história. Ao investir contra instituições acadêmicas de ponta que formam as elites intelectuais, produzem ideias, geram inovações e desenvolvem pesquisas que alargam as fronteiras da ciência, sob o pretexto de que elas constituem um locus de reprodução de conhecimentos adversos e de propagação ideológica, o trumpismo – e sua versão borrada entre nós, o bolsonarista – não são apenas toscos e cruéis. Pecam, também, pela ausência de escrúpulos e pela sordidez moral.

Também somos natureza

Se a natureza não estiver próspera, as pessoas como espécie vão ter mais problemas físicos, mentais e emocionais. Em termos de alimentação, é a mesma coisa, tal como economia. Sem natureza, não temos todas as coisas de que as pessoas gostam e que querem consumir, ou seja, falta fazer a ligação com a espécie humana. Demonstrar que nós também somos natureza. 
Ângela Morgado, diretora-executiva da WWF Portugal

Confissões de um iluminista céptico

Eu sou um iluminista céptico, umas vezes mais iluminista, muitas mais vezes mais céptico. O que é que isto significa? Significa que, em matéria de saber se os homens nascem bons ou maus, se sou mais do lado de Hobbes ou de Rousseau, sou mais do lado de Hobbes – ou seja, nascem maus. Na verdade, nascem animais, ou seja, feitos para se comerem uns aos outros, prática que, sob múltiplas formas, explica o egoísmo, a ganância, o desprezo pelos mais fracos, o espezinhar os que não têm defesa, a indiferença face à pobreza e a miséria, a violência e a aceitação reverente do poder porque é poder, o medo. Ou seja, o “homem é de facto o lobo do homem”.

Parte-se a frágil película daquilo a que chamamos “civilização”, “democracia”, “solidariedade”, respeito pelos outros, o shakespeariano “milk of human kindness” e aí vem o animal, com os dentes de fora, ou o rebanho, ou a alcateia. Aqui é que entra o iluminista, a ideia de que o único antídoto para esta animalidade é aquilo a que chamamos “cultura” no sentido mais lato do termo, ou seja, a tentativa na sociedade de criar uma mediação para a violência da animalidade natural, ou seja, a única possibilidade de encontrar em sociedade o modo de materializar os contravalores da violência, o equilíbrio, a educação, o conhecimento, o bem-estar social, para a felicidade terrestre, mas também dos valores da resistência, da revolta contra a injustiça, da equidade e da paz.

Nesta perplexidade contraditória, penso que Hobbes ganha sempre a longo prazo, mas Rousseau dá-nos momentos frágeis em que a humanidade, quase sempre parte da humanidade, pode atravessar o seu período de vida melhor do que no passado. Na minha vida já conheci alguns desses momentos, a paz europeia desde 1945 até ao início do conflito jugoslavo, a melhoria das condições de vida em quase todo o mundo, melhor medicina, maior conhecimento do Universo, a ida à Lua, a queda do Muro de Berlim, o 25 de Abril, a democracia em Portugal, a diminuição de algumas violências históricas: a tortura, a pena de morte, a violência contra as mulheres, etc. Repare-se que escrevi “diminuição”.



Em 2025, tudo isto está a desabar, e Hobbes a ganhar. Personagens como Trump, Musk, Milei, Orbán, Erdogan, Putin, Bibi são os homens do momento, os que estão com a “seta da história”. Ao lado deles, a senhora Le Pen é uma figurinha. Os EUA mudaram de campo e a sua democracia está a desaparecer, a mentira tornou-se tão comum que a verdade está no exílio. Nas guerras injustas, como a da Ucrânia invadida pela Rússia, o nome orwelliano da rendição imposta pela traição e pela força é “paz”. Na Palestina, assiste-se quase sem comoção a todas as violências e crueldades, enredados em frágeis acusações de antissemitismo para matar habitualmente velhos, mulheres e crianças e, de vez em quando, um terrorista do Hamas. A democracia está a erodir-se por dentro entre deslumbramentos tecnológicos e lucros mais amorais do que é habitual. Todas as mediações tradicionais que funcionavam ao lado das democracias, família, igreja, partidos, sindicatos, mídia de referência, saber científico, primado da lei, estão a ser substituídas pela selvajaria das redes sociais, pela desinformação e pelo espelho do mal, muito mais poderoso do que o bem. As novas gerações têm como modelo os brutos e as bonequinhas com batom aos saltos no Tik-Tok.

Nada disto é novo na história, e sempre deu aos milhões de homens e mulheres que viveram nesses tempos uma vida miserável, dura e cruel. É possível resistir? Claro que é, mas com mais coragem, determinação, astúcia e intransigência. E aceitar viver com mais riscos, mais dificuldades, mais sacrifício pessoal e colectivo, e acima de tudo sem saber se se vai ganhar. Até porque, nunca como hoje, apesar da cloaca das redes, é mais importante o método de influência dos anarquistas nas aldeias da Estremadura e Andaluzia: a propaganda pelo exemplo.

As Luzes iluminam, mas não garantem nada e é sempre mais difícil resistir sem ter qualquer garantia de se poder travar a Besta que somos nós. A mediação da “cultura”, no sentido lato de uma visão da vida e do mundo que canalize os conflitos para a lei e as instituições, que eduque para se conhecer e defender direitos, que mobilize para a solidariedade e não para o egoísmo, que produza leis e práticas que protejam os mais fracos, com a sanção dos abusos dos mais fortes, que perceba a força e a necessidade de igualdade, tudo isto é o caminho. O problema principal é que tudo isto é artificial, feito pelos homens e mulheres, contra o que é natural, a brutalidade.