sexta-feira, 21 de agosto de 2020
A escolha dos pobres
A divulgação da pesquisa com aumento da popularidade de Bolsonaro não deveria surpreender tanto. A negação da pandemia de coronavírus, para muitos de nós, parecia um fator de desgaste. Mas nem isso colou, pois 47% dos entrevistados consideram que Bolsonaro não tem culpa pelo fracasso nacional diante da pandemia.
O ponto elementar do aumento do prestígio de Bolsonaro é a ajuda emergencial. No início queria que fosse de R$ 200, mas as negociações com o Congresso acabaram elevando-a para R$ 600. Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho essa extraordinária transferência de renda, que salvou muita gente e em alguns pontos do Nordeste melhorou as condições de vida.
Isso tudo, num momento em que discutimos a democracia e seus limites, deveria ser visto com bastante calma. Em primeiro lugar, é comum em todos os estudos da democracia apontar um apoio maior ao governo em regiões que dependem da assistência oficial. Tem sido assim no Nordeste. De modo geral, é a última região onde os governos perdem força.
Os anos em que a esquerda esteve no poder deram-lhe a sensação de que estava selada entre ela e a população mais pobre uma aliança histórica irreversível. Há muita ilusão nessa ideia. Alguns críticos da esquerda afirmam que ela errou por considerar apenas o aspecto fisiológico da aliança, sem avançar na educação política. Pessoalmente, acho que errou apenas ao enfatizar as melhorias no aumento de um tipo de consumo, deixando de lado alguns avanços que seriam vitais para os pobres, como, por exemplo, o saneamento básico.
Uma questão que se coloca para a democracia é até que ponto as limitações econômicas não transformam em fantasia a ideia de que as pessoas escolhem livremente seu caminho. Ou, em outras palavras, enquanto houver pessoas abaixo da linha de pobreza não há escolha para elas senão tentar escapar dela.
As pesquisas fora do Brasil que mostram a decadência da democracia entre gente da classe média e jovens são eloquentes nesse sentido. Em muitos lugares há uma tendência crescente a aceitar um governo autoritário e mesmo uma ditadura militar. Não é a extrema pobreza que produz esse sentimento. Em muitos casos a decadência da adesão democrática se dá apenas porque foi interrompido o processo de melhoria de vida. Em outros casos, os entrevistados dizem que estão bem de vida, mas abandonam a crença na democracia porque uma cidade vizinha ficou pobre ou porque um bairro próximo apresenta altos níveis de violência.
Em síntese, se setores da classe média orientam suas posições por um pressentimento quanto ao futuro, como questionar que pessoas em extrema dificuldade canalizem seu apoio político diante de algo mais essencial, que é a sobrevivência física?
Certamente outras políticas públicas têm peso na vida dos mais pobres. A de saúde é uma delas. Acontece que neste período de pandemia, apesar da corrupção, houve aumento de vagas em hospitais e uma sensação de que a maioria dos pacientes foi atendida. Alguns erros, como a não hospitalização mais precoce, não chegaram a ser sentidos com clareza. Muito menos a incidência maior de mortes em regiões mais pobres foi politizada, uma vez que a vimos com a habitual resignação diante de problemas estruturais.
Outra política que influencia a vida das pessoas mais pobres é a de educação. No período da pandemia o setor ficou congelado. Mesmo a educação privada sofreu o impacto e conseguiu se sair melhor com o trabalho a distância. Mas também essa diferença foi atenuada pelo fato de que nos acostumamos com o desnível estrutural entre o ensino particular e o público.
Um dos pontos que não foram articulados na análise da pesquisa é até que ponto a política assistencial de Bolsonaro será sustentável. Os dados que complementam a análise mostram que há uma previsão de queda de 11% na atividade econômica do segundo semestre. O País poderá com isso entrar em recessão.
Em que bases o governo consegue ser popular numa recessão? Precisaria de muito mais estudo para formular a saída. O único exemplo de governo que se sustenta apesar do avanço da pobreza é o da Venezuela. Ali se combinam dois fatores importantes. Uma parte da população se sente contemplada. E as Forças Armadas, sócias do chavismo e das benesses do governo, são de uma fidelidade até o momento inabalável.
A decisão de destinar mais dinheiro à Defesa do que à Educação e à Saúde revela que o caminho de se associar às Forcas Armadas Bolsonaro adotou desde o início. O que há de novidade é a ajuda assistencial, que ele sempre considerou uma forma de a esquerda comprar votos, passar a ser a principal esperança de sua sobrevivência política.
A esquerda tem dificuldade de aceitar que as massas apoiem a direita por causa da ajuda assistencial. E a direita sempre atacou o Bolsa Família como se fosse algo que entorpecia não só a escolha política, como o desejo de trabalhar e empreender.
Parece que, em certos casos, pouco importa ser de esquerda ou de direita, a história já está previamente escrita.
O ponto elementar do aumento do prestígio de Bolsonaro é a ajuda emergencial. No início queria que fosse de R$ 200, mas as negociações com o Congresso acabaram elevando-a para R$ 600. Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho essa extraordinária transferência de renda, que salvou muita gente e em alguns pontos do Nordeste melhorou as condições de vida.
Isso tudo, num momento em que discutimos a democracia e seus limites, deveria ser visto com bastante calma. Em primeiro lugar, é comum em todos os estudos da democracia apontar um apoio maior ao governo em regiões que dependem da assistência oficial. Tem sido assim no Nordeste. De modo geral, é a última região onde os governos perdem força.
Os anos em que a esquerda esteve no poder deram-lhe a sensação de que estava selada entre ela e a população mais pobre uma aliança histórica irreversível. Há muita ilusão nessa ideia. Alguns críticos da esquerda afirmam que ela errou por considerar apenas o aspecto fisiológico da aliança, sem avançar na educação política. Pessoalmente, acho que errou apenas ao enfatizar as melhorias no aumento de um tipo de consumo, deixando de lado alguns avanços que seriam vitais para os pobres, como, por exemplo, o saneamento básico.
Uma questão que se coloca para a democracia é até que ponto as limitações econômicas não transformam em fantasia a ideia de que as pessoas escolhem livremente seu caminho. Ou, em outras palavras, enquanto houver pessoas abaixo da linha de pobreza não há escolha para elas senão tentar escapar dela.
As pesquisas fora do Brasil que mostram a decadência da democracia entre gente da classe média e jovens são eloquentes nesse sentido. Em muitos lugares há uma tendência crescente a aceitar um governo autoritário e mesmo uma ditadura militar. Não é a extrema pobreza que produz esse sentimento. Em muitos casos a decadência da adesão democrática se dá apenas porque foi interrompido o processo de melhoria de vida. Em outros casos, os entrevistados dizem que estão bem de vida, mas abandonam a crença na democracia porque uma cidade vizinha ficou pobre ou porque um bairro próximo apresenta altos níveis de violência.
Em síntese, se setores da classe média orientam suas posições por um pressentimento quanto ao futuro, como questionar que pessoas em extrema dificuldade canalizem seu apoio político diante de algo mais essencial, que é a sobrevivência física?
Certamente outras políticas públicas têm peso na vida dos mais pobres. A de saúde é uma delas. Acontece que neste período de pandemia, apesar da corrupção, houve aumento de vagas em hospitais e uma sensação de que a maioria dos pacientes foi atendida. Alguns erros, como a não hospitalização mais precoce, não chegaram a ser sentidos com clareza. Muito menos a incidência maior de mortes em regiões mais pobres foi politizada, uma vez que a vimos com a habitual resignação diante de problemas estruturais.
Outra política que influencia a vida das pessoas mais pobres é a de educação. No período da pandemia o setor ficou congelado. Mesmo a educação privada sofreu o impacto e conseguiu se sair melhor com o trabalho a distância. Mas também essa diferença foi atenuada pelo fato de que nos acostumamos com o desnível estrutural entre o ensino particular e o público.
Um dos pontos que não foram articulados na análise da pesquisa é até que ponto a política assistencial de Bolsonaro será sustentável. Os dados que complementam a análise mostram que há uma previsão de queda de 11% na atividade econômica do segundo semestre. O País poderá com isso entrar em recessão.
Em que bases o governo consegue ser popular numa recessão? Precisaria de muito mais estudo para formular a saída. O único exemplo de governo que se sustenta apesar do avanço da pobreza é o da Venezuela. Ali se combinam dois fatores importantes. Uma parte da população se sente contemplada. E as Forças Armadas, sócias do chavismo e das benesses do governo, são de uma fidelidade até o momento inabalável.
A decisão de destinar mais dinheiro à Defesa do que à Educação e à Saúde revela que o caminho de se associar às Forcas Armadas Bolsonaro adotou desde o início. O que há de novidade é a ajuda assistencial, que ele sempre considerou uma forma de a esquerda comprar votos, passar a ser a principal esperança de sua sobrevivência política.
A esquerda tem dificuldade de aceitar que as massas apoiem a direita por causa da ajuda assistencial. E a direita sempre atacou o Bolsa Família como se fosse algo que entorpecia não só a escolha política, como o desejo de trabalhar e empreender.
Parece que, em certos casos, pouco importa ser de esquerda ou de direita, a história já está previamente escrita.
O esgotamento do milagre
No Brasil republicano, houve dois longos ciclos de modernização do Estado e da economia, ambos em regimes ditatoriais. O primeiro, após a Revolução de 1930, que culminou no Estado Novo, durou 15 anos e se esgotou com o fim da II Guerra Mundial e a redemocratização; o segundo, após o golpe militar de 1964, resultou numa ditadura de 21 anos. Em dois momentos, porém, foi possível realizar ciclos de modernização do Estado e da economia em bases democráticas, durante os governos Juscelino Kubitschek (1956 a 1961), com seu Plano de Metas, e Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002), com o Plano Real.
Como foi a ascensão e queda do “milagre econômico” dos militares? O I Plano Nacional de Desenvolvimento, no governo do general Garrastazu Médici, idealizado pelo ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Veloso, pretendia pôr o Brasil entre as nações desenvolvidas no espaço de uma geração. Para tanto, duplicaria a renda per capita do país até 1980; elevaria o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) até 1974, com base numa taxa anual entre 8% e 10%; e elevaria a taxa de expansão do emprego até 3,2% em 1974, além de reduzir a inflação.
A meta foi ultrapassada: o crescimento do PIB, de 1967 a 1973, foi de cerca de 10,2%, e de quase 12,5% entre 1971 e 1973, diante de uma média de 7% no pós-guerra, até o início dos anos 1960. Diante do crescimento da população de 2,9% ao ano, a segunda grande meta, de aumento do PIB per capita à taxa de cerca de 6%, também foi alcançada. Entre 1967 e 1973, população aumentou de 85,1 milhões para 99,8 milhões de habitantes, o produto per capita cresceu à taxa média de 7,2%. O nível de emprego passou “de 2,8% para a ordem de 3,3% em 1973”. Outra “grande meta” era o aumento do investimento fixo bruto em 58% de 1969 para 1973. Entre 1971 e 1973, a formação bruta de capital fixo correspondeu, em média, a 21% do PIB, alcançando 22,4% em 1973. Apenas no período de 1970 a 1973, o aumento real do nível de investimento foi de 62,9% –– novamente ultrapassou a meta estabelecida em 1970.
Tudo isso foi “financiado” pela poupança nacional bruta. Entre 1967 e 1973, a absorção líquida de recursos do exterior foi de apenas 0,8% do PIB, elevando-se um pouco para 1,2%, de 1970 a 1973. Houve excessivo endividamento externo e concentração de renda, porque os salários cresceram a taxas inferiores à da produtividade, porém com ganhos expressivos para a classe média, que cresceu.
Para corrigir essas distorções, no governo Ernesto Geisel foi lançado o II Plano Nacional de Desenvolvimento, que pretendia elevar a renda per capita a mais de US$ 1 mil e fazer com que o PIB ultrapassasse os US$ cem bilhões em 1977. A meta para o quinquênio 1975-1979 era enfrentar a escassez de petróleo e promover novo ciclo de industrialização, alavancado pelo setor produtivo estatal, com implantação de indústrias básicas, sobretudo bens de capital e eletrônica pesada, para substituir as importações e abrir novas frentes de exportação. A agropecuária também teria um novo papel.
O II PND mirava uma sociedade industrial moderna, tendo por núcleo básico a região Centro-Sul. Exigia investimentos de Cr$ 700 bilhões para a indústria de base, o desenvolvimento científico e tecnológico e da infraestrutura econômica. A política de energia seria decisiva para reduzir a dependência do país em relação às fontes externas. Havia um programa de aplicação de recursos no Nordeste, ocupação produtiva da Amazônia e da região Centro-Oeste.
A crise do petróleo e a falta de capacidade de financiamento do setor público, porém, levaram ao colapso o projeto de capitalismo de estado dos militares. Havia muito voluntarismo, o modelo de substituição de importações havia se esgotado com o avanço da globalização, ao mesmo tempo que a sobrevivência política do regime militar era ameaçada pela oposição democrática, apesar da brutal repressão.
Na prática, o projeto de abertura política de Geisel, que teve seu curso no governo Figueiredo, diante das sucessivas derrotas eleitorais dos militares e seus aliados, foi mais bem-sucedido do que o II PND. Os militares se retiraram em ordem para os quartéis, após a eleição do oposicionista Tancredo Neves, um liberal-conservador, em 1985. Entretanto, agora, estão de volta ao poder, na garupa do presidente Jair Bolsonaro. Saudosistas do “milagre econômico”, porém, movem uma guerra surda contra o ministro da Economia, Paulo Guedes, para mudar a política econômica e retomar o velho projeto nacional-desenvolvimentista. Sem chances de dar certo.
Como foi a ascensão e queda do “milagre econômico” dos militares? O I Plano Nacional de Desenvolvimento, no governo do general Garrastazu Médici, idealizado pelo ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Veloso, pretendia pôr o Brasil entre as nações desenvolvidas no espaço de uma geração. Para tanto, duplicaria a renda per capita do país até 1980; elevaria o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) até 1974, com base numa taxa anual entre 8% e 10%; e elevaria a taxa de expansão do emprego até 3,2% em 1974, além de reduzir a inflação.
A meta foi ultrapassada: o crescimento do PIB, de 1967 a 1973, foi de cerca de 10,2%, e de quase 12,5% entre 1971 e 1973, diante de uma média de 7% no pós-guerra, até o início dos anos 1960. Diante do crescimento da população de 2,9% ao ano, a segunda grande meta, de aumento do PIB per capita à taxa de cerca de 6%, também foi alcançada. Entre 1967 e 1973, população aumentou de 85,1 milhões para 99,8 milhões de habitantes, o produto per capita cresceu à taxa média de 7,2%. O nível de emprego passou “de 2,8% para a ordem de 3,3% em 1973”. Outra “grande meta” era o aumento do investimento fixo bruto em 58% de 1969 para 1973. Entre 1971 e 1973, a formação bruta de capital fixo correspondeu, em média, a 21% do PIB, alcançando 22,4% em 1973. Apenas no período de 1970 a 1973, o aumento real do nível de investimento foi de 62,9% –– novamente ultrapassou a meta estabelecida em 1970.
Tudo isso foi “financiado” pela poupança nacional bruta. Entre 1967 e 1973, a absorção líquida de recursos do exterior foi de apenas 0,8% do PIB, elevando-se um pouco para 1,2%, de 1970 a 1973. Houve excessivo endividamento externo e concentração de renda, porque os salários cresceram a taxas inferiores à da produtividade, porém com ganhos expressivos para a classe média, que cresceu.
Para corrigir essas distorções, no governo Ernesto Geisel foi lançado o II Plano Nacional de Desenvolvimento, que pretendia elevar a renda per capita a mais de US$ 1 mil e fazer com que o PIB ultrapassasse os US$ cem bilhões em 1977. A meta para o quinquênio 1975-1979 era enfrentar a escassez de petróleo e promover novo ciclo de industrialização, alavancado pelo setor produtivo estatal, com implantação de indústrias básicas, sobretudo bens de capital e eletrônica pesada, para substituir as importações e abrir novas frentes de exportação. A agropecuária também teria um novo papel.
O II PND mirava uma sociedade industrial moderna, tendo por núcleo básico a região Centro-Sul. Exigia investimentos de Cr$ 700 bilhões para a indústria de base, o desenvolvimento científico e tecnológico e da infraestrutura econômica. A política de energia seria decisiva para reduzir a dependência do país em relação às fontes externas. Havia um programa de aplicação de recursos no Nordeste, ocupação produtiva da Amazônia e da região Centro-Oeste.
A crise do petróleo e a falta de capacidade de financiamento do setor público, porém, levaram ao colapso o projeto de capitalismo de estado dos militares. Havia muito voluntarismo, o modelo de substituição de importações havia se esgotado com o avanço da globalização, ao mesmo tempo que a sobrevivência política do regime militar era ameaçada pela oposição democrática, apesar da brutal repressão.
Na prática, o projeto de abertura política de Geisel, que teve seu curso no governo Figueiredo, diante das sucessivas derrotas eleitorais dos militares e seus aliados, foi mais bem-sucedido do que o II PND. Os militares se retiraram em ordem para os quartéis, após a eleição do oposicionista Tancredo Neves, um liberal-conservador, em 1985. Entretanto, agora, estão de volta ao poder, na garupa do presidente Jair Bolsonaro. Saudosistas do “milagre econômico”, porém, movem uma guerra surda contra o ministro da Economia, Paulo Guedes, para mudar a política econômica e retomar o velho projeto nacional-desenvolvimentista. Sem chances de dar certo.
Brasil, país infeliz
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019 aponta que quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país a cada hora. Um levantamento feito pela BBC News Brasil, com base no Sistema de Informações Hospitalares do SUS, do Ministério da Saúde, revela que o país registra uma média anual de 26 mil partos de mães com idades entre 10 a 14 anos. Ainda segundo o levantamento, o país registra, ao menos, seis abortos por dia em meninas de 10 a 14 anos, em média.
Leio essa nota e em seguida leio que o presidente da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – d. Walmor Oliveira, disse que “interromper a gravidez de uma criança de dez anos, vítima de estupro, “é um crime hediondo”. Outro membro da CNBB, d.Fernando Saburido, arcebispo de Olinda e Recife, declarou que se grave foi o estupro, gravíssimo foi o aborto!
Pois eu duvido que o Papa Francisco concorde com esses bispos. Duvido. Ele tem lutado muito para preservar a nossa Fé e para que o número de católicos não diminua, ao contrário, que aumente. E vem a CNBB e solta uma opinião estúpida dessas?
Mas diante da reação infeliz da CNBB, que foi incapaz de criticar e condenar os pseudo cristãos que se aglomeraram diante do hospital no Recife, onde estava internada a menina de 10 anos grávida de um estupro cometido por seu tio, só posso desejar que a CNBB vá minguar cada vez mais...
A Igreja Católica excomungou médicos que realizaram um aborto numa menina de 9 anos engravidada pelo próprio pai há uns dois anos. Por acaso se preocupou em excomungar o médico que invadiu o hospital no Recife para pressionar a menina que lá estava prestes a ver finalizado o seu calvário? Por acaso se preocupou em excomungar e lutar para banir para sempre do convívio com a sociedade essa infeliz e extremamente perigosa Sara Giromini, que vazou o nome e os dados pessoais da triste menina?
Neste Brasil onde o analfabetismo, a ignorância e a desigualdade predominam, onde ficamos sabendo do número bárbaro e vergonhoso de meninas violentadas, haveria outra solução sem ser o aborto? Qual seria a alternativa? Orações pelo fim espontâneo da gravidez? Obrigar a criança a ter uma criança e parar de viver sua vida para viver a vida de uma criança que não desejou, cuja chegada não lhe trará amor, mas só dor e infelicidade?
Se os homens engravidassem quantos estariam na porta do hospital no Recife aos berros e atiçando o povo contra os médicos e as enfermeiras que lá se dedicam a salvar vidas? Como não engravidam, só sabem engravidar as mulheres, se dão ao direito de seguir a grotesca extremista, essa indigna Sara Geromini que de uma coisa se assegurou: foi à Caixa receber o auxílio emergencial de 600 reais.
Fé, Esperança e Caridade são as virtudes teologais do catolicismo. E nessas virtudes se basearam as mulheres que se reuniram em grupo para combater os anões morais que urravam palavras horríveis na porta do hospital no Recife. Elas lembravam que o aborto após estupro tem amparo legal no Brasil, que gravidez forçada é tortura e que gravidez aos dez anos pode significar Morte. E insistiam: “Pela vida das meninas e das mulheres. Legaliza. É pela vida das mulheres!”.
Leio essa nota e em seguida leio que o presidente da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – d. Walmor Oliveira, disse que “interromper a gravidez de uma criança de dez anos, vítima de estupro, “é um crime hediondo”. Outro membro da CNBB, d.Fernando Saburido, arcebispo de Olinda e Recife, declarou que se grave foi o estupro, gravíssimo foi o aborto!
Pois eu duvido que o Papa Francisco concorde com esses bispos. Duvido. Ele tem lutado muito para preservar a nossa Fé e para que o número de católicos não diminua, ao contrário, que aumente. E vem a CNBB e solta uma opinião estúpida dessas?
Sou católica apostólica romana, fui batizada, fiz primeira comunhão, fui crismada, casei no civil e no religioso e tenho um filho que criei nos ensinamentos da Igreja Católica.
Mas diante da reação infeliz da CNBB, que foi incapaz de criticar e condenar os pseudo cristãos que se aglomeraram diante do hospital no Recife, onde estava internada a menina de 10 anos grávida de um estupro cometido por seu tio, só posso desejar que a CNBB vá minguar cada vez mais...
A Igreja Católica excomungou médicos que realizaram um aborto numa menina de 9 anos engravidada pelo próprio pai há uns dois anos. Por acaso se preocupou em excomungar o médico que invadiu o hospital no Recife para pressionar a menina que lá estava prestes a ver finalizado o seu calvário? Por acaso se preocupou em excomungar e lutar para banir para sempre do convívio com a sociedade essa infeliz e extremamente perigosa Sara Giromini, que vazou o nome e os dados pessoais da triste menina?
Neste Brasil onde o analfabetismo, a ignorância e a desigualdade predominam, onde ficamos sabendo do número bárbaro e vergonhoso de meninas violentadas, haveria outra solução sem ser o aborto? Qual seria a alternativa? Orações pelo fim espontâneo da gravidez? Obrigar a criança a ter uma criança e parar de viver sua vida para viver a vida de uma criança que não desejou, cuja chegada não lhe trará amor, mas só dor e infelicidade?
Se os homens engravidassem quantos estariam na porta do hospital no Recife aos berros e atiçando o povo contra os médicos e as enfermeiras que lá se dedicam a salvar vidas? Como não engravidam, só sabem engravidar as mulheres, se dão ao direito de seguir a grotesca extremista, essa indigna Sara Geromini que de uma coisa se assegurou: foi à Caixa receber o auxílio emergencial de 600 reais.
Fé, Esperança e Caridade são as virtudes teologais do catolicismo. E nessas virtudes se basearam as mulheres que se reuniram em grupo para combater os anões morais que urravam palavras horríveis na porta do hospital no Recife. Elas lembravam que o aborto após estupro tem amparo legal no Brasil, que gravidez forçada é tortura e que gravidez aos dez anos pode significar Morte. E insistiam: “Pela vida das meninas e das mulheres. Legaliza. É pela vida das mulheres!”.
Os guizos falsos da alegria
O deus Apolo concedeu à bela Cassandra o dom da profecia, mas dela não obteve a desejada recompensa sexual. O deus, então. puniu-a de uma forma devastadora. Determinou que ninguém mais daria crédito a suas profecias, que passariam a ser ouvidas como manifestações de um repetitivo e infundado pessimismo.
No século 18, ironizando a filosofia de Leibniz, Voltaire criou o Dr. Pangloss, uma Cassandra com o sinal trocado, empenhado em nos convencer de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Na História brasileira, até o limiar da 2.ª Grande Guerra, tivemos muito mais Cassandras que Panglosses, e não por acaso. Ameno em alguns, virulento em outros, nosso cassandrismo foi elaborado por uma plêiade de brilhantes historiadores e ensaístas. Tributário da cultura ibérica, colonizado por Portugal, atrelado à monocultura, o futuro brasileiro pouco ou nada teria de promissor. Sua variante talvez mais aguda foi a formulada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936). Para ele, o que nos condenava era nossa incapacidade de construir um Estado digno de tal nome: “A ideia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo seus destinos, é dificilmente inteligível para os povos da América Latina”.
No pós-guerra abrimos espaço para um panglossianismo moderado, aderindo ao “desenvolvimentismo” que começava a empolgar todo o Terceiro Mundo. Aceitamos a tese de Raimundo Faoro (Os Donos do Poder, 1958) segundo a qual a herança portuguesa não seria propriamente a inexistência de um Estado. Tínhamos um poder central poderoso, mas patrimonialista. Patrimonialismo, como sabemos, é aquele tipo de organização política em que o rei distribui todos os ativos valiosos e as melhores oportunidades de enriquecimento a seus apaniguados. Melhor que nada, quem não tem cão caça com gato. No mesmo ano, com sua celebrada Formação Econômica do Brasil, Celso Furtado robusteceu substancialmente nosso mirrado panglossianismo. Um poder central capaz de planejar a economia era do que precisávamos para implantar a industrialização substitutiva de importações, que nos conduziria à terra prometida.
E assim fomos em frente, com certos guizos falsos da alegria aliviando nossos sofrimentos. Justiça seja feita, atingimos alguns objetivos importantes, como a expansão do agronegócio. Mas erramos – ou perpetuamos erros monumentais –, como a “industrialização em marcha forçada” do general Ernesto Geisel e a subsequente “década perdida”; a obscena desigualdade social; um sistema de ensino calamitoso; uma situação sanitária indescritível, com quase 50% dos domicílios sem ligação com a rede pública de esgotos e o mosquito Aedes aegypti passeando por toda parte, de São Paulo para cima; e, agora, uma radicalização política estúpida, pano de fundo para uma perigosa deterioração das instituições de governo, nos três Poderes.
A verdade nua e crua é que já não compreendemos o país em que vivemos. Tentamos entendê-lo com base na dicotomia esquerda x direita, enquanto não lhe proporcionamos o merecido sepultamento. Ignorando que, mesmo nos países mais adiantados da Europa, a parcela dos eleitores capaz de balbuciar algo inteligível sobre tal dicotomia não chega a 20%, dizemos, sem nenhum rubor, que Lula é de esquerda (o esquerdista dos sonhos do sistema financeiro) e que Jair Bolsonaro é (OK, não é mais) um liberal de direita. E o coronavírus, é de direita ou de esquerda?
Enquanto nos abeberamos em tais sandices, continuamos a não perceber quantos graves problemas – velhos e novos – se vão acumulando. O papel das Forças Armadas como instituições nacionais, que julgávamos bem estabelecido desde os anos 30 do século passado, começa a perder nitidez à medida que o presidente Jair Bolsonaro convoca numerosos oficiais-generais para cargos administrativos. Para encurtar uma longa história, o fato é que continuamos aprisionados na chamada “armadilha do baixo crescimento”: para alcançar o nível atual da Grécia precisaremos de um crescimento médio anual de 2% em nossa renda per capita.
Nossa obtusidade parece ainda maior quando nos voltamos para o sistema político e para a máquina administrativa. Vituperamos diariamente o patrimonialismo português, não percebendo que ele secretou dois produtos igualmente nefastos. De um lado, a corrupção Odebrecht size. De outro, uma variante “democrática”, o corporativismo generalizado, ou seja, uma infindável trama de interesses estreitos, insuscetível de agregação. O antídoto para o corporativismo é, em tese, o partido político, mas um país ter três dúzias de partidos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa. É como somar mais trinta e tantos grupos corporativos aos anteriormente existentes. Parado na “armadilha do baixo crescimento”, é evidente que o Brasil não vai ficar. Se não formos para a frente, iremos para trás, e o cenário do regresso não será para almas frágeis.
No século 18, ironizando a filosofia de Leibniz, Voltaire criou o Dr. Pangloss, uma Cassandra com o sinal trocado, empenhado em nos convencer de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Na História brasileira, até o limiar da 2.ª Grande Guerra, tivemos muito mais Cassandras que Panglosses, e não por acaso. Ameno em alguns, virulento em outros, nosso cassandrismo foi elaborado por uma plêiade de brilhantes historiadores e ensaístas. Tributário da cultura ibérica, colonizado por Portugal, atrelado à monocultura, o futuro brasileiro pouco ou nada teria de promissor. Sua variante talvez mais aguda foi a formulada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936). Para ele, o que nos condenava era nossa incapacidade de construir um Estado digno de tal nome: “A ideia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo seus destinos, é dificilmente inteligível para os povos da América Latina”.
No pós-guerra abrimos espaço para um panglossianismo moderado, aderindo ao “desenvolvimentismo” que começava a empolgar todo o Terceiro Mundo. Aceitamos a tese de Raimundo Faoro (Os Donos do Poder, 1958) segundo a qual a herança portuguesa não seria propriamente a inexistência de um Estado. Tínhamos um poder central poderoso, mas patrimonialista. Patrimonialismo, como sabemos, é aquele tipo de organização política em que o rei distribui todos os ativos valiosos e as melhores oportunidades de enriquecimento a seus apaniguados. Melhor que nada, quem não tem cão caça com gato. No mesmo ano, com sua celebrada Formação Econômica do Brasil, Celso Furtado robusteceu substancialmente nosso mirrado panglossianismo. Um poder central capaz de planejar a economia era do que precisávamos para implantar a industrialização substitutiva de importações, que nos conduziria à terra prometida.
E assim fomos em frente, com certos guizos falsos da alegria aliviando nossos sofrimentos. Justiça seja feita, atingimos alguns objetivos importantes, como a expansão do agronegócio. Mas erramos – ou perpetuamos erros monumentais –, como a “industrialização em marcha forçada” do general Ernesto Geisel e a subsequente “década perdida”; a obscena desigualdade social; um sistema de ensino calamitoso; uma situação sanitária indescritível, com quase 50% dos domicílios sem ligação com a rede pública de esgotos e o mosquito Aedes aegypti passeando por toda parte, de São Paulo para cima; e, agora, uma radicalização política estúpida, pano de fundo para uma perigosa deterioração das instituições de governo, nos três Poderes.
A verdade nua e crua é que já não compreendemos o país em que vivemos. Tentamos entendê-lo com base na dicotomia esquerda x direita, enquanto não lhe proporcionamos o merecido sepultamento. Ignorando que, mesmo nos países mais adiantados da Europa, a parcela dos eleitores capaz de balbuciar algo inteligível sobre tal dicotomia não chega a 20%, dizemos, sem nenhum rubor, que Lula é de esquerda (o esquerdista dos sonhos do sistema financeiro) e que Jair Bolsonaro é (OK, não é mais) um liberal de direita. E o coronavírus, é de direita ou de esquerda?
Enquanto nos abeberamos em tais sandices, continuamos a não perceber quantos graves problemas – velhos e novos – se vão acumulando. O papel das Forças Armadas como instituições nacionais, que julgávamos bem estabelecido desde os anos 30 do século passado, começa a perder nitidez à medida que o presidente Jair Bolsonaro convoca numerosos oficiais-generais para cargos administrativos. Para encurtar uma longa história, o fato é que continuamos aprisionados na chamada “armadilha do baixo crescimento”: para alcançar o nível atual da Grécia precisaremos de um crescimento médio anual de 2% em nossa renda per capita.
Nossa obtusidade parece ainda maior quando nos voltamos para o sistema político e para a máquina administrativa. Vituperamos diariamente o patrimonialismo português, não percebendo que ele secretou dois produtos igualmente nefastos. De um lado, a corrupção Odebrecht size. De outro, uma variante “democrática”, o corporativismo generalizado, ou seja, uma infindável trama de interesses estreitos, insuscetível de agregação. O antídoto para o corporativismo é, em tese, o partido político, mas um país ter três dúzias de partidos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa. É como somar mais trinta e tantos grupos corporativos aos anteriormente existentes. Parado na “armadilha do baixo crescimento”, é evidente que o Brasil não vai ficar. Se não formos para a frente, iremos para trás, e o cenário do regresso não será para almas frágeis.
O 'gado humano' que Bolsonaro leva ao matadouro
O Brasil superou as 100.000 mortes por covid-19 e, na velocidade atual em torno de 1.000 mortos por dia, poderá chegar aos 200.000 ainda em outubro. E então a Folha de S.Paulo estampa na manchete de 15 de agosto a conclusão da pesquisa do Datafolha: “para 47% dos brasileiros, Bolsonaro não tem culpa pelas 100 mil mortes por covid-19”. Nenhuma culpa. O Brasil tem 21 novos casos/dia por 100.000 habitantes, quando a média global é 3. Mesmo vilões como os Estados Unidos de Donald Trump têm 17 novos casos/dia por 100.000 e a Índia de Narendra Modi, 5. Mesmo com as evidências de negligência intencional e deliberada na relação com a pandemia, que já motivou três petições de crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional, a mesma pesquisa já tinha mostrado que Bolsonaro alcançou sua melhor aprovação desde o início do mandato: 37% de ótimo ou bom. A melhora é puxada especialmente pelos mais pobres e pelo Nordeste do Brasil, região onde ele teve menos votos em 2018. A rejeição caiu enquanto o número de mortos explodiu. Por que quase metade dos brasileiros se comportaria como “gado humano”, como tem sido chamada, e aceitaria Bolsonaro conduzi-la alegremente para o matadouro?
A conclusão mais fácil, amplamente difundida nas redes sociais, é a de que as pessoas são burras. E também mal informadas. O auxílio emergencial de 600 reais por mês para os mais pobres devido à pandemia teria feito com que Bolsonaro fosse visto momentaneamente como o capitão dos pobres. A desinformação seria por conta de que o Governo federal foi obrigado pelo Congresso a pagar 600 reais. Bolsonaro não queria passar dos 200. O campo da esquerda, que quase dois anos depois da eleição ainda não foi capaz de fazer oposição efetiva a Bolsonaro, apavora-se porque o Governo emite sinais de que o Bolsa Família do lulismo pode virar o Renda Brasil do bolsonarismo. E, se isso acontecer, Bolsonaro tem mais chances de se reeleger em 2022.
O que é ser burro e o que é ser inteligente, porém, não é uma definição fácil, muito menos simples. Grande parte da população brasileira vive apenas o dia de hoje. Para a maioria, o mês seguinte já é longe demais. A ideia de futuro é considerada um privilégio dos mais ricos, e este é um dado muito importante, porque emancipação política só é possível com pessoas que têm acesso à ideia de futuro. Quando o futuro se torna um privilégio dos mais ricos, e não um direito assegurado a todos, a maioria é condenada ao presente. E o presente é movido por comer ou não comer, ter um lugar para dormir ou ser despejado, manter-se respirando.
A realidade é que os 600 reais do auxílio emergencial garantiram uma renda inédita a pelo menos 65 milhões de brasileiros e suas famílias. E, quando o benefício acabar, o que pode acontecer em seguida, voltarão a ter que se virar com muito menos, num país com um número ainda maior de desempregados e com a recessão se ampliando. Segundo artigo de Mauro Paulino e Alessandro Janoni, diretor-geral e diretor de Pesquisas do Datafolha, “dos cinco pontos de crescimento da taxa de avaliação positiva [de Bolsonaro], pelo menos três vêm dos trabalhadores informais ou desempregados que têm renda familiar de até três salários mínimos, grupo alvo do auxílio emergencial pago pelo governo”.
Vale a pena ressaltar que o que se chama de classe média no Brasil, assim como aqueles que se entendem como classe média, nada têm de média. Em São Paulo, por exemplo, segundo a tabela preparada pelo Nexo, se você ganha 12.000 reais por mês já faz parte do seletíssimo clube do 1% mais rico do Brasil. A tabela tem suas limitações, mas cada um pode calcular sua renda em comparação com o restante da população e ter uma ideia muito aproximada da situação.
A conclusão mais fácil, amplamente difundida nas redes sociais, é a de que as pessoas são burras. E também mal informadas. O auxílio emergencial de 600 reais por mês para os mais pobres devido à pandemia teria feito com que Bolsonaro fosse visto momentaneamente como o capitão dos pobres. A desinformação seria por conta de que o Governo federal foi obrigado pelo Congresso a pagar 600 reais. Bolsonaro não queria passar dos 200. O campo da esquerda, que quase dois anos depois da eleição ainda não foi capaz de fazer oposição efetiva a Bolsonaro, apavora-se porque o Governo emite sinais de que o Bolsa Família do lulismo pode virar o Renda Brasil do bolsonarismo. E, se isso acontecer, Bolsonaro tem mais chances de se reeleger em 2022.
O que é ser burro e o que é ser inteligente, porém, não é uma definição fácil, muito menos simples. Grande parte da população brasileira vive apenas o dia de hoje. Para a maioria, o mês seguinte já é longe demais. A ideia de futuro é considerada um privilégio dos mais ricos, e este é um dado muito importante, porque emancipação política só é possível com pessoas que têm acesso à ideia de futuro. Quando o futuro se torna um privilégio dos mais ricos, e não um direito assegurado a todos, a maioria é condenada ao presente. E o presente é movido por comer ou não comer, ter um lugar para dormir ou ser despejado, manter-se respirando.
A realidade é que os 600 reais do auxílio emergencial garantiram uma renda inédita a pelo menos 65 milhões de brasileiros e suas famílias. E, quando o benefício acabar, o que pode acontecer em seguida, voltarão a ter que se virar com muito menos, num país com um número ainda maior de desempregados e com a recessão se ampliando. Segundo artigo de Mauro Paulino e Alessandro Janoni, diretor-geral e diretor de Pesquisas do Datafolha, “dos cinco pontos de crescimento da taxa de avaliação positiva [de Bolsonaro], pelo menos três vêm dos trabalhadores informais ou desempregados que têm renda familiar de até três salários mínimos, grupo alvo do auxílio emergencial pago pelo governo”.
Vale a pena ressaltar que o que se chama de classe média no Brasil, assim como aqueles que se entendem como classe média, nada têm de média. Em São Paulo, por exemplo, segundo a tabela preparada pelo Nexo, se você ganha 12.000 reais por mês já faz parte do seletíssimo clube do 1% mais rico do Brasil. A tabela tem suas limitações, mas cada um pode calcular sua renda em comparação com o restante da população e ter uma ideia muito aproximada da situação.
O Brasil tem a segunda pior concentração de renda do mundo, conforme o Relatório de Desenvolvimento da ONU: o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país. Só perde por muito pouco para o Catar, onde a concentração de renda chega a 29%. Este é o tamanho do abismo da desigualdade brasileira. Vale a pena lembrar ainda que os bilionários não são 1%, como se costuma dizer no senso comum —e sim 0,00003% da população global. Mais especificamente 2.153 pessoas como eu e você, que concentram 60% mais riqueza material que quase 7,8 bilhões de pessoas da mesma espécie.
O mundo tem uma pessoa bilionária para cada 3,7 milhões de outras. No Brasil, segundo o último ranking da Forbes, há 45 pessoas bilionárias. Quarenta e cinco. Enquanto isso, a metade mais pobre da população brasileira, cerca de 104 milhões de pessoas, vivia em 2018 com 413 reais de renda mensal. Não há futuro para a maioria com essa desigualdade monstruosa. Só um presente vergonhosamente precário. E o presente vergonhosamente precário é, neste momento, ainda absurdamente precário, mas menos precário com o auxílio emergencial de 600 reais —composto por recursos públicos, mas interpretado como uma benemerência de Bolsonaro.
A redução da miséria e da pobreza, conquistada nos anos dos Governos do PT (e, antes dele, em níveis consideravelmente menores, nos governos do PSDB de FHC), foi imensamente importante, mas suficiente apenas para reduzir a fome e garantir melhorias pontuais, como acesso a bens básicos como geladeira e fogão. Isso, é necessário assinalar, não é pouca coisa. A questão, que já era apontada na primeira década deste século, é que jamais foi suficiente para criar cidadãos, no sentido daquilo que é definido como sujeitos de direitos. Para criar cidadãos é necessário reduzir a desigualdade, o que nunca foi feito de forma significativa no Brasil.
Para diminuir a desigualdade é preciso fazer mudanças estruturais capazes de reduzir os privilégios da minoria mais rica e taxar pesadamente as grandes fortunas. Só assim se garante uma redistribuição mais igualitária da riqueza existente. O Governo mais próximo de um ideário social de esquerda no Brasil, o de Lula, era um governo de conciliação. Lula e principalmente Dilma Rousseff sacrificaram a Amazônia e o Cerrado, assim como bandeiras históricas como a da reforma agrária, para garantir a massiva exportação de matérias-primas durante um momento de crescimento da economia global, especialmente da China. Era a fórmula —limitada, como se viu— para os pobres ficarem menos pobres e, ao mesmo tempo, os ricos mais ricos.
Há muitas definições de cidadania. Eu gosto daquela que define o cidadão como aquele que pode ter a certeza do básico —alimentação, transporte, saúde e educação— e então pode ser capaz de imaginar e criar futuros onde quer viver porque o seu tempo não é devorado pela estrita manutenção do corpo, mas para desenvolver seu potencial para a ampliação do bem comum. Se o mundo é hoje extremamente desigual, o Brasil, com seu tamanho continental e 210 milhões de habitantes, é o exemplo mais eloquente da violência representada pelo sequestro do futuro da maioria da população, reduzida ao esgotamento cotidiano dos corpos para manter-se respirando.
Diante das condições de vida absolutamente precárias da maioria dos brasileiros e do súbito aumento da renda com o auxílio emergencial, o surpreendente não é que a aprovação de Bolsonaro suba durante a pandemia. O surpreendente é que isso seja uma surpresa. Se a reação previsível e lógica dos mais pobres é uma surpresa para parte da população, especialmente no campo da esquerda, quem então são os burros e os mal-informados sobre o que se passa no país?
O boicote intencional de Bolsonaro ao enfrentamento da covid-19 pode ser comprovado por atos documentados no Diário Oficial da União, além de uma comunicação feita deliberadamente para desinformar a população. As pesquisas também provam que são os mais pobres, e a maioria dos mais pobres no Brasil é negra, que morrem mais de covid-19. No Campo Limpo, um dos bairros com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixos de São Paulo, a letalidade da covid-19 por 100.000 habitantes é altíssima —52%. Já nos bairros mais ricos, com IDH mais alto, como Pinheiros, a taxa é de 5%. Na maior cidade do Brasil, há 10 vezes mais letalidade por covid-19 nos bairros mais pobres quando comparados aos mais ricos.
Como então é possível que a melhoria nos índices de aprovação do antipresidente seja justamente puxada pelos mais pobres? A resposta também pode ser buscada na precarização da vida. O que chamamos de povo brasileiro é composto, em sua maioria, por pessoas que só vivem porque teimam. A história do Brasil é uma trajetória de espoliação de matérias-primas extraídas da natureza e, no caso da maioria da população, de corpos escravizados e depois brutalmente explorados. O que se transmite de pai e mãe para filhos e filhas é que a sobrevivência não é garantida, ela é arrancada. A morte é normalizada.
A história das famílias mais pobres é uma história em que os filhos mortos são contados junto com os vivos. As mulheres sabem que parte da sua prole pode morrer pelas condições precárias da vida, pela falta de acesso à saúde, à água, a saneamento básico e também a alimentos. Também sabem que morrer por violência é uma probabilidade, especialmente se seu filho for negro, seja pelas balas da polícia, da milícia ou por assalto. Há periferias do Brasil em que você pode bater aleatoriamente em uma fileira de portas e todos terão uma morte ou mais para contar, por violência e/ou por falta de condições de saúde.
A tragédia crônica do Brasil é ter um povo para quem a morte por doenças evitáveis e por violência é normalizada porque foram colocados na condição de matáveis e de morríveis desde a formação do país. Não é um povo, é uma massa de desesperados extremamente criativos que vem resistindo há séculos contra todas as formas de extermínio.
O que quero explicitar é que os brasileiros mais pobres vivem sujeitados a aceitar a perda dos que amam. Esta é uma das faces mais horrendas da desigualdade, mas o horror desta face nunca a impediu de ser aceita como normal, em especial pelos mais ricos, inclusive os que se consideram classe média. Neste sentido, a covid-19 é mais uma forma de morte. Se as outras mortes não são evitadas, por que esperar que um governante evitasse esta?
Para suportar o horror de estar na condição dos que podem morrer por aquilo que não mata os brancos e os mais ricos —ou pelo menos que mata muito menos os brancos e os mais ricos—, uma parcela significativa dos brasileiros atribui seu destino à vontade divina. Pelo menos, neste caso, podem rezar, pagar o dízimo para o pastor, tentar reverter o destino ou, pelo menos, encontrar um sentido para suas tantas perdas numa vontade superior. Numa realidade que parece imutável, o que não se pode entender, como a vontade de um deus, pode ser mais suportável do que a explicação de que a sua vida pouco importa para quem tem seu destino terreno nas mãos.
Assim, a covid-19, tanto quanto as outras doenças, também é considerada culpa de ninguém. Nem mesmo de Bolsonaro, apesar dos seus vômitos públicos de irresponsabilidade. O “E daí?” de Bolsonaro é apenas um degrau a mais, por ter sido dito em voz alta, para o grande “e daí?” histórico, permanente e persistente vivido pelos mais pobres ao longo de gerações e de Governos. Para alguns fiéis de determinadas igrejas neopentecostais, pragas do gênero já estão inclusive previstas na Bíblia. As doenças são em geral uma alegoria com muita ressonância numa população cada vez mais evangélica. A pergunta do Datafolha pode nem fazer muito sentido para uma parcela da população: como assim um presidente vai ter culpa por uma doença? Doença acontece, é fatalidade, quando não enviada por Deus para castigar a imoralidade reinante.
Isso é ignorância? Pode ser. Mas é principalmente sobrevivência, inclusive psicológica. Se você aceitou que a perda e a morte fazem parte do seu lugar no mundo, como fizeram parte antes do destino de seus pais e avós, o que importa é garantir a comida, o gás, o puxadinho para quem sobrar. Garantir os 600 reais. E quando os 600 reais acabarem? O amanhã é longe. Não há futuro para quem foi reduzido ao hoje. Se a maior parte da população está na condição de matável e de morrível —e isso nunca mudou, nem nos melhores anos do governo Lula—, qual é a surpresa no fato de que os 100.000 mortos não impactem negativamente na aprovação de Bolsonaro e que os 600 reais impactem positivamente? De novo, quem são os burros e os mal-informados?
Neste momento, há um debate sobre as variáveis. Bolsonaro cada vez mais se descola da agenda neoliberal de Paulo Guedes, com a qual de fato nunca se importou, era apenas seu passaporte para ter o apoio dos representantes do que chamam de “mercado” na eleição. Rifou meses antes Sergio Moro e a classe média que ele representava, isso quando o próprio Moro já tinha rifado antes sua reputação e levado para o esgoto um pedaço da Operação Lava Jato. A Bolsonaro interessa o poder e a proteção da sua família. E se o poder é o único princípio, nenhum problema em se unir ao Centrão no momento em que se vê acuado pela aproximação cada vez maior das investigações envolvendo Fabrício Queiroz, as rachadinhas no gabinete do filho zeroum e o envolvimento com as milícias do Rio. Há chances consideráveis de que em algum momento próximo Bolsonaro possa mesmo rifar Guedes e se tornar o novo pai dos pobres, fazendo a migração do auxílio emergencial para o Renda Brasil, mirando seus dedos de arminha na reeleição de 2022.
E a oposição? Bem, é preciso entender que quem fez a oposição mais efetiva à extrema direita de Bolsonaro foi a direita. O presidente do Câmara, Rodrigo Maia (DEM), assim como governadores até ontem aliados, como João Doria (PSDB), em São Paulo, e Wilson Witzel (PSC), no Rio de Janeiro. Hoje, com Bolsonaro fazendo os giros necessários para agradar a uma parcela dessa direita, Rodrigo Maia está confortavelmente sentado sobre a pilha de quase 60 pedidos de impeachment e chegou a dizer em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que não vê Bolsonaro praticando crime nenhum que justifique a abertura de processo de impedimento no Congresso.
No Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o ministro mais ligado à política partidária de direita e de centro-direita, passou meses batendo duramente no governo. Recentemente, alertou os generais de Bolsonaro sobre o risco de serem atingidos por denúncias de genocídio relacionadas à atuação deliberadamente catastrófica do Governo na covid-19. Dias atrás, porém, assinou uma decisão liminar considerando que Fabrício Queiroz, ex-PM e assessor do senador Flávio Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, têm o direito de cumprir prisão em casa em vez de na cadeia. Decisão bastante incomum dada a trajetória do casal, ele escondido por meses e ela foragida. Por coincidência —ou não—, a decisão vem num momento em que as investigações por corrupção e envolvimento com milícias chegam mais perto de Bolsonaro, mas ele faz acenos a partidos como o MDB de Michel Temer, seu mais recente conselheiro, que chegou a ser enviado em missão oficial ao Líbano pelo novo amigo.
E a esquerda partidária? Esta não conseguiu fazer oposição efetiva até hoje. Enquanto parte da direita dá sinais de estar se acertando com a extrema direita bolsonarista, o PT não consegue se acertar com a esquerda nem para disputar a Prefeitura de São Paulo nas próximas eleições municipais. Com a ameaça de o Renda Brasil substituir o Bolsa Família na memória da população, os petistas se moveram para estimular a memória do povo. A realidade mostra, porém, que memória curta é questão de sobrevivência para grande parte da população. Num país em que uma renda de 600 reais por mês é a maior alcançada por dezenas de milhões de pessoas numa vida inteira, o que se pode esperar? Vivem como se não houvesse amanhã porque há mesmo grandes chances de não haver.
Se a direita se acertar com a extrema direita, ainda que momentaneamente, o Brasil vai viver uma situação inédita: no pior Governo da história da República, com quatro petições por crimes contra a humanidade perpetrados por Bolsonaro no TPI e mais de 110.000 mortos de covid-19 não haverá nenhuma oposição partidária. Sim, porque a esquerda está ocupada brigando entre si e fazendo oposição a si mesma.
Quando uma parte significativa da população aprova Bolsonaro e diz que ele não tem culpa nenhuma pela covid-19, essa parcela está fazendo a única política que conhece. Graças a essa adesão, Bolsonaro vislumbrou um caminho para ser reeleito e, pela primeira vez, cogita garantir sua popularidade distribuindo renda para os mais pobres. Justo ele, que foi o único presidente da redemocratização que não citou a redução da pobreza num discurso de posse, está revendo sua posição. Quem conseguiu esse feito? Não foi a oposição nem foi a esquerda. De novo e pela última vez: quem são os burros e os mal-informados?
É claro que se trata de Bolsonaro. Se ele vislumbrar outro caminho para garantir a reeleição, salvar sua família —e a si mesmo— das investigações ou para consumar o golpe de forma mais clássica, o Renda Brasil pode desaparecer do horizonte das possibilidades em um segundo. Da mesma forma, se ele mudar de conveniência, os novos amigos podem virar inimigos de novo em menos de 24 horas. No momento, porém, sem combinar entre si, mas combinados pela experiência dos séculos, os que só têm o dia de hoje para viver elogiam o coronel da ocasião, neste caso um capitão reformado que gosta de armas e de bombas, e o absolvem de todos os pecados. Esse cenário de adesão também pode mudar da noite para o dia, caso não exista algum tipo de continuidade do auxílio emergencial.
O mais surpreendente na pesquisa do Datafolha é justamente o outro lado: que, neste Brasil precarizado e povoado por desesperados, 52% da população ache que Bolsonaro tem alguma culpa pelos 100.000 mortos —a maioria— ou toda a culpa —uma minoria. Sinal de que as forças emergentes dos Brasis que seguem avançando pelas fissuras e pelas bordas têm se movido —e muito— por um país em que futuro não seja coisa de rico. Sinal também de que há muitos entre os mais pobres que, contra todas as estatísticas, se recusam a seguir reduzidos à exaustão dos corpos e vêm lutando ferozmente pelo exercício da solidariedade, pela responsabilidade coletiva e pelo direito ao futuro. E esta é uma notícia incrível, que aponta para a resistência.
Ainda um acréscimo: para quem chama os bolsonaristas e também os brasileiros pobres, que neste momento aprovam Bolsonaro, de “gado humano”, um aviso. A boiada, quando é brutalmente empurrada para o matadouro, sofre horrores, esperneia, os olhos parecem saltar das órbitas, se mija de pavor. Tenta desesperadamente escapar.
O mundo tem uma pessoa bilionária para cada 3,7 milhões de outras. No Brasil, segundo o último ranking da Forbes, há 45 pessoas bilionárias. Quarenta e cinco. Enquanto isso, a metade mais pobre da população brasileira, cerca de 104 milhões de pessoas, vivia em 2018 com 413 reais de renda mensal. Não há futuro para a maioria com essa desigualdade monstruosa. Só um presente vergonhosamente precário. E o presente vergonhosamente precário é, neste momento, ainda absurdamente precário, mas menos precário com o auxílio emergencial de 600 reais —composto por recursos públicos, mas interpretado como uma benemerência de Bolsonaro.
A redução da miséria e da pobreza, conquistada nos anos dos Governos do PT (e, antes dele, em níveis consideravelmente menores, nos governos do PSDB de FHC), foi imensamente importante, mas suficiente apenas para reduzir a fome e garantir melhorias pontuais, como acesso a bens básicos como geladeira e fogão. Isso, é necessário assinalar, não é pouca coisa. A questão, que já era apontada na primeira década deste século, é que jamais foi suficiente para criar cidadãos, no sentido daquilo que é definido como sujeitos de direitos. Para criar cidadãos é necessário reduzir a desigualdade, o que nunca foi feito de forma significativa no Brasil.
Para diminuir a desigualdade é preciso fazer mudanças estruturais capazes de reduzir os privilégios da minoria mais rica e taxar pesadamente as grandes fortunas. Só assim se garante uma redistribuição mais igualitária da riqueza existente. O Governo mais próximo de um ideário social de esquerda no Brasil, o de Lula, era um governo de conciliação. Lula e principalmente Dilma Rousseff sacrificaram a Amazônia e o Cerrado, assim como bandeiras históricas como a da reforma agrária, para garantir a massiva exportação de matérias-primas durante um momento de crescimento da economia global, especialmente da China. Era a fórmula —limitada, como se viu— para os pobres ficarem menos pobres e, ao mesmo tempo, os ricos mais ricos.
Há muitas definições de cidadania. Eu gosto daquela que define o cidadão como aquele que pode ter a certeza do básico —alimentação, transporte, saúde e educação— e então pode ser capaz de imaginar e criar futuros onde quer viver porque o seu tempo não é devorado pela estrita manutenção do corpo, mas para desenvolver seu potencial para a ampliação do bem comum. Se o mundo é hoje extremamente desigual, o Brasil, com seu tamanho continental e 210 milhões de habitantes, é o exemplo mais eloquente da violência representada pelo sequestro do futuro da maioria da população, reduzida ao esgotamento cotidiano dos corpos para manter-se respirando.
Diante das condições de vida absolutamente precárias da maioria dos brasileiros e do súbito aumento da renda com o auxílio emergencial, o surpreendente não é que a aprovação de Bolsonaro suba durante a pandemia. O surpreendente é que isso seja uma surpresa. Se a reação previsível e lógica dos mais pobres é uma surpresa para parte da população, especialmente no campo da esquerda, quem então são os burros e os mal-informados sobre o que se passa no país?
O boicote intencional de Bolsonaro ao enfrentamento da covid-19 pode ser comprovado por atos documentados no Diário Oficial da União, além de uma comunicação feita deliberadamente para desinformar a população. As pesquisas também provam que são os mais pobres, e a maioria dos mais pobres no Brasil é negra, que morrem mais de covid-19. No Campo Limpo, um dos bairros com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixos de São Paulo, a letalidade da covid-19 por 100.000 habitantes é altíssima —52%. Já nos bairros mais ricos, com IDH mais alto, como Pinheiros, a taxa é de 5%. Na maior cidade do Brasil, há 10 vezes mais letalidade por covid-19 nos bairros mais pobres quando comparados aos mais ricos.
Como então é possível que a melhoria nos índices de aprovação do antipresidente seja justamente puxada pelos mais pobres? A resposta também pode ser buscada na precarização da vida. O que chamamos de povo brasileiro é composto, em sua maioria, por pessoas que só vivem porque teimam. A história do Brasil é uma trajetória de espoliação de matérias-primas extraídas da natureza e, no caso da maioria da população, de corpos escravizados e depois brutalmente explorados. O que se transmite de pai e mãe para filhos e filhas é que a sobrevivência não é garantida, ela é arrancada. A morte é normalizada.
A história das famílias mais pobres é uma história em que os filhos mortos são contados junto com os vivos. As mulheres sabem que parte da sua prole pode morrer pelas condições precárias da vida, pela falta de acesso à saúde, à água, a saneamento básico e também a alimentos. Também sabem que morrer por violência é uma probabilidade, especialmente se seu filho for negro, seja pelas balas da polícia, da milícia ou por assalto. Há periferias do Brasil em que você pode bater aleatoriamente em uma fileira de portas e todos terão uma morte ou mais para contar, por violência e/ou por falta de condições de saúde.
A tragédia crônica do Brasil é ter um povo para quem a morte por doenças evitáveis e por violência é normalizada porque foram colocados na condição de matáveis e de morríveis desde a formação do país. Não é um povo, é uma massa de desesperados extremamente criativos que vem resistindo há séculos contra todas as formas de extermínio.
O que quero explicitar é que os brasileiros mais pobres vivem sujeitados a aceitar a perda dos que amam. Esta é uma das faces mais horrendas da desigualdade, mas o horror desta face nunca a impediu de ser aceita como normal, em especial pelos mais ricos, inclusive os que se consideram classe média. Neste sentido, a covid-19 é mais uma forma de morte. Se as outras mortes não são evitadas, por que esperar que um governante evitasse esta?
Para suportar o horror de estar na condição dos que podem morrer por aquilo que não mata os brancos e os mais ricos —ou pelo menos que mata muito menos os brancos e os mais ricos—, uma parcela significativa dos brasileiros atribui seu destino à vontade divina. Pelo menos, neste caso, podem rezar, pagar o dízimo para o pastor, tentar reverter o destino ou, pelo menos, encontrar um sentido para suas tantas perdas numa vontade superior. Numa realidade que parece imutável, o que não se pode entender, como a vontade de um deus, pode ser mais suportável do que a explicação de que a sua vida pouco importa para quem tem seu destino terreno nas mãos.
Assim, a covid-19, tanto quanto as outras doenças, também é considerada culpa de ninguém. Nem mesmo de Bolsonaro, apesar dos seus vômitos públicos de irresponsabilidade. O “E daí?” de Bolsonaro é apenas um degrau a mais, por ter sido dito em voz alta, para o grande “e daí?” histórico, permanente e persistente vivido pelos mais pobres ao longo de gerações e de Governos. Para alguns fiéis de determinadas igrejas neopentecostais, pragas do gênero já estão inclusive previstas na Bíblia. As doenças são em geral uma alegoria com muita ressonância numa população cada vez mais evangélica. A pergunta do Datafolha pode nem fazer muito sentido para uma parcela da população: como assim um presidente vai ter culpa por uma doença? Doença acontece, é fatalidade, quando não enviada por Deus para castigar a imoralidade reinante.
Isso é ignorância? Pode ser. Mas é principalmente sobrevivência, inclusive psicológica. Se você aceitou que a perda e a morte fazem parte do seu lugar no mundo, como fizeram parte antes do destino de seus pais e avós, o que importa é garantir a comida, o gás, o puxadinho para quem sobrar. Garantir os 600 reais. E quando os 600 reais acabarem? O amanhã é longe. Não há futuro para quem foi reduzido ao hoje. Se a maior parte da população está na condição de matável e de morrível —e isso nunca mudou, nem nos melhores anos do governo Lula—, qual é a surpresa no fato de que os 100.000 mortos não impactem negativamente na aprovação de Bolsonaro e que os 600 reais impactem positivamente? De novo, quem são os burros e os mal-informados?
Neste momento, há um debate sobre as variáveis. Bolsonaro cada vez mais se descola da agenda neoliberal de Paulo Guedes, com a qual de fato nunca se importou, era apenas seu passaporte para ter o apoio dos representantes do que chamam de “mercado” na eleição. Rifou meses antes Sergio Moro e a classe média que ele representava, isso quando o próprio Moro já tinha rifado antes sua reputação e levado para o esgoto um pedaço da Operação Lava Jato. A Bolsonaro interessa o poder e a proteção da sua família. E se o poder é o único princípio, nenhum problema em se unir ao Centrão no momento em que se vê acuado pela aproximação cada vez maior das investigações envolvendo Fabrício Queiroz, as rachadinhas no gabinete do filho zeroum e o envolvimento com as milícias do Rio. Há chances consideráveis de que em algum momento próximo Bolsonaro possa mesmo rifar Guedes e se tornar o novo pai dos pobres, fazendo a migração do auxílio emergencial para o Renda Brasil, mirando seus dedos de arminha na reeleição de 2022.
E a oposição? Bem, é preciso entender que quem fez a oposição mais efetiva à extrema direita de Bolsonaro foi a direita. O presidente do Câmara, Rodrigo Maia (DEM), assim como governadores até ontem aliados, como João Doria (PSDB), em São Paulo, e Wilson Witzel (PSC), no Rio de Janeiro. Hoje, com Bolsonaro fazendo os giros necessários para agradar a uma parcela dessa direita, Rodrigo Maia está confortavelmente sentado sobre a pilha de quase 60 pedidos de impeachment e chegou a dizer em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que não vê Bolsonaro praticando crime nenhum que justifique a abertura de processo de impedimento no Congresso.
No Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o ministro mais ligado à política partidária de direita e de centro-direita, passou meses batendo duramente no governo. Recentemente, alertou os generais de Bolsonaro sobre o risco de serem atingidos por denúncias de genocídio relacionadas à atuação deliberadamente catastrófica do Governo na covid-19. Dias atrás, porém, assinou uma decisão liminar considerando que Fabrício Queiroz, ex-PM e assessor do senador Flávio Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, têm o direito de cumprir prisão em casa em vez de na cadeia. Decisão bastante incomum dada a trajetória do casal, ele escondido por meses e ela foragida. Por coincidência —ou não—, a decisão vem num momento em que as investigações por corrupção e envolvimento com milícias chegam mais perto de Bolsonaro, mas ele faz acenos a partidos como o MDB de Michel Temer, seu mais recente conselheiro, que chegou a ser enviado em missão oficial ao Líbano pelo novo amigo.
E a esquerda partidária? Esta não conseguiu fazer oposição efetiva até hoje. Enquanto parte da direita dá sinais de estar se acertando com a extrema direita bolsonarista, o PT não consegue se acertar com a esquerda nem para disputar a Prefeitura de São Paulo nas próximas eleições municipais. Com a ameaça de o Renda Brasil substituir o Bolsa Família na memória da população, os petistas se moveram para estimular a memória do povo. A realidade mostra, porém, que memória curta é questão de sobrevivência para grande parte da população. Num país em que uma renda de 600 reais por mês é a maior alcançada por dezenas de milhões de pessoas numa vida inteira, o que se pode esperar? Vivem como se não houvesse amanhã porque há mesmo grandes chances de não haver.
Se a direita se acertar com a extrema direita, ainda que momentaneamente, o Brasil vai viver uma situação inédita: no pior Governo da história da República, com quatro petições por crimes contra a humanidade perpetrados por Bolsonaro no TPI e mais de 110.000 mortos de covid-19 não haverá nenhuma oposição partidária. Sim, porque a esquerda está ocupada brigando entre si e fazendo oposição a si mesma.
Quando uma parte significativa da população aprova Bolsonaro e diz que ele não tem culpa nenhuma pela covid-19, essa parcela está fazendo a única política que conhece. Graças a essa adesão, Bolsonaro vislumbrou um caminho para ser reeleito e, pela primeira vez, cogita garantir sua popularidade distribuindo renda para os mais pobres. Justo ele, que foi o único presidente da redemocratização que não citou a redução da pobreza num discurso de posse, está revendo sua posição. Quem conseguiu esse feito? Não foi a oposição nem foi a esquerda. De novo e pela última vez: quem são os burros e os mal-informados?
É claro que se trata de Bolsonaro. Se ele vislumbrar outro caminho para garantir a reeleição, salvar sua família —e a si mesmo— das investigações ou para consumar o golpe de forma mais clássica, o Renda Brasil pode desaparecer do horizonte das possibilidades em um segundo. Da mesma forma, se ele mudar de conveniência, os novos amigos podem virar inimigos de novo em menos de 24 horas. No momento, porém, sem combinar entre si, mas combinados pela experiência dos séculos, os que só têm o dia de hoje para viver elogiam o coronel da ocasião, neste caso um capitão reformado que gosta de armas e de bombas, e o absolvem de todos os pecados. Esse cenário de adesão também pode mudar da noite para o dia, caso não exista algum tipo de continuidade do auxílio emergencial.
O mais surpreendente na pesquisa do Datafolha é justamente o outro lado: que, neste Brasil precarizado e povoado por desesperados, 52% da população ache que Bolsonaro tem alguma culpa pelos 100.000 mortos —a maioria— ou toda a culpa —uma minoria. Sinal de que as forças emergentes dos Brasis que seguem avançando pelas fissuras e pelas bordas têm se movido —e muito— por um país em que futuro não seja coisa de rico. Sinal também de que há muitos entre os mais pobres que, contra todas as estatísticas, se recusam a seguir reduzidos à exaustão dos corpos e vêm lutando ferozmente pelo exercício da solidariedade, pela responsabilidade coletiva e pelo direito ao futuro. E esta é uma notícia incrível, que aponta para a resistência.
Ainda um acréscimo: para quem chama os bolsonaristas e também os brasileiros pobres, que neste momento aprovam Bolsonaro, de “gado humano”, um aviso. A boiada, quando é brutalmente empurrada para o matadouro, sofre horrores, esperneia, os olhos parecem saltar das órbitas, se mija de pavor. Tenta desesperadamente escapar.
O que pode salvar o Rio e o Brasil
O telejornal Bom Dia Rio abre minhas manhãs quando quero me informar sobre a cidade e o estado. As notícias exigem estômago forte no desjejum. Fachel, o apresentador, se indigna, cobra, se solidariza com o povo. As denúncias, em cascata pestilenta, obrigam autoridades a se pronunciar. Não conheço bom dia assim em cidade nenhuma do mundo. Vamos rever os destaques.
Preso homem acusado de agredir modelo trans. Lucas Brito Marques, de 24 anos, conheceu a modelo num bar em Copacabana, foram para a casa dela e ali começaram as agressões. Ela ficou com o rosto desfigurado, fratura no maxilar e no nariz, hematomas. Lucas também roubou dinheiro da modelo.
Filha descobre que pai internado com suspeita de coronavírus no Hospital Salgado Filho morreu há 50 dias e já foi até enterrado. Família diz que recebia mensagens do hospital de que o pai estava bem e estável. “Meu pai morreu no dia primeiro de julho e foi enterrado no dia 5 de agosto. Quem enterrou? Como enterrou, se os documentos dele estão comigo?”. O hospital diz que mandou telegrama para a família.
Rapaz se queixa de que o tio morreu de AVC no Salgado Filho e a família só foi informada no dia seguinte. “Só agora estou recebendo a notícia da morte de meu tio, que ficou numa gaveta dois dias. A partir do momento em que alguém entra naquela porta (de emergência), nós não temos mais informação. Isso é um absurdo. É revoltante. Paciente tem uma família. Cada um desses brasileiros tem família. E a vida de cada um importa sim”.
Família de bebê de seis meses, em tratamento de meningite no Hospital Getulinho, em Niterói, diz que a criança sofreu queimaduras dentro do hospital. As imagens chocam. A mãe foi avisada por uma amiga de que havia algo errado com a filhinha Juliana. “Vi que ela estava toda enfaixada. Perguntei a um e outro, ninguém falava. Um disse que eram umas bolhas que foram se alastrando. Aí a médica de plantão disse que contaram uma história bizarra, foi na hora do banho”.
Do hospital vamos para a favela. Repórter: “A gente está sobrevoando Parque das Missões, em Duque de Caxias. Pessoal acordando, saindo para trabalhar. Olha o que o morador encontra no caminho até o ponto de ônibus. Barricadas e homens fortemente armados com fuzis, armas de guerra, só o porte já é considerado crime hediondo. Veja o rapaz à direita do vídeo. E não tem operação policial. Virou rotina”. Fachel: “Ao cidadão desavisado, prazer, Rio de Janeiro, prazer, cidadão. Não é só Pão de Açúcar, Cristo Redentor, calçadão de Copacabana. Essa é a parte do cartãozinho postal. Rio de Janeiro verdadeiro é isso aí. Todo dia na tela do Bom Dia Rio”.
Idoso preso por pedofilia. Homem de 65 anos organizava orgias com menores. Repórter: “Roberto Sardinha Oliveira foi preso em Campo Grande. Num imóvel em que funcionava um bar. Ele aliciava crianças para praticar relações sexuais em troca de presentes, roupas e dinheiro. Preso em flagrante com uma menina de 13 anos”.
Homem de 60 anos preso por estuprar menina de 7 anos em Guaratiba. Era o marido da avó da menina. A cena de sexo oral foi flagrada pelo tio. O estuprador negou, disse que a menina escorregou e a cena “acabou acontecendo”. Quem denunciou foi a mãe. Repórter: “Chega a ser difícil noticiar um caso assim tão bárbaro mas isso é crime muito grave”.
Volta às aulas. Governo do estado já decidiu: rede particular retorna 14 de setembro e pública em 5 de outubro. Pais e professores acham prematura a reabertura. Infectologista alerta que a letalidade no Rio, 86 mortos por 100 mil, é uma das maiores do mundo. “O Rio nunca fez o isolamento social necessário. É ilusão começar a comemorar, porque o patamar de contaminados e mortos só caiu de muito alto para alto”. Na China, a letalidade é de 0,40 por 100 mil e no Rio, 86 por 100 mil!
Fraude no auxílio emergencial em Campos. Repórter: “Um condenado por tráfico de drogas, preso, já está na quarta parcela do auxílio. Outro, preso por homicídio, recebeu a segunda parcela”. Vinte e sete mil foragidos, condenados por roubos e homicídios, receberam o benefício da pandemia. Um prejuízo mensal de R$ 26 milhões para o povo.
E ... para terminar... cadê o drone? O Hotel Copacabana Palace reabre com medidas de segurança, higiene. Luxo top no hotel das estrelas.
Tá tudo errado, gente. Vamos zerar e recomeçar. Que tal uma oposição decente, séria e comprometida? Até os Estados Unidos do abominável Trump têm os democratas Biden e Kamala, apoiados pelo casal Obama e por republicanos antitrumpistas. Que inveja da consciência civil dos americanos. O joelho assassino de um policial no pescoço de um negro provoca a insurreição que o mundo viu. E aqui, nada.
Em nenhum lugar do mundo vejo esse desfile diário de horrores cotidianos. E olha, não adianta desligar a TV. O Bom Dia Rio é realidade na veia. Não só do Rio, mas de todo o Brasil. Tem saída? Sim. Passa por Educação e Saúde, não pelo Ministério da Defesa. Passa por saneamento, infraestrutura, arte e cultura, democratização da tecnologia. Não por mordomias imorais nos Três Poderes. Nossa guerra é pela dignidade de crianças e velhos. Só não enxerga quem não quer mesmo ver. Essa é a nossa única salvação. Vade retro, Damares.
Achamos que caetanear nos redime. É lindo, é odara, eu queria viver no Brasil do Caetano, mas é só uma bolha. Esse país estapeia e desfigura nossa cara. Todo dia. Vamos deixar?
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