sexta-feira, 6 de setembro de 2019

O novo 'escolhido'


Não posso, como cidadão que conhece a vida, como sexagenário, estudioso, professor, aceitar ideologia de gênero
Augusto Aras, indicado por Bolsonaro para a Procuradoria Geral da República

Autonomia mandada às favas

Se nem ao povo que o elegeu o presidente Jair Bolsonaro deve lealdade cega, como ele mesmo disse ontem, a quem de fato deve? Às suas escassas e controversas ideias a respeito de como governar bem? Aos que o cercam? Ou somente àqueles que o cercam sempre dispostos a concordarem com ele em tudo e por tudo?

A escolha do novo Procurador-Geral da República foi mal recebida até por uma parcela dos devotos fanáticos de Bolsonaro – algo como 12% que o apoiam incondicionalmente, segundo o Datafolha. Augusto Arias, o escolhido, foi acusado de ser petista, ou de ter sido porque reuniu petistas para uma festa há muitos anos.

Bolsonaro replicou com a ameaça de mandar apagar os comentários contra Arias em suas páginas nas redes sociais. Nelas só serão acolhidos comentários elogiosos ao seu dono e ao que ele faça. Vão brincar de expressar livremente suas opiniões nas páginas dos outros, na do capitão, não. Ali, ele cobra acatamento.


Pouco se lhe dá que a escolha de Arias tenha sido rejeitada pela maioria dos nomes de peso entre os procuradores da República que se recusam a trabalhar com ele – ou que dizem que se recusarão, a conferir mais adiante. Bolsonaro fez o que prometeu: optou por um nome que julga 100% alinhado com seus propósitos.

Tais propósitos resumem-se num só: fazer o que ele mandar. Se ele quiser que determinados processos sejam arquivados, serão. Se quiser que outros sejam abertos para embaraçar seus adversários, serão também. Não precisa que Arias seja “terrivelmente evangélico”. Basta que seja “terrivelmente obediente”.

O mesmo critério será aplicado à escolha do novo diretor-geral da Polícia Federal – obediência acima de tudo, só abaixo de Deus, e olhe lá. A Pátria corre riscos. O mundo quer tomar a Amazônia. Os terroristas estabelecidos na região da tríplice fronteira podem aprontar um atentado a qualquer momento. E a família...

Pois é. No caso, a nova família imperial brasileira formada por Bolsonaro, seus filhos e agregados terá de ser protegida. O mal costuma assumir várias formas. As milícias, por exemplo, nem sempre foram uma das faces do mal. Serviram para defender a população dos traficantes de drogas, segundo Bolsonaro.

Mas os inimigos do presidente, dos seus filhos e agregados querem ligá-los às milícias pelo lado mal das milícias, não pelo lado bom ou tolerável. Daí a necessidade da proteção reclamada por Bolsonaro. Sérgio Moro já não lhe inspira tanta confiança. Melhor pôr um homem de sua confiança no comando da Polícia Federal.

Isso significa desrespeito à autonomia que sempre desfrutaram a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal? Claro que sim, mas Bolsonaro está pouco se lixando. O Procurador-Geral da República dos governos do presidente Fernando Henrique Cardoso foi na prática um engavetador de processos. Esqueceram?

Bolsonaro continuará testando todos os limites oferecidos pela lei e pelos costumes com o objetivo de alargá-los ao seu gosto, ou, se for o caso, rompê-los. Assim será até o último dos seus dias na presidência. Resta aos que se preocupam com a democracia impedir que ela se deteriore a um ponto de não retorno.

Ingenuidade pode levar à câmara de gás

O cônsul alemão Hertz adorava as artes plásticas modernas, os cavalos azuis de Franz Marc, as alongadas figuras de Wilhelm Lehmbruck. Era uma pessoa sensível e romântica, um judeu com séculos de herança cultural. Certa vez perguntei-lhe:

- E esse tal Hitler, cujo nome aparece de vez em quando nos jornais, esse chefete anti-semita e anticomunista, não acha que poderá chegar ao poder?

- Impossível - respondeu.

- Como impossível, com todos os absurdos que vemos nas história?

- É que o senhor não conhece a Alemanha - sentenciou - Lá é impossível que um agitador louco como aquele chegue a governar ao menos uma aldeia.

Pobre amigo, pobre cônsul Hertz! Aquele agitador louco por muito pouco não governou o mundo. E o ingênuo Hertz deve ter terminado em uma anônima e monstruosa câmara de gás, com toda sua cultura e seu nobre romantismo.

Pablo Neruda, "Batávia"

Isso passa

As pesquisas sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro mostram claramente que o nível de expectativa em torno de um presidente é mais alto do que se supõe.

Bolsonaro não acredita em pesquisas. Ele acha que sabe o caminho, não se importa muito com o que acontece na realidade. Navega com otimismo sobre a economia com base, sobretudo, na reforma da Previdência. Ignora, talvez, que seus frutos demoram. E que o momento é muito delicado.

Lendo a história da renúncia de James Mattis, secretário da Defesa de Donald Trump, sinto que é possível estabelecer um paralelo com a figura de Bolsonaro. Mattis é um general da Marinha, o mais respeitado dos Estados Unidos. Discordava de Trump e de sua política de afastamento de alianças tradicionais.

Trump disse que Mattis estava parecendo democrata e que entendia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) mais do que seu secretário da Defesa. Acontece que Mattis já foi o chefe supremo das forças da Otan.

Mattis teria dito a amigos que Trump tem dificuldades cognitivas. Mas talvez uma causa dessa dificuldade seja exatamente supor que saiba o que não estudou, não ouviu.

Para Mattis, o modelo é George Washington, para quem era necessário ouvir, aprender, ajudar e, depois, liderar. Na verdade, esse modelo de certa forma prevalece até a ascensão de líderes populistas. Hoje está em frangalhos, tanto aqui como nos EUA.

Bolsonaro anunciou que pretende anistiar os autores dos massacres do Carandiru e de Carajás. Vai se chocar com a lei. É um ato simbólico, pois há poucos presos.

No entanto, isso vai afundar mais a imagem do Brasil no exterior. Não porque as pessoas sejam defensoras ardorosas de direitos humanos, ou mesmo de esquerda ou de direita. É porque um marco civilizatório é rompido, entramos na fronteira da barbárie.

Segurança jurídica não significa licença para matar. De que adiantam a lei e o júri, se o presidente anistia?

Bolsonaro não vai mudar. Tenho lido notas em que ministros dizem que ele é assim mesmo, uma pessoa que diz o que pensa. Alguns afirmam que a economia está deslanchando e frases ditas aqui e ali não têm importância. Ignoram o peso dessas frases na própria economia. E seguem no barco.

Mattis percebeu que era impossível manter a política de alianças dos Estados Unidos e simplesmente caiu fora. Não queria legitimar uma política que, apesar das aparências, enfraquecia o seu país.

Aqui, o governo marcha coeso para o isolamento. E escolheu, agora, a Amazônia como tema e a Igreja Católica como adversária.

O sínodo sobre a Amazônia traria como grande novidade a permissão para que padres casados atuassem na região. Mas o governo quer manter o foco em sua política ambiental, neste momento em que as chamas consomem parte da floresta.

A tese da ameaça à soberania pressupõe que a Europa não acredita no aquecimento global e viria explorar os recursos minerais da Região Amazônica. São bilhões de euros investidos numa economia de baixo carbono, dificilmente seu projeto estratégico seria liberar carbono na Amazônia. Seria execrado pelos eleitores.

Verdade é que Emmanuel Macron, presidente da França, em certo momento autorizou a exploração de ouro na Guiana Francesa, mas recuou diante da resistência local.

A formulação brasileira sobre o desenvolvimento da Amazônia prevê que seja sustentável e inclusivo. Isso poderia perfeitamente ser feito com a cooperação internacional, sem perda de soberania.

No momento, fala-se em mineração, avanço sobre as terras indígenas. E o fogo das queimadas revela também o efeito de um intenso desmatamento.

O Brasil é soberano para adotar uma política de devastação da Amazônia. Mas haverá consequências, internas e externas. Não me parece razoável que os defensores de outro modelo sejam considerados adversários da soberania nacional.

Vamos enfrentar a realidade. Não se questiona a soberania, mas precisamente o que o governo está fazendo dela, como a exerce na prática. Trata-se de um processo difícil, porque a tese da soberania desconfia de pesquisadores, cientistas, e os remete para o outro lado da trincheira.

Voltamos à questão da dificuldade cognitiva na sua plenitude. É uma soberania que dispensa o conhecimento como uma das suas ferramentas. Ela se exerce na doutrina.

O mundo mudou e é impressionante como o exercício mais comum no debate amazônico é apontar interesses ocultos dos atores. A Amazônia tem mesmo sua importância para o mundo numa era em que se expandiu a preocupação ambiental – mas tudo isso fica em segundo plano. Se o Brasil levasse em conta essa realidade como um dos pontos centrais de sua posição no mundo, as coisas seriam bem melhores.

Mas não são.

O fato positivo é que as pessoas percebem, por diversas razões, que não estamos num bom caminho. Esse dado valida a tese de que é importante sempre apontar os erros sem buscar conflitos, pois é exatamente esse o estilo que favorece tanto Trump como Bolsonaro. E, enfim, acreditar na inteligência popular e no seu aprendizado, na possibilidade de as maiorias mais tolerantes retomarem as rédeas do País.

Há conservadores que dizem que a política é a arte de confortar as pessoas diante da desolação do real. O estilo de Trump e de Bolsonaro vai na direção oposta: tornar o real insuportável. São fenômenos novos, mas que as duas sociedades têm condições de tornar passageiros.

Aliás, para dizer a verdade, esta é uma frase que tenho ouvido com frequência, sobretudo entre pesquisadores e cientistas que sabem o valor do conhecimento: “Isso passa”.

E nem sempre essa frase conota resignação. Ao contrário, anima.

Brasil emporcalhado


Metralhadora giratória

Quanto mais atordoado, mais o presidente Jair Bolsonaro dá asas ao que há de pior na sua personalidade e mais amplia suas frentes de batalha, internas e externas. O ambiente é de perplexidade com o presente e de dúvidas quanto ao futuro, enquanto vai ficando gritante o fosso entre um presidente que só cria problemas e um Congresso afinado com a área econômica para resolver problemas.

Depois de França, Alemanha, China, mundo árabe, Argentina, Cuba, Noruega, Dinamarca e mais uns tantos, Bolsonaro desvia sua metralhadora giratória para o Chile, onde uniu governo e oposição, direita e esquerda, contra ele. A imagem brasileira no exterior se deteriora na mesma proporção da popularidade do presidente.

Bachelet é presidente eleita e reeleita no Chile, tem biografia admirável, é filha de um militar respeitável e atual alta-comissária para Direito Humanos da ONU. Engana-se Bolsonaro ao dizer que se trata de um carguinho para quem não tem o que fazer. Ao contrário, tem prestígio e não é para qualquer um – ou uma.


O ataque a Bachelet, inoportuno em si, carrega agravantes. O pior é o conteúdo. Assim como remexeu a profunda dor do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, cujo pai foi torturado até a morte e é listado como “desaparecido”, Bolsonaro comemora o fato de o pai de Bachelet, de alta patente, ter sido torturado e morto pela ditadura chilena, que depois torturou também sua filha.

Os “crimes” do general Bachelet – “comunista”, segundo Bolsonaro – foram patriotismo, legalismo, respeito à democracia e coragem pessoal para reagir a um golpe de Estado que se transformou no circo dos horrores, como se viu. Bem, os ídolos do presidente brasileiro são Brilhante Ustra, Pinochet e Stroessner. (Sem falar em Trump, caso bem diferente.)

Outro agravante é que, ao atingir Bachelet, Bolsonaro mexeu com os brios e as cicatrizes do Chile e empurrou o presidente Sebastián Piñera para o campo de batalha. Em pronunciamento formal, com a bandeira do país, ele declarou que não concorda, em absoluto, com o tratamento dispensado a sua antecessora (e, diga-se, adversária). E quem é Piñera? Inimigo? Esquerdista? Não, simplesmente um presidente de centro-direita que vinha tentando mediar o conflito Bolsonaro-Macron. Logo, Bolsonaro acaba de perder uma peça importante na sua mesa de operações de guerra.


Por fim, Bachelet é alta-comissária da ONU e o presidente disse que vai abrir a assembleia-geral da organização no dia 24, mesmo após a cirurgia deste fim de semana. Ele, portanto, se encarregou de desmatar as boas-vindas e de queimar o clima para seu discurso. Autossabotagem. Já imaginaram se houver boicote? Os diplomatas brasileiros nem conseguem imaginar.

No front interno, o alvo é Sérgio Moro. O presidente parece sentir um prazer mórbido em manipular publicamente seu ministro, que continua sendo a estrela do governo, mas perde em imagem e ganha a desconfiança de seus velhos aliados de Lava Jato, ao assistir passivamente à fritura grosseira do delegado Mauricio Valeixo, diretor-geral da PF.

Valeixo é servidor público, com uma cultura e uma lógica muito diferentes do economista Joaquim Levy. Atacado por Bolsonaro, Levy jogou a toalha de cara. Atacado uma, duas, três vezes, Valeixo reage com a altivez que sua instituição requer de seu diretor e joga a bola para Moro, seu chefe direto, que só tem duas alternativas: ou demite o companheiro e se demite da Lava Jato, ou sai junto com ele de onde, segundo muitos, jamais deveria ter entrado.

Uma boa pergunta é o que Bolsonaro e o Brasil ganham com tantas guerras ao mesmo tempo, mas essa tem resposta na ponta da língua. A grande, enorme, dificílima questão é aonde tudo isso vai parar. Ou melhor: para onde vai nos levar.

Os limites do bolsonarismo

A vitória de Jair Bolsonaro foi vista por muitos como o início de um novo ciclo de longa duração, em sintonia com a onda nacional-populista que varre o mundo. Um dos líderes petista, José Dirceu, com boa dose de realismo, alertou seu partido quanto à longevidade da hegemonia da extrema-direita estabelecida com a assunção do bolsonarismo.

O céu parecia ser o limite para sua expansão. Previa-se que Bolsonaro avançaria nas fortalezas do lulopetismo estabelecidas no Nordeste e nos bolsões de miséria dos grandes centros urbanos. Seria também o grande eleitor das eleições municipais e chegaria em 2022 na condição de imbatível.

No oitavo mês do seu mandato, o Datafolha e outros institutos de pesquisa indicam uma reversão das expectativas, com a desidratação significativa do apoio ao seu governo. Até o ex-presidente Fernando Collor de Mello, com confisco da poupança e tudo, teve, em oito meses de governo, uma desaprovação menor do que a de Bolsonaro. Como entender uma reversão tão brusca?


A explicação talvez esteja na superestimação do peso da extrema direita na eleição do presidente. Ela se deu menos ao tamanho do seu eleitorado puro sangue e mais pelo antipetismo espraiado pela sociedade. O próprio presidente pensou que era tudo a mesma coisa. Não é. O eleitorado de centro que apoiou sua candidatura para se livrar do PT começa a fazer o caminho de volta.


Por uma razão simples. A estratégia da radicalização satisfaz a sede de sangue de seu nicho, mas não dá respostas às reais necessidades da sociedade, sobretudo dos mais pobres. E afugenta o amplo espectro do eleitorado situado entre os dois extremos.

Uma leitura cor de rosa, da qual o presidente compartilha, é que há um núcleo irredutível ao seu redor, em torno de 30%, como as pesquisas constatam hoje. Mas será esse mesmo seu fundo do poço, ou o piso é mais embaixo? Bolsonaro não só acha que sim, como acredita que ele será anabolizado pela retomada da economia. Daí dobrar a aposta na radicalização, comprando briga contra tudo e todos. Até com a Santa Madre Igreja, com quem político que se preza não entra em rota de colisão.

Há uma boa dose de otimismo exagerado nos seus cálculos. A extrema direita, assim como a extrema esquerda, são correntes minoritárias. Estão bem abaixo de ser um terço do eleitorado. Só se tornam robustas quando ampliam seu discurso para a maioria da sociedade.

Como o presidente mantém-se inflexível na rota traçada, a tendência é de mais desidratação da sua base de apoio. Para reconquistar os 25% dos eleitores que votaram nele e hoje desaprovam seu governo, teria de moldar o seu discurso. Mantida a atual estratégia, afugentará novas parcelas que ainda lhe dão algum crédito. O tempo é seu adversário. Quanto mais ele passa, menor o apoio ao governo.

O cenário econômico tampouco ajuda. O panorama internacional é de estagnação e a perspectiva é de baixo crescimento aqui dentro, nos próximos dois anos. Quanto mais se aproxime sua sucessão, mas resultados cobrará de Paulo Guedes, seu Posto Ipiranga. Como não há muito coelho na cartola do ministro da Economia, Bolsonaro pode dar um cavalo de pau, adotando medidas populistas. Essa tentação sempre aparece quando um mandatário tem a caneta na mão e tem dificuldades para se reeleger. Ora, se Maurício Macri, um liberal convicto, acaba de fazer isso na Argentina, o que dirá Bolsonaro, um cristão novo do credo liberal?

A frustração com Bolsonaro pode levar água para o moinho do populismo de esquerda. O passadismo é sempre um sentimento que viceja em momentos de crise. Vide a Argentina, onde a sensação de que “a vida era melhor tempos de Cristina” ressuscitou o kirchnerismo.

O fracasso de Bolsonaro pode gerar a onda semelhante, como se os anos do lulopetismo tivessem sido o paraíso. Esse sentimento apareceu no último Datafolha, quando se indagou em quem votaria caso se reproduzisse a polarização Bolsonaro/Haddad.

Não estamos condenados a ficar entre o diabo e o demônio. Os limites do bolsonarismo abrem possibilidades de rearticulação do centro democrático por meio de uma proposta não saudosista, que seja liberal na economia, progressista no campo social e radicalmente comprometida com os valores democráticos.

Em política, nada acontece por geração espontânea. Uma saída virtuosa só acontecerá se os sujeitos que fazem a História arregacem as mangas e a façam acontecer.

Guedes demora a converter gogó em resultados

Agora é Paulo Guedes quem ofende Brigtte Macron. Mimetizando o comportamento de Jair Bolsonaro, a mulher do presidente da França, Emmanoel Macron. Numa palestra para empresários, no Ceará, ele esticou o deboche: "Não existe mulher feia. O que existe é mulher vista pelo ângulo ruim". Pobres mães e pais. Há cada vez menos exemplos para dar aos filhos —"Não minta, meu filho. Ou você acaba virando ministro da Economia. Ou morando no Palácio da Alvorada".

Quando Bolsonaro declarou que havia encontrado um Posto Ipiranga para abastecer sua ignorância econômica, faziam-se apostas sobre qual das diatribes do capitão produziria a crise que faria o ministro jogar tudo para o alto e cumprir a ameaça que repetiu há três meses: "Pego um avião e vou morar lá fora". Sabia-se que Guedes não consertaria Bolsonaro. O que ninguém imaginava é que Bolsonaro pudesse estragar em tão pouco tempo um economista egresso da escola de Chicago.

Guedes encaixou Brigitte em sua prosa a pretexto de criticar a imprensa. Empilhou iniciativas adotadas pela equipe econômica. E lamentou que, a despeito de enxergar "progressos em várias frentes", os meios de comunicação preferem pendurar nas manchetes as polêmicas que brotam dos lábios de Bolsonaro: os ataques à ex-presidente chilena Michelle Bachellet, as referências à idade e feiúra da mulher do Macron... Questionado pelos repórteres, classificou sua própria descortesia de brincadeira.

Horas depois, Guedes mandou sua assessoria soltar uma nota oficial. Nela, está escrito que "a intenção foi ilustrar que questões relevantes e urgentes para o país não têm o espaço que deveriam. Não houve qualquer intenção de proferir ofensas pessoais". A emenda conseguiu piorar o soneto.



Supunha-se que o ministro já tivesse notado que a crise está na ponta da língua de Bolsonaro, não no noticiário que reproduz suas barbaridades. Se o presidente trouxesse suas palavras na coleira e o ministro convertesse gogó em resultados, a imprensa mudaria de assunto instantaneamente.

O problema é que Bolsonaro não para de produzir insensatez. A penúltima foi o vaivém sobre o teto dos gastos. Num dia, a revisão do teto é um imperativo matemático. O porta-voz do Planalto ecoou o chefe, endossando-o. Na manhã seguinte, o recuo nas redes sociais. E o país fica autorizado a suspeitar que Bolsonaro está mais preocupado com as urnas de 2022 do que com os cofres de 2019. Cofres que Guedes prometera sanear no primeiro ano de governo.

O governo entrou no nono mês. E o ministro da Economia ainda não levou ao Congresso uma proposta lapidada de reforma tributária. O fim dos subsídios? Nada. A facada na mamata do Sistema S? Nem sinal. A coleta de R$ 1 trilhão com a venda de estatais e imóveis públicos? Necas. A desvinculação de gastos obrigatórios do orçamento? Lhufas. Por enquanto, há uma reforma previdenciária saindo do forno, um presidente que produz crises diárias na saída do Alvorada e um ministro da Economia com uma garganta enorme.

Os governos do Brasil tem convivido com ministros econômicos que se consideram extraordinários. Alguns têm o prestígio de super-ministros. No final das contas, vários apresentam um defeito comum. Costumam encontrar as verdadeiras soluções para os problemas econômicos do país quando se transferem do palco para a crítica. Para evitar a sina dos ex-ministros geniais, Paulo Guedes deveria adotar como prioridade serenar a retórica do presidente, não aderir à mesma incivilidade.

Pensamento do Dia


A injustiça global da crise climática

Nos últimos anos, ambientalistas e cientistas vêm alertando que os países mais pobres, que têm pegadas de carbono muito baixas, estão sofrendo o impacto das emissões de dióxido de carbono da fatia mais rica do mundo. Um relatório da agência beneficente britânica Christian Aid mostra essa disparidade.

O relatório Greve de fome: o índice de vulnerabilidade climática e alimentar aponta que os dez países que registram os maiores índices de insegurança alimentar no mundo geram menos de meia tonelada de CO2 por pessoa. Combinados, eles geram apenas 0,08% do total de CO2 global.

"O que realmente me surpreendeu e me chocou foi a forte correlação negativa entre pobreza alimentar e a baixíssima emissão per capita", diz a autora do relatório, Katherine Kramer. "É muito maior do que esperávamos."

No topo do ranking está o Burundi, na África Central, que registra 0,027 toneladas, a menor emissão de CO2 per capita entre todos os países. O número é tão baixo que é muitas vezes arredondado para zero. Em comparação, os alemães, americanos e sauditas geram, em média, a mesma quantidade de CO2 que 359, 583 e 719 burundeses, respectivamente.

Conforme destacado no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a insegurança alimentar é uma das principais ameaças à vida humana que podem ser provocadas pelas mudanças climáticas. Esse risco é especialmente maior no Hemisfério Sul, onde as pessoas dependem da agricultura em pequena escala e são mais vulneráveis a secas, inundações e condições climáticas extremas.

No Burundi, que já vem enfrentando insegurança alimentar como resultado da instabilidade política – e onde a prevalência de desnutrição crônica é a mais alta do mundo – a mudança dos padrões climáticos é encarada com preocupação.

As chuvas no país africano foram muito esporádicas nos últimos três anos, particularmente em algumas regiões dependentes da agricultura. E o relatório prevê que inundações e secas extremas resultarão em um declínio da produção de entre 5% e 25% nas próximas décadas.

"O Burundi é uma testemunha vivo da injustiça da crise climática", diz Philip Galgallo, diretor do braço da Christian Aid para o Burundi. "Apesar de produzirmos quase nenhuma emissão de carbono, nos encontramos na linha de frente das mudanças climáticas, sofrendo com temperaturas mais altas, produção mais baixa das colheitas e chuvas cada vez menos regulares."

Vidas mais secas no Nordeste brasileiro
É uma história parecida com a do segundo país com maior índice insegurança alimentar do mundo: a República Democrática do Congo (RDC), que também tem a segunda menor pegada de carbono. A elevação rápida das temperaturas implica um risco ainda maior de disseminação de doenças entre os animais e nas lavouras. Além disso, os padrões de chuva estão mudando, deixando os agricultores congoleses inseguros sobre quando plantar e quando colher.

As mudanças climáticas não afetam apenas a produção das plantações e a capacidade de cultivar alimentos. O CO2 também afeta diretamente os nutrientes presentes nas colheitas.

Um estudo recente da revista científica Lancet Planetary Health analisou como as mudanças climáticas e os níveis crescentes de dióxido de carbono na atmosfera estão reduzindo a prevalência de nutrientes em alimentos básicos, como arroz, trigo, milho e soja. Cerca de 50% das calorias consumidas do mundo vêm desses grãos.

O estudo constatou que, nos próximos 30 anos, a disponibilidade de nutrientes críticos para a saúde humana, incluindo ferro, proteína e zinco, poderá ser significativamente reduzida se o planeta continuar a produzir emissões de CO2 no mesmo ritmo.

"Vamos enfrentar uma redução de 14% a 20% na disponibilidade global de ferro, zinco e proteína em nossa dieta", prevê o autor do estudo Seth Myers.

E as implicações dessa redução são muito significativas.

"A deficiência de ferro e zinco nos alimentos hoje já faz com que cerca de 60 milhões de anos de vida sejam perdidos anualmente. Então essas deficiências já provocam grandes cargas globais de doenças", afirma Myers.

"Como resultado do aumento dos níveis de CO2, centenas de milhões de pessoas vão passar a correr risco de morrer por causa de deficiências de zinco e proteínas. E cerca de um bilhão de pessoas que já têm essas deficiências vão vê-las serem exacerbadas", diz.

Tais deficiências aumentam a mortalidade infantil por doenças e enfermidades como malária, pneumonia e diarreia.

As pessoas mais afetadas estarão no Hemisfério Sul, diz Myers. Isso porque aquelas que correm maior risco de sofrer com essas deficiências nutricionais já contam com dietas menos diversificadas e um menor consumo de alimentos de origem animal, como carne, leite, ovos, queijo e iogurte.

"E isso não deixa de ser meio irônico, já que essas são as pessoas que têm menos responsabilidade pela emissão de dióxido de carbono que está tornando os alimentos menos nutritivos", explica Myers. Ele descreve a situação como uma emergência de saúde pública e uma crise moral.

"Não há desculpa para não agir com a máxima urgência quando são as emissões da parte mais rica do mundo que estão colocando as pessoas mais pobres do planeta em perigo", afirma.

Kramer, da Christian Aid, por sua vez, diz que existem várias medidas que o mundo desenvolvido precisa adotar para combater a insegurança alimentar e ajudar a combater as mudanças climáticas.

"A primeira e mais importante é reduzir drasticamente e muito rapidamente suas próprias emissões", diz ela. "Podemos continuar a nos refugiar em ambientes fechados, com nossos ventiladores e ar-condicionado. Temos acesso a estoques de água para nos refrescar. As mudanças ainda não nos atingiram da mesma maneira, mas já estão afetando o mundo em desenvolvimento."

Myers concorda. "Temos que parar de queimar combustíveis fósseis. Precisamos fazer a transição para fontes renováveis e evitar as emissões de dióxido de carbono o mais rápido possível. Precisamos também ter um senso de urgência moral para essa transição", afirma.

Outro passo importante é dar apoio aos países em desenvolvimento. Kramer diz que isso pode ser feito com incentivo financeiro ou com o fornecimento de tecnologia e educação, principalmente para a instalação de sistemas de alerta prévios que permitam que os países prevejam quando um desastre natural está prestes a acontecer e possam se preparar adequadamente.

Ainda segundo Myers, também é preciso ajudar os países em desenvolvimento a melhorar sua produtividade e resiliência (capacidade de resistência e recuperação de um ecossistema).

Por meio do Acordo de Paris sobre o clima, quase todos os países desenvolvidos do mundo já se comprometeram a fornecer recursos para ajudar países em desenvolvimento a combater os efeitos das mudanças climáticas, mas não estão previstas penalidades para aqueles que não cumprirem suas promessas.

É por isso que Kramer acredita que as pessoas precisam pressionar seus governos a cumprir as metas. "Se não diminuirmos nossas emissões e resolvermos a crise climática como uma comunidade global, os impactos serão cada vez piores, e milhões de vidas estarão em risco", conclui.
Deutsche Welle

Língua grande atrasa o país

Tomo a liberdade de sugerir ao Presidente: cuide mais do seu país, mais de seu povo. Menos briga, menos confusão, menos agressões. Invista seu tempo cuidando de seu povo, de seu país. Temos 13 milhões de desempregados, 7 milhões subempregados. 60 milhões votaram no presidente na esperança dele mudar o país
João Doria, governador de São Paulo (PSDB)

Somos atacados pelo governo

Nós estamos sendo atacados. Quem somos nós? É difícil nos definir. Temos tipos diferentes. Somos de raças e idades diferentes. Nossos cortes de cabelo, formatos do nariz, formatos de orelhas, gostos musicais, manias, interesses, preocupações, alergias, saldos bancários e cheiros corporais são variados, e torcemos por times diferentes. Mas, no momento, o que deve nos unir é o fato, agora inegável, de que estamos sendo violentamente atacados pelo nosso próprio governo. Temos que esquecer nossas diferenças e nos concentrarmos nesta verdade nua e crua: que isto não é um país, isto é uma zona de guerra. E eles atiraram primeiro.


Cada novo pronunciamento do Bolsonaro é um morteiro que nos atinge. Cada nomeação esdrúxula para o governo mais estranho da nossa História parece ter sido feita especificamente para nos obrigar a usar a palavra “esdrúxula”, o que inibe qualquer reação mais séria. Temos o governo civil mais militar que o país já conheceu, para nos confundir. Aguarda-se a explicação que nosso futuro embaixador em Washington dará para isso, e em que língua.

A campanha mais intensa deles contra nós é a que está começando agora, com um ataque frontal à inteligência brasileira. Verbas para a pesquisa estão sendo cortadas — às gargalhadas, não duvido — e isso é apenas o começo de cortes que virão em todo o sistema educacional, o primeiro sacrificado onde quer que “o mercado” derrote o bom senso. Para ganhar esta guerra pelos cérebros da nação, um lado tem a força e a tesoura; e o outro tem só a indignação estéril — mas que pode surpreender. Os estudantes estão voltando às ruas.

Pelas pesquisas de avaliação, a popularidade do Bolsonaro e a aprovação do seu governo estão caindo. Pesquisas de opinião são enganosas, podem refletir o entusiasmo de um momento e nada mais. De qualquer maneira, nós, mesmo desorganizados, estamos começando a nos mobilizar.
Luis Fernando Verissimo

O pândego perigoso

Num único dia do início deste mês de agosto, a Gronelândia perdeu 12,5 mil milhões de toneladas de gelo, por causa das temperaturas elevadas, provocadas pela passagem de uma vaga de calor que, anteriormente, já tinha atingido grande parte da Europa Central. Nas contas feitas pelo cientista climático Martin Stendel, essa quantidade de gelo, depois de derretida, seria suficiente para cobrir toda a superfície da Alemanha (360 mil km2) por uma camada de água com sete centímetros de altura.

Embora este tenha sido um fenómeno extremo, não é um caso único. Na última década, os episódios de degelo têm-se intensificado na maior ilha do planeta, aquela onde os fenómenos meteorológicos e climáticos são mais bem estudados, com medições permanentes através de sondas no terreno e por satélite. Graças a esses instrumentos, os cientistas são capazes de registar, com uma precisão milimétrica, as variações da camada de gelo e a quantidade precisa de água doce que a Gronelândia vai “despejando”, nas estações quentes, para os oceanos. Todos os anos, a Gronelândia ganha gelo no inverno, devido à acumulação da neve, e perde-o no verão, através do degelo e da libertação de icebergues. Só que, de forma consistente, desde 2003, ano após ano, a Gronelândia tem visto a sua quantidade de gelo diminuir. Entre 2003 e 2017, precisam os cientistas, a ilha perdeu mais de 3 mil milhões de toneladas de gelo.


Estes números indicam que a Gronelândia está a perder gelo a um ritmo muito superior àquele que, ainda há bem pouco tempo, era previsto pelos cientistas. Aquilo que, em alguns cenários, se pensava que iria ocorrer apenas daqui a quatro ou cinco décadas, começa já a ser observado na ilha que, para a Ciência, funciona quase como um laboratório ao vivo do impacto do aquecimento global, uma espécie de “canário na mina de carvão” das alterações climáticas.

Toda esta quantidade de gelo a derreter, em especial ao ritmo dos últimos meses, fez disparar os alarmes na comunidade científica, temendo-se que a subida do nível médio dos mares, até ao final do século, possa ser muito superior ao que tinha sido indicado no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas: em vez de uma subida “prudente”, não superior a 98 centímetros, é melhor começarmos a preparar-nos para um cenário com mais de dois metros, se continuarem as atuais emissões de gases com efeito de estufa, inundando vastas áreas do planeta, algumas das cidades mais emblemáticas, e criando cerca de 200 milhões de refugiados climáticos.

Perante estes sinais de alarme, em vésperas de uma Assembleia Geral das Nações Unidas que, em setembro, por iniciativa de António Guterres, pretende marcar um ponto de inflexão da Humanidade na luta contra as alterações climáticas, Donald Trump apenas viu uma oportunidade de negócio: a compra da Gronelândia (tal como os EUA fizeram, no passado, com o Alasca e o Louisiana, entre outros casos), animado pelo seu interesse geostratégico, num Ártico cada vez mais navegável, e pela possibilidade de exploração dos seus recursos naturais, como o carvão e o urânio.

Sobre a urgência de combate ao aquecimento global, o Presidente da única nação que quis abandonar o Acordo de Paris não pronunciou uma única palavra. Preferiu declarar que via aquela compra como “um grande negócio de imobiliário”.

O interesse de Trump na compra da Gronelândia fez soltar gargalhadas por esse mundo fora, como se fosse apenas mais um desvario do pândego, a que não se deve dar importância. É errado: mais do que rir de Trump, os líderes mundiais deviam ter-lhe pedido responsabilidades pelo degelo na Gronelândia e o seu compromisso, como líder de um dos países mais poluidores do mundo, no esforço global para impedir que a situação piore. Até porque é esta postura de Trump que, por exemplo, dá gás a Bolsonaro para também encarar a Amazónia como um negócio privado do Brasil, e não como um património essencial para a sobrevivência da Humanidade. Se ninguém os enfrentar, arriscamo-nos a que se multipliquem os pândegos, cada vez mais perigosos.
Rui Tavares Guedes - Editorial Visão