quarta-feira, 12 de abril de 2017

A Nova República vem aí! Será?

Porque a Justiça não cedeu à inércia, aliada da impunidade e, por tabela, cúmplice da corrupção, o Brasil deu um passo importante nesta terça-feira na direção do que o presidente Tancredo Neves pregou para se eleger em 1985, mas não viveu para ver: o possível surgimento de uma Nova República.

Deu-se esse nome, erradamente, à fase de transição entre a ditadura de 64 que durou 21 anos e a consolidação da democracia restaurada por aqui. Mas que democracia foi essa, é esta, que se deixou corromper pelos males de um presidencialismo mercantil de acentuada cooptação à falta de outros meio para se sustentar?


Antes, o presidente governava com base no apoio de partidos ideológicos, à esquerda ou à direita. Cada um deles, bem ou mal, defendia seu projeto de país. Havia distribuição de cargos, natural que houvesse para a formação de maioria no Congresso. Mas não com a intenção deliberada de roubar e de deixar que roubassem.

O roubo sempre existiu e sempre existirá. Mas, com a multiplicação desenfreada dos partidos, dos sindicatos e de outras entidades a eles ligadas, o roubo inflacionou o preço dos apoios, os custos das campanhas e degradou os valores e princípios que caracterizam — ou que deveriam caracterizar — o regime democrático.

A democracia estabelece que as eleições sejam disputadas em igualdade de condições por aqueles as disputam. O caixa 2 favorece um lado em detrimento do outro menos aquinhoado. A propina pura e simples também. Mais ainda quando ela deriva da compra de medidas governamentais e de contratos superfaturados.

Só para ficarmos em um único exemplo: não foi isso o que aconteceu na última eleição presidencial? Em parte por arrogância, em parte do excesso de realismo, o empresário Marcelo Odebrecht disse em depoimento à Justiça que foi ele que inventou a candidatura da ex-presidente Dilma à reeleição. Por que?

Ora, porque foi a construtora que carrega seu sobrenome que tornou a reeleição de Dilma factível mediante a doação de milhões de reais omitidos à Justiça, e o pagamento no exterior de serviços prestados à campanha. Quando isso acontece, subverte-se a livre manifestação do desejo dos eleitores. É crime de lesa democracia.

Quando falta luz em casa, a primeira coisa que fazemos é conferir se o disjuntor caiu. Disjunção! Os representantes do povo, e as instituições eles integram, desligaram-se dos seus representados. A democracia, por mais formal que ela seja, deu à luz uma sociedade mais exigente e a uma imprensa mais atenta.

O resultado é o que vemos. Que seja só o começo.

Ricardo Noblat

Gente fora do mapa

Flávio Damm - Brasil:
Flávio Damm

A alma do texto

No primeiro trabalho que escrevi em Harvard para um curso intitulado “Histórias da Antropologia” ministrado pelo Prof. Richard Moneygrand, recebi uma crítica estonteante: seu trabalho — disse-me o mestre — é razoável, mas não tem alma!

Na caminhada para o meu pequeno apartamento de Shaler Lane, eu remoí a observação do meu tutor. Qual o sentido do “sem alma”? Era o meu inglês ou a minha gigantesca ignorância?

Corria um outubro escuro, impressionante pela velocidade com que os dias viravam noite. Tal atmosfera, estranha e desconhecida para um niteroiense que vivia na plenitude de intermináveis verões, juntava-se o enigma contido na tal ausência de alma do meu primeiro texto escolar harvardiano.

Minha memória não reteve o que escrevi, mas lembro-me bem desse primeiro semestre nos Estados Unidos porque, no seu gelado novembro de 1963, testemunhei o assassinato do presidente J. F. Kennedy. Um evento que me escancarou a quota de ressentimento e violência engavetada nas contidas rotinas americanas. Foi somente depois do meu primeiro “Natal branco” em Cambridge que compreendi a admoestação do meu mestre.

Um texto sem alma era uma escrita sem carne ou sangue. Havia precisão e fatos mas não havia seiva, emoção, espírito. Moneygrand era — e ainda é — obcecado por essas apreciações. Gostava de citar Hemingway, Thomas Mann, Machado de Assis, Malinowski, Evans-Pritchard e Meyer Fortes como autores de textos com alma.

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Charge do dia 12/04/2017

Seria possível falar de governos sem alma? Ou em políticos desalmados? Sim, nós temos, em paralelo às bananas, muitos administradores, magistrados e parlamentares corruptos, mas seriam eles desalmados quando sempre “arrumam” suas famílias e tudo é feito com os amigos?

Dick Moneygrand afirma numa mensagem recente que sim. A ausência da alma é a inconsciência da consciência. Tal falta está ligada a ausência de reflexão sobre os limites dos cargos, funções ou papéis. O equilíbrio entre o indivíduo e o grupo, o papel e o enredo é algo essencial, teoriza Moneygrand.

O Brasil, arremata no seu estilo ianque-calvinista, sempre exagera na indecisão. Hoje, vocês precisam de tribunais para tudo. Eis um sintoma de que os limites entre papéis têm sido espatifados. O vosso inimigo é interno, o nosso tem sido externo.

Perdemos nossas almas? Pergunto aflito. Talvez... E o pior é que nem o diabo as anseia, pois o lado brasileiro do inferno é, como reza a piada, uma bagunça. Não tem nem o fogo que castiga...
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Retruquei com um golpe baixo: e o Trump? Teria ele, além do carnavalesco topete, alguma coisa semelhante a uma alma?

Ele está tentando descobrir sua alma bombardeando a Síria, responde prontamente Moneygrand.

Um inimigo externo assegura a união interna. Você se lembra das nossas aulas de organização social? Entre os Nuer de um velho Sudão, a lógica é a mesma. Irmão mais velho contra o mais novo (como nos contos de fada), mas ambos contra os primos. Agora, se a família extensa é ameaçada por outra unidade da mesma magnitude social, irmãos e primos se unem contra a outra casa. Contudo, se um membro de uma outra linhagem ataca um dos nossos primos distantes, nossa linhagem se une contra as outras.

As escaladas, os conflitos e os pecados são segmentados. A guerra externa engendra uma poderosa alma interior. Conflito e solidariedade são as faces de uma mesma moeda. Por isso se tem escrito muito mais sobre o conflito do que sobre a paz. Exceto Durkheim e Mauss, nenhum sociólogo falou de solidariedade ou da dádiva como o centro da sociabilidade. É muito mais fácil saber por que odiamos do que descobrir por que amamos. É mais claro entender a “luta de classes” do que a solidariedade ou o patriotismo. Falar do todo ou de Deus é muito mais complicado do que discorrer sobre o diabo.

Até mesmo o bem e o mal são relativos, tal como o masculino e o feminino, a juventude e velhice, o humano e o natural. Com uma mulher você pode se sentir mais homem do que com outra. Seria essa a raiz do amor? Há pessoas que fazem com que a gente se sinta burro ou errado; outras, porém nos colocam nas nuvens.

Incomoda muito descobrir — como bem sabia um mestre do olhar exilado como Machado de Assis — que um mundo dominado pelo pecado mais cedo ou mais tarde iria praticar a virtude; tal como um universo no qual a virtude é o ideal tem como franja o pecado.

Moneygrand termina notando que Trump tem sido acusado de incompetência porque ainda não preencheu todos os 553 cargos-chaves — aqueles que requerem confirmação do Senado. Vamos comparar com o Brasil? Provoca meu antigo professor e amigo querido.

Roberto DaMatta

Pátria

Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olavo Bilac 

O que o dinheiro compra

Sempre soube a diferença entre ricos e pobres. Até porque já tive e não tive dinheiro na vida. Sou privilegiada na velhice.

Também estudei tentando entender por que existem essas diferenças tão grandes entre pessoas em todos os países por onde viajei: nuns, mais, noutros, menos. Mas sempre vi que pessoas tinham mais e outras menos.

O dinheiro lhe dá o conforto de uma casa, cama e roupa limpa e passada. Dá a você boa comida, vestidos, sapatos e bolsas, carro e direito para passear (e comprar) em shoppings e ir a bons cinemas e teatros. Ou, simplesmente, lhe dá o direito de pagar suas contas no fim do mês e ainda comprar remédios. Pagar bons médicos, ser atendida na hora no dentista, sem fila para lhe tirar a paciência.

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Aprendo nestes dias, no Brasil, que o dinheiro também pode fazer uma grande diferença se você comete algum crime. Dá a você o direito de assistir a seus filhos menores, ficando presa na própria casa, ainda que (pelo menos na lei) sem usar os meios de comunicação da vida moderna. É o que está acontecendo com Adriana Ancelmo, mulher de Sérgio Cabral, posta em prisão domiciliar porque tem filhos de 12 e 14 anos que não podem ficar sem a assistência dos pais porque pai e mãe foram presos.

O dinheiro acumulado por Adriana – qualquer que tenha sido sua origem – permitiu a ela contratar bons advogados, aqueles já muito conhecidos no país, depois que vieram à tona os caminhos e descaminhos da estreita ligação entre o Estado e as grandes empresas. Advogados pagos a peso de ouro para que escarafunchem códigos e velhos alfarrábios que lhes deem pistas sobre recursos e direitos daqueles que são pegos em práticas criminosas. Advogados acostumados a serem recebidos com pompa e circunstância pelos que mandam. Que podem se dar ao luxo até de dar uma “carteirada”, sem nenhuma hermenêutica.

Em outras palavras, dinheiro também – venha ele de onde vier: herança, trabalho em certos empregos a que só alguns têm acesso, práticas criminosas –, o dinheiro também faz diferença na hora de você ser jogado numa dessas prisões superlotadas, ou quando você, sendo mulher, mesmo assim é confinada com mais uns 30 presos homens (como aconteceu no Pará há algum tempo). Faz diferença porque permite a você conviver com seus filhos e viver no conforto de sua casa ou de seu apartamento.

Enquanto isso, as mulheres pobres – milhares delas –, muitas vezes presas porque serviam de “mula” para o tráfico, ou porque roubaram uma roupinha de bebê numa loja, ou uma chupeta na farmácia, essas outras mulheres, porque não têm como pagar um advogado, mesmo um recém-saído de uma faculdade de direito, essas mulheres pobres vão ficar presas sem ninguém para socorrê-las, muito menos a seus filhos, ainda que menores de 3 ou 5 anos, jogados num barraco de uma favela qualquer do imenso e maravilhoso Brasil.

Que, afinal, se classificou para a Copa do Mundo em Moscou.

Bacana ser campeão de futebol mesmo se continuar campeão de desigualdade. Uma coisa esconde a outra. Viva nós!

A alma pura de Lula foi demitida por 13 milhões de pixulecos

Edson Arantes do Nascimento usa a terceira pessoa para referir-se a si próprio não por soberba, mas por humildade: ele sabe que merece ser tratada com reverência a incomparável entidade que habita seu corpo há mais de 60 anos. “O Pelé fez isso, o Pelé faria aquilo”, conjuga a terceira pessoa do singular esse mineiro de Três Corações escalado pelos deuses dos estádios para transformar-se no abrigo humano do maior gênio da bola de todos os tempos. Como todos os que viram o Atleta do Século jogar, Edson tem consciência de que Pelé não é coisa deste mundo. Tanto assim que, longe dos gramados desde 1977, continua instalado no trono do Rei do Futebol ─ e nele permanecerá por toda a eternidade.

A imagem pode conter: pessoas sentadas

Faz muito tempo que Luiz Inácio da Silva botou na cabeça que o maior dos governantes desde Tomé de Souza incorporou uma entidade do tamanho de Pelé. Não pode, portanto, caber num mofino “eu”. Depois da entrevista em que o marqueteiro João Santana anunciou que o PT tinha “um Pelé no banco”, pronto para entrar em campo tão logo terminasse o segundo mandato de Dilma Rousseff, o ex-presidente decidiu que Lula está para Luiz Inácio da Silva como Pelé para Edson Arantes do Nascimento. É uma singularíssima sumidade que, disfarçada de pernambucano de Garanhuns, foi enviada pela Divina Providência para que o país do Rei do Futebol fosse também o berço do Monarca da Política.

Neste domingo, o velho farsante reprisou o repulsivo espetáculo do cinismo: “Nunca antes neste país alguém foi tão perseguido quanto o Lula. Mas o Lula está acostumado com isso. Podem fazer de tudo que o Lula resiste. Estão investigando todo santo dia e não apareceu nenhuma prova contra o Lula”. Deu azar. Nesta terça-feira, num depoimento em Curitiba, Marcelo Odebrecht depositou no colo do Amigo 13 milhões de provas ─ em dinheiro vivo. É só o começo da tempestade de pixulecos que vai desabar sobre a cabeça baldia do delinquente que ousa comparar-se a Pelé.

Não há semelhanças entre o eterno Rei do Futebol e o reizinho corrupto destronado por excesso de safadeza, cupidez e cafajestagem. Fora o resto.

Paisagem brasileira

Xingó, Sergipe - Brazil:
Xingó (Sergipe)

Brasília trata explosão atômica como um traque

Alertada com grande antecedência, Brasília preparou-se para a explosão. Em qualquer pedaço do mundo, a notícia sobre a abertura de inquéritos contra oito ministros, 29 senadores, 42 deputados e um interminável etcétera cairia sobre os políticos como uma bomba atômica. No Brasil alternativo do “bunker” brasiliense, o cogumelo radioativo teve o efeito de um traque.

Nenhum ministro suspeito será afastado. Enlameados, os presidentes do Senado e da Câmara continuarão em seus assentos. Os congressistas sob investigação desfilarão pelos corredores do Legislativo como se nada tivesse sido descoberto sobre eles. Ouve-se nos conselhos de “ética” das duas Casas legislativas um silêncio de cemitério. Jurado de morte, o sistema político brasileiro reage como se estivesse cheio de vida.

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Em pleno processo de autodestruição, potencializado agora pelos despachos do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, o governo de Michel Temer, um presidente cujo mandato está pendurado num julgamento da Justiça Eleitoral, negocia reformas modernizadoras com seu conglomerado arcaico. Por ironia, a primeira explosão chegou num dia em que o mandatário-tampão recebeu no bunker do Planalto os aliados que cuidam da reforma da Previdência. Autoridades e parlamentares asseguram que tudo terminará bem porque o governo transitório do Brasil alternativo tem um projeto e a economia já começa a reagir.

O deputado Vicente Cândido (PT-SP), relator da proposta de reforma política, consta da nova lista de investogados. Ganhou milhões de razões adicionais para apressar a criação do fundo que vai retirar do bolso do eleitor o financiamento das eleições. Apressará também a aprovação da lista fechada que esconderá do eleitorado os candidatos suspeitos que os partidos indicarão. Presididos pelos encrencados Aécio Neves e Romero Jucá, PSDB e PMDB, antes contrários à macumba que obriga o contribuinte a financiar o circo, sonegando-lhe o direito de escolher o palhaço de sua preferência, agora estão a favor.

Movidos por verdades próprias, os protagonistas da política fingem não perceber que a deterioração aumentou ao seu redor. Ela decorre da falta de legitimidade de um sistema político-partidário que apodreceu e desligou-se da realidade. Os alvos da Odebrecht pisam distraídos sobre os escombros com ares de doce normalidade. Se fossem condenados rapidamente pelo Supremo Tribunal Federal, seriam apresentados à realidade. Mas tanta anormalidade é algo que não costuma acontecer no Brasil alternativo do bunker.

Comensais do crime

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Muitas gerações têm procurado enfrentar a dificuldade que a elite brasileira tem de condenar seus parceiros de mesa, os seus iguais. As pessoas que frequentam os mesmos banquetes não se condenam entre si
Luís Roberto Barroso, ministro do STF

Um ladrão trabalhador

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Quando se viaja como correspondente pelo Brasil, encontra-se muita gente fora do comum. Entre os meus favoritos, até hoje, está João Batista L. – um ladrão de joalheria que se tornou um homem honesto na selva. Quer dizer, quase um homem honesto. Quando o conheci, João Batista trabalhava no comércio ilegal de ouro. Durante o dia, revirava um barranco de um rio do Amazonas com uma draga, onde o ouro era lavado da lama. À noite, pagava suas contas nos bares e bordéis com o lucro obtido da lavagem sem declarar impostos. Mas ele me contou a sua história. Tenho que admitir: em comparação ao que era antes, o homem se recuperou. 

Encontrei João Batista numa cidade da BR-230, na Transamazônica, para onde iam os garimpeiros. Quando chegava lá, João Batista primeiro se embebedava, depois fumava dois baseados e então dormia, até passar o torpor, em um quarto de motel. Isso significava que sua busca por ouro tinha sido bem sucedida: podia se dar ao luxo de se esbaldar. Então se instalava no centro do lugarejo, e era difícil de ignorá-lo. Um homem negro, forte e corpulento, com o semblante de traços angulosos e muitas rugas de expressão. João Batista, relaxado, apoiava-se em uma pickup estacionada, a barriga de cerveja era proeminente, e seus pés gigantescos estavam metidos só até a metade de uns tênis brancos sem cadarço. Com frequência dizia ofensas aos outros garimpeiros, sorria, e eles gritavam algo incompreensível em resposta.

Convidei João Batista para tomar uns uísques e fiquei conhecendo a sua história. Ele me contou que teve que ocultá-la por muito tempo, mas agora seus maiores pecados já haviam prescrevido. "As pessoas sempre acreditam que se deve assaltar uma joalheria chique numa avenida importante", disse, aplaudindo alegremente. "Mas é muito mais fácil saquear as oficinas!"

O maior golpe de João Batista foi o roubo numa oficina de joalherias em Minas Gerais. Isso se deu há mais de trinta anos. Na época do roubo os proventos somavam uma quantia de três dígitos de milhões – pelo menos foi o que o ladrão me contou – e seu bando poderia ter vivido uma vida de príncipe com este dinheiro. Poderia! Mas o chefe, um amigo de João Batista, pagou uma prostituta com uma joia do assalto. "Na época, o chefe de polícia visitava a mesma mulher", disse o ladrão. E foi assim que aconteceu, que tive que passar "alguns belos anos na cadeia".

Fugiu após alguns anos, para um antro de garimpeiros no estado de Mato Grosso. Adotou um nome falso, ou melhor, não precisou sequer dar o seu nome. Por três décadas, viveu de garimpo em garimpo. João Batista falava com fascinação desta época. Contou que nunca passou fome entre os garimpeiros. Ninguém jamais fez um comentário sequer sobre a cor de sua pele. Sim, atirei em outros garimpeiros, "eu creio", mas só para defesa. "Aprendi com os garimpeiros o que significa ganhar dinheiro – e trabalhar", me disse. "No garimpo, quem rouba algo é executado imediatamente". Lá, João Batista acreditava ter se libertado da vida à margem da sociedade.

Nos antros de garimpos ilegais no Amazonas é assim. Quem fica neles não precisa dar seu nome verdadeiro. "Eles querem trabalhar e ganhar dinheiro, nós tornamos isso possível e pronto", o dono de um pouso no meio da mata uma vez me explicou.

Os garimpeiros vêm e vão quando querem. Podem carregar armas, beber cachaça, fumar maconha, ir ao bordel e muito mais. Para muitos garimpeiros o objetivo é essa vida desregrada. Dizem que essa é a verdadeira liberdade.

Mas, no caso de João Batista, ficou claro para mim que a vida no garimpo era a forma de vida mais burguesa que ele já tinha visto. Quando os garimpeiros trabalham, explicou, trabalham duro. A vida nos barracões dos trabalhadores, onde ficam durante a semana, não tem nada a ver com os excessos dos fins de semana. Lá as drogas e o álcool estão proibidos, levanta-se cedo e deita-se tarde. O trabalho físico é duro, necessita-se de força e persistência, tudo que é químico sobrecarrega o corpo.

"Quase ninguém consegue juntar dinheiro para mais tarde na vida", disse o veterano do garimpo João Batista. "A ganância por ouro acaba te contagiando." Explicou que os homens sempre querem revirar mais barrancos, sonham em encontrar uma quantidade de ouro gigante, gastam os ganhos de seu trabalho em diversões caras na cidade. Suas mulheres que ficaram em cidades distantes casam-se novamente, os filhos não querem mais saber de seus pais.

No fim o pó de ouro, no valor de centenas de milhares de reais, lhes escapa pelos dedos, e morrem pobres, castigados pelo álcool, malária e doenças venéreas. Sua pátria? Um pedaço de floresta, que eles próprios transformaram em um inferno ecológico.

"A vida é feita de momentos", diz João Batista L.. Tinha um olhar sábio enquanto suas mãos grandes arrancavam a tampa de uma lata de cerveja. "Morrerei rico de momentos. Só não tenho mais mesmo é dinheiro."

Thomas Fischermann

Passou boi, passou boiada

Houve um tempo em que ser convocado a depor em Comissão Parlamentar de Inquérito era o máximo do constrangimento. Políticos com poder de articulação faziam de tudo para não ser chamados a sentar na cadeira dos depoentes; equivalia a um banco dos réus. Esse tempo, passado, foi substituído pelo exercício corporativo do salve-se quem puder mediante a prática de todos por um. Dois, três e quantos mais houver a serem incluídos na lista da salvação.

Se dependesse dos trabalhos das comissões parlamentares de inquérito da Petrobrás e daquela instada para apurar as relações do bicheiro Carlos Cachoeira com agente públicos e privados, o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-deputado Eduardo Cunha não estariam hoje sentados nas respetivas celas de presídio em Bangu 8 (RJ) e Pinhais (PR).

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Cabral continuaria até hoje a brilhar em seu céu de diamantes; Cunha provavelmente teria conseguido se reeleger presidente da Câmara. A construtora Delta, de Fernando Cavendish seguiria atuando no mercado, ex-diretores da Petrobras estariam talvez reincorporados à empresa, o governador Marconi Perillo (GO) livre da denúncia por corrupção apresentada no fim de março pelo Ministério Público e Cachoeira desconectado da tornozeleira que o monitora em prisão domiciliar.

As comissões de inquérito trataram dos temas e dos personagens depois submetidos aos escrutínios do MP e da Polícia Federal. Pelas CPIs passaram incólumes. Por um crivo mais rigoroso, caíram na rede. De onde se evidencia a inutilidade das comissões congressuais por obra e graça do compadrio malsão.

Dora Kramer

Tal como crimes de guerra

Nunca houve governador como Sérgio Cabral, assim como "Gilda" no cinema, podem já garantir os especialistas do Guiness. Podem ter existido um e outro parecidos, igual, jamais. 

Cabral foi o sonho almejado por todos os chefões da máfia. Al Capone tentou legalizar o crime com a corrupção e suas máquinas de lavar dinheiro como cabarés, funerárias, lojinhas comerciais. Cabral foi além, muito além do que poderia imaginar o grande Capo. O ex-governador criminalizou o Estado.

A gangue da famiglia Cabral, com primeira dama legal e administradora dos bens, moldou o governo a serviço do crime se apropriando de cada espaço da máquina administrativa para capitalizar o crime legal.

Do governo corrupto passou-se ao Estado de crime legalizado com praticamente toda a cúpula governamental e institucional envolvida nos dízimos à famiglia sob o manto de democracia. E o assalto público campeou com as bênçãos religiosas e das instituições - um escárnio impagável à cidadania.

Alguns proclamam que o ex-governador deva mofar na cadeia junto com toda a quadrilha. Ainda que respondesse com prisão perpétua à enésima potência, seria pouco. O montante do roubo, apesar de gigante pelo montante, é ínfimo em comparação aos rastros pelo caminho como fome, morte, doenças, violência e destruição que deixou.

Sem sinais de guerra, no entanto, a gangue Cabral semeou mortos, feridos, desabrigados e desvalidos como qualquer crime contra a humanidade. Ao povo, resta a reconstrução sobre os destroços com mais suor, sangue e lágrimas.
Luiz Gadelha