segunda-feira, 13 de junho de 2022

Chamadas a dar ideias, Forças Armadas querem ser fiscais e superiores ao TSE

O TSE acolheu muito mais do que se imaginava das sugestões das Forças Armadas para a eleição. Acolheu seis totalmente, e quatro parcialmente. O levantamento divulgado pelo tribunal é uma resposta ao ofício do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, em que o general fez ameaças e exigências ao TSE.

A única sugestão dos militares rejeitada foi a divulgação das listas de abstenções e os dados de óbitos, o que, segundo o TSE, violaria a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

As Forças Armadas não entraram nessa conversa com boas intenções. Desde que foram chamados para participar de um conjunto de outras entidades da sociedade para oferecer sugestões. Eles distorceram o sentido do convite de dar sugestões e acham que o TSE acate as ideias como se fossem ordens. Elas colocaram, nessa nota, como um poder acima do Tribunal, passando a cobrar que tudo que disseram seja aceito.

Sendo que nas 88 perguntas e nesta nota divulgada na sexta-feira, usam um tom absolutamente inconveniente, dando ordens ao tribunal. Em um trecho, em negrito, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira diz que 'cabe destacar que uma premissa fundamental é que secreto é o exercício do voto, e não sua apuração'.

Não há apuração secreta. Quem disse isso para ele foi o presidente da república em mais de uma das suas mentiras. Querem dar ares de verdade à afirmação do presidente de que o voto é apurado numa sala escura com seis pessoas. 

A carta é cheia de minúcias para parecer que é técnica, mas não é. É uma discussão política e perigosa. No item 19, o general faz um referência ao artigo 142 da Constituição, que na interpretação do governo atual e de juristas de extrema-direita, dá poderes às Forças Armadas como poder moderador. E não é isso. Não há poder sobre os poderes.

E, no final, ameaça ainda mais. Disse que "não interessa concluir o processo eleitoral sob a desconfiança dos eleitores. Eleições transparentes são questões de soberania nacional e de respeito aos eleitores".

Somando tudo isso, mostra que o general está ameaçando a justiça eleitoral brasileira. A expressão perfeita foi usada ontem pelo jornalista Bernardo Mello Franco, que disse que ele colocou a faca no peito do TSE. 

Essa nota e esse comportamento são inaceitáveis. As Forças Armadas não são fiscais das eleições. Elas têm um trabalho importante, fundamental de logística das urnas, porque esse é um país continental.

Muitos apontam que o erro foi o ministro Roberto Barroso em ter feito o convite para as Forças Armadas integrarem a comissão de transparência das eleições.

Barroso teve boa fé, o problemas é que os militares já estavam com más intenções. Já estavam ao lado do presidente da república, que tem feito ameaças às eleições. Acho que mesmo se não tivessem sido chamados, fariam essas mesmas confusões. Então esta distorção é evidentemente culpa é das Forças Armadas e não do ministro Barroso.

Pensamento do Dia

 


Até os Estados Unidos sabem

Faltando quatro meses para uma das votações mais importantes da América Latina em anos, um confronto de alto risco está se formando. De um lado, o presidente, alguns líderes militares e muitos eleitores de direita argumentam que a eleição está aberta à fraude. Do outro, políticos, juízes, diplomatas estrangeiros e jornalistas estão soando o alarme de que Bolsonaro prepara o cenário para tentativa de golpe
Jack Nicas, do The New York Times, no artigo “Novo aliado de Bolsonaro no questionamento das eleições: os militares”

Na República da desigualdade imperfeita

A surpresa chegou pelo correio. Cortesia da editora, abri o pacote curioso para saber qual seria a novidade. A capa colorida, suas 458 páginas e o título instigante só aguçaram meu interesse.

Eu nunca havia ouvido falar do autor. Julguei se tratar de uma obra de estreia, mas, na orelha do livro, a revelação: Edson Lopes Cardoso já conta com 73 anos, e aquele era só mais um, dos vários livros escritos ao longo de sua vida.

“Nada os trará de volta” é uma compilação de textos publicados por Cardoso nas últimas quatro décadas, ao longo das quais analisa os principais acontecimentos políticos e sociais brasileiros.

À medida em que folheava o livro, um sentimento de completa alienação tomou conta de mim. Como nunca havia ouvido falar de um intelectual com uma obra tão vasta, que se formou em algumas das principais instituições do país (UFBA, UnB e USP) e se valia de tantas referências históricas e culturais num diálogo com os principais intérpretes de nossa sociedade?


“Diálogo”, porém, é apenas uma força de expressão. Uma pesquisa nos acervos dos principais jornais me indicou que há raríssimas aparições de Edson Lopes Cardoso na grande imprensa brasileira. Aos poucos, fui percebendo que talvez eu não fosse o único alienado a nunca ter travado conhecimento de sua obra.

Sim, Edson Lopes Cardoso é negro - e uma das vozes mais lúcidas no movimento negro brasileiro. Militante, foi um dos organizadores da histórica Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, que reuniu mais de 30 mil pessoas em Brasília em 1995 e teve reedições nos anos seguintes. Foi chefe de gabinete do sociólogo Florestan Fernandes, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), durante seu segundo mandato como deputado federal de 1991 a 1994. E é coordenador do Ìrohìn - Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro-Brasileira.

A obra de Cardoso é um passeio pelos principais acontecimentos brasileiros e mundiais das últimas décadas, analisados à luz dos seus impactos sobre a vida da população negra. A profundidade e a sofisticação do seu pensamento não ficam atrás de nenhum dos cultuados nomes da intelectualidade branca brasileira.

O fato de um pensador desse porte ser pouquíssimo conhecido e não encontrar espaço na grande mídia diz muito sobre o nosso racismo estrutural - e do quanto precisamos avançar para a ampliação da presença dos negros em nossa sociedade, inclusive na política.

Num de seus textos, Cardoso resgata a figura de Manoel da Motta Monteiro Lopes, primeiro deputado federal negro de nossa história, jurista pernambucano eleito em 1909, após ter tido diploma negado pela classe política em 1905. De lá pra cá, outros negros conseguiram chegar ao Congresso e também a prefeituras e governos estaduais, mas de forma desproporcional ao tamanho da população negra.

Cardoso reconhece o papel do movimento negro ao denunciar o racismo, ampliando a conscientização dos cidadãos, e reivindicar direitos de pretos e pardos, mas demonstra que as principais conquistas obtidas nas últimas décadas se deram sob a tutela de políticos brancos, no âmbito dos partidos e dos governos.

O Brasil somente será um país verdadeiramente democrático, segundo Edson Cardoso, caso haja representação de peso para a população pobre e preta. “Queremos opinar e sugerir, dirigir, decidir, queremos comando, queremos monitorar e implementar, queremos a gerência de recursos públicos, queremos o controle das riquezas que ajudamos a construir”, escreveu em julho de 2005.

Junto com o livro, veio o convite para o seu lançamento em São Paulo, que ocorreu na quinta-feira passada (9/06). Por coincidência, eu estava na capital paulista e decidi comparecer, a fim de conhecer ao vivo o pensador que acabara de abrir meus olhos para tantas questões.

O evento era um debate com lideranças da Coalizão Negra por Direitos, ativistas que lançaram recentemente mais de cem pré-candidaturas de pretas e pretos aos cargos de deputado estadual e federal, em praticamente todos os Estados do país. Aglutinados no movimento “Quilombo nos Parlamentos”, essas lideranças de dezenas de movimentos sociais pretendem colocar em prática a tese de Cardoso, várias vezes repetida no livro: que a marginalização dos brasileiros negros só será superada com a ampliação da sua representatividade nas instâncias decisórias do poder.

Esse processo, contudo, não é nem um pouco simples, alerta o autor. Ao longo de nossa história, já dizia Edson Cardoso num texto de 2008, o discurso em favor da diversidade racial foi encampado por muitos partidos, mas muito mais com o propósito de atrair os votos dos eleitores pretos do que de batalhar para o aumento da bancada de parlamentares de pele negra - e isso vale inclusive para a esquerda.

Conversando com representantes da Coalizão Negra por Direitos durante o evento, pude constatar um misto de excitação com a mobilização para o lançamento das campanhas e uma apreensão quando ao efetivo apoio que receberão dos partidos aos quais estão associados. Apesar das manifestações de apoio das cúpulas partidárias, os pré-candidatos pretos ainda não têm garantia sobre o quanto receberão de recursos dos fundos partidário e eleitoral para custear suas campanhas.

A preocupação é legítima. Segundo meus cálculos, deputados federais que tentaram a reeleição em 2018 (quase todos homens e brancos) receberam em média R$ 1,2 milhão de seus partidos. Candidatos brancos novatos tiveram uma cota bem menor: R$ 133,8 mil. Para os candidatos negros novatos, porém, o valor foi ainda menor: apenas R$ 42,8 mil em média. Esses dados já explicam bastante porque temos tão poucos negros no Congresso Nacional.

Como diria Edson Cardoso, “os negros constroem nos partidos uma causa sem substância; [...] eles [os candidatos negros] carreiam votos para a eleição dos outros [os políticos brancos]”.

Oxalá o destino da Coalização Negra por Direitos seja diferente nas eleições deste ano.

Freud explica

Só há um entendimento para o que estamos vivendo no Brasil e neste fato só Freud explica. Impressionante, como a irresponsabilidade de quem colocou o futuro do país em risco por conta de um neoliberalismo cego hoje é perdoada e ignorada por muita gente, sobretudo pela imprensa oficial, a burguesia e o chamado senso comum.


Tudo aquilo que aprendemos na terapia, quem fez terapia, vai por água abaixo no que estamos vivendo nesses anos de Bolsonaro. Somos obrigados a conviver com sentimentos comprometedores como culpa, vergonha, senso de rejeição, impotência e sobretudo uma autoestima baixíssima incapaz de reagir à tamanha humilhação.

Esta viagem de Bolsonaro ao exterior me causa engulhos. É uma vergonha planetária institucionalizada onde a ignorância, a submissão e a desimportância assumem dimensões enormes. Somos vistos pelo resto do mundo como um país que tem um presidente ridículo e que quer levar todos ao mesmo lugar.

Na terapia passamos muito tempo tentando descobrir o que nos fez chegar a certas situações. A influência do passado, da relação paterna ou materna que explica mais ou menos tudo. Agora, na politica é parecido. Precisamos olhar pra trás e ver como muitos foram vítimas de todas as infâmias criadas após a derrota de Aécio Neves nas eleições e de tudo o que veio depois. Impediram a presidenta Dilma de governar e numa articulação organizada armaram o golpe. Isso explica tudo o que estamos passando do mesmo jeito que as atitudes dos nossos pais ou mães explicam nossas neuroses de hoje. Fomos tratados com violência? Fica difícil agir de um modo que não deixe transparecer esta violência. Mas, tentamos corrigir. Saber que isso existe já é importante. 

Saber o que aconteceu na nossa história recente também. Entender porque chegamos a esse ponto é quase tão importante quanto a descoberta da solução. Saber disso já faz parte da solução. Havemos de ter alta um dia e comemoraremos nossa saúde mental junto com todos. A psicanálise e a política dão as mãos para levar tanto ao indivíduo quanto à nação a uma sensação se soberania, de libertação e de saúde.

Precisamos superar esse momento de submissão, de total falta de amor próprio que nos leva a considerar normais os fatos que estamos assistindo. Nada disso é normal. É normal dentro de um cenário como este que vivemos agora de morte, de destruição, de desestímulo, de demonização da política no sentido geral. A política é como a terapia que nos leva à transformação. É preciso entender o que vivemos, o que estamos vivendo e o que vamos viver para poder tirar uma reta em direção ao sucesso, à transformação, à construção da felicidade.

Freud, hoje em dia, já foi superado enquanto dinâmica de terapia, mas seus ensinamentos permanecem assim como os do velho Karl Marx. Nada como conhecer bem para poder transformar. Queremos escolas, queremos casa, comida, diversão e arte e queremos saúde, física e mental para construir um país melhor.

Fome no país do agronegócio

Trinta e três milhões de pessoas passam fome no Brasil. O número praticamente dobrou em dois anos. É um caso de emergência nacional.

Não creio que Bolsonaro esteja se importando muito com isso. Quando morriam as pessoas com Covid-19, ele disse:

— E daí? Não sou coveiro.

Um humorista lembrou muito bem que ele pode dizer agora:

— E daí? Não sou cozinheiro.


Tenho escrito que Bolsonaro é um bode na sala. Um imenso bode. Por trás de sua incompetência e insensibilidade, há uma crise muito séria, que não se resolverá com paliativos. Desde a década passada sobem os preços de alimentos e energia, assim como se sucedem eventos extremos causados pela emergência climática.

A crise ficou apenas mais profunda com a pandemia, que matou mais de 6 milhões, e uma estúpida guerra, que opõe um grande produtor de petróleo a um grande produtor de alimentos.

Evidente que esse pano de fundo será ofuscado pela ruidosa derrota de Bolsonaro. O alívio imediato é uma sensação que precisa ser vivida até que deparemos com a realidade de um mundo que mudou e com a evidência de que o passado não volta mais.

Ironicamente, Bolsonaro venceu em 2018 colocando-se contra o sistema. Desprezava tudo, até o marketing político.

Agora, aconselhado por seus amigos sistêmicos do Centrão, procura jovens dos mais jovens. Como? Com um discurso paternalista, do tipo “obedeçam aos seus pais”.

Quem obedece aos pais não precisa de ajuda de Bolsonaro para fazê-lo; quem não obedece não o fará influenciado por ele.

No fundo, seu movimento de conquista dos jovens, no máximo, reforçou seu discurso para os mais velhos. Coisas do marketing político que, como tantas outras iniciativas, acaba obtendo o contrário do que almeja.

No auge da crise planetária, quando o bode sair da sala, nos daremos conta de que a destruição da Amazônia é um de seus componentes mais dramáticos.

Neste momento, o desaparecimento de um jornalista inglês, Dom Phillips, e de um indigenista, Bruno Pereira, é um aprendizado nacional.

Poucos conhecem o Vale do Javari, que, com 85 mil quilômetros quadrados, é maior que a Áustria. Poucos sabem que vivem ali indígenas que chamamos de isolados, mas são, na realidade, grupos que não querem contato, preferem viver sua vida.

Fica mais evidente, com o desaparecimento de Dom e Bruno, que a Amazônia é controlada por grupos criminosos um pouco como alguns morros do Rio. Jornalistas que tentam mostrar essa realidade podem sofrer o que sofreu Tim Lopes.

Continuo esperançoso em que os desaparecidos sejam encontrados. Mas é impossível não acentuar que a presença do crime organizado na Amazônia é fruto de uma política.

Hoje podemos dizer que é uma insanidade a ideia de controlar a natureza, ainda mais o sonho dos militares, teorizado por Golbery do Couto e Silva, de domar a floresta, vista como um “inferno verde”.

Essa concepção certamente levaria a uma tolerância com o garimpo, a grilagem, o desmatamento e agora o tráfico de drogas e animais silvestres.

Nesse sentido também, Bolsonaro é apenas um bode na sala. Simboliza, de forma caricatural, toda uma concepção de mundo que vai da produção ao consumo, até a maneira como se faz da natureza um simples objeto do avanço tecnológico. Ironicamente, a Amazônia que os militares querem proteger dos invasores imaginários já está invadida pelo crime organizado, que a destrói impiedosamente.

Nosso orgulho nacional de alimentar o planeta com um poderoso agronegócio torna-se um constrangimento, diante do fato de cerca de 15% do nosso povo passar fome.

Não cabe mais perguntar que país é este. Já sabemos o bastante para responder dolorosamente.

Árvores tombando, rios contaminados, corpos humanos torturados pela fome, talentos perdidos. O Brasil é um país suicida.
Fernando Gabeira