segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Donald Trump era um exemplo para Bolsonaro, Joe Biden é bom aviso

Na contramão dos principais líderes do mundo, Jair Bolsonaro ignorou a vitória de Joe Biden. Absteve-se de parabenizar o vitorioso. Não se deu conta de que ignorar é a pior forma de lidar com a ignorância. Natural. A derrota de Donald Trump deixou Bolsonaro zonzo. Ele demora a enxergar duas obviedades: Trump nunca foi um bom exemplo. Mas Biden tornou-se um fabuloso aviso.

Bolsonaro não gosta de ler. Mas deveria desperdiçar um naco do seu domingo lendo o discurso da vitória, pronunciado por Biden na noite de sábado. É um discurso curto. Pode-se atravessá-lo em 15 minutos. A leitura será mais proveitosa se o capitão prestar atenção a trechos como o que vai reproduzido abaixo:

"A Bíblia nos diz que para tudo existe um tempo, um tempo para construir, um tempo para colher, um tempo para semear. E um tempo para curar. Esta é a hora de curar na América." Trocando-se América por Brasil, o discurso poderia ser lido por Bolsonaro em rede nacional de rádio e tevê.

Biden não esclareceu, mas referia-se a uma passagem do livro de Eclesiastes (3:1-8). Ensina que há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu. Tempo de matar e tempo de curar. Tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las. Tempo de rasgar e tempo de costurar. Tempo de odiar e tempo de amar. Tempo de lutar e tempo de viver em paz

A exemplo dos Estados Unidos, o Brasil amarga duas patologias: a Covid e a polarização. Contra a primeira, ainda não há vacina de eficácia comprovada. O número de mortes declina. Mas o vírus continua matando. Contra a segunda, há dois velhos imunizantes à disposição: sensatez e moderação.

"Prometo ser um presidente que não vai dividir, mas unificar", declarou Biden. "É hora de colocar de lado a retórica dura, baixar a temperatura, nos vermos novamente, nos ouvirmos novamente e, para progredir, temos que parar de tratar nossos oponentes como nossos inimigos. Eles não são nossos inimigos. Eles são americanos."

De novo: substituindo-se "americanos" por brasileiros, o discurso poderia ser lido num pronunciamento do presidente brasileiro em rede nacional. Mas não passa pela cabeça de Bolsonaro dizer algo parecido. Sua ascensão à Presidência, assim como a chegada de Trump à Casa Branca, foi uma consequência direta da polarização.

O lógico seria que, depois de eleito, Bolsonaro virasse um presidente de todos os brasileiros, inclusive dos que não votaram nele. Mas ele passou a governar para um terço da população. Trump fazia parecido. Deu no que está dando.

A exemplo do ídolo americano, Bolsonaro coloca na receita do seu pudim raiva e desinformação em doses que podem ser letais. Abusa da sorte. Num instante em que o vírus apresenta a Trump a conta do negacionismo, Bolsonaro faz política com uma vacina contra o coronavírus.

A melhor hora para mudar é quando a mudança ainda não é necessária. Trump perdeu a sua hora. Bolsonaro desperdiça o seu momento desde o dia da posse. É como se desejasse ser engolido pela lógica de um outro conhecido preceito bíblico. Está no mesmo livro de Eclesiastes, no capítulo 1, versículo 9.

Diz o seguinte: "O que foi tornará a ser; o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do Sol." Ao macaquear Trump a ponto de ser derrotado junto com ele, Bolsonaro parece convidar o eleitor brasileiro a mimetizar os americanos que elegeram Biden. O ano de 2022 pode ficar parecido com 2020.

O caminhão da mudança chegou: a nova ordem mundial do despejo

Junte tudo que é seu - os comprimidos de hidroxicloroquina, as bíblias de araque que você não leu, os tweets em caixa alta, a bílis escorrendo no canto da boca – e, vá, se mande, faz o que mais dia menos dia se torna inevitável na vida de todo ignorante empoderado. Sai de fininho, o rabo entre as pernas, deste palácio que não te pertence mais. Tudo passa, chegou a hora de pastar longe daqui.

Hoje é você, amanhã será o outro que te arremeda, e esta ordem de despejo que ora aqui se apresenta devia estar pronta, afixada desde sempre, na porta dos fundos dos gabinetes de todos os adoradores da morte, do autoritarismo e do preconceito. O pé na bunda lhes é destino e ponto final, seja na Pensilvânia, Roraima ou Irajá.

Fora, malandragem, com a tralha de tacos de golfe, camisas de time de futebol, piadinhas homofóbicas, caneta Bic, e volta ao condomínio da tua insignificância municipal. O mundo gira, a Lusitana roda, e o caminhão de mudança já está na porta para carregar os cacarecos dourados da cafonice, a máquina de bronzear laranja, a arma embaixo do travesseiro, o muro na fronteira e toda a traquitana maligna da falta de consideração pelo próximo. Deu pra ti, grosseirão!

Os votos demoram a ser contados, alguns chegarão apenas no próximo domingo, outros ainda em dois anos, mas eis que já se fazem evidentes os trovões de volta à civilidade e eles estão mostrando a porta da rua para que você saia sem alguém lhe bater. Prazo de locação vencido. A tristeza não é mais senhoria. Faz as malas, pica a mula, puxa o carro, vaza, sebo nas canelas, rala peito - e não tenha o topete de aparecer tão cedo.

Deixa as emas na santa paz laica do quintal. De resto, encaixota os demônios vermelhos com que você assustava a vizinhança. Leva também a seringa para injetar desinfetante na veia dos seus doentes, a luz ultravioleta para combater o vírus da família e todas a cristaleira de mentiras, decretos de incentivo ao caos, ao tiroteio, ao golden-shower e ao uso do leite moça no recheio do pão. 

Desta vez não é uma gripezinha, é o cartão vermelho, o fim de jogo e o suspiro aliviado por quem já vai tarde. Os supremacistas, os milicianos, a Fox News, os guardiões dos hospitais, os juízes conservadores, os generais de pijama, todo esse exército de homens de bem, com Deus no peito e a suástica no coração, foi insuficiente para convencer os demais inquilinos de que o ódio seria bom pastor e vizinho. Hoje não tem cantoria de pastor gospel, mas a decisão unânime dos moradores - você está despejado!

Pela vulgaridade ideológica, por falar aos gritos, palavrões aos berros, desprezar máscaras, gays, negros, mulheres e todos os funcionários do palácio. Posto isso, enquanto não se faz obrigatória aos governantes a vacina do bom senso, a assembleia aqui reunida resolveu aplicar em vossa ex-excelência este artigo primeiro, parágrafo único, da lei internacional do ponha-se-no-olho-da-rua. Favor deixar a chave na portaria e pagar os atrasados. Atenção: o condomínio não aceita dinheiro vivo.

Entre a águia e o dragão

— Espera! — exclamou Ega. — Lá vem um “americano””, ainda o apanhamos.
— Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
— Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atribulando as pernas magras:
— Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…
A lanterna vermelha do “americano”, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
— Ainda o apanhamos!
— Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.
("Os Maias", Eça de Queiroz, 1888)

Essa alegoria do escritor português que tanto influenciou nossa literatura encerra um grande “afresco” literário sobre a atávica e parasitária elite lusitana e a situação de estagnação de Portugal no final do século XIX. Serve sob medida para a situação em que se encontram o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das não-Relações Exteriores, Ernesto Araujo, que agora correm atrás do prejuízo como a dupla Carlos Maia e João da Ega, por causa da vitória de Joe Biden, candidato do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump, um demagogo tresloucado que ocupou a Casa Branca por 4 anos e levou muitos a acreditarem no naufrágio da civilização ocidental, foi escolhido por ambos como aliado incondicional. Entretanto, mais uma vez, a democracia americana se recuperou de um desastre político e retomou o seu curso histórico.

No mundo globalizado — traumatizado por uma pandemia que já matou 1,4 milhão de pessoas, a recessão dela decorrente e o aprofundamento das desigualdades —, falta uma autoridade moral, portadora de valores universais capazes de influenciar a marcha da História, à qual a sociedade contemporânea possa recorrer. O Velho Mundo, com suas ideias iluministas e protagonista da história mundial do século XV ao XIX, hoje não é o candidato natural a essa posição. Somente os Estados Unidos podem exercer esse papel de liderança global nos fóruns internacionais, pela universalidade de seus fundamentos políticos, sua composição étnica e multiculturalismo, além do inegável poder que adquiriu no século passado, após vencer duas guerras mundiais e a “guerra fria”. Nenhum outro país reúne, simultaneamente, capacidade de produção industrial, força militar, pesquisa científica, conhecimento, tecnologia e influência política e cultural para isso.


Misógino, homofóbico e chauvinista, Trump havia abdicado desse protagonismo, lançando os Estados Unidos na contramão da História. Mas é um erro supor que tudo começou com o republicano. Na verdade, o erro histórico dos Estados Unidos foi continuar a tratar os vencidos na “guerra fria” — a antiga União Soviética e os países do Leste europeu — como inimigos a serem humilhados, espoliados e isolados politicamente. É esse hegemonismo truculento que está na gênese do trumpismo, marcadamente após a Guerra do Iraque, com o seu intervencionismo para derrubar regimes e refundar nações, alterando abruptamente a geopolítica de regiões inteiras. O ponto de inflexão dessa política, porém, foram os fracassos nas tentativas de derrubar os governantes da Síria, Bashar al-Asha,d e da Venezuela, Nícolas Maduro, por subestimar o poder de intervenção militar da Rússia e a emergência da China como potência econômica e diplomática.

No seu livro Sobre a China, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, que no governo Richard Nixon negociou com êxito o restabelecimento das relações dos Estados Unidos com os chineses, chamou a atenção para o fato de que as duas guerras mundiais do século XX resultaram de uma disputa pelo controle do comercio mundial no Atlântico por uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, o Reino Unido. Agora, o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico e a disputa continua sendo entre uma potência continental e uma marítima: China e os Estados Unidos, respectivamente. É preciso evitar que essa guerra comercial não se transforme numa guerra quente, não se cansa de advertir Kissinger, o ex-diplomata hoje nonagenário.

O erro estratégico de Bolsonaro e seu não-chanceler, Ernesto Araujo, foi acreditar que isolamento diplomático em que o país mergulhou, por causa de uma agenda negacionista, reacionária e antiambientalista, seria compensado pela aliança imediatista, não com o Estado norte-americano, mas com o presidente Trump. Deu errado. A águia do Norte novamente alçou voo, em busca da liberdade, mas o dragão chinês, nosso principal parceiro comercial, espreita o processo em curso antes de estrugir labaredas de fogo. A China dispõe de recursos humanos e financeiros, capacidade industrial e tecnologia para sustentar essa disputa por longos anos. O maior desafio para a diplomacia brasileira é não virar marisco nessa disputa, que continuará com Biden, em outros termos. Bolsonaro colecionou agressões aos chineses, que pacientemente observam o curso de nossas relações com os Estados Unidos. Se forem toscamente discriminados, principalmente no caso do 5G, vão se reposicionar política e comercialmente, com um poder de retaliação muito grande. Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo.

Pensamento do Dia

 


Trump, Bolsonaro e o manual do golpe de Estado

Quando um governante não tem votos para ficar no cargo, ele pode sair de forma graciosa ou se agarrar à cadeira. Os autocratas que escolhem o segundo caminho costumam recorrer a um arsenal conhecido: 1) apoio dos militares; 2) mobilização de grupos partidários nas ruas; 3) colaboração do Judiciário; 4) adesão do establishment político.

Nem todas as armas precisam ser acionadas de uma vez, mas a combinação de algumas pode garantir a sobrevivência do derrotado. Nos EUA, Donald Trump arquitetou um plano para contestar a eleição e continuar na Casa Branca, mas deve ter dificuldade para preencher os requisitos desse manual do golpe de Estado.

Na esfera da força, o americano tem o apoio de extremistas que ele fez questão de afagar ao longo do mandato. Esses radicais são úteis para criar um ambiente de instabilidade que pode estimular a reversão do resultado das urnas. De outro lado, seria mais difícil contar com líderes militares, que já demonstraram incômodo com os métodos de Trump.

Falta proteção no campo institucional. O presidente ocupou espaços em tribunais federais e construiu uma maioria confortável na Suprema Corte. O Judiciário pode até legitimar questionamentos sobre a contagem de votos se Trump apresentar provas, mas há dúvidas sobre o grau de fidelidade dos juízes diante de um movimento golpista.

O americano também precisaria de respaldo do establishment republicano para sustentar um governo com origem na derrubada de uma apuração. Líderes do partido se dividiram quando Trump fez acusações vazias de fraude: Mitt Romney e Chris Christie foram críticos ao presidente, Lindsey Graham defendeu a tese, e muitos ficaram em silêncio.

Faltou proteção também no campo institucional. O presidente ocupou espaços em tribunais federais e construiu uma maioria confortável na Suprema Corte. O Judiciário ainda pode legitimar questionamentos sobre a contagem de votos se Trump apresentar provas, mas há dúvidas sobre o grau de fidelidade dos juízes diante de um movimento golpista.

O americano ainda precisaria de respaldo do establishment republicano para sustentar um governo com origem na derrubada de uma eleição. Líderes do partido se dividiram quando Trump fez acusações vazias de fraude: Mitt Romney e Chris Christie foram críticos ao presidente, Lindsey Graham defendeu a tese, e muitos ficaram em silêncio.

O desfecho dessa jogada pode dar pistas sobre o Brasil. Jair Bolsonaro tem chances de se reeleger, mas já deu sinais de que não pretende reconhecer uma derrota nas urnas. O presidente também dependerá da disposição dos generais, da agitação de seus radicais, da boa-vontade de juízes e do desejo do centrão.

Leão precisa de voz


Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador
Eduardo Galeano

A ignorância especializada e a cegueira autoritária

A tecnologia e a sociedade do conhecimento revolucionaram o conceito de ignorância.

Em tese, ler, estudar, pesquisar, escrever ficaram mais fácil: basta um clique. Porém, este clique pode sufocar as pessoas com informações e besteirol que fundem a cabeça e, no limite, adoecem.

Com efeito, os desatinos do vício tecnológico criaram dois tipos de ignorantes: o generalista e o especialista.

O ignorante generalista dá impressão de que sabe muito de muita coisa. Atende, com prazer, quem está a fim de escutar lições sem a profundidade de uma polegada. A preferência é a autoajuda, ensinar como ser feliz e bem-sucedido. Eles articulam banalidades solenemente. Têm opinião sobre tudo. O pior, opinam. Nos últimos dias, deitaram e rolaram sobre política externa.

O ignorante especialista, em tempos analógicos, lia a orelha do livro e arrotava saber e erudição. Mas façamos justiça: é o cara que sabe cada vez mais de cada vez menos. Não por modéstia, mas para figurar em debates para vencer e ter razão, sem compromisso com o esforço de iluminar novas ideias.

Por vários motivos, Umberto Ecco jamais será esquecido. Lúcido e mordaz, detonou a internet: “As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar do que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis”.

Em tempo de eleição, o tema invadido é a política, assunto complexo, agravado pelo vigor editorial sobre a “crise da democracia”. Em se tratando da eleição americana, vieram à tona “especialistas” nos mecanismos da democracia representativa estadunidense, construção secular robusta e que, por isso, supera ameaças, inclusive, dos que chegaram ao poder pelos seus caminhos.

A histórica eleição americana vai na contramão da atual regressão democrática, representada por autocratas que seriam reforçados com a reeleição de Trump. Ainda assim, perduram, mundo afora, ameaças ao regime democrático.

Sem cair na tentação de ignorante especialista (até porque compartilho com Karnal: “A ignorância é uma benção”), muito me agrada a definição minimalista de democracia de Adam Przeworski, inspirado em Schumpeter, Popper e Bobbio: “Democracia é simplesmente um sistema no qual os ocupantes do governo perdem eleições e vão embora quando perdem”.

Aí está a essencialidade do regime democrático que é a possibilidade de alternância pacífica do poder. E a capacidade de resistir aos ímpetos da tentação totalitária.

O espetáculo da eleição americana tem um ator/espectador que não apenas ignora a simplicidade do que os eleitores disseram: “Vá pra casa Trump". E não é a Casa Branca. A "soberância", mistura de soberba com ignorância (seletiva, especializada), expõe mais do que a legítima dor de uma derrota eleitoral: evidencia uma personalidade doente com graves traços de desequilíbrio mental.

Começa por um autoritarismo devidamente identificado; vai se ampliando na medida em que sofre o ataque do voluntarismo infrene e infantilizado (quero tudo agora e sempre, esperneia, grita, berra, mas não vai conseguir); atinge o clímax, quando a ferida narcísica passa a ditar comportamentos patológicos.

A origem? O mito de Narciso. Ele cultuava uma beleza que julgava possuir e, ao se ver refletido no espelho d’água, apaixonou-se pela própria imagem, em tamanha autoadmiração que ali morreu sufocado pela própria libido.

O transtorno mental segue presente: a realidade é inaceitável, daí a negação de evidências o que revela a dissonância cognitiva a agravar a perturbação psíquica.

O remédio para um cara que se constituiu, enganando, iludindo, não seria de bom tamanho chegar como um aventureiro ao poder da maior potência mundial? Será que a leitura das eleições que revela um equilíbrio de forças, ainda que polarizada, não o satisfaz? Nada satisfaz ao Ego desse senhor. Se fosse presidente de uma república menos sólida, daria sem pestanejar um golpe de estado. Um homem sem qualidades para liderar os Estados Unidos, colocando em risco a paz mundial.

Não me venham com argumentos falaciosos sobre o sistema eleitoral americano. Tem duzentos anos de funcionamento sem interrupções. Os americanos discutirão, democraticamente, uma agenda de aperfeiçoamentos.

Ao fim e ao cabo, a democracia cumpriu seu papel primordial e simples. Segue globalmente ameaçada, mas tem anticorpos, vacina suficiente para prevenir e curar o pesadelo de uma pandemia autoritária.

Eleições e redes sociais

As eleições americanas saíram do cardápio de quatro anos atrás, assim como das últimas eleições brasileiras. Se nessas e naquelas a política do ataque e do uso intensivo das redes sociais foram a tônica preponderante, a situação agora mudou completamente. O novo presidente eleito, Joe Biden, é um político moderado, sem o dom da palavra, chegando a gaguejar, e o seu emprego das redes sociais foi em muito inferior ao de seu adversário.

Trump é um político destemido, demagógico que parece acreditar em tudo o que diz por maiores que sejam suas mentiras, em flagrante contradição consegue mesmo. Não recua diante de nada. Se se pode dizer que a sua derrota se deve em muito à pandemia, não é menos verdadeiro dizer que sua comunicação social pandêmica não convenceu os seus eleitores. Suas ginásticas verbais e digitais, em muito semelhantes às do presidente Bolsonaro, foram ineficazes. Quando pessoas adoecem e morrem, não há argumentos, por mais engenhosos que sejam, que possam mascarar a realidade. A sorte, neste sentido, do presidente brasileiro consiste em que a próxima eleição presidencial não está logo ali, havendo dois longos anos pela frente. No caso dos EUA, o mundo real tomou o lugar do “mundo” digital.



Em redes sociais, o presidente Trump tem mais de 100 milhões de seguidores. Certo deste apoio acreditou em poder menosprezar a imprensa e a mídia tradicionais, mormente representada pela televisão. Não cansava de atacá-las, crendo disto extrair os maiores benefícios, mobilizando seus apoiadores, em boa parte fanáticos. Joe Biden muito longe se situava neste quesito, tendo feito uma campanha muito mais tradicional. Tinha se tornado quase um dogma que eleições, doravante, se ganhariam ou perderiam nas redes sociais. Ora, as eleições americanas mostram a falácia de tal afirmação. O número de seguidores digitais não se traduziu por votos, muitos dos quais utilizaram o meio mais tradicional: correios, como se estivéssemos no século XIX. O país do Google, da Microsoft, da Apple, do Facebook entre outros não cessa de ser o país da imprensa, das redes de televisão, do rádio e dos correios.

A política do ataque, designando o adversário como um inimigo a ser aniquilado, não produziu os resultados esperados. Note-se que o discurso de extrema direita de Trump foi utilizado para combater um candidato moderado, acostumado à prática do diálogo e da articulação política, não se encaixando no perfil do candidato de esquerda, “socialista”, “comunista”. Para Trump, o concorrente ideal teria sido Benny Sanders, contra quem sua demagogia teria tido melhores condições de ser bem-sucedida. Contra um político de centro foi ineficaz. Não conseguiu alcançar a polarização almejada. Eis mais um ensinamento da eleição americana: a polarização ideológica entre extrema direita e esquerda cessa de ser eficaz quando um candidato de centro entra como contendor, sabendo manter-se nesta posição.

A cena democrática não foi capturada por um discurso demagógico, de extrema direita, que desconfia e menospreza as suas instituições. A tentativa de Trump de judicializar o processo eleitoral, a mobilização de seus seguidores mais fanáticos e a busca do confronto estão fadadas ao fracasso. As instituições americanas são sólidas e o que mais prezam os seus cidadãos é a segurança jurídica e a estabilidade institucional, fontes mesmas do seu progresso enquanto nação. Quando da controvérsia eleitoral entre Bush e Al Gore, a propósito da contagem dos votos da Flórida, por mais indefinida que tenha sido a situação, a Suprema Corte interveio, declarou o resultado final e a vida política e social voltou ao normal. O recomeço tomou o seu curso e a sociedade americana voltou ao trabalho e à sua normalidade. Estabeleceu uma linha divisória.

O tensionamento agora desejado por Trump certamente terá vida curta, por situar-se para além da democracia e dos valores americanos. Eis o limite da demagogia e do uso intensivo das redes sociais.

Make White House Great Again

A dinâmica político-social a que estamos a assistir nos Estados Unidos vai muito para lá do que se poderia considerar um confronto entre direita e esquerda. Aliás, tais conceitos são estruturalmente diversos dos europeus e é necessário esforço de análise e algum conhecimento da sociedade americana para poder entender a razão de ser dos acontecimentos. De qualquer forma, como escreveu Manuel Carvalho, no Público, aludindo a uma democracia “doente”: “Não é a velha clivagem saudável entre esquerda e direita, entre progressismo e conservadorismo que está em causa: é a oposição entre a decência e a falta de escrúpulo. Se a democracia hesita nesta escolha, é porque se tornou uma banal formalidade.”

É nesta mesma linha que se manifesta Onésimo Teotónio de Almeida, o académico açoriano que vive há décadas nos EUA e ensina na universidade de Brown, em texto de opinião no DN: “Se as instituições americanas não tivessem acumulado mais de dois séculos de experiência democrática, o actual ocupante da Casa Branca já teria transformado este país numa ditadura, já que não lhe assiste o mínimo respeito pelo processo democrático.”



Portanto, a cultura trumpista está para lá da política. É sobretudo uma questão de decência. Como alguém disse, Trump é o mestre da mentira e está infectado pela desonestidade. Negou sempre a gravidade da pandemia, levando a que, tendo os Estados Unidos 4% da população mundial tenham contado 20% das vítimas mortais do globo por covid-19.

Descreditou constantemente a ciência tratando ao pontapé o Dr. Fauci, um dos maiores especialistas mundiais na matéria. Ridicularizou a utilização da máscara, difamou a Organização Mundial de Saúde, efabulou com a hidroxicloroquina, chegou ao ponto de sugerir publicamente injecções de lixívia para matar o coronavírus, abrindo assim a porta a algumas mortes de pessoas para quem a voz de Trump é a voz de Deus, e sempre a apadrinhar as mais delirantes teorias da conspiração.

Apoiar Trump, sendo o tipo de indivíduo que é, retira a qualquer pessoa o direito de se indignar depois contra a injustiça, o abuso, a difamação e o crime. Durante os últimos quatro anos ele dedicou-se a escrever todos os dias, no Twitter e fora dele, uma espécie de “Manual para destruir um grande país”. Comportou-se sempre como um líder de tipo feudal.

A derrota de Trump é boa para os EUA e melhor para o mundo, no contexto das relações multilaterais, Portugal incluído, tendo em conta o recente ultimato do embaixador a propósito da tecnologia 5G. Mas também será positiva para as organizações internacionais, incluindo a OMS e a ONU, assim como o regresso de um dos países mais poluidores do globo ao Acordo de Paris é igualmente fundamental para travar as alterações climáticas. Até Wall Street parece ter reagido bem à vitória democrata.

Crê-se que com Biden as relações externas americanas serão menos tensas e mais democráticas e o fascínio saloio pelos ditadores passará à história. Os republicanos do Lincoln Project afirmam que desde 2013 Trump paga 125 vezes mais impostos na China – que ele diaboliza – do que no seu próprio país. Para quem se diz nacionalista e trabalhar pela grandeza da América estamos conversados. Trump foi eleito com a promessa de afastar os lóbis de Washington, mas apenas os usou a favor das suas empresas.

Donald Trump é um homem indigno. Não revelou dignidade ao ganhar nem ao perder. Quando tomou posse mentiu descaradamente ao dizer que a sua cerimónia de tomada de posse tinha mais gente do que a de Obama, quando talvez tenha reunido cerca de metade. E agora começou por declarar vitória quando ainda faltavam escrutinar milhões de votos. Ao perceber que iria perder a eleição falou em irregularidades que não provou, que ninguém viu e que o sistema eleitoral doméstico e os observadores internacionais desmentiram.

Na quinta-feira passada as principais televisões americanas cortaram o discurso mentiroso em pleno directo e desmentiram-no, acusando-o de insistir em afirmações falsas, e até a trumpista Fox News referiu que tais acusações eram infundadas. Altos dirigentes do Partido Republicano como os senadores Mitch McConnell e Marco Rubio, demarcaram-se das acusações delirantes de Trump e da atitude de se ter declarado vencedor das presidenciais antes da eleição terminar, defendendo a contagem dos votos até ao fim.

Bem sei que Joe Biden nunca entusiasmou, mas parece ser o homem certo para devolver a dignidade à Casa Branca. Voltaremos a ter um ser humano na presidência do país mais poderoso do mundo. Biden terá que lidar com a corrosiva herança trumpista mas parece ter estofo e experiência política para tal, até porque já trabalhou sob liderança de outrem e foi aprovado, estando portanto em melhores condições para liderar. Já quanto a Trump, ninguém o imagina a trabalhar sob autoridade de ninguém…

Insisto. Esta eleição era sobre dignidade. Deixemos então o apóstolo Pedro falar: “Assim, sabe o Senhor livrar da tentação os piedosos, e reservar os injustos para o dia do juízo, para serem castigados. Mas principalmente aqueles que segundo a carne andam em concupiscências de imundícia, e desprezam as autoridades; atrevidos, obstinados, não receando blasfemar das dignidades” (2 Pedro 2:9,10).