quinta-feira, 14 de julho de 2022

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro e sua teia de fisiologismo blindado

O envio atabalhoado da PEC do desespero pelo governo ao Congresso Nacional escancara, sem nenhum traço de vergonha, as tentativas de última hora de um candidato que deixa transparecer sua aflição com a proximidade das eleições. As pesquisas de opinião e de intenção de voto insistem em colocar Lula no primeiro lugar da preferência do eleitorado, inclusive apontando a possibilidade de que a disputa para a Presidência da República se resolva já no primeiro turno.

O movimento de Bolsonaro em direção ao colo do Centrão já vem de muito tempo atrás. Começou com a campanha explícita que o ocupante do Palácio do Planalto fez a favor dos candidatos ao comando da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Ele foi vitorioso com a chegada de Arthur Lira (PP/AL) e Rodrigo Pacheco (DEM/MG) à presidência das duas casas do Legislativo no início de 2021. Em seguida, ofereceu o principal cargo de seu ministério a Ciro Nogueira (PP/PI), expoente máximo do fisiologismo, que passou a dirigir a Casa Civil em julho do ano passado. Ao jogar na lata do lixo sua falaciosa promessa de levar a cabo uma “nova forma de fazer política”, Bolsonaro joga as suas fichas na busca de alguma capacidade de sobrevivência até o começo de outubro, tentando criar condições de levar o pleito para ser definido no último domingo daquele mês.


A aliança com os personagens políticos do Centrão pressupõe uma relação de dependência mútua. Os parlamentares exigem verbas, cargos e outras benesses, em troca de oferecer ao governo alguma garantia de tranquilidade na aprovação de medidas de interesse do mesmo no Congresso Nacional. Além disso, parece óbvio, é de se imaginar que haja algum tipo de engajamento na campanha do candidato à reeleição presidencial. Ocorre que nem mesmo essa contrapartida está plenamente assegurada, uma vez que Lula apresenta uma vantagem considerável nos estados do Nordeste, por exemplo. Assim, espera-se algum grau de traição, uma vez que o perfil do político profissional fisiológico não bate muito com alguém disposto a cumprir os acordos para caminhar rumo a uma provável derrota nas urnas.


O Centrão é bastante conhecido em sua preferência por governos fracos e encurralados, pois assim consegue aumentar os preços por seu apoio no mercado secundário das trocas fisiológicas. No caso atual, o grupo conseguiu articular a mais completa apropriação privada de recursos públicos às escuras de que se tem conhecimento na história republicana. A novidade veio sob sob a denominação genérica de Orçamento Secreto. A disputa sobre o comando dos valores orçamentários teve um de seus primeiros arranjos mais “profissionais” de assalto ao fundo público logo depois da aprovação da nova Constituição. Ao longo da primeira metade da década de 1990, em meio ao processo de impeachment de Fernando Collor, foi denunciado o chamado “escândalo dos anões do Orçamento”. Mas, desde então, pouca coisa mudou na essência das transações. Apenas tratou-se de aperfeiçoar e tornar mais sofisticados os instrumentos para viabilizar os desvios.

Os parlamentares mais marcados por sua ganância em aprovar emendas destinadas a despesas em suas áreas de atuação e dispostos a negociar seu poder de influência na tramitação da matéria orçamentária passaram a disputar com maior vigor os cargos na poderosa Comissão Mista do Orçamento (CMO) do Congresso Nacional. Composta por integrantes da Câmara e do Senado, o colegiado elege um presidente e um relator, bem como sub-relatores temáticos e regionais. Afinal, os valores trilionários das rubricas a serem aprovadas chamam a atenção e atiçam o apetite dos mais gulosos. A peça de 2022, por exemplo, apresenta um total de R$ 5 trilhões de despesas. A criatividade dos malfeitores deve se restringir a alguns itens desse total, mas ainda assim não se deve subestimar, por exemplo, os quase R$ 2 trilhões que compõem apenas o Orçamento Fiscal.

Como a dinâmica de tramitação e aprovação da Lei Orçamentária é longa e complexa, o fato concreto é que a figura do relator da matéria acabou concentrando um grande poder de decisão em suas próprias mãos. Com o aprofundamento da política de austeridade fiscal ao longo dos últimos 20 anos, o foco passou a se concentrar nas emendas parlamentares. Havia um acordo implícito de que o Executivo não contingenciaria nem deixaria de executar/repassar os valores para esse tipo de despesa. Havia as emendas individuais e as emendas de bancada (temática ou regional), onde os interesses paroquiais dos parlamentares eram bastante contemplados.

Mas a entrada em cena da aliança do bolsonarismo com o fisiologismo, em ambiente de maior austeridade no controle de gastos comandada por Paulo Guedes e sob a ameaça do EC nº 95, permitiu um salto de qualidade no assalto aos cofres públicos. Dessa forma, entrou em cena a novidade das tais “Emendas do Relator”, não mais sujeitas aos limites de valores impostos às demais emendas. O ambiente era de uma intensa negociação de bastidores para que o responsável pelo comando das emendas apresentasse em seu nome valores bilionários para seus correligionários. Desnecessário dizer quais eram os mais bem agraciados nessa partilha do butim, a partir da aceitação da prática de tais emendas que, além de tudo, passaram a ser secretas desde 2021. Com o aval do próprio Supremo Tribunal Federal (STF) para legitimar o novo fenômeno, nada mais poderia ser feito para evitar o escândalo.

Na verdade, a busca pela garantia de um carimbo de “secreto” para as destinações, os valores, os autores e os beneficiários de tais emendas já porta consigo mesmo o manto da suspeição. Não existe nenhuma razão aceitável que possa justificar essa tentativa de impedir que a opinião pública, as forças políticas e as instituições de forma geral tenham acesso livre a esse tipo de informação, que deveria ser transparente. Se não desejam que as emendas sejam de conhecimento público é porque existe algum tipo de transação irregular, imoral, antiética ou mesmo ilegal por trás das mesmas.

Historicamente, a ideia de atribuir ao parlamento o poder de compartilhar com o Poder Executivo as decisões respeito do orçamento público vem das origens da monarquia britânica. Em resposta à tirania dos reis em impor tributos e alocar os recursos ao seu bel prazer, cria-se um movimento para que um outro poder, legislativo no caso, também tivesse presença e participação nesse processo. Ao longo dos séculos e dos continentes, as diferentes experiências de preparação, de votação e de execução dos orçamentos nacionais sempre foram objeto de polêmica e disputa política. Mas, no caso brasileiro atual, o cenário é que uma parte do Poder Legislativo tenta arvorar para si o direito de estabelecer as prioridades, sem nem mesmo prestar contas à sociedade do tipo de destino que pretende oferecer aos valores do orçamento público. Uma completa inversão de valores e de ausência de legitimidade.

Na verdade, esse tipo de prática combina de forma cristalina com as orientações oferecidas por Bolsonaro para os malfeitos de seu próprio governo. Ao recuperar as origens dos tiranos absolutistas do “o Estado sou eu” e “depois de mim, o dilúvio”, o aspirante a ditador tupiniquim pretende esconder dos registros da História os atos promovidos por ele e por sua “famiglia” ao longo dos quatro anos de exercício de seu mandato. Foi assim que passou a ser uma rotina, tragicamente normalizada pelos grandes meios de comunicação, a classificação como sendo de “sigilo oficial por 100 anos” atos e decisões de rotina de seu governo.

A lista de fatos classificados com tal impedimento de acesso público é longa:

i) nomes de servidores que postavam nas contas de redes sociais de Bolosonaro;

ii) cartão de vacinação de Bolsonaro;

iii) participação do ex-Ministro da Saúde General Pazzuelo em ato partidário;

iv) acesso dos filhos Carlos e Eduardo ao Palácio do Planalto;

v) matrícula da filha em Colégio Militar em Brasília;

vi) reuniões com pastores – escândalo do MEC.
Decretos: revogar o sigilo centenário

Bolsonaro citou a Lei de Acesso à Informação para editar tais decretos e buscar refúgio na revelação de atividades ilegais. No entanto, a própria legislação citada não autoriza esse tipo de imposição de sigilo, a não ser em casos em que seja considerado “imprescindível à segurança da sociedade ou do Estado” (art. 23). Nas situações envolvendo o próprio Chefe do Executivo ou seus familiares, o texto estabelece que “as informações que puderem colocar em risco a segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição”. (art. 24). Ou seja, jamais se aplicaria o segredo centenário a tais casos.

Lula já foi aconselhado por sua assessoria jurídica a esse respeito e afirmou que não vai manter tais decretos, claramente inconstitucionais. Sigilo de 100 anos e segredo para as emendas bilionárias dos parlamentares são compostos do mesmo material genético. Ambas as práticas deveriam ser revogadas em um cenário onde o Brasil que tenha retornado ao trilho da democracia e da soberania popular.

O receio de ser derrotado nas eleições – e com isso perder o foro privilegiado – parece estar atormentando as noites de insônia do candidato à reeleição. O receio de verem desnudadas as tenebrosas transações envolvendo o mau uso dos recursos públicos parecem também perturbar o sono dos parlamentares. Assim, tantos uns quanto o outro, recorrem ao artifício antirrepublicano e antidemocrático do carimbo do sigilo centenário.

Enfim, tudo isso evidencia que bolsonarismo e fisiologismo se merecem. São feitos da mesma matéria putrefata, que tanto mal tem causado ao Brasil e ao seu povo. Outubro vem aí e as oportunidades de dar um basta a esse quadriênio desastroso estão ao nosso alcance. Os obstáculos ainda são muitos e o grupo que se encastelou no poder e dele se beneficiou desde o início de 2019 não vai devolver a faixa de forma tranquila. Tão ou mais difícil do que ganhar nas urnas, vai ser assegurar a posse de Lula. E daí, só a partir de então, é que terá início uma outra empreitada ainda mais complexa. Trata-se de reconstruir tudo aquilo que foi posto abaixo e unir a maioria da nação em torno de um projeto de desenvolvimento social, econômico e ambiental que todos almejamos e merecemos.

Bilhete a um candidato

“Olhe aqui, Rubem. Para ser eleito vereador, eu preciso de três mil votos. Só lá no Jockey, entre tratadores, jóqueis, empregados e sócios eu tenho, no mínimo mesmo, trezentos votos certos; vamos botar mais cem na Hípica, bem, quatrocentos. Pessoal de meu clube, o Botafogo, calculando com o máximo de pessimismo, seiscentos. Aí já estão mil.


“Entre colegas de turma e de repartição contei, seguros, duzentos; vamos dizer, cem. Naquela fábrica da Gávea, você sabe, eu estou com tudo na mão, porque tenho apoio por baixo e por cima, inclusive dos comunas; pelo menos oitocentos votos certos, mas vamos dizer, quatrocentos. Já são mil e quinhentos.

“Em Vila Isabel minha sogra é uma potência, porque essas coisas de igreja e caridade tudo lá é com ela. Quer saber de uma coisa? Só na Vila eu já tenho a eleição garantida, mas vamos botar: quinhentos. Aí já estão, contando miseravelmente, mas mi-se-ra-vel-men-te, dois mil. Agora você calcule: Tuizinho no Méier, sabe que ele é médico dos pobres, é um sujeito que se quisesse entrar na política acabava senador só com o voto da zona norte; e é todo meu, batata, cem por cento, vai me dar pelo menos mil votos. Você veja, poxa, eu estou eleito sem contar mais nada, sem falar no pessoal do cais do porto, nem postalistas, nem professoras primárias, que só aí, só de professoras, vai ser um xuá, você sabe que minha mãe e minha tia são diretoras de grupo. Agora bote choferes, garçons, a turma do clube de xadrez e a colônia pernambucana como é que é!

“E o Centro Filatelista? Sabe quantos filatelistas tem só no Rio de Janeiro? Mais de quatro mil! E nesse setor não tem graça, o papai aqui está sozinho! É como diz o Gonçalves: sou o candidato do olho-de-boi!

“E fora disso, quanta coisa! Diretor de centro espírita, tenho dois. E o eleitorado independente? E não falei do meu bairro, poxa, não falei de Copacabana, você precisa ver como é la em casa, o telefone não para de tocar, todo mundo pedindo cédula, cédula, até sujeitos que eu não vejo há mais de dez anos. E a turma da Equitativa? O Fernandão garante que só lá tenho pelo menos trezentos votos. E o Resseguro, e o reduto do Goulart em Maria da Graça, o pessoal do fórum… Olhe, meu filho, estou convencido de que fiz uma grande besteira: eu devia ter saído era para deputado!”

Passei uma semana sem ver meu amigo candidato; no dia 30 de setembro, três dias antes das eleições, esbarrei com ele na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, todo vibrante, cercado de amigos; deu-me um abraço formidável e me apresentou ao pessoal: “este aqui é meu, de cabresto!”

Atulhou-me de cédulas.

Meu caro candidato:

Você deve ter notado que na 122ª seção da quinta zona, onde votei, você não teve nenhum voto. Palavra de honra que eu ia votar em você; levei uma cédula no bolso. Mas você estava tão garantido que preferi ajudar outro amigo com meu votinho. Foi o diabo. Tenho a impressão de que os outros eleitores pensaram a mesma coisa, e nessa marcha da apuração, se você chegar a trezentos votos ainda pode se consolar, que muitos outros terão muito menos do que isso. Aliás, quem também estava lá e votou logo depois de mim foi o Gonçalves dos selos.

Sabe uma coisa? Acho que esse negócio de voto secreto no fundo é uma indecência, só serve para ensinar o eleitor a mentir: a eleição é uma grande farsa, pois se o cidadão não pode assumir a responsabilidade de seu próprio voto, de sua opinião pessoal, que porcaria de República é esta?

Vou lhe dizer uma coisa com toda franqueza: foi melhor assim. Melhor para você. Essa nossa Câmara Municipal não era mesmo lugar para um sujeito decente como você. É superdesmoralizada. Pense um pouco e me dará razão. Seu, de cabresto, o Rubem.
Rubem Braga

O país de Bolsonaro

Em 2020, no auge da pandemia sem vacina, sem isolamento e sem controle em seu governo, Jair Bolsonaro declarou que o brasileiro precisava ser estudado. "Ele se joga no esgoto e não pega nada!", ejaculou. A frase nos custou milhares de vidas, mas não seria Bolsonaro a se importar com isso. E eu não diria que o brasileiro deva ser estudado, mas os seguidores dele, sim. Bolsonaro os joga diariamente num esgoto —profissional, financeiro, sanitário, educacional, moral— e eles não pegam nada. Tanto que votarão nele.

Um homem é assassinado pelo ódio político insuflado por Bolsonaro. Bolsonaro, coerente, culpa o assassinado e se solidariza com o assassino. E o irmão do assassinado, que é eleitor de Bolsonaro, não apenas aceita falar com ele ao telefone como afirma que Bolsonaro é contra a violência e não tem nada com o crime. Em que país vive esse sujeito a quem não chegam os discursos de Bolsonaro pregando exatamente o que matou seu irmão?


Em que país vivem seus seguidores, infensos à inflação (nos dois dígitos), ao desemprego (11 milhões de pessoas neste momento), à fome (35 milhões) e à pobreza (63 milhões)? E que país é este, sem corrupção, em que todo o dinheiro roubado no passado virou moeda de troco diante dos R$ 60 bilhões que Bolsonaro já desviou para se reeleger?

Este país é o Brasil, onde, por muito menos, presidentes se mataram com um tiro no peito e foram depostos ou impichados. É o país que, outrora tão vigilante à menor suspeita de subversão, baderna e terrorismo por grupos clandestinos, assiste bovinamente à prática de tudo isso, só que agora pelo próprio Estado. E é o país em que, outro dia mesmo, milhões estavam gritando nas ruas.

Bolsonaro tem razão: o brasileiro precisa ser estudado. Deve ser hoje o único povo do mundo que assiste à demolição de seu país, horária, descarada, em todos os níveis, e fica quieto em casa, se tiver uma.

Pastores na tormenta

A chave do cidadão não está virando bem na fechadura das instituições. A escalada da ambição mundana manipula a fé de forma profana, o Parlamento ludibria a Constituição e a violência começa a visitar as eleições.

Há, no Brasil, uma ordem constitucional que identifica um regime democrático, mas não há uma ordem cultural, um costume provido de um sentimento que caracteriza plenamente a democracia. As elites do poder não se sentem constitucionalmente iguais aos brasileiros, que acabam resignados a Deus-dará.

Políticos, ministros, juízes, procuradores, militares e policiais deveriam cumprir com seu dever atuando nos seus lugares de forma exemplar. Por mais preparados, motivados e articulados que se sintam, não podem seguir impondo doutrina própria, conceitos corporativos, sem conectividade social. O rapapé entre o Executivo e o Legislativo está desconectando a política das regras legais como moinhos viciados que se movimentam pelo vento de si mesmos.

Caneta, arma, querer é poder são falácias de força. Cegueira do topo querer se sustentar tirando a grandeza da posição hierárquica que é respeitada se aceita a contraparte de controle que a limita. Barganha, arbítrio, isso diminui a capacidade de ação democrática ao criar conexões e camuflagem entre governo e oposição.

As leis não são madeira para queimar. A maioria dos empresários e dos trabalhadores clama por um governo estável, amigo de regras, contratos, tratados, acordos à luz do dia. A minoria, amiga do usufruto de governantes, tem sido mais influente e tolera solavancos, as improvisações, pois sua forma de proteção não é a Constituição.

A desinstitucionalização geral é uma das armas combinadas da má-fé, patologia da ambivalência. Faz chantagem com a necessidade social, não apura delitos e projeta um Jesus partidário, sem ênfase poética e espiritual. Carestia, inflação, violência política, improbidade, guerras de religião – o Brasil precisa estar em mãos capazes de tornar as coisas mais bonitas para nosso povo. O mundo do progresso exige um projeto de nação em que o cidadão possa viver segundo suas próprias convicções, sem a defesa violenta de ideias ou a pressão transgressora de ninguém.

Se a Califórnia decide que contra roubo de até US$ 100 a polícia não está autorizada a agir, reconhece o fracasso das políticas de proteção social no país mais rico do mundo. Enquanto isso, aqui, a mistura de religião e política consolida a decadência do Estado Social de que nem mais Deus duvida.


Os erros se agravam quando evangélicos aceitam que o escotismo e o emotivismo interesseiro da política interfiram nas controvérsias morais das igrejas. A política não tem o direito de convocar religiosos como cabos eleitorais e manipular as escolhas espirituais de quem busca suas próprias luzes. Nem tem titularidade para se meter no direito de livre prática da fé para se beneficiar do seu uso como autocracia teológica.

Administrar seus próprios assuntos é o princípio de um sistema justo em que cidadãos livres toleram a objeção de consciência, não aceitam o preconceito nem se acham pessoas especiais, únicas e isoladas. Estados confessionais e governantes que usufruem de igrejas como bureau eleitoral não governam para iguais. A mesma limitação de competência se exige do Estado laico, se quer assegurar a liberdade de crença.

A defesa da equidade dirige-se aos princípios da justiça coletivamente partilhada, e não a discussões sobre verdade e transcendência. Se as premissas da consciência são fundamentadas na fé, as da justiça social o são na evidência, na liberdade e na igualdade. Se um religioso se corrompe e não é atormentado na sua fé, deve estar certo de que só há salvação na sua igreja. Quando enfrenta a doutrina do Estado de Direito, invoca o princípio da tolerância religiosa com um ardil. Advoga que seus fiéis é que devem separar o joio do trigo, pois não pode ser réu quem serviu a um Estado enganadoramente laico.

Melhor confessar, se arrepender. Evite o anátema, pois, neste caso, amar a justiça não significa odiar a Deus. Confie na salvação também fora da igreja.

A igreja reformada deveria estudar melhor a história do protestantismo, as revoltas e os dogmas que o formaram. E reler Martinho Lutero, que dizia que todo homem odeia a verdade, especialmente se diz respeito a ele.

Em todas as religiões ou entre ateus e agnósticos existem cidadãos exemplares. A espiritualidade ajuda muito a maioria das pessoas, a constitucionalidade ajuda todos. A intolerância a artigos de lei enfraquece os argumentos na defesa da tolerância aos artigos de fé.

Quem se acha perfeito costuma exigir pouco de si mesmo. O poder oferece sucessivas distrações, e uma das mais graves diz respeito à confusão entre a ética das relações privadas e a das relações públicas. A ética diz respeito ao ato de fazer em si mesmo. Se o ato original é imoral, suas consequências se completam.

Na vida pública, quem tergiversa pode se encontrar com a fatalidade do julgamento de seus atos. Se escapar, que se acerte com seus deuses para não ter uma velhice cheia de litígios com a consciência.