quarta-feira, 17 de julho de 2024

Individualidade incendiada

Resumos de resumos, resumos de resumos de resumos. Política? Uma coluna, duas frases, uma manchete! Depois, no ar, tudo se dissolve! A mente humana entra em turbilhão sob as mãos dos editores, exploradores, locutores de rádio, tão depressa que a centrífuga joga fora todo pensamento desnecessário, desperdiçador de tempo!

A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?
Ray Bradbury, "Fahrenheit 451"

O horror ao universal

O traço citado no título acima é o mais visível e renitente do nosso estilo de governo. E de viver. Seja em casa ou na rua, na escola ou no bar, na estrada ou na calçada e, muito especialmente, nas filas — que analisei com Alberto Junqueira no livro “Fila e democracia”, em 2017, mostrando sua fraternidade com a igualdade democrática —, damos preferência à exceção que nos refaz como nobres e superiores, como bons membros do “patrimônio”, não como cidadãos.

A lista das exclusões é inesgotável, porque o sistema gira em torno de si mesmo, e não de projetos capazes de promover avanços. Todos os governos que testemunhei tocaram nos mesmos problemas — Previdência, aposentadorias, filhotismo político, pobreza, ajuste de contas públicas, “verdade cambial”, como vituperava um surtado Jânio Quadros, e, sobretudo, a chaga das nossas governanças: uma perene corrupção. Assaltos à coisa pública tanto à direita quanto à esquerda porque, conforme me disse um amigo realista, “ninguém, Roberto, é de ferro!”.


Em suma, é a velha “socio-lógica” dos sistemas patrimonialistas dramatizados por Giuseppe Lampedusa no conhecido “tudo muda para não mudar”.

Mudar, romper com um intragável populismo e inaugurar novos estilos de administrar implicam impessoalidade, em respeito aos mesmos códigos. Coisa difícil num país que experimentou todos os regimes políticos e teve nove moedas que exprimiam os diversos pesos de uma desigualdade que aristocratiza os eleitos pelo povo. Pessoas que se candidatam como Zé Ninguém e, eleitas, moram em palácios e têm uma vassalagem de Versalhes. É claro que odeiam o capitalismo, que, a todo momento, inventa um troço que desbanca outro troço, acachapando marcas e empresas estabelecidas.

A raiva não é com o sistema, mas com o fluxo dinâmico do mercado, esse espaço universal da oferta e procura ou, como disse E.B. Tylor, do casar fora ou guerrear. No caso do Brasil, liquidar o adversário que nosso selvagem realismo político transforma em inimigo ou bandido. Nessa dialética de aversões ideologicamente legitimadas, esquecemos o Brasil.

Abominando a competição, muitos temem o diabólico capitalismo e abraçam o bom e velho patrimonialismo, que, obviamente, a suprime. Nele, tudo é pessoalidade. Exceção e armação. O maior temor do sistema é a universalidade e a igualdade que democratizam e fazem de todos donos do patrimônio nacional.

É curioso e patético ver uma multidão de privilegiados transformando o republicanismo na velha aristocracia luso-nacional das cidadanias reguladas, como disse um saudoso Wanderley Guilherme. Tudo regulado, tudo hierarquizado, logo, tudo legislado, tudo controlado, certo e bom — “legal”!

Papai só toma café sem açúcar, o presidente elegantemente anuncia não ser idoso porque tem “tesão de 20”. Eu, com meus 80 e tantos, invejo. Ademais, ele é o supremo magistrado da nação, e eu um cronista marginal...

Tome ciência. Na terra dos papagaios, o universal é para os comuns. Os “eleitos” têm lugares reservados. Odeiam-se a universalidade e a igualdade das regras gerais que hoje chegam ao futebol. Este atraía, conforme escrevi, precisamente porque todos eram iguais perante as regras.

Sugiro que um dos pontos a discutir seriamente não é o mercado, mas nossa mentalidade antimercado. Mentalidade que, até o Real, promovia uma pandemia de dinheiros que dependiam de seus emissores ou das trocas em curso. Eram várias línguas faladas ao mesmo tempo, como na Torre de Babel, esse exemplo bíblico de inflação.

Inflação, vale lembrar, é um “inchamento” que embaraça limites e bloqueia a ancoragem sem a qual, nós, humanos, não seríamos capazes de sobreviver.

O melhor caso dessas inchações ocorreu quando quase liquidamos a moeda em sua universalidade e irredutibilidade como medida de valor. Normalmente barganhamos preços, mas não moedas, como ocorreu na fase inflacionária, seguindo o inchaço de uma estrutura social em que cada grupo e pessoa recebe um tratamento especial. Um tratamento determinado pela maior ou menor graduação nas regalias, anistias e proximidades com um poder centralizado e aristocrático, legado do traslado da velha Corte portuguesa para a Colônia.

P.S.: a tentativa de assassinar Trump é um daqueles inesperados que esperamos quando o bandido vira vítima. Seria um sinal da tal “brasilianização”?

Projeto mostra a verdadeira face de Trump

Não vou especular sobre o efeito da tentativa de assassinato de Donald Trump no sábado (13) na corrida presidencial de 2024. No entanto, vou fazer uma observação: alguns na direita política estão usando o ataque para insinuar que a crítica aos esforços passados de Trump para reverter os resultados da última eleição, ou qualquer sugestão de que ele represente uma ameaça à democracia, agora está fora dos limites.

Mas duas coisas são verdadeiras ao mesmo tempo: violência política é inaceitável, ponto final. E os esforços de Trump e de seus apoiadores mais radicais para minar a democracia americana continuam sendo inaceitáveis.

Com a convenção republicana desta semana, é importante entender as possíveis ramificações tanto de sua plataforma oficial quanto de suas aspirações não oficiais, incorporadas pelo Project 2025.


Para quem é novo nisso, o Project 2025 é um plano feito por e para alguns dos aliados próximos de Trump, elaborado pela Heritage Foundation, para garantir que, se Trump vencer em novembro, o movimento Maga [Make America Great Again, slogan do ex-presidente] começará a agir imediatamente.

Ele busca fornecer "tanto uma agenda governamental quanto as pessoas certas no lugar certo, prontas para executar essa agenda no primeiro dia do próximo governo conservador".

Os detalhes estão descritos em um documento de aproximadamente 900 páginas, "Mandate for Leadership" [Mandato para a Liderança], com planos de ação específicos para muitas partes do governo federal.

Quão radical é a agenda do Project 2025? No início deste mês, Kevin Roberts, presidente da Heritage, afirmou que o país está no meio de uma "segunda Revolução Americana" que ocorrerá sem derramamento de sangue "se a esquerda permitir".

Os republicanos parecem, no entanto, ter percebido tardiamente que grande parte do que está no Project 2025, especialmente seu ataque em várias frentes aos direitos reprodutivos, é profundamente impopular.

Trump tentou se distanciar do projeto, afirmando na semana passada que não sabe "nada" sobre ele, embora muitas das pessoas que trabalharam nele sejam ex-funcionários e assessores de Trump, e embora em 2022 Trump tenha dito em uma conferência da Heritage que seus apoiadores "iriam lançar as bases e detalhar planos para exatamente o que nosso movimento fará".

De forma mais geral, uma vez que Trump nunca se mostrou um especialista em políticas, há todas as razões para acreditar que, se ele vencer, ele deixará, como fez em seu primeiro mandato, grande parte da formulação de políticas detalhadas para pessoas que se preocupam com os detalhes —então é mais do que razoável pensar no Project 2025 como um guia do que poderia acontecer em um segundo mandato de Trump.

O que isso significaria? Há muitas coisas para se opor no Project 2025, mas eu argumentaria que a coisa mais importante está na seção intitulada "Taking the Reins of Government" [Assumindo as Rédeas do Governo].

Há muito nesta seção, mas basicamente ela pede a substituição de grande parte do serviço público federal, que consiste principalmente de servidores públicos de carreira um tanto isolados de pressões partidárias, por nomeados políticos que podem ser contratados ou demitidos a qualquer momento.

Na verdade, Trump deu um passo significativo nessa direção perto do final de seu mandato, emitindo uma ordem executiva que criou uma categoria de indicado político, o Schedule F, que teria permitido a substituição de muitos funcionários de carreira por leais partidários.

O presidente Biden revogou essa ordem, mas o Project 2025 a traria de volta de alguma forma —provavelmente em uma escala muito maior.

De certa forma, isso representaria um grande passo ao passado. Durante grande parte do século 19, o governo federal operava no "sistema de espólios", no qual os novos governos demitiam muitos funcionários e os substituíam por apoiadores políticos.

Esse sistema tinha grandes problemas: muitos indicados careciam da experiência e competência necessárias para desempenhar suas funções, e a rotatividade constante era um convite aberto ao compadrio e à corrupção.

Em 1883, menos de dois anos depois que o presidente James Garfield foi assassinado por um homem desequilibrado e descontente em busca de um cargo político, o Congresso aprovou a Lei Pendleton, que criou um serviço civil profissional no qual a maioria dos funcionários não pode ser demitida ou rebaixada por motivos políticos.

Havia razões muito boas para essa reforma na época, mas o argumento para isolar a maioria dos funcionários do governo da pressão partidária é muito mais forte agora.

Veja bem, em 1883 o governo federal tinha uma presença muito menor na vida americana; os gastos federais eram apenas um pouco mais de 2% da economia. O governo federal de hoje é cerca de 10 vezes maior e também tem um grande impacto por meio de sua regulação de tudo, desde poluição até aplicação de leis antitruste.

Agora, imagine politizar as grandes partes de nosso governo que atualmente são relativamente apolíticas. É muito fácil imaginar um presidente sem escrúpulos usando o poder que isso lhe daria para recompensar amigos e punir oponentes em todo o país.

Lembre-se, durante as fases iniciais da pandemia de Covid-19, Trump sugeriu abertamente que talvez não ajudasse os estados cujos governadores não o apoiassem: "É uma rua de mão dupla. Eles também têm que nos tratar bem."

Se ele vencer e o Project 2025 entrar em vigor, ele estará em posição de se envolver nesse tipo de pressão em grande escala.

Há muitas outras coisas no Project 2025, sobre as quais falarei em futuras colunas. Por enquanto, vamos apenas dizer que é tão ameaçador quanto os críticos relatam. E, apesar das tentativas desonestas de Trump de se distanciar do projeto, nos dá uma boa ideia de como poderia ser um segundo mandato dele.


Paul Krugman - Folha SP