quarta-feira, 28 de setembro de 2016
A terceira margem do rio
Para Eduardo Raposo
Li, outro dia, no “The New York Times” uma chamada cujo título me surpreendeu: “O que sabemos e o que não sabemos sobre...” algum assunto. Não era sobre o terrorismo árabe ou o fascismo de Donald Trump, mas sobre o preconceito racial segregacionista contra os negros, cujo retorno aparece como um enigma numa sociedade dominada pelo pensamento evolucionista-utilitário, no qual se acredita que um presente supostamente avançado extermina as mazelas do passado.
Do ponto de vista deste nosso Brasil, onde falcatruas legais convivem com mentiras verdadeiras, ler no maior jornal da sociedade que instituiu a cosmologia do certo ou do errado, do culpado ou do inocente, do preto ou branco e tem horror à dúvida — ou a ponte — que liga dois lados, é uma surpresa. Uma grata surpresa.
Pois há situações em que o paradoxo engloba a certeza e nas quais mentir é o melhor negócio.
É claro que o certo e o errado existem e, em todo tempo e lugar, são definidos e devem ser buscados. Mas quando eles se embolam, não há como enfrentar a dúvida com a régua digital do falso ou verdadeiro! O incômodo promovido pela incerteza, aliás, é maior quando os dois lados são bem separados, e há vantagem em mantê-los assim.
No Brasil de hoje, há um enorme conforto no radicalismo chique, como nos tempos do rei era comum ir para o céu construindo uma igreja. Nada mais rotineiro do que reprimir a dúvida com uma supercerteza que se transforma numa acusação e define o bem e o mal.
A fantasia do “somos vítimas e vocês, golpistas!” é a formula dessa repressão. Pela politização crassa, ela tenta apagar a vergonhosa roubalheira promovendo o bloqueio da dúvida por meio do populismo. É como dizer: não entendo, não quero entender e condeno os que estão além dessas margens.
Todos nascemos numa margem. Só um santo ou um poeta como Guimarães Rosa sabem como o meio do rio pode virar uma terceira margem. Margem é fronteira e limite. Fixados na margem, perdemos de vista não somente o outro lado, mas o rio.
Um mundo com muitos fatos e pouca sabedoria inventou formulas rudes e simplórias que aumentam as incertezas porque é sempre mais fácil acusar do que compreender. “Contra golpista ou comunista, faça uma lista!” Fazer ou virar fascista é muito mais fácil do que compreender a nossa burocracia do terror, a nossa ética de intimidação e do medo que tem liquidado amizades e impedido a poesia e a generosidade das alternâncias.
As margens que dividem são os dois lados de um mesmo rio. Se não fizermos essa leitura, bloqueamos o nosso entendimento e — escolhendo uma das margens — partimos para o confronto, que impede a ponte e o compreender que chega com a disposição de transitar para o outro lado, o que exige levar a sério o rio na profundidade de suas correntezas. O meio é o lugar do “nem um nem outro”, que dificulta a acusação. Todo fascista odeia o compreender mas ama arrolar nomes e fazer listas.
Eu sei que o Brasil é menos complicado e não sei se ele é mais complexo do que as suas representações. Eu tenho sugerido que o “Brasil” lido como governo é uma “realidade” menos amada do que o Brasil “sociedade” expresso por um time de futebol, pelo carnaval ou por uma poesia do Affonso Romano de Sant'Anna. Distinguir tais dimensões como as margens de um mesmo rio é importante. Teria tal intuição inspirado essa “terceira margem do rio” de Guimarães Rosa quando ele imaginou um rio com três margens?
Sabemos que o meio relativiza as margens. Visto do meio, o Brasil é um belo rio. Visto como um corpo político de uma de suas margens, ele é uma vergonha, como diz acertadamente Boris Casoy. Seria uma margem de direita e a outra de esquerda? Uma do atraso ou da “ordem” e a outra do “progresso”? E se você mudar de rumo e nadar contra a corrente, as margens não trocam de lado?
A dualidade entre ordem (direita) ou progresso (esquerda) poderia ser ultrapassada pela “terceira margem” desde que o movimento histórico-ideológico saísse do lugar. Mas as coisas não saem facilmente das margens onde fincam seus ancoradouros. Por outro lado, achamos que o rio corre numa só direção, embora alguns rios mitológicos tenham correntes duplas, como ensina o mago dos mitos e do olhar distanciado, Claude Lévi-Strauss. Num sentido preciso, tais cursos d’água revelam uma surpreendente coexistência.
Sejamos realistas: você, leitor, já tentou atravessar a nado algum rio? Eu quase morri aos 26 anos nas aguas azuis do Rio Tocantins, de cuja poderosa correnteza consegui me escapar construindo, como o herói do conto de Guimarães Rosa, uma salvadora “terceira margem”. Graças a ela, pude ser resgatado pelos meus salvadores.
PS: Esbocei esta crônica uns 17 dias antes do afogamento de Domingos Montagner, para cuja família eu envio o solidário afeto de quem também viveu uma perda brusca e imperdoável. Há mais na vida intelectual do que pensamos. Literatura não leva ao céu das utopias, mas salva criando essas “terceiras margens”.
Roberto DaMatta
Li, outro dia, no “The New York Times” uma chamada cujo título me surpreendeu: “O que sabemos e o que não sabemos sobre...” algum assunto. Não era sobre o terrorismo árabe ou o fascismo de Donald Trump, mas sobre o preconceito racial segregacionista contra os negros, cujo retorno aparece como um enigma numa sociedade dominada pelo pensamento evolucionista-utilitário, no qual se acredita que um presente supostamente avançado extermina as mazelas do passado.
Do ponto de vista deste nosso Brasil, onde falcatruas legais convivem com mentiras verdadeiras, ler no maior jornal da sociedade que instituiu a cosmologia do certo ou do errado, do culpado ou do inocente, do preto ou branco e tem horror à dúvida — ou a ponte — que liga dois lados, é uma surpresa. Uma grata surpresa.
Pois há situações em que o paradoxo engloba a certeza e nas quais mentir é o melhor negócio.
No Brasil de hoje, há um enorme conforto no radicalismo chique, como nos tempos do rei era comum ir para o céu construindo uma igreja. Nada mais rotineiro do que reprimir a dúvida com uma supercerteza que se transforma numa acusação e define o bem e o mal.
A fantasia do “somos vítimas e vocês, golpistas!” é a formula dessa repressão. Pela politização crassa, ela tenta apagar a vergonhosa roubalheira promovendo o bloqueio da dúvida por meio do populismo. É como dizer: não entendo, não quero entender e condeno os que estão além dessas margens.
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Todos nascemos numa margem. Só um santo ou um poeta como Guimarães Rosa sabem como o meio do rio pode virar uma terceira margem. Margem é fronteira e limite. Fixados na margem, perdemos de vista não somente o outro lado, mas o rio.
Um mundo com muitos fatos e pouca sabedoria inventou formulas rudes e simplórias que aumentam as incertezas porque é sempre mais fácil acusar do que compreender. “Contra golpista ou comunista, faça uma lista!” Fazer ou virar fascista é muito mais fácil do que compreender a nossa burocracia do terror, a nossa ética de intimidação e do medo que tem liquidado amizades e impedido a poesia e a generosidade das alternâncias.
As margens que dividem são os dois lados de um mesmo rio. Se não fizermos essa leitura, bloqueamos o nosso entendimento e — escolhendo uma das margens — partimos para o confronto, que impede a ponte e o compreender que chega com a disposição de transitar para o outro lado, o que exige levar a sério o rio na profundidade de suas correntezas. O meio é o lugar do “nem um nem outro”, que dificulta a acusação. Todo fascista odeia o compreender mas ama arrolar nomes e fazer listas.
Eu sei que o Brasil é menos complicado e não sei se ele é mais complexo do que as suas representações. Eu tenho sugerido que o “Brasil” lido como governo é uma “realidade” menos amada do que o Brasil “sociedade” expresso por um time de futebol, pelo carnaval ou por uma poesia do Affonso Romano de Sant'Anna. Distinguir tais dimensões como as margens de um mesmo rio é importante. Teria tal intuição inspirado essa “terceira margem do rio” de Guimarães Rosa quando ele imaginou um rio com três margens?
Sabemos que o meio relativiza as margens. Visto do meio, o Brasil é um belo rio. Visto como um corpo político de uma de suas margens, ele é uma vergonha, como diz acertadamente Boris Casoy. Seria uma margem de direita e a outra de esquerda? Uma do atraso ou da “ordem” e a outra do “progresso”? E se você mudar de rumo e nadar contra a corrente, as margens não trocam de lado?
A dualidade entre ordem (direita) ou progresso (esquerda) poderia ser ultrapassada pela “terceira margem” desde que o movimento histórico-ideológico saísse do lugar. Mas as coisas não saem facilmente das margens onde fincam seus ancoradouros. Por outro lado, achamos que o rio corre numa só direção, embora alguns rios mitológicos tenham correntes duplas, como ensina o mago dos mitos e do olhar distanciado, Claude Lévi-Strauss. Num sentido preciso, tais cursos d’água revelam uma surpreendente coexistência.
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Sejamos realistas: você, leitor, já tentou atravessar a nado algum rio? Eu quase morri aos 26 anos nas aguas azuis do Rio Tocantins, de cuja poderosa correnteza consegui me escapar construindo, como o herói do conto de Guimarães Rosa, uma salvadora “terceira margem”. Graças a ela, pude ser resgatado pelos meus salvadores.
PS: Esbocei esta crônica uns 17 dias antes do afogamento de Domingos Montagner, para cuja família eu envio o solidário afeto de quem também viveu uma perda brusca e imperdoável. Há mais na vida intelectual do que pensamos. Literatura não leva ao céu das utopias, mas salva criando essas “terceiras margens”.
Roberto DaMatta
Armadilhas da segurança pública
Há muitos projetos bem montados no país para diminuir a violência letal entre os homens jovens, mas esta continua aumentando.
Simultaneamente, há a interpretação dada por movimentos sociais que denunciam o extermínio dos jovens negros no Brasil. A afirmação é feita como se houvesse uma política oficial, explícita e persistente de matar jovens negros, uma política racista e de crime contra a Humanidade. Mas nenhuma política de extermínio foi implementada aqui. No máximo, há efeitos não intencionais de políticas repressivas praticadas por policiais mal preparados em governos dirigidos por políticos indiferentes ao destino dos cidadãos mais pobres. As palavras têm importância simbólica. Ao insistir que se trata de genocídio não se está, sem intento, impossibilitando relações menos conflitivas entre moradores, jovens ou não, e policiais?
Não se pode negar o morticínio de homens jovens negros no Brasil. Falar das mortes cometidas por agentes do Estado é de crucial importância para termos uma polícia comprometida com o Estado de direito que não abuse do uso da força, especialmente das armas que legalmente portam. A participação das polícias nessas mortes representa uma vergonha para todos os que querem o Estado de direito consolidado no país. No entanto, falar apenas delas provoca não só uma grave distorção dos fatos, mas também o fortalecimento de atitudes reativas de policiais que se sentem injustamente culpados pelas mortes que eles sabem ter outros perpetradores. Não estará estimulando o excesso de flagrantes forjados como tentativa de se precaver de acusações? As denúncias assim postas, feitas há tantos anos, conseguiram resolver o problema da segurança pública? O peso das culpas, postas nos ombros dos policiais que já gritam que só a polícia não resolve, ficou insuportável.
É preciso enfrentar o contexto social em que jovens se matam entre si por participarem de bocas de fumo, galeras ou facções que criam um inimigo odiado e desumanizado na figura do “alemão”, que mora na área dominada pela outra facção.
É a hora de fazer a crítica da polarização em curso no país, dividindo-o de cabo a rabo. Dualizou-se e rachou-se o país em dois pedaços inimigos, incapazes de interagirem e conversarem. No calor das emoções, foi-se do agônico para o antagônico, onde a possibilidade de escutar o outro, de ter compaixão pelo seu sofrimento, desapareceu. Mas haverá um abismo intransponível entre brancos e negros, elite e povo, classe média e pobres?
Para reformar a segurança pública no país, será preciso desconstruir falsas polaridades porque, segundo inúmeros estudos internacionais, é a construção do outro como inimigo desumanizado que motiva um ser humano a se armar e matar outro ser humano. Nos anos pesquisando jovens vulneráveis do Rio de Janeiro, deparei-me com a definição de um inimigo ameaçador que justifica os ataques letais contra ele. É com base nessa construção imaginária que os meninos da favela se transformam em traficantes soldados. É com ela que os policiais, fardados ou não, se transformam em policiais guerreiros. Para isso, contam com a simbologia e a eficácia de armas de fogo que matam rápida e eficazmente, dando aos que as usam a sensação de poder sobre a vida e a morte dos outros. Nada mais atraente para os homens em busca de afirmação e poder. Nada mais ilusório, pois quem usa armas é alvo preferencial de tiros.
Podemos enfrentar a disseminação do etos guerreiro entre nós com três iniciativas, de modo a consolidar a segurança pública derivada da cidadania.
Precisamos exigir mais controle e investigação sobre a circulação das armas de fogo no país. Como não se montou uma Operação Lava-Jato para investigar os comerciantes legais e ilegais de armas ou uma Operação Lei Desarmada para fiscalizar os que as portam em locais públicos? São elas que trazem enorme prejuízo ao país em vidas e horas de trabalho perdidas, agravos resultantes do estresse pós-traumático para os quais o SUS ainda não tem preparo nem verba suficiente por causa dos gastos com os feridos e mortos por elas.
Carecemos de ações culturais e educativas contínuas para desconstruir o etos guerreiro, responsável pelo uso impulsivo que fazem delas jovens e policiais. É o maior desafio, pois o medo de morrer armou mãos e cabeças e justificam as mortes dos inimigos imaginários. Os efeitos na formação subjetiva dos que se tornam agentes, mas também vítimas da violência armada, só pode ser enfrentado com a cooperação de todos: agentes da segurança, saúde e educação, artistas, jornalistas, técnicos de diversas áreas, demais profissionais que lidam com público.
Devemos mudar a política de drogas no país, que demoniza algumas substâncias enquanto outras ainda mais danosas são legalmente comercializadas. Isso estigmatiza o usuário de drogas a ponto de tornar justificável a sua perseguição e morte por grupos extralegais de segurança e policiais. Isso transforma o traficante num criminoso de alta periculosidade, pois o tráfico de drogas é crime hediondo e inafiançável como o terrorismo, embora seja basicamente o comércio de mercadoria desejada por consumidores. Não é a droga que mata, é a proibição que incentiva a corrida armamentista entre grupos de traficantes e a guerra entre estes e policiais, aumentando o medo e a insegurança que tornam desejáveis grupos extralegais e paramilitares.
Armadilhas que temos de desmontar.
Alba Zaluar
Simultaneamente, há a interpretação dada por movimentos sociais que denunciam o extermínio dos jovens negros no Brasil. A afirmação é feita como se houvesse uma política oficial, explícita e persistente de matar jovens negros, uma política racista e de crime contra a Humanidade. Mas nenhuma política de extermínio foi implementada aqui. No máximo, há efeitos não intencionais de políticas repressivas praticadas por policiais mal preparados em governos dirigidos por políticos indiferentes ao destino dos cidadãos mais pobres. As palavras têm importância simbólica. Ao insistir que se trata de genocídio não se está, sem intento, impossibilitando relações menos conflitivas entre moradores, jovens ou não, e policiais?
Não se pode negar o morticínio de homens jovens negros no Brasil. Falar das mortes cometidas por agentes do Estado é de crucial importância para termos uma polícia comprometida com o Estado de direito que não abuse do uso da força, especialmente das armas que legalmente portam. A participação das polícias nessas mortes representa uma vergonha para todos os que querem o Estado de direito consolidado no país. No entanto, falar apenas delas provoca não só uma grave distorção dos fatos, mas também o fortalecimento de atitudes reativas de policiais que se sentem injustamente culpados pelas mortes que eles sabem ter outros perpetradores. Não estará estimulando o excesso de flagrantes forjados como tentativa de se precaver de acusações? As denúncias assim postas, feitas há tantos anos, conseguiram resolver o problema da segurança pública? O peso das culpas, postas nos ombros dos policiais que já gritam que só a polícia não resolve, ficou insuportável.
É preciso enfrentar o contexto social em que jovens se matam entre si por participarem de bocas de fumo, galeras ou facções que criam um inimigo odiado e desumanizado na figura do “alemão”, que mora na área dominada pela outra facção.
É a hora de fazer a crítica da polarização em curso no país, dividindo-o de cabo a rabo. Dualizou-se e rachou-se o país em dois pedaços inimigos, incapazes de interagirem e conversarem. No calor das emoções, foi-se do agônico para o antagônico, onde a possibilidade de escutar o outro, de ter compaixão pelo seu sofrimento, desapareceu. Mas haverá um abismo intransponível entre brancos e negros, elite e povo, classe média e pobres?
Para reformar a segurança pública no país, será preciso desconstruir falsas polaridades porque, segundo inúmeros estudos internacionais, é a construção do outro como inimigo desumanizado que motiva um ser humano a se armar e matar outro ser humano. Nos anos pesquisando jovens vulneráveis do Rio de Janeiro, deparei-me com a definição de um inimigo ameaçador que justifica os ataques letais contra ele. É com base nessa construção imaginária que os meninos da favela se transformam em traficantes soldados. É com ela que os policiais, fardados ou não, se transformam em policiais guerreiros. Para isso, contam com a simbologia e a eficácia de armas de fogo que matam rápida e eficazmente, dando aos que as usam a sensação de poder sobre a vida e a morte dos outros. Nada mais atraente para os homens em busca de afirmação e poder. Nada mais ilusório, pois quem usa armas é alvo preferencial de tiros.
Podemos enfrentar a disseminação do etos guerreiro entre nós com três iniciativas, de modo a consolidar a segurança pública derivada da cidadania.
Precisamos exigir mais controle e investigação sobre a circulação das armas de fogo no país. Como não se montou uma Operação Lava-Jato para investigar os comerciantes legais e ilegais de armas ou uma Operação Lei Desarmada para fiscalizar os que as portam em locais públicos? São elas que trazem enorme prejuízo ao país em vidas e horas de trabalho perdidas, agravos resultantes do estresse pós-traumático para os quais o SUS ainda não tem preparo nem verba suficiente por causa dos gastos com os feridos e mortos por elas.
Carecemos de ações culturais e educativas contínuas para desconstruir o etos guerreiro, responsável pelo uso impulsivo que fazem delas jovens e policiais. É o maior desafio, pois o medo de morrer armou mãos e cabeças e justificam as mortes dos inimigos imaginários. Os efeitos na formação subjetiva dos que se tornam agentes, mas também vítimas da violência armada, só pode ser enfrentado com a cooperação de todos: agentes da segurança, saúde e educação, artistas, jornalistas, técnicos de diversas áreas, demais profissionais que lidam com público.
Devemos mudar a política de drogas no país, que demoniza algumas substâncias enquanto outras ainda mais danosas são legalmente comercializadas. Isso estigmatiza o usuário de drogas a ponto de tornar justificável a sua perseguição e morte por grupos extralegais de segurança e policiais. Isso transforma o traficante num criminoso de alta periculosidade, pois o tráfico de drogas é crime hediondo e inafiançável como o terrorismo, embora seja basicamente o comércio de mercadoria desejada por consumidores. Não é a droga que mata, é a proibição que incentiva a corrida armamentista entre grupos de traficantes e a guerra entre estes e policiais, aumentando o medo e a insegurança que tornam desejáveis grupos extralegais e paramilitares.
Armadilhas que temos de desmontar.
Alba Zaluar
Como Palocci se encaixa na trajetória do lulopetismo
A prisão temporária do ex-ministro Antonio Palocci, o segundo ministro da Fazenda da era lulopetista a ser detido pela Lava-Jato — Mantega, o primeiro —, ajuda a compor um quadro amplo dos maus costumes que o PT desenvolveu no trato com o dinheiro público. Não começaram em Brasília. Vêm de muito longe os desvios neste campo; desde quando o partido começou a vencer eleições municipais e a conquistar as primeiras prefeituras no entorno da São Paulo e interior do estado.
É de 1997 a denúncia do militante e dirigente petista Paulo de Tarso Venceslau contra o amigo do peito de Lula, Roberto Teixeira, advogado e próximo do ex-presidente até hoje. Mantêm relação de compadres. Incomodado com consultorias que Teixeira oferecia a prefeituras petistas, Tarso, ainda crédulo com o PT, relatou à cúpula da legenda a preocupação com aqueles negócios.
Criou-se — por certo, a contragosto de Lula — uma comissão para examinar o assunto. Ela propôs a abertura de processo ético-disciplinar sobre o companheiro Teixeira. A Executiva Nacional acolheu a proposta, nas nada mais aconteceu. A não ser a expulsão de Paulo de Tarso, a decisão de um dos membros da comissão, Hélio Bicudo, fundador do partido, de se desligar — viria a ser um dos signatários do pedido de impeachment de Dilma — e o desgaste junto ao lulopetismo do jovem José Eduardo Cardozo, reabilitado no partido só agora, na defesa que fez de Dilma.
Essa passagem pode ser considerada a pedra fundamental de um contumaz comportamento delinquente de desviar dinheiro público para o projeto de poder hegemônico da legenda, e o enriquecimento de alguns, o que só ficaria à vista da sociedade a partir do mensalão, em 2005.
A atuação de Palocci nessa engrenagem, em investigação pela Lava-Jato, é coerente com este lado sem ética do lulopetismo, ativo há muito tempo. Médico sanitarista, prefeito competente de Ribeiro Preto (SP) — responsável pela privatização parcial da telefônica da prefeitura, algo inédito naquele tempo —, e hábil ministro da Fazenda num momento grave, no início do primeiro governo Lula, Antonio Palocci repetiria o caminho subterrâneo de muitos outros dirigentes.
Tendo assumido a coordenação da campanha de Lula em 2002, com o assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André — outra história envolta em brumas —, Palocci cresceu dentro do partido e, depois, no governo.
Agora, pelas revelações da Lava-Jato, começa-se a saber como o ex-ministro passou a servir de intermediário nas sombras entre a Odebrecht e o PT. De 2008 a 2013, teriam saído do caixa dois da empreiteira para o partido R$ 128 milhões.
Já eram conhecidos os sinais de enriquecimento de Palocci. Depois que saiu do governo enxotado pela revelação do caseiro Francenildo sobre a frequência com que visitava uma casa em Brasília destinada a festas e negócios, Palocci parece ter se dedicado com afinco a consultorias, atividade que o derrubou da Casa Civil de Dilma. Sempre essas consultorias.
Palocci se junta a outros “capas pretas” petistas apanhados em delitos, além do próprio Lula: José Dirceu, Genoíno, João Paulo Cunha, Delúbio Soares, para citar alguns poucos. Tudo muito coerente com o que aconteceu em 1997, na denúncia de Paulo de Tarso Venceslau.
Felizmente, acontece um processo dialético no conflituoso relacionamento entre o PT e a democracia representativa brasileira: pressionada pelo partido, aliados e satélites, ela ganha força, cria anticorpos.
Editorial - O Globo
É de 1997 a denúncia do militante e dirigente petista Paulo de Tarso Venceslau contra o amigo do peito de Lula, Roberto Teixeira, advogado e próximo do ex-presidente até hoje. Mantêm relação de compadres. Incomodado com consultorias que Teixeira oferecia a prefeituras petistas, Tarso, ainda crédulo com o PT, relatou à cúpula da legenda a preocupação com aqueles negócios.
Criou-se — por certo, a contragosto de Lula — uma comissão para examinar o assunto. Ela propôs a abertura de processo ético-disciplinar sobre o companheiro Teixeira. A Executiva Nacional acolheu a proposta, nas nada mais aconteceu. A não ser a expulsão de Paulo de Tarso, a decisão de um dos membros da comissão, Hélio Bicudo, fundador do partido, de se desligar — viria a ser um dos signatários do pedido de impeachment de Dilma — e o desgaste junto ao lulopetismo do jovem José Eduardo Cardozo, reabilitado no partido só agora, na defesa que fez de Dilma.
Essa passagem pode ser considerada a pedra fundamental de um contumaz comportamento delinquente de desviar dinheiro público para o projeto de poder hegemônico da legenda, e o enriquecimento de alguns, o que só ficaria à vista da sociedade a partir do mensalão, em 2005.
A atuação de Palocci nessa engrenagem, em investigação pela Lava-Jato, é coerente com este lado sem ética do lulopetismo, ativo há muito tempo. Médico sanitarista, prefeito competente de Ribeiro Preto (SP) — responsável pela privatização parcial da telefônica da prefeitura, algo inédito naquele tempo —, e hábil ministro da Fazenda num momento grave, no início do primeiro governo Lula, Antonio Palocci repetiria o caminho subterrâneo de muitos outros dirigentes.
Tendo assumido a coordenação da campanha de Lula em 2002, com o assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André — outra história envolta em brumas —, Palocci cresceu dentro do partido e, depois, no governo.
Agora, pelas revelações da Lava-Jato, começa-se a saber como o ex-ministro passou a servir de intermediário nas sombras entre a Odebrecht e o PT. De 2008 a 2013, teriam saído do caixa dois da empreiteira para o partido R$ 128 milhões.
Já eram conhecidos os sinais de enriquecimento de Palocci. Depois que saiu do governo enxotado pela revelação do caseiro Francenildo sobre a frequência com que visitava uma casa em Brasília destinada a festas e negócios, Palocci parece ter se dedicado com afinco a consultorias, atividade que o derrubou da Casa Civil de Dilma. Sempre essas consultorias.
Palocci se junta a outros “capas pretas” petistas apanhados em delitos, além do próprio Lula: José Dirceu, Genoíno, João Paulo Cunha, Delúbio Soares, para citar alguns poucos. Tudo muito coerente com o que aconteceu em 1997, na denúncia de Paulo de Tarso Venceslau.
Felizmente, acontece um processo dialético no conflituoso relacionamento entre o PT e a democracia representativa brasileira: pressionada pelo partido, aliados e satélites, ela ganha força, cria anticorpos.
Editorial - O Globo
Pouco espaço para a ética
Cristo Réu
Está em circulação, após receber usinagem na manufatura nacional de verdades pré-moldadas, a mais recente estimativa sobre o futuro político do ex-presidente Lula — a grande pergunta a ser respondida hoje na política brasileira, em sequência à agonia, óbito e enterro da Presidência de Dilma Rousseff. Parece tratar-se de um futuro promissor. Levando em conta o grosso do que foi dito a respeito até o momento, a denúncia por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro apresentada contra Lula pela Procuradoria-Geral da República em Curitiba está sendo uma boa noticia para o ex-presidente; quem arrumou um problema para si foram os procuradores. De acordo com a visão que acaba de ser laminada e se encontra à disposição dos consumidores, a acusação enfiou o pé numa imensa jaca. Sua denúncia, que acaba de ser aceita pelo juiz Sergio Moro e põe Lula na posição de réu, sujeito a ir para a cadeia, foi descrita como tecnicamente arruinada, amadora, inepta, sem provas, grosseira e burra. Lula. como resultado disso, teria sido automaticamente beneficiado; diante de uma acusação como a que foi feita, ganhou de graça o papel de Jesus Cristo, o único que aceita desde o começo de suas desventuras como Código Penal, e acabará sendo absolvido, pelo próprio Moro ou pelos tribunais superiores. Em seguida, disputará a Presidência da República em 2018 e será eleito para mais oito anos.
Se ele mesmo, Lula, acredita ou não nisso tudo é coisa em aberto. As decisões finais da Justiça vão dizer, em futuro mais ou menos próximo, se a denúncia contra Lula perante o juízo da 131 Vara Criminal Federal em Curitiba foi uma boa ou uma má notícia para o ex-presidente — e quem, afinal, está com a vida complicada, se são os procuradores, transformados em saco de pancada da imprensa, ou se é ele, transformado em réu. O que se pode afirmar com certeza, desde já, são duas coisas distintas. A primeira é que a denúncia, vista por muita gente como um espetáculo de auditório e não como um ato jurídico, ficou perfeitamente de pé — tanto que foi aceita e será julgada por Moro. Seu propósito foi agredir Lula, sem dúvida. Mas, do ponto de vista técnico, os procuradores têm provas de todas as acusações que fizeram; os fatos em relação aos quais não têm provas simplesmente não foram objeto de denúncia. Em segundo lugar, coloca-se finalmente em julgamento perante a lei penal um fato que aconteceu na vida real, sem a mínima dúvida, e que envenena a honra do ex-presidente desde o primeiro minuto dessa história: Lula recebeu milhões de reais de empreiteiras de obras públicas com as quais seu governo teve relações diretas. Não foi "contribuição de campanha", "doação para o partido'; ou coisa parecida. Foi dinheiro mesmo, pago a ele pessoalmente ou através do instituto que dirige. Não há força capaz de mudar isso.
O problema, para Lula, não está no que ele nega; está no que ele admite. Sim, atenção aqui: o réu não desmente os fatos apresentados contra ele. Para todos os efeitos, é como se tivesse assinado uma confissão. E o que Lula confessou? Ele nem precisou confessar nada, pois todo o dinheiro que recebeu está contabilizado oficialmente. Entre 2011 e 2014, o Instituto Lula e a LILS Palestras, Eventos e Publicações, empresa privada da qual o ex-presidente é dono, receberam, como doação ou em pagamento de palestras cobradas por Lula, cerca de 27 milhões de reais. Quem pagou? Não foram organizações beneméritas, e sim empresas que confessaram ter cometido atos de corrupção nos episódios do petrolão: tais empresas tiveram diretores condenados à prisão por esses crimes e aceitaram pagar indenizações pelos prejuízos que causaram. Uma das companhias envolvidas, a OAS, pagou 1,3 milhão de reais para guardar bens de Lula no depósito de uma transportadora de mudanças. A mesma empresa pagou 2,4 milhões de reais para fazer reformas no infausto triplex do Guarujá, cuja propriedade pesa como uma tonelada de chumbo sobre o patrimônio do ex-presidente. Mais claro que isso é impossível — e ninguém resumiu a coisa tão bem como seu assessor financeiro Paulo Okamotto. "A gente estava sem dinheiro na época em que montou o Instituto Lula", lembra Okamotto. "Daí pedimos ajuda às construtoras para pagar nossas despesas; qual é o crime?" É como se tivesse dito: "Bati a sua carteira, mas é que eu estava a perigo. Desculpe o mau jeito.
Eis o começo, o meio e o fim da história: Okamotto, o próprio Lula e mais todos os que se mostram indignados com as acusações acham que não há problema nenhum em nada disso. Caberá à Justiça, claro, decidir se Lula violou o Código Penal, ou não, ao aceitar os pagamentos citados acima. Mas não há absolutamente mais nada aprovar em matéria de moral — a menos que alguém acredite que é honesto aceitar dinheiro de empresas que receberam bilhões de reais do poder público, durante anos a fio, por terem sido escolhidas como fornecedores, prestadores de serviços ou construtores de obras. Trata- se de uma crença impossível. Esse dinheiro é contaminado na origem; não pode ser limpo nunca. Não pode ser aceito, e muito menos pedido - da mesmíssima maneira pela qual um governante não pode aceitar presentes de quem precisa do governo. Nem na empresa privada se admite que funcionários aceitem presentes — pelo menos quando se trata de empresas sérias. Como o mais alto funcionário do governo podia aceitar o que Lula aceitou?
As coisas ficaram ainda piores quando Okamotto se ofereceu para novas explicações. Tentou demonstrar, por exemplo, que Lula não tinha como evitar o recebimento de doações ou de pagamentos de empresas cujos negócios são afetados pelo poder público. Tinha, é claro: bastava não aceitar os donativos e os pagamentos. Mas o ponto aqui não é bem esse. "Me indique qual é a empresa", pediu ele, "que de uma forma ou outra não tem relação com governo, seja para fazer alguma legislação, seja para usar financiamento." São milhares de empresas, dr. Okamotto. A imensa maioria, de todos os tamanhos, de capital nacional ou de capital estrangeiro. A única relação que elas têm com o governo é pagar imposto — ou, pior ainda, defender-se contra extorsão de fiscais, a tirania dos burocratas e por ai vai. Talvez tudo tenha sido feito de boa-fé? Talvez Lula tenha pegado o dinheiro sem pensar direito no que estava fazendo? Talvez na sua cabeça não entre, realmente, que esse é um procedimento 100% desonesto? Talvez. Mas é o máximo que pode dizer em seu favor.
O resto é um monte de conversa absurda — como dizer, por exemplo, que Lula estava fazendo a mesma coisa que "o Bill Clinton" e cobrando caro, porque "fez muito mais do que ele". Invocaram até o patriotismo para explicar esse casamento com as empreiteiras. Não foi para Lula ganhar dinheiro; foi para ele ajudar o comércio externo brasileiro, dando apoio às nossas construtoras nos seus esforços para ganhar obras no mercado latino-americano. Ou foi para dar suporte à nossa diplomacia, na sua estratégia de fazer do Brasil um líder da América Latina. Só conseguiu de prático, ao que se sabe. construir um porto de graça em Cuba — de graça para Cuba, mas não para a Odebrecht, que cobrou pela obra no caixa do BNDES, nem, menos ainda, para o contribuinte brasileiro, que pagou até o último tostão por esse e outros gestos de amor ao Brasil.
O verdadeiro Lula agora em julgamento é esse.
O problema, para Lula, não está no que ele nega; está no que ele admite. Sim, atenção aqui: o réu não desmente os fatos apresentados contra ele. Para todos os efeitos, é como se tivesse assinado uma confissão. E o que Lula confessou? Ele nem precisou confessar nada, pois todo o dinheiro que recebeu está contabilizado oficialmente. Entre 2011 e 2014, o Instituto Lula e a LILS Palestras, Eventos e Publicações, empresa privada da qual o ex-presidente é dono, receberam, como doação ou em pagamento de palestras cobradas por Lula, cerca de 27 milhões de reais. Quem pagou? Não foram organizações beneméritas, e sim empresas que confessaram ter cometido atos de corrupção nos episódios do petrolão: tais empresas tiveram diretores condenados à prisão por esses crimes e aceitaram pagar indenizações pelos prejuízos que causaram. Uma das companhias envolvidas, a OAS, pagou 1,3 milhão de reais para guardar bens de Lula no depósito de uma transportadora de mudanças. A mesma empresa pagou 2,4 milhões de reais para fazer reformas no infausto triplex do Guarujá, cuja propriedade pesa como uma tonelada de chumbo sobre o patrimônio do ex-presidente. Mais claro que isso é impossível — e ninguém resumiu a coisa tão bem como seu assessor financeiro Paulo Okamotto. "A gente estava sem dinheiro na época em que montou o Instituto Lula", lembra Okamotto. "Daí pedimos ajuda às construtoras para pagar nossas despesas; qual é o crime?" É como se tivesse dito: "Bati a sua carteira, mas é que eu estava a perigo. Desculpe o mau jeito.
Eis o começo, o meio e o fim da história: Okamotto, o próprio Lula e mais todos os que se mostram indignados com as acusações acham que não há problema nenhum em nada disso. Caberá à Justiça, claro, decidir se Lula violou o Código Penal, ou não, ao aceitar os pagamentos citados acima. Mas não há absolutamente mais nada aprovar em matéria de moral — a menos que alguém acredite que é honesto aceitar dinheiro de empresas que receberam bilhões de reais do poder público, durante anos a fio, por terem sido escolhidas como fornecedores, prestadores de serviços ou construtores de obras. Trata- se de uma crença impossível. Esse dinheiro é contaminado na origem; não pode ser limpo nunca. Não pode ser aceito, e muito menos pedido - da mesmíssima maneira pela qual um governante não pode aceitar presentes de quem precisa do governo. Nem na empresa privada se admite que funcionários aceitem presentes — pelo menos quando se trata de empresas sérias. Como o mais alto funcionário do governo podia aceitar o que Lula aceitou?
As coisas ficaram ainda piores quando Okamotto se ofereceu para novas explicações. Tentou demonstrar, por exemplo, que Lula não tinha como evitar o recebimento de doações ou de pagamentos de empresas cujos negócios são afetados pelo poder público. Tinha, é claro: bastava não aceitar os donativos e os pagamentos. Mas o ponto aqui não é bem esse. "Me indique qual é a empresa", pediu ele, "que de uma forma ou outra não tem relação com governo, seja para fazer alguma legislação, seja para usar financiamento." São milhares de empresas, dr. Okamotto. A imensa maioria, de todos os tamanhos, de capital nacional ou de capital estrangeiro. A única relação que elas têm com o governo é pagar imposto — ou, pior ainda, defender-se contra extorsão de fiscais, a tirania dos burocratas e por ai vai. Talvez tudo tenha sido feito de boa-fé? Talvez Lula tenha pegado o dinheiro sem pensar direito no que estava fazendo? Talvez na sua cabeça não entre, realmente, que esse é um procedimento 100% desonesto? Talvez. Mas é o máximo que pode dizer em seu favor.
O resto é um monte de conversa absurda — como dizer, por exemplo, que Lula estava fazendo a mesma coisa que "o Bill Clinton" e cobrando caro, porque "fez muito mais do que ele". Invocaram até o patriotismo para explicar esse casamento com as empreiteiras. Não foi para Lula ganhar dinheiro; foi para ele ajudar o comércio externo brasileiro, dando apoio às nossas construtoras nos seus esforços para ganhar obras no mercado latino-americano. Ou foi para dar suporte à nossa diplomacia, na sua estratégia de fazer do Brasil um líder da América Latina. Só conseguiu de prático, ao que se sabe. construir um porto de graça em Cuba — de graça para Cuba, mas não para a Odebrecht, que cobrou pela obra no caixa do BNDES, nem, menos ainda, para o contribuinte brasileiro, que pagou até o último tostão por esse e outros gestos de amor ao Brasil.
O verdadeiro Lula agora em julgamento é esse.
Os sócios do Estado e seus dividendos
Minutos após as tenebrosas revelações da força-tarefa da Lava Jato sobre as atividades do companheiro Antônio Palocci, o PT descobriu que escandaloso, mesmo, é o ministro Alexandre de Moraes que mostrara, na véspera, saber que havia uma operação prevista para a semana que iniciava.
Literalmente, o país ficou mais abandalhado ante as provas de que o ex-prefeito de Ribeirão Preto tinha conta corrente no setor de propinas da Odebrecht. Os números são de deixar Donald Trump de cabelo em pé. O "italiano" titular da conta movimentou R$ 216 milhões no caixa subterrâneo da empresa! Note-se que Palocci não era sócio da Odebrecht recebendo dividendos. Por sua autoridade, até prova em contrário, operava como representante do PT, recebendo dividendos societários auferidos pela sigla na condição de sócia do governo. Ou propina, como afirmaram, de modo mais tosco, os policiais federais e os procuradores da república atuantes na operação.
Mário Sabino, do blog O Antagonista, em texto de ontem (26/09), lembrou que o COAF, em 2015, havia localizado operações financeiras extraordinárias nas contas de algumas lideranças do então partido governista, a saber:
Lula movimentara 52,3 milhões de reais; Antonio Palocci, 216 milhões de reais; Fernando Pimentel, 3,1 milhões de reais; Erenice Guerra; 26,3 milhões de reais. Ou seja, um total de quase 300 milhões de reais.
Qual a atitude dos líderes petistas, no ano passado ou agora, face a tais revelações? Deram alguma explicação? Escandalizaram-se? Solicitaram investigação interna para esclarecer os fatos e o destino dos milionários créditos? Eximiram o partido de qualquer responsabilidade? Emitiram sinal de constrangimento? Não. Arregaçaram as mangas, gargarejaram mel com limão e foram aos microfones atacar o boquirroto e infeliz ministro da Justiça.
Os deputados federais petistas Paulo Teixeira e Paulo Pimenta não precisaram contar até dez antes de proporem à CCJ da Câmara a convocação do ministro fanfarrão para as necessárias explicações. Vanessa Grazziotin fez o mesmo no Senado. Dilma Rousseff, desde a constelação Alfa Centauro, usou as redes sociais para diagnosticar que o país vive uma "situação grave" e que "estamos caminhando para o Estado de Exceção" (ZH de 27/09).
Passaram-se as horas, virou o dia, e até este momento, o único a dar explicações foi o ministro Alexandre de Moraes, já com o pé na soleira da porta de saída. Não sei por que razão me vieram à mente estas palavras de Josué Montello ao descrever a decadência de uma cidade em Noite sobre Alcântara:
Mário Sabino, do blog O Antagonista, em texto de ontem (26/09), lembrou que o COAF, em 2015, havia localizado operações financeiras extraordinárias nas contas de algumas lideranças do então partido governista, a saber:
Lula movimentara 52,3 milhões de reais; Antonio Palocci, 216 milhões de reais; Fernando Pimentel, 3,1 milhões de reais; Erenice Guerra; 26,3 milhões de reais. Ou seja, um total de quase 300 milhões de reais.
Qual a atitude dos líderes petistas, no ano passado ou agora, face a tais revelações? Deram alguma explicação? Escandalizaram-se? Solicitaram investigação interna para esclarecer os fatos e o destino dos milionários créditos? Eximiram o partido de qualquer responsabilidade? Emitiram sinal de constrangimento? Não. Arregaçaram as mangas, gargarejaram mel com limão e foram aos microfones atacar o boquirroto e infeliz ministro da Justiça.
Os deputados federais petistas Paulo Teixeira e Paulo Pimenta não precisaram contar até dez antes de proporem à CCJ da Câmara a convocação do ministro fanfarrão para as necessárias explicações. Vanessa Grazziotin fez o mesmo no Senado. Dilma Rousseff, desde a constelação Alfa Centauro, usou as redes sociais para diagnosticar que o país vive uma "situação grave" e que "estamos caminhando para o Estado de Exceção" (ZH de 27/09).
Passaram-se as horas, virou o dia, e até este momento, o único a dar explicações foi o ministro Alexandre de Moraes, já com o pé na soleira da porta de saída. Não sei por que razão me vieram à mente estas palavras de Josué Montello ao descrever a decadência de uma cidade em Noite sobre Alcântara:
"De repente, já longe, teve a sensação nítida de que ia andando pela alameda de um cemitério. As casas fechadas eram sepulcros e ali jaziam condes, barões, viscondes, senadores do Império, deputados, comendadores, sinhás-donas, sinhás-moças, soldados, mucamas, juízes, vereadores, sacerdotes. Somente ele, assim desperto dentro da noite, estaria vivo na cidade de mortos. E uma impressão instantânea de frio gelou-lhe as mãos e os pés, com a ideia de que, também ele, ia permanecer em Alcântara para sempre, encerrado no mausoléu de seu sobrado."Percival Puggina
Falta o torpedo final para destruir o PT
Cada vez que a Operação Lava Jato manda prender um dos marechais do PT, quantos companheiros desistem e se desligam da legenda, formal ou informalmente? Centenas ou milhares? A degola de Antônio Palocci constitui-se numa explosão de profundas consequências para o partido, menos porque o ex-ministro será condenado à prisão por longo período, mais porque, depois dele, só resta mesmo disparar o torpedo final sobre o Lula. Nessa hora, estará acabado o PT. Esse golpe de graça ou petardo definitivo, porém, exige tornar o ex-presidente inelegível por via judicial.
Afinal, as acusações contra o primeiro-companheiro, por enquanto costeando o alambrado, restringem-se a um apartamento triplex cuja propriedade ele nega, e ao armazenamento de presentes recebidos durante seus dois mandatos na presidência da República. Crimes, é claro, mas nada parecido com os praticados por Antônio Palocci, orçados em mais de uma centena de milhões carreados para seu bolso e para o partido. Daí para trás, até chegar a José Dirceu, há munição capaz de implodir o Partido dos Trabalhadores, desde que disparado o último torpedo.
Os petistas aferram-se à possibilidade de blindar seu chefe maior para levá-lo até a próxima sucessão presidencial. Difícil é, mas impossível, não será.
Pessoas ignorantes em política devem ter direito de votar?
Vamos ser honestos? A democracia não é o melhor regime político. Você sabe disso. As maiorias, muitas vezes, elegem governos incompetentes, mentirosos, corruptos. Até autoritários. Devemos conceder o direito de voto a quem não tem inteligência suficiente para escolhas responsáveis?
O cientista político Jason Brennan defende que não. O livro, que provocou polêmica nos Estados Unidos, intitula-se "Against Democracy" ("contra a democracia"). Não é um panfleto populista contra o populismo circunstancial de Donald Trump. É um estudo acadêmico com toneladas de bibliografia científica.
Tese do dr. Brennan: em todas as pesquisas disponíveis, os eleitores americanos são comprovadamente ignorantes sobre os assuntos da República. Desconhecem coisas básicas, como identificar qual dos partidos controla o Congresso. Para usar a terminologia de Brennan, a maioria dos eleitores se divide em "hobbits" e "hooligans".
Os "hobbits" são apáticos, apedeutas, raramente votam – e, quando votam, votam com a cabeça vazia.
Os "hooligans" são o contrário: fanáticos, como os torcedores do futebol, defendendo os seus "clubes" de uma forma irracional, ou seja, tribal. É possível perguntar a um "hooligan" democrata se ele concorda com uma política de Bush e antecipar a resposta. (É contra, claro.)
E depois, quando o pesquisador comunica ao "hooligan" que a referida política, afinal, é de Obama, o "hooligan" muda de opinião; ou afasta-se; ou indigna-se. Como dizia T. S. Eliot sobre Henry James, a cabeça de um "hooligan" é tão dura que nenhuma ideia é capaz de violá-la.
O eleitor ideal, para Brennan, é um "vulcan": alguém que pensa cientificamente sobre os assuntos. Mas os "vulcans" são artigo raro. Em democracia, somos obrigados a suportar as escolhas de "hobbits" e "hooligans".
Felizmente, Jason Brennan tem uma solução: se as pessoas precisam de uma licença para dirigir, o mesmo deveria acontecer para votar. "Epistocracia", eis a proposta. O governo dos conhecedores. Antes de votar, é preciso provar.
Existem vários modelos de epistocracia. Dois exemplos: todos teriam direito a um voto e depois, com a progressão acadêmica, haveria votos extra; ou, em alternativa, só haveria votos para quem tivesse boa nota em exame de política. Faz sentido?
Não, leitor, não faz. Seria possível escrever várias páginas de jornal a desconstruir o livro de Jason Brennan. Por falta de espaço, concentro-me na sua falha básica: Brennan, um cientista político, não compreende a natureza da política.
Como um bom racionalista, Brennan acredita que os fatos políticos são neutros; consequentemente, as escolhas do eleitor podem ser "científicas".
Acontece que nunca são: a política, ao contrário da matemática ou da geometria, lida com a complexidade e a imperfeição da vida humana.
Um "exame" de política, por exemplo, dependeria sempre das preferências políticas dos examinadores – nas perguntas e na correção das respostas. Brennan até pode defender perguntas "factuais" para respostas "factuais". Mas a simples escolha de certos temas (mais economia) em prejuízo de outros (menos história) já é uma escolha política.
Além disso, acreditar que diplomas acadêmicos conferem a alguém um poder especial em política é desconhecer o papel que os "intelectuais" tiveram nos horrores do século 20.
Ou, para não irmos tão longe, é ignorar o estado de fanatismo ideológico que as universidades, hoje, produzem e promovem.
Por último, não contesto que a maioria desconhece informação política relevante. Mas as pessoas não precisam de um Ph.D. para votarem. Basta que vivam em sociedade. Que sintam na pele o estado dos serviços públicos. O dinheiro que sobra (ou não sobra) no final do mês. A segurança que sentem (ou não sentem) nos seus bairros, nas suas cidades, nos seus países. E etc. etc.
Como lembrava o filósofo Michael Oakeshott, não se combatem ditadores com a balança comercial. Tradução: a política não depende apenas de um conhecimento técnico; é preciso um conhecimento prático, tradicional, vivencial. O conhecimento que só a experiência garante.
A democracia pode não ser o regime ideal para seres humanos ideais. Infelizmente, eu não conheço seres humanos ideais. No dia em que Jason Brennan me mostrar onde eles vivem, eu prometo jogar a democracia no lixo.
O cientista político Jason Brennan defende que não. O livro, que provocou polêmica nos Estados Unidos, intitula-se "Against Democracy" ("contra a democracia"). Não é um panfleto populista contra o populismo circunstancial de Donald Trump. É um estudo acadêmico com toneladas de bibliografia científica.
Tese do dr. Brennan: em todas as pesquisas disponíveis, os eleitores americanos são comprovadamente ignorantes sobre os assuntos da República. Desconhecem coisas básicas, como identificar qual dos partidos controla o Congresso. Para usar a terminologia de Brennan, a maioria dos eleitores se divide em "hobbits" e "hooligans".
Os "hobbits" são apáticos, apedeutas, raramente votam – e, quando votam, votam com a cabeça vazia.
Os "hooligans" são o contrário: fanáticos, como os torcedores do futebol, defendendo os seus "clubes" de uma forma irracional, ou seja, tribal. É possível perguntar a um "hooligan" democrata se ele concorda com uma política de Bush e antecipar a resposta. (É contra, claro.)
E depois, quando o pesquisador comunica ao "hooligan" que a referida política, afinal, é de Obama, o "hooligan" muda de opinião; ou afasta-se; ou indigna-se. Como dizia T. S. Eliot sobre Henry James, a cabeça de um "hooligan" é tão dura que nenhuma ideia é capaz de violá-la.
Felizmente, Jason Brennan tem uma solução: se as pessoas precisam de uma licença para dirigir, o mesmo deveria acontecer para votar. "Epistocracia", eis a proposta. O governo dos conhecedores. Antes de votar, é preciso provar.
Existem vários modelos de epistocracia. Dois exemplos: todos teriam direito a um voto e depois, com a progressão acadêmica, haveria votos extra; ou, em alternativa, só haveria votos para quem tivesse boa nota em exame de política. Faz sentido?
Não, leitor, não faz. Seria possível escrever várias páginas de jornal a desconstruir o livro de Jason Brennan. Por falta de espaço, concentro-me na sua falha básica: Brennan, um cientista político, não compreende a natureza da política.
Como um bom racionalista, Brennan acredita que os fatos políticos são neutros; consequentemente, as escolhas do eleitor podem ser "científicas".
Acontece que nunca são: a política, ao contrário da matemática ou da geometria, lida com a complexidade e a imperfeição da vida humana.
Um "exame" de política, por exemplo, dependeria sempre das preferências políticas dos examinadores – nas perguntas e na correção das respostas. Brennan até pode defender perguntas "factuais" para respostas "factuais". Mas a simples escolha de certos temas (mais economia) em prejuízo de outros (menos história) já é uma escolha política.
Além disso, acreditar que diplomas acadêmicos conferem a alguém um poder especial em política é desconhecer o papel que os "intelectuais" tiveram nos horrores do século 20.
Ou, para não irmos tão longe, é ignorar o estado de fanatismo ideológico que as universidades, hoje, produzem e promovem.
Por último, não contesto que a maioria desconhece informação política relevante. Mas as pessoas não precisam de um Ph.D. para votarem. Basta que vivam em sociedade. Que sintam na pele o estado dos serviços públicos. O dinheiro que sobra (ou não sobra) no final do mês. A segurança que sentem (ou não sentem) nos seus bairros, nas suas cidades, nos seus países. E etc. etc.
Como lembrava o filósofo Michael Oakeshott, não se combatem ditadores com a balança comercial. Tradução: a política não depende apenas de um conhecimento técnico; é preciso um conhecimento prático, tradicional, vivencial. O conhecimento que só a experiência garante.
A democracia pode não ser o regime ideal para seres humanos ideais. Infelizmente, eu não conheço seres humanos ideais. No dia em que Jason Brennan me mostrar onde eles vivem, eu prometo jogar a democracia no lixo.
Espetáculo de violência
O crime contra Francenildo foi a concretização no varejo do projeto totalitário da súcia
No registro da minha repulsa ao PT, posso ter passado a impressão de que tenho alguma coisa pessoal contra Lula e Dilma. Procuro, com este texto, desfazer essa eventual impressão e esclarecer tudo: tenho, sim, um problema pessoal com Dilma Rousseff e Luís Inácio Lula da Silva. Como ministra, Dilma, a anoréxica devoradora de livros, preferia a leitura de dossiês que miravam as pessoas de Ruth Cardoso e Fernando Henrique. Como candidata, não repudiou a quebra do sigilo fiscal de José Serra (da filha e do genro dele), durante a campanha, porque ele se atrevera a disputar uma eleição com ela. Adversários, para o petismo, são um efeito colateral da democracia burguesa a ser evitado. Presidente, chefiou um governo em que a Polícia Federal assassinava reputações, conforme denunciou Tuma Jr. sem ser desmentido ou processado.
É verdade que o PT não inaugurou torpezas na política nem inventou a corrupção, blablabla que os incuráveis repetem. A organização criminosa que pretendeu substituir a sociedade e fez do governo mero acesso ao Estado para sustentar o partido, só usou e abusou da corrupção e demais canalhices de modo tão inédito que os meios se fundiram aos fins e o partido roubava para continuar no poder para continuar roubando para continuar no poder. Na crônica da sordidez inédita na nossa história, considero um momento especialmente torpe quando Lula presidente acionou a máquina do Estado contra um cidadão que contou o que viu: Francenildo Pereira, o caseiro do todo poderoso ministro Antônio Palocci, lançando luz sobre os subterrâneos da organização criminosa que saqueava nossa grana e a institucionalidade num colossal golpe contra a democracia.
Francenildo, que teve o sigilo bancário violado por Jorge Mattoso à procura de uma movimentação financeira que provasse que o pobre rapaz estava a soldo da oposição, foi moído pelo Leviatã: o caseiro é o verdadeiro trabalhador humilde perseguido na história recente, e não o jeca que anda de jatinho paparicado por alguns dos advogados mais caros do país. Era o Estado policial fascista não mais como projeto, mas aplicado. Assim, assumi a coisa como pessoal e me coloquei no lugar de Francenildo porque eu e qualquer outro cidadão que contrariassem o degenerado Leviatã petista poderíamos estar no lugar de Francenildo, a outra face da mesma cara medonha do projeto petista.
O STF rejeitou não uma condenação a Palocci, mas a simples abertura de processo, por um placar apertado. Ora, há o relato factual do encontro entre o ex-ministro e o infame Jorge Mattoso presidente da Caixa Federal, onde Francenildo era correntista. Palocci o convocara porque soubera por Tião Viana que o caseiro recebera um vultoso depósito, que se provaria lícito. Passar o caso para o Coaf? Não, nada de instituições, a coisa era entre indivíduos que se apoderaram delas e moeriam os indivíduos deixados à margem. Num segundo encontro, Mattoso levou o extrato a Palocci, consumando a coisa.
E a coisa se abate contra qualquer um de nós e sobre nenhum deles. E a coisa é pessoal porque é o esmagamento da consciência com o indivíduo dentro porque a ele não é atribuído valor, nem a ela: à consciência dos francenildos é atribuído perigo, daí o esmagamento. Daí o crime contra Francenildo ser já a concretização no varejo do projeto totalitário da súcia, a cara desfigurada pelo gozo sujo no modelo caudilhista e fascistoide, que troca leis por um homem – um líder. Este líder jeca que pariu a era da canalhice tem uma dívida pessoal com cada brasileiro.
Dez anos depois, aquela luz tênue refulge e ilumina o caminho do ex-ministro para a cadeia. Pode ser que saia nos próximos dias, mas ele é mais um petista que, uma vez trazido à luz, se desfaz como vampiro de cinema. Quem cacareja hoje o “fora, Temer” não reconhece o golpe obsceno e explícito que vigorou por 13 anos contra a democracia e prefere enxergá-lo na destituição legal, legítima e tardia da parva espertalhona.
Entre tantas analogias possíveis em que o grande enfrenta o pequeno, penso em Antígona, no simbolismo da minha personagem trágica preferida. Como Francenildo, Antígona desafiou o Estado quando este lhe negou direitos de cidadã para enterrar Polinices, o irmão que morrera lutando contra a Tebas governada pelo tirânico Creonte, tio deles. De dentro da caverna onde foi deixada para morrer pela ousadia, ela inaugurou o indivíduo jogando luz sobre o Estado tirânico que ruiria.
Não sei onde anda Francenildo, mas espero que o único homem pobre verdadeiramente perseguido possa contemplar, afinal, aquela luz refulgir para a ruína dos algozes da democracia insuportavelmente longevos.
É verdade que o PT não inaugurou torpezas na política nem inventou a corrupção, blablabla que os incuráveis repetem. A organização criminosa que pretendeu substituir a sociedade e fez do governo mero acesso ao Estado para sustentar o partido, só usou e abusou da corrupção e demais canalhices de modo tão inédito que os meios se fundiram aos fins e o partido roubava para continuar no poder para continuar roubando para continuar no poder. Na crônica da sordidez inédita na nossa história, considero um momento especialmente torpe quando Lula presidente acionou a máquina do Estado contra um cidadão que contou o que viu: Francenildo Pereira, o caseiro do todo poderoso ministro Antônio Palocci, lançando luz sobre os subterrâneos da organização criminosa que saqueava nossa grana e a institucionalidade num colossal golpe contra a democracia.
Francenildo, que teve o sigilo bancário violado por Jorge Mattoso à procura de uma movimentação financeira que provasse que o pobre rapaz estava a soldo da oposição, foi moído pelo Leviatã: o caseiro é o verdadeiro trabalhador humilde perseguido na história recente, e não o jeca que anda de jatinho paparicado por alguns dos advogados mais caros do país. Era o Estado policial fascista não mais como projeto, mas aplicado. Assim, assumi a coisa como pessoal e me coloquei no lugar de Francenildo porque eu e qualquer outro cidadão que contrariassem o degenerado Leviatã petista poderíamos estar no lugar de Francenildo, a outra face da mesma cara medonha do projeto petista.
O STF rejeitou não uma condenação a Palocci, mas a simples abertura de processo, por um placar apertado. Ora, há o relato factual do encontro entre o ex-ministro e o infame Jorge Mattoso presidente da Caixa Federal, onde Francenildo era correntista. Palocci o convocara porque soubera por Tião Viana que o caseiro recebera um vultoso depósito, que se provaria lícito. Passar o caso para o Coaf? Não, nada de instituições, a coisa era entre indivíduos que se apoderaram delas e moeriam os indivíduos deixados à margem. Num segundo encontro, Mattoso levou o extrato a Palocci, consumando a coisa.
E a coisa se abate contra qualquer um de nós e sobre nenhum deles. E a coisa é pessoal porque é o esmagamento da consciência com o indivíduo dentro porque a ele não é atribuído valor, nem a ela: à consciência dos francenildos é atribuído perigo, daí o esmagamento. Daí o crime contra Francenildo ser já a concretização no varejo do projeto totalitário da súcia, a cara desfigurada pelo gozo sujo no modelo caudilhista e fascistoide, que troca leis por um homem – um líder. Este líder jeca que pariu a era da canalhice tem uma dívida pessoal com cada brasileiro.
Dez anos depois, aquela luz tênue refulge e ilumina o caminho do ex-ministro para a cadeia. Pode ser que saia nos próximos dias, mas ele é mais um petista que, uma vez trazido à luz, se desfaz como vampiro de cinema. Quem cacareja hoje o “fora, Temer” não reconhece o golpe obsceno e explícito que vigorou por 13 anos contra a democracia e prefere enxergá-lo na destituição legal, legítima e tardia da parva espertalhona.
Entre tantas analogias possíveis em que o grande enfrenta o pequeno, penso em Antígona, no simbolismo da minha personagem trágica preferida. Como Francenildo, Antígona desafiou o Estado quando este lhe negou direitos de cidadã para enterrar Polinices, o irmão que morrera lutando contra a Tebas governada pelo tirânico Creonte, tio deles. De dentro da caverna onde foi deixada para morrer pela ousadia, ela inaugurou o indivíduo jogando luz sobre o Estado tirânico que ruiria.
Não sei onde anda Francenildo, mas espero que o único homem pobre verdadeiramente perseguido possa contemplar, afinal, aquela luz refulgir para a ruína dos algozes da democracia insuportavelmente longevos.
República de presos
I
No Brasil da Lavajato,
Disse Mané Capiroto,
Depois de tomar uma cana
E soltar sonoro arroto,
O mais difícil é saber
Quem é que ainda está solto.
II
Todo dia uma canetada,
No café ou no almoço,
Se for às 6 da manhã,
É o maior alvoroço,
Tem gente que sai correndo,
Sentindo o maior sobroço.
III
No sertão da Paraíba,
O Marajá da Pitu,
Quando viu a Federal,
Derrubou a cuia de angu,
Danou-se dentro do mato,
Foi se parar no Jacu.
IV
Um parlamentar passou
Três dias no matagal,
Um ministro se trancou
Numa sala do Mobral,
Outro amanheceu o dia
Na cama do hospital.
V
Lula ontem protestou,
Disse que ia enfrentar.
Falando com Jaquivagui,
Chegou mesmo a comentar,
Diante do quiproquó:
- Com esse dedo cotó,
Não dá nem pra disfarçar...
Jango em Paris, quando ainda tinha esperança de viver
Faz 40 anos, neste setembro da 2016. Em 1976, acabada a Constituinte portuguesa (quando escrevi “Portugal, Um Salto no Escuro”, para a Francisco Alves), com vitória ao Partido Socialista de Mário Soares, iria começar a da Espanha. Viajei pela “IstoÉ” e “Correio Braziliense”. Antes dos comícios da Espanha, fui passar duas semanas em Paris e soube que o ex-presidente João Goulart estava na cidade, cuidando do sofrido e alquebrado coração. Estava hospedado no hotel Claridge (Champs Élysées, 74). Fui lá deixar-lhe um cartão com um abraço brasileiro. Saindo do hotel, encontrei o Carlos Castello Branco, do “Jornal do Brasil”, que fora conversar com ele. Estava preocupado: – O Jango não está bem, muito pálido e inconformado com o exílio.
Deixei um bilhete, com o telefone do hotel onde estava hospedado (o “Argentine”, ao lado do Arco do Triunfo). No dia seguinte, um recado do Presidente. Esperava-me para uma conversa. Conversamos horas. O Castelinho tinha razão. A ditadura militar estava assassinando Jango.
Talvez eu tenha sido inábil ao lembrar-lhe a história rocambolesca do hotel dele. O “Claridge”, onde tantas vezes me hospedei quando era no máximo de 200 dólares a diária, faz parte da história cultural, política e militar de Paris. Nele viveram artistas, escritores e generais alemães. Colette, a dama das letras, morou lá, como o cantor Maurice Chevalier. Quando Hitler invadiu Paris em 1940, o marechal Von Rundstedt, com seu ajudante de ordem o coronel Paulus, ocupou a suíte central , a mais bonita.
Finda a guerra, o diretor M Machenaud, serviçal e puxa saco, foi preso e executado pelas tropas de De Gaulle. Em agosto de 45 os nazistas derrotados foram substituídos por gente melhor, como Marlene Dietrich e Jean Gabin, a divina Edith Piaf, o automobilista argentino Manoel Fangio, Evita e Juan Perón, Ella Fitzgerald, Scott Fitzgerald, o poeta Ezra Pound, o cantor Ray Charles, a atriz Jane Mansfield, o ator Curt Jurgens, o cineasta Luis Buñuel, de novo Perón em 73, já agora com sua Izabelita.E Pavarotti. Jango espichava a dura perna direita, olhava os móveis e cortinas do bar, bebia mais um uísque, ficava calado e infinitamente triste. Ia morrer.
Deixei um bilhete, com o telefone do hotel onde estava hospedado (o “Argentine”, ao lado do Arco do Triunfo). No dia seguinte, um recado do Presidente. Esperava-me para uma conversa. Conversamos horas. O Castelinho tinha razão. A ditadura militar estava assassinando Jango.
Finda a guerra, o diretor M Machenaud, serviçal e puxa saco, foi preso e executado pelas tropas de De Gaulle. Em agosto de 45 os nazistas derrotados foram substituídos por gente melhor, como Marlene Dietrich e Jean Gabin, a divina Edith Piaf, o automobilista argentino Manoel Fangio, Evita e Juan Perón, Ella Fitzgerald, Scott Fitzgerald, o poeta Ezra Pound, o cantor Ray Charles, a atriz Jane Mansfield, o ator Curt Jurgens, o cineasta Luis Buñuel, de novo Perón em 73, já agora com sua Izabelita.E Pavarotti. Jango espichava a dura perna direita, olhava os móveis e cortinas do bar, bebia mais um uísque, ficava calado e infinitamente triste. Ia morrer.
Voltei ao Brasil lendo a excelente biografia de João Goulart, bem documentada e sobretudo verdadeira, do professor e historiador Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPQ. Não era novidade para quem conhecia suas exemplares e convincentes pesquisas sobre o trabalhismo brasileiro: “O Imaginário Trabalhista – Getulismo, PTB e Cultura Política Popular”, “Prisioneiros do Mito – Cultura e Imaginário Político dos Comunistas no Brasil”, “O Populismo e sua Historia”.
Jango viajara para a Europa para fugir das ameaças que passara a sofrer na Argentina e tomar providências para encontrar uma residência em Paris, onde residiria até o retorno ao Brasil.
Em Paris, Jango encontrou-se com Abelardo Jurema e José Gomes Talarico, a quem pediu que procurasse Mário Soares para agradecer-lhe o convite para ir a Portugal. Não deveria aceitar, pelo constrangimento que causaria ao líder português, no início do mandato. Mas pedia que ele regularizasse a situação dos exilados brasileiros. Mário Soares manifestara preocupação com Brizola vivendo sob a ditadura uruguaia. E sugeriu que ele fosse para Portugal. Brizola foi.
O médico suíço concluiu que o coração de Jango era frágil como o de um homem de 80 anos, quando, na época, tinha 56. O médico francês disse que sem perder peso e parar de fumar a medicina nada poderia fazer:
-“Monsieur President, si on ne veut pas vivre, on ne vit pas.” (“Senhor Presidente, se não se quer viver, não se vive”)
Negava-se a parar de fumar. Escreveu para Cláudio Braga:
– “Estou concluindo exames com resultados bem razoáveis, especialmente considerando que não me sujeito a prescrições”.
Em dezembro de 76 Jango morria numa fazenda na Argentina. Por mais que fuçassem sua vida, os militares brasileiros e americanos nada encontraram para denunciá-lo. Seus ministros da Fazenda eram Moreira Sales e Santiago Dantas. Não eram o prisioneiro Mantega nem Palocci.
Jango viajara para a Europa para fugir das ameaças que passara a sofrer na Argentina e tomar providências para encontrar uma residência em Paris, onde residiria até o retorno ao Brasil.
Em Paris, Jango encontrou-se com Abelardo Jurema e José Gomes Talarico, a quem pediu que procurasse Mário Soares para agradecer-lhe o convite para ir a Portugal. Não deveria aceitar, pelo constrangimento que causaria ao líder português, no início do mandato. Mas pedia que ele regularizasse a situação dos exilados brasileiros. Mário Soares manifestara preocupação com Brizola vivendo sob a ditadura uruguaia. E sugeriu que ele fosse para Portugal. Brizola foi.
O médico suíço concluiu que o coração de Jango era frágil como o de um homem de 80 anos, quando, na época, tinha 56. O médico francês disse que sem perder peso e parar de fumar a medicina nada poderia fazer:
-“Monsieur President, si on ne veut pas vivre, on ne vit pas.” (“Senhor Presidente, se não se quer viver, não se vive”)
Negava-se a parar de fumar. Escreveu para Cláudio Braga:
– “Estou concluindo exames com resultados bem razoáveis, especialmente considerando que não me sujeito a prescrições”.
Em dezembro de 76 Jango morria numa fazenda na Argentina. Por mais que fuçassem sua vida, os militares brasileiros e americanos nada encontraram para denunciá-lo. Seus ministros da Fazenda eram Moreira Sales e Santiago Dantas. Não eram o prisioneiro Mantega nem Palocci.
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