segunda-feira, 16 de setembro de 2024
As eleições da alienação
O delegado Alexandre Ramagem, perguntado pela Veja sobre a preparação do Rio de Janeiro para o risco climático, disse que há “muito desentendimento mundial de narrativas sobre as mudanças climáticas”. Não há desentendimento, nem narrativas. Esse tempo passou. Há muitos anos, existe um consenso entre cientistas sobre a mudança climática, com o recuo dos poucos que ainda negavam. O que a resposta de Ramagem mostrou é como esse grupo político está despreparado para enfrentar a tarefa de governar as cidades brasileiras, país que tem mais de dois mil municípios considerados vulneráveis.
A realidade é de derreter o mais empedernido ceticismo em relação à ciência, mas os negacionistas ainda tentam construir respostas usando palavras como “desentendimento” e “narrativas”. O delegado Ramagem é apenas a face mais visível do fiasco de Jair Bolsonaro em seu reduto. O que é realmente importante é o drama que o país está vivendo.
Não há controvérsia de que a mudança do clima é um risco existencial para os seres humanos e que ele está diante de nós brasileiros no ano mais devastador que vivemos. Em maio, o Rio Grande do Sul naufragou numa inundação catastrófica, agora a seca devasta quase todo o país, a fumaça de incêndios criminosos invade os pulmões dos brasileiros contratando doenças presentes e futuras, a Amazônia enfrenta a segunda estiagem severa consecutiva. E nada disso está refletido nos debates eleitorais.
O Brasil realiza uma eleição em 5.569 municípios e esse assunto passa de raspão nos debates entre candidatos, nos programas, e nas discussões. Deveria ter a centralidade que tem o problema hoje no país. O Brasil está sufocando, mas o que atraiu até agora mais atenção foram as performances canhestras de um farsante, com suas mentiras patéticas e seus truques surrados.
O Congresso esta semana parecia habitar outro planeta. Ele agregou à sua agenda antiambiental um comportamento totalmente alienado. Mergulhou em si mesmo e lá ficou impermeável à realidade. Voltará ao tema do meio ambiente toda vez que houver oportunidade de atrapalhar e agravar a situação.
O governo enviará as propostas de um arcabouço para enfrentar a médio e longo prazo esse problema, com a criação da Autoridade Climática, o Comitê Científico, o plano de enfrentamento dos efeitos da mudança climática e o estatuto jurídico da emergência climática. Com leis e órgãos, o Executivo quer organizar a forma de atuar diante dos desastres que virão. Certamente o Congresso criará dificuldades, e uma já está desenhada, a de tentar levar para a Casa Civil a Autoridade Climática, caso a aprove. O problema é que foi exatamente na Casa Civil que essas propostas do Executivo ficaram estacionadas por tempo demais.
A mudança climática é um fenômeno global, ela atinge todos os países, mas acontece nos municípios. É em São Paulo que há uma semana não se respira, foram as cidades gaúchas que tiveram que buscar forças para emergir das enchentes, são as cidades da Amazônia que furam poços atrás de água. Por isso é tão impressionante que este não seja o tema central dessa campanha eleitoral. Candidato que ignora o risco ameaça a vida do cidadão.
Em debate na semana passada na Livraria Travessa, no Rio, o jornalista Claudio Ângelo e o engenheiro florestal Tasso Azevedo falaram da pesquisa que fizeram durante três anos para escrever o excelente “O silêncio da Motosserra: Quando o Brasil decidiu salvar a Amazônia”. O livro fala com profundidade da relação do Brasil com a maior floresta tropical do mundo, com seus erros e acertos, e foca nos anos em que foi possível reduzir em mais de 80% o desmatamento na Amazônia. Com essa experiência vitoriosa, de 2005 a 2012, como pano de fundo, os autores disseram que o desmatamento zero está ao nosso alcance, mas não é mais suficiente.
O que era a resposta desejável até há pouco tempo ficou insuficiente pelo aumento do patamar do desafio climático. O cientista Carlos Nobre, em entrevistas durante a semana, alertou que o mundo chegou à elevação de um grau e meio na temperatura, sete anos antes do previsto pela ciência. E ele, um dos maiores climatologistas do mundo, se diz perplexo com o ritmo da aceleração do aquecimento global.
As eleições municipais de 2024 estão sendo uma oportunidade perdida. Agora era a hora exata de os candidatos mostrarem aos eleitores suas propostas para enfrentar o risco que nos assombra.
A realidade é de derreter o mais empedernido ceticismo em relação à ciência, mas os negacionistas ainda tentam construir respostas usando palavras como “desentendimento” e “narrativas”. O delegado Ramagem é apenas a face mais visível do fiasco de Jair Bolsonaro em seu reduto. O que é realmente importante é o drama que o país está vivendo.
Não há controvérsia de que a mudança do clima é um risco existencial para os seres humanos e que ele está diante de nós brasileiros no ano mais devastador que vivemos. Em maio, o Rio Grande do Sul naufragou numa inundação catastrófica, agora a seca devasta quase todo o país, a fumaça de incêndios criminosos invade os pulmões dos brasileiros contratando doenças presentes e futuras, a Amazônia enfrenta a segunda estiagem severa consecutiva. E nada disso está refletido nos debates eleitorais.
O Brasil realiza uma eleição em 5.569 municípios e esse assunto passa de raspão nos debates entre candidatos, nos programas, e nas discussões. Deveria ter a centralidade que tem o problema hoje no país. O Brasil está sufocando, mas o que atraiu até agora mais atenção foram as performances canhestras de um farsante, com suas mentiras patéticas e seus truques surrados.
O Congresso esta semana parecia habitar outro planeta. Ele agregou à sua agenda antiambiental um comportamento totalmente alienado. Mergulhou em si mesmo e lá ficou impermeável à realidade. Voltará ao tema do meio ambiente toda vez que houver oportunidade de atrapalhar e agravar a situação.
O governo enviará as propostas de um arcabouço para enfrentar a médio e longo prazo esse problema, com a criação da Autoridade Climática, o Comitê Científico, o plano de enfrentamento dos efeitos da mudança climática e o estatuto jurídico da emergência climática. Com leis e órgãos, o Executivo quer organizar a forma de atuar diante dos desastres que virão. Certamente o Congresso criará dificuldades, e uma já está desenhada, a de tentar levar para a Casa Civil a Autoridade Climática, caso a aprove. O problema é que foi exatamente na Casa Civil que essas propostas do Executivo ficaram estacionadas por tempo demais.
A mudança climática é um fenômeno global, ela atinge todos os países, mas acontece nos municípios. É em São Paulo que há uma semana não se respira, foram as cidades gaúchas que tiveram que buscar forças para emergir das enchentes, são as cidades da Amazônia que furam poços atrás de água. Por isso é tão impressionante que este não seja o tema central dessa campanha eleitoral. Candidato que ignora o risco ameaça a vida do cidadão.
Em debate na semana passada na Livraria Travessa, no Rio, o jornalista Claudio Ângelo e o engenheiro florestal Tasso Azevedo falaram da pesquisa que fizeram durante três anos para escrever o excelente “O silêncio da Motosserra: Quando o Brasil decidiu salvar a Amazônia”. O livro fala com profundidade da relação do Brasil com a maior floresta tropical do mundo, com seus erros e acertos, e foca nos anos em que foi possível reduzir em mais de 80% o desmatamento na Amazônia. Com essa experiência vitoriosa, de 2005 a 2012, como pano de fundo, os autores disseram que o desmatamento zero está ao nosso alcance, mas não é mais suficiente.
O que era a resposta desejável até há pouco tempo ficou insuficiente pelo aumento do patamar do desafio climático. O cientista Carlos Nobre, em entrevistas durante a semana, alertou que o mundo chegou à elevação de um grau e meio na temperatura, sete anos antes do previsto pela ciência. E ele, um dos maiores climatologistas do mundo, se diz perplexo com o ritmo da aceleração do aquecimento global.
As eleições municipais de 2024 estão sendo uma oportunidade perdida. Agora era a hora exata de os candidatos mostrarem aos eleitores suas propostas para enfrentar o risco que nos assombra.
O triunfo da boçalidade
A racionalidade é a matriz que identifica o ser humano. É a marca que lhe confere o dom da razão. Quando desprovido do farol que guia seus passos, o homem afunda no abismo da ignorância. Cai na vala dos insensatos.
Ao correr da história, tem sido longo o registro de figurantes públicos da pá virada, cujos nomes frequentaram a literatura política graças a gestos e feitos tresloucados.
Lembremos dos idos de ontem; Calígula, o imperador que nomeou cônsul seu cavalo Incitatus, transformando-o em um ente de seu Estado teocrático. Ou mesmo Nero, outro imperador amalucado que mandou assassinar a mãe, Agripina, e suas duas esposas, Cláudia Otávia e Pompeia Sabina —e acusado ainda de iniciar o grande incêndio de Roma, que devastou parte da cidade por nove dias.
Pulemos para os nossos dias. Não é nonsense constatar um candidato à Presidência dos Estados Unidos incentivar a invasão de um símbolo da democracia, o Capitólio, por ambição de chegar ao poder central com devastação de monumentos públicos e golpe nas instituições? Donald Trump é essa figura. A mesma indicação pode ser feita sobre o estrambótico personagem que estaria por trás da "Festa de Selma", a arrumação golpista para solapar a democracia brasileira? Jair Bolsonaro, segundo se sabe, seria o inspirador da devastação do 8 de janeiro em Brasília.
Na mesma categoria de situações absurdas, a mostrarem os disparates cometidos por um alentado rol de governantes sem escrúpulos, estariam Vladimir Putin, com sua decisão de invadir uma nação soberana, a Ucrânia, para surripiar dela territórios. Ou Nicolás Maduro, suspeito de esconder as listas das urnas, que teriam garantido a vitória de seu opositor, na Venezuela, Edmundo González, no pleito de 28 de julho último.
A larga galeria de protagonistas que ultrapassam as fronteiras do bom senso resulta de uma ferrenha disposição em chegar ao poder ou perpetuar seu mando por obra e graça de métodos radicais, identificados como eixos de sistemas ditatoriais que teimam em se alastrar pelos quadrantes do planeta.
O historiador britânico, John Emerich Edward Dalberg-Acton, mais conhecido por Lord Acton, já descrevia em sua obra que, em todos os tempos, o progresso da liberdade enfrentou inimigos naturais, pela ignorância e superstição, pela sede de conquista, pelo desejo de poder. E concluía com o famoso ditado: "o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente".
Nesse ponto, o poder absoluto chega à encruzilhada da corrupção, sob a égide da violência, para formar a quadra sombria já descrita pelo professor Samuel Huntington em seu livro "Choque de Civilizações", onde desenha a imagem do "puro caos": a quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, as ondas de criminalidade, o declínio da confiança na política, a degradação dos valores morais.
A conclusão é que, nesses tempos de celebradas descobertas nos campos da biotecnologia, das ciências médicas e farmacêuticas, tempos em que o ciclo de vida dos humanos ganha acentuado alongamento, passamos a retroceder na área da política, em clara sinalização de resgate da barbárie. Um retrocesso civilizatório. As lutas fratricidas se sucedem (vejam a Faixa de Gaza e as já citadas Ucrânia e a Rússia), a fome ceifa a vida de milhões de pessoas nos devastados países da África, a miséria se expande nos vãos e desvãos das democracias, acentuando as desigualdades.
Fixemos nossos olhos na linha do horizonte. O que vemos? O planeta pedindo socorro. Primeiro, para evitar seu sufoco, ante a escalada das calamidades climáticas. Nosso habitat clama por uma economia de baixo carbono, baseada em fontes de energia que produziriam baixos níveis de emissões de gases do efeito estufa.
Nos últimos dias, a ONU divulgou um alerta mundial com uma ameaçadora previsão: o nível do mar deve subir de forma dramática nas próximas décadas, em consequência do aquecimento global. No sul do Oceano Pacífico, o nível do mar subiu 15 cm nos últimos 30 anos. Se o Pacífico continuar a subir, os países-ilhas podem até sumir do mar.
A ambição desmesurada de muitos governantes é a de fincar pé na economia do petróleo, que sustenta seus projetos de poder. A ignorância, a estupidez, a insensatez dão as cartas no painel civilizatório. Eis a ficha dos nossos tempos: o triunfo da boçalidade.
Ao correr da história, tem sido longo o registro de figurantes públicos da pá virada, cujos nomes frequentaram a literatura política graças a gestos e feitos tresloucados.
Lembremos dos idos de ontem; Calígula, o imperador que nomeou cônsul seu cavalo Incitatus, transformando-o em um ente de seu Estado teocrático. Ou mesmo Nero, outro imperador amalucado que mandou assassinar a mãe, Agripina, e suas duas esposas, Cláudia Otávia e Pompeia Sabina —e acusado ainda de iniciar o grande incêndio de Roma, que devastou parte da cidade por nove dias.
Pulemos para os nossos dias. Não é nonsense constatar um candidato à Presidência dos Estados Unidos incentivar a invasão de um símbolo da democracia, o Capitólio, por ambição de chegar ao poder central com devastação de monumentos públicos e golpe nas instituições? Donald Trump é essa figura. A mesma indicação pode ser feita sobre o estrambótico personagem que estaria por trás da "Festa de Selma", a arrumação golpista para solapar a democracia brasileira? Jair Bolsonaro, segundo se sabe, seria o inspirador da devastação do 8 de janeiro em Brasília.
Na mesma categoria de situações absurdas, a mostrarem os disparates cometidos por um alentado rol de governantes sem escrúpulos, estariam Vladimir Putin, com sua decisão de invadir uma nação soberana, a Ucrânia, para surripiar dela territórios. Ou Nicolás Maduro, suspeito de esconder as listas das urnas, que teriam garantido a vitória de seu opositor, na Venezuela, Edmundo González, no pleito de 28 de julho último.
A larga galeria de protagonistas que ultrapassam as fronteiras do bom senso resulta de uma ferrenha disposição em chegar ao poder ou perpetuar seu mando por obra e graça de métodos radicais, identificados como eixos de sistemas ditatoriais que teimam em se alastrar pelos quadrantes do planeta.
O historiador britânico, John Emerich Edward Dalberg-Acton, mais conhecido por Lord Acton, já descrevia em sua obra que, em todos os tempos, o progresso da liberdade enfrentou inimigos naturais, pela ignorância e superstição, pela sede de conquista, pelo desejo de poder. E concluía com o famoso ditado: "o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente".
Nesse ponto, o poder absoluto chega à encruzilhada da corrupção, sob a égide da violência, para formar a quadra sombria já descrita pelo professor Samuel Huntington em seu livro "Choque de Civilizações", onde desenha a imagem do "puro caos": a quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, as ondas de criminalidade, o declínio da confiança na política, a degradação dos valores morais.
A conclusão é que, nesses tempos de celebradas descobertas nos campos da biotecnologia, das ciências médicas e farmacêuticas, tempos em que o ciclo de vida dos humanos ganha acentuado alongamento, passamos a retroceder na área da política, em clara sinalização de resgate da barbárie. Um retrocesso civilizatório. As lutas fratricidas se sucedem (vejam a Faixa de Gaza e as já citadas Ucrânia e a Rússia), a fome ceifa a vida de milhões de pessoas nos devastados países da África, a miséria se expande nos vãos e desvãos das democracias, acentuando as desigualdades.
Fixemos nossos olhos na linha do horizonte. O que vemos? O planeta pedindo socorro. Primeiro, para evitar seu sufoco, ante a escalada das calamidades climáticas. Nosso habitat clama por uma economia de baixo carbono, baseada em fontes de energia que produziriam baixos níveis de emissões de gases do efeito estufa.
Nos últimos dias, a ONU divulgou um alerta mundial com uma ameaçadora previsão: o nível do mar deve subir de forma dramática nas próximas décadas, em consequência do aquecimento global. No sul do Oceano Pacífico, o nível do mar subiu 15 cm nos últimos 30 anos. Se o Pacífico continuar a subir, os países-ilhas podem até sumir do mar.
A ambição desmesurada de muitos governantes é a de fincar pé na economia do petróleo, que sustenta seus projetos de poder. A ignorância, a estupidez, a insensatez dão as cartas no painel civilizatório. Eis a ficha dos nossos tempos: o triunfo da boçalidade.
Quem somos (ou queremos ser)?
No Brasil, a ideia de modernismo, que só se consolidou em 1922, mudou nosso modo de pensar sobre nós mesmos. Não se tratava mais de procurar entre nós as melhores pistas de valores consagrados lá fora, mas de criar nossos próprios valores necessariamente distintos dos de “lá fora”.
Tratava-se de inventar uma nação que ainda não existia, a partir de costumes originais que sempre existiram, de uma linguagem inédita que nunca percebemos existir, de paisagens geográficas das quais mal nos orgulhávamos, de personagens e situações que só nós conhecíamos e, portanto, só nós sabíamos e podíamos torná-las uma narrativa com sentido.
O Brasil já começou a resolver a questão das incertezas de nosso futuro, garantindo a exibição dos filmes brasileiros, protegendo-os contra o massacre do mercado. Mas ainda falta muita coisa que já foi concluída em outros países com menos pressa econômica e cultural, e mais baixa qualidade de resultados.
Nossas melhores cabeças pensaram ou sonharam com esse projeto de Brasil para o século 21. Ele está no mito de nossa formação racial, a única indo-luso-africana em todo o planeta. Ele está no mito do país imenso e no milagre de ser um só desse tamanho todo, com uma só língua e costumes semelhantes. Ele está no mito da cordialidade com que nos acostumamos a nos autorreferir. Ele está no mito de nossa musicalidade, no samba e outras bossas. Ele está no humanismo de nossa melhor produção cultural. Ele está em nossa permanente esperança de sermos o futuro Ser Humano.
Do ponto de vista da democracia, só existe essa governabilidade, a outra será sempre uma espécie de chantagem exercida em nome de forças ocultas, sem identidade conhecida. Enquanto não encontrarem coisa melhor, é preciso se conformar com a beleza do voto garantindo o poder para o que a maioria deseja e o direito de manifestação livre da minoria, que daqui a quatro ou cinco anos terá outra oportunidade de se tornar maioria.
Tentamos encontrar em outros autores, tantos outros, uma resposta para aquele horror de nossa frustração, o fracasso objetivo do pensamento socialista vencido pela realidade, com o exemplo maior da União Soviética, berço de tudo. Não podíamos imaginar que não houvesse alternativa ao regime de exploração do homem pelo homem.
Os movimentos identitários partiam da defesa da diversidade, da defesa do outro. Hoje esses movimentos se transformaram em autopiedade socializados, cada uma dessas minorias desfaz daqueles outros líderes, pouco se importam com os outros, nem deixam que os outros se metam nos assuntos que não lhes “pertencem”. John Stuart Mill, iluminista inglês do século XIX, chamava a isso de “tirania da maioria”.
Em 1936, na Espanha, Millán-Astray, fundador da franquista Legião Espanhola, costumava interromper as manifestações de professores na Universidade de Madri com gritos que diziam: “Abaixo a inteligência, viva a morte!”. Quando tentou fazer isso com o grande poeta e filósofo dom Miguel de Unamuno, este lhe respondeu com curto discurso que terminava com uma declaração que se tornou universal e eterna: “Somos mais pais de nosso futuro do que filhos de nosso passado”.
Temos vivido um vendaval como essas de opiniões radicais e histéricas de todos os lados, que não têm nada a ver com o presente do país. Imagine só seu futuro!
Por mais que a gente tente mantê-la sob controle, a vida é feita sobretudo de acasos, eventos que não programamos e que podem chegar até nós por uma sucessão de acontecimentos pessoais ou por disposições políticas do lugar e do tempo em que estamos. Em política, isso acontece constantemente, e nem sempre podemos dar um jeito no acaso para que ele possa se acertar com nossos planos.
Cacá Diegues
Tratava-se de inventar uma nação que ainda não existia, a partir de costumes originais que sempre existiram, de uma linguagem inédita que nunca percebemos existir, de paisagens geográficas das quais mal nos orgulhávamos, de personagens e situações que só nós conhecíamos e, portanto, só nós sabíamos e podíamos torná-las uma narrativa com sentido.
O Brasil já começou a resolver a questão das incertezas de nosso futuro, garantindo a exibição dos filmes brasileiros, protegendo-os contra o massacre do mercado. Mas ainda falta muita coisa que já foi concluída em outros países com menos pressa econômica e cultural, e mais baixa qualidade de resultados.
Nossas melhores cabeças pensaram ou sonharam com esse projeto de Brasil para o século 21. Ele está no mito de nossa formação racial, a única indo-luso-africana em todo o planeta. Ele está no mito do país imenso e no milagre de ser um só desse tamanho todo, com uma só língua e costumes semelhantes. Ele está no mito da cordialidade com que nos acostumamos a nos autorreferir. Ele está no mito de nossa musicalidade, no samba e outras bossas. Ele está no humanismo de nossa melhor produção cultural. Ele está em nossa permanente esperança de sermos o futuro Ser Humano.
Do ponto de vista da democracia, só existe essa governabilidade, a outra será sempre uma espécie de chantagem exercida em nome de forças ocultas, sem identidade conhecida. Enquanto não encontrarem coisa melhor, é preciso se conformar com a beleza do voto garantindo o poder para o que a maioria deseja e o direito de manifestação livre da minoria, que daqui a quatro ou cinco anos terá outra oportunidade de se tornar maioria.
Tentamos encontrar em outros autores, tantos outros, uma resposta para aquele horror de nossa frustração, o fracasso objetivo do pensamento socialista vencido pela realidade, com o exemplo maior da União Soviética, berço de tudo. Não podíamos imaginar que não houvesse alternativa ao regime de exploração do homem pelo homem.
Os movimentos identitários partiam da defesa da diversidade, da defesa do outro. Hoje esses movimentos se transformaram em autopiedade socializados, cada uma dessas minorias desfaz daqueles outros líderes, pouco se importam com os outros, nem deixam que os outros se metam nos assuntos que não lhes “pertencem”. John Stuart Mill, iluminista inglês do século XIX, chamava a isso de “tirania da maioria”.
Em 1936, na Espanha, Millán-Astray, fundador da franquista Legião Espanhola, costumava interromper as manifestações de professores na Universidade de Madri com gritos que diziam: “Abaixo a inteligência, viva a morte!”. Quando tentou fazer isso com o grande poeta e filósofo dom Miguel de Unamuno, este lhe respondeu com curto discurso que terminava com uma declaração que se tornou universal e eterna: “Somos mais pais de nosso futuro do que filhos de nosso passado”.
Temos vivido um vendaval como essas de opiniões radicais e histéricas de todos os lados, que não têm nada a ver com o presente do país. Imagine só seu futuro!
Por mais que a gente tente mantê-la sob controle, a vida é feita sobretudo de acasos, eventos que não programamos e que podem chegar até nós por uma sucessão de acontecimentos pessoais ou por disposições políticas do lugar e do tempo em que estamos. Em política, isso acontece constantemente, e nem sempre podemos dar um jeito no acaso para que ele possa se acertar com nossos planos.
Cacá Diegues
Que falta nos faz um consenso nacional
Uma das questões mais angustiantes da política brasileira é a ausência de um projeto de desenvolvimento sustentável, em bases democráticas, que conte com amplo apoio político e respaldo social. Sem um consenso nacional, a agenda é pautada pela “transa” entre seus protagonistas, movidos por interesses da pequena política. Essa urgência é dada pela distância crescente entre nosso país e outras nações, não somente os Estados Unidos ou os países europeus, mas, também, os asiáticos, como China e Índia, que, hoje, ocupam a posição de segunda e quinta economias do mundo, enquanto ficamos para trás.
Em um artigo publicado na Carta Capital, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, expôs de forma resumida uma agenda de integração do Brasil com os demais países da América do Sul que contempla obras de infraestrutura, transição energética, avanços da ciência e da tecnologia, além de medidas voltadas para as questões aduaneiras, policiais e o turismo. Hoje, lamentavelmente, o contrabando de mercadorias, o comércio ilegal de armas e o tráfico de drogas, além da imigração de refugiados — particularmente, de venezuelanos, que cresce —, têm mais visibilidade do que a agenda positiva.
Batizado de Consenso de Brasília, os países da América Latina têm predisposição de agir em conjunto, em que pese os problemas políticos no continente. E as mudanças geopolíticas transformaram a China na maior interessada em que essa integração ocorra. Por motivos óbvios: a Nova Rota da Seda é como um rio que busca o leito mais favorável. Mais uma razão para o Brasil acelerar a implementação das cinco rotas de integração com os países vizinhos, que são multimodais. Envolvem hidrovias, rodovias, infovias (fibra óptica), portos, linhas de transmissão elétrica, ferrovias e aeroportos.
O deslocamento do eixo do comércio mundial do Atlântico para o Pacífico impõe a modernização de nossa infraestrutura logística em onze estados de fronteira: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Santa Catarina. Segundo a ministra Simone Tebet, três dessas rotas passam pelo Centro-Oeste e o Norte do país (Rota 1/Ilha das Guianas; Rota 2/Amazônica; Rota 3/Quadrante Rondon); duas englobam a Região Sul: (Rota 4/Bioceânica de Capricórnio, que sai de São Paulo até Antofagasta, no Chile, passando pelo Paraguai) e a Rota 5/Porto Alegre-Coquimbo, também no Chile, que cruza a Argentina).
“Uma rota não briga com a outra. O sucesso da saída mais ao leste, como a pavimentação da BR-156, no Amapá, fronteira com a Guiana Francesa, não atrapalhará, por exemplo, o escoamento de produtos na perna mais ao leste, como Tabatinga, no Amazonas”, explica Tebet. O governo Lula conta com uma carteira de US$ 10 bilhões, contados os recursos do BID, CAF, Fonplata e BNDES, para investir no projeto. Os vizinhos somam 200 milhões de habitantes, o equivalente a um Brasil inteiro, e são potenciais consumidores e produtores de bens e serviços.
Projetos dessa envergadura não acontecem apenas por vontade dos governos, há que se ter convergência de forças econômicas, políticas e sociais. Uma consciência coletiva é necessária para virar a chave e inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento. Foi assim como o Plano de Metas de Juscelino Kubitscheck, na década de 1950, para um novo salto na industrialização do país, e com o Plano Real, nos governos Itamar Franco e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso, que enfrentou a hiperinflação e estabilizou a moeda, rompendo a lógica da “inflação inercial” como forma de financiamento dos investimentos públicos. Em ambos os casos, havia os descrentes e quem fizesse oposição frontal ao projeto, mas criou-se um amplo consenso de que o país deveria estar engajado. Esse consenso é que evita, mitiga ou corrige os erros. É assim que funciona na democracia. A via de modernização autoritária, como correu no Estado Novo e no regime militar, dispensa amplos consensos, mas não nos interessa.
O que isso tem a ver com o momento político que estamos vivendo? Muito pouco. Não está nas prioridades do Congresso Nacional, haja vista o debate sobre as emendas parlamentares ao Orçamento da União, que abocanham R$ 44,67 bilhões, sendo que R$ 25,07 bilhões em emendas individuais, R$ 11,05 bilhões em emendas de comissões, e R$ 8,56 bilhões em emendas de bancadas estaduais. Esses recursos são pulverizados, voltados para interesses paroquiais e, alguns casos, desviados. Momentaneamente, foram suspensos, por falta de transparência, mas o que interessa aqui é o espírito da coisa.
O que está por trás de tudo isso não é a grande política, um projeto nacional. É apenas a pequena “política como negócio”, que faz parte da ordem capitalista democrática, mas, aqui, é feita de forma escamoteada e sufoca a “política do bem comum”, que deveria ser hegemônica, para usar os conceitos do filósofo e sociólogo alemão Max Weber, autor de A política como vocação e A ética protestante e o espírito do capitalismo (Companhia das Letras).
Em um artigo publicado na Carta Capital, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, expôs de forma resumida uma agenda de integração do Brasil com os demais países da América do Sul que contempla obras de infraestrutura, transição energética, avanços da ciência e da tecnologia, além de medidas voltadas para as questões aduaneiras, policiais e o turismo. Hoje, lamentavelmente, o contrabando de mercadorias, o comércio ilegal de armas e o tráfico de drogas, além da imigração de refugiados — particularmente, de venezuelanos, que cresce —, têm mais visibilidade do que a agenda positiva.
Batizado de Consenso de Brasília, os países da América Latina têm predisposição de agir em conjunto, em que pese os problemas políticos no continente. E as mudanças geopolíticas transformaram a China na maior interessada em que essa integração ocorra. Por motivos óbvios: a Nova Rota da Seda é como um rio que busca o leito mais favorável. Mais uma razão para o Brasil acelerar a implementação das cinco rotas de integração com os países vizinhos, que são multimodais. Envolvem hidrovias, rodovias, infovias (fibra óptica), portos, linhas de transmissão elétrica, ferrovias e aeroportos.
O deslocamento do eixo do comércio mundial do Atlântico para o Pacífico impõe a modernização de nossa infraestrutura logística em onze estados de fronteira: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Santa Catarina. Segundo a ministra Simone Tebet, três dessas rotas passam pelo Centro-Oeste e o Norte do país (Rota 1/Ilha das Guianas; Rota 2/Amazônica; Rota 3/Quadrante Rondon); duas englobam a Região Sul: (Rota 4/Bioceânica de Capricórnio, que sai de São Paulo até Antofagasta, no Chile, passando pelo Paraguai) e a Rota 5/Porto Alegre-Coquimbo, também no Chile, que cruza a Argentina).
“Uma rota não briga com a outra. O sucesso da saída mais ao leste, como a pavimentação da BR-156, no Amapá, fronteira com a Guiana Francesa, não atrapalhará, por exemplo, o escoamento de produtos na perna mais ao leste, como Tabatinga, no Amazonas”, explica Tebet. O governo Lula conta com uma carteira de US$ 10 bilhões, contados os recursos do BID, CAF, Fonplata e BNDES, para investir no projeto. Os vizinhos somam 200 milhões de habitantes, o equivalente a um Brasil inteiro, e são potenciais consumidores e produtores de bens e serviços.
Projetos dessa envergadura não acontecem apenas por vontade dos governos, há que se ter convergência de forças econômicas, políticas e sociais. Uma consciência coletiva é necessária para virar a chave e inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento. Foi assim como o Plano de Metas de Juscelino Kubitscheck, na década de 1950, para um novo salto na industrialização do país, e com o Plano Real, nos governos Itamar Franco e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso, que enfrentou a hiperinflação e estabilizou a moeda, rompendo a lógica da “inflação inercial” como forma de financiamento dos investimentos públicos. Em ambos os casos, havia os descrentes e quem fizesse oposição frontal ao projeto, mas criou-se um amplo consenso de que o país deveria estar engajado. Esse consenso é que evita, mitiga ou corrige os erros. É assim que funciona na democracia. A via de modernização autoritária, como correu no Estado Novo e no regime militar, dispensa amplos consensos, mas não nos interessa.
O que isso tem a ver com o momento político que estamos vivendo? Muito pouco. Não está nas prioridades do Congresso Nacional, haja vista o debate sobre as emendas parlamentares ao Orçamento da União, que abocanham R$ 44,67 bilhões, sendo que R$ 25,07 bilhões em emendas individuais, R$ 11,05 bilhões em emendas de comissões, e R$ 8,56 bilhões em emendas de bancadas estaduais. Esses recursos são pulverizados, voltados para interesses paroquiais e, alguns casos, desviados. Momentaneamente, foram suspensos, por falta de transparência, mas o que interessa aqui é o espírito da coisa.
O que está por trás de tudo isso não é a grande política, um projeto nacional. É apenas a pequena “política como negócio”, que faz parte da ordem capitalista democrática, mas, aqui, é feita de forma escamoteada e sufoca a “política do bem comum”, que deveria ser hegemônica, para usar os conceitos do filósofo e sociólogo alemão Max Weber, autor de A política como vocação e A ética protestante e o espírito do capitalismo (Companhia das Letras).
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