terça-feira, 10 de julho de 2018

Pensamento do Dia


A cacofonia da autoridade

Um erro tornado comum entre nós consiste em identificar, se não em confundir, a ideia de democracia com processos eleitorais, como se ela a esses se reduzisse. Para além do exercício pleno da liberdade - liberdade de ir e vir, liberdade de pensamento e expressão, liberdade de organização partidária e sindical - há questões de fundo de ordem institucional que dizem respeito à autoridade estatal.

Um dos problemas que o País enfrenta concerne a quem governa, isto é, quem decide em última instância. Há todo um desenho constitucional que estabelece a separação de Poderes, a partir do compartilhamento da autoridade, bem como suas distintas prerrogativas e competências.

Acontece que esse belo desenho termina por não ser efetivo quando os Poderes, além de outros que procuram afirmar-se, não só não se entendem, como abrem espaço a diferentes tipos de arbitrariedades. Não basta um texto que todos dizem respeitar se ele se mostra incapaz de regrar as relações sociais, econômicas e políticas em proveito do bem coletivo.


Formalmente, o País é organizado constitucionalmente em três Poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Quando observamos a realidade, contudo, constatamos que, materialmente, a organização efetiva é bem diferente, com mais outros três Poderes se acrescentando aos iniciais, a saber, o Ministério Público, o Tribunal de Contas da União e a Polícia Federal. Como se não fosse suficiente, alguns destes são constituídos de micropoderes internos que se arrogam independência de suas autoridades hierárquicas.

O Ministério Público aparece não somente como um Poder independente, como tem a pretensão de invadir o espaço de outros Poderes. A partir de uma hermenêutica criativa, cada promotor, por exemplo, passou a gozar de uma independência individual como se fosse a expressão concreta de uma autonomia funcional. As portas ficam escancaradas para cada indivíduo interpretar a lei como bem entender.

O caso das delações em cascata, absolutamente sem controle, é um exemplo de como uma máquina de denúncias invadiu a competência dos demais Poderes, lançando nomes inocentes ao opróbrio. Delações não acompanhadas de provas são ineptas, porém os vazamentos já se tornam nesse meio tempo uma condenação pública.

As duas denúncias ineptas do ex-procurador-geral Rodrigo Janot contra o presidente da República lançaram o País numa profunda crise, tornando inviável a reforma da Previdência, condição sine qua non da tão necessária transformação do Brasil. No papel tudo parecia muito bonito, pois respaldado na luta contra a corrupção; mas, na verdade, o maior prejudicado foi o próprio País. Dentre os seus efeitos, destaque-se o fortalecimento dos privilégios de estamentos estatais que resistem a qualquer mudança.

A Polícia Federal segue os passos do Ministério Público, tentando ganhar para si maior protagonismo, como se fosse um Poder independente. Também ela é composta por micropoderes que se concretizam na ação de delegados que prestam contas apenas a si mesmos. Por exemplo, prorrogam indefinidamente investigações e inquéritos, como se fosse perfeitamente normal, pondo o investigado na posição de culpado potencial, que se vê sem defesa e desguarnecido. Novamente a justificativa consiste na luta contra a corrupção a embelezar qualquer ação, numa invasão constante dos direitos individuais e, conforme o caso, no desrespeito às prerrogativas de outros Poderes.

O Tribunal de Contas da União, de órgão auxiliar do Poder Legislativo, está, na prática, tornando-se um Poder autônomo, ao qual os outros devem prestar contas. Nada contra a formação técnica de seus quadros, muito aprimorada nos últimos anos, exemplar em seus pareceres, mas estamos diante de questões institucionais que não podem ser contornadas. Veja-se o imbróglio dos acordos de leniência quando diferentes Poderes da República se digladiam acerca de quem tem a competência final sobre a matéria, produzindo uma grande insegurança jurídica.

O Poder Legislativo talvez seja o mais desmoralizado dos Poderes, por terem vários de seus membros contas a prestar à Justiça. Acontece que a opinião pública não mais discrimina entre parlamentares honestos e desonestos, como se todos fossem iguais e pertencessem a uma mesma classe política corrupta. Pior do que o pior dos Poderes Legislativos é a ausência de Poder Legislativo.

Assinale-se, ainda, que o próprio Legislativo é responsável por sua própria perda de poder. Incapaz de resolver os seus problemas internamente, recorre a todo momento ao Supremo para que decida sobre o que fazer em cada questão pontual que se apresenta. O STF é provocado sistematicamente por parlamentares e partidos, que abdicam, assim, de suas prerrogativas, colocando-se numa posição de servidão voluntária.

O Supremo tem aproveitado o espaço que lhe tem sido ofertado, ocupando todas as brechas que se lhe apresentem. A lei, que deveria ser o seu limite, é passível de toda sorte de interpretação, produzindo uma hermenêutica criativa tendo como único suporte uma suposta luta pela regeneração nacional. Ministros brigam em público, como se suas palavras fossem a expressão de uma interpretação sacrossanta. Não há sacralidade que aguente!

Esse Poder, por sua vez, é constituído por 11 poderes internos, cada um deles agindo conforme os seus próprios critérios. Como se não bastasse, ministros decidem monocraticamente qualquer questão que estimam constitucional, e mesmo ética, como se lhes coubesse decidir sobre questões de moralidade pública, independentemente de qualquer amparo constitucional.

O resultado de tudo isso é a diluição da autoridade estatal. Uma verdadeira democracia não conseguirá sobreviver a tamanha balbúrdia política e constitucional.
Denis Lerrer Rosenfield

O bem que faz ter direito um Estado de direito

O que faz o capitalismo funcionar é o Estado de direito, o direito à propriedade e o livre comércio. Mas não funciona bem em países onde as leis não são cumpridas, não há segurança jurídica e governam corruptos que beneficiam suas empresas e seus amigos.

Quando há um Estado de direito forte, o capitalismo funciona muito melhor e pode fixar impostos elevados para financiar escolas, hospitais, pensões…
Andreas Bergh, professor da Universidade de Lund e do Instituto de Pesquisas de Economia Industrial em Estocolmo 

O salário-esposa

A aprovação, pela Câmara Municipal de São Paulo, do Projeto de Lei 278, que reajusta em 2,84% os vencimentos dos servidores do Tribunal de Contas do Município (TCM) com retroatividade a partir de 1.° de março, acabou dando visibilidade a um privilégio corporativo que foi concedido a todo o funcionalismo paulistano há quase quatro décadas, mas que até agora era muito pouco conhecido por parte da opinião pública. Trata-se do salário-esposa.


Previsto pelos artigos 89 e 121 do Estatuto dos Funcionários Públicos do Município de São Paulo (Lei n° 8.989/79), em vigor desde outubro de 1979, e regulamentado por decreto editado em agosto de 1981, esse privilégio é concedido a título de “vantagem funcional” aos servidores ativos e aos inativos, desde que suas esposas não exerçam qualquer atividade remunerada. No caso dos servidores que não são casados formalmente, os dois textos legais permitem que o salário-esposa seja concedido às suas companheiras, desde que mantenham vida em comum há pelo menos cinco anos.

Para que as beneficiárias possam receber essa remuneração, sem contribuir em nada para o funcionamento da administração municipal, o procedimento é bastante simples. Basta que os funcionários públicos paulistanos interessados em dar a suas mulheres ou companheiras esse mimo - à custa dos contribuintes - assinem um requerimento padronizado aprovado pela Secretaria de Administração, apresentem certidão de casamento ou um documento que comprove vida em comum e assinem uma declaração afirmando que as informações prestadas são verídicas. Tão ou mais surpreendente é o fato de que, a exemplo da Prefeitura de São Paulo, outras prefeituras paulistas também concedem esse privilégio. Graças a uma lei aprovada em 1968, o salário-esposa é concedido para os servidores públicos do Estado de São Paulo, com a condição de que não recebam importância superior a duas vezes o valor do menor vencimento pago pela administração estadual.

O salário-esposa é tão absurdo e imoral que, dois dias depois do aumento concedido aos funcionários do TCM, alguns advogados paulistanos ajuizaram uma ação popular contra a Prefeitura, pedindo a suspensão imediata de seu pagamento em toda a administração pública direta e indireta. Segundo eles, além de afrontar os princípios da moralidade e da razoabilidade previstos pela Constituição, acarretando danos ao erário, esse tipo de benefício configuraria uma forma de discriminação remuneratória, já que o estado civil de qualquer servidor municipal não tem qualquer correlação com as funções por ele desempenhada.

Invocando os mesmos argumentos, no final de 2017 um grupo de promotores do Ministério Público do Estado de São Paulo já havia tomado uma medida idêntica, acionando judicialmente a Prefeitura de São Carlos. A ação foi acolhida pela primeira instância, que concedeu liminar suspendendo o pagamento do benefício até o julgamento de mérito.

O mais surpreendente é que, ao manifestar-se nesse processo, os técnicos do TCM endossaram os argumentos jurídicos dos promotores. Lembraram, inclusive, que o salário-esposa gera dano público para as prefeituras, sob a forma de “despesas desarrazoadas”. Já ao refutar a ação popular ajuizada no final da semana passada em São Paulo, o TCM informou que, atualmente, nenhum de seus servidores recebe salário-esposa. Na administração municipal, porém, o benefício é pago a um grupo de funcionários da Câmara e a 12 mil servidores da Prefeitura, tendo custado cerca de R$ 650 mil aos cofres paulistanos, em 2017.

O salário-esposa se soma às dezenas de outros penduricalhos pagos ao funcionalismo público. Sua existência é mais uma demonstração de como as diferentes instâncias de governo põem os interesses de seus servidores à frente dos interesses dos contribuintes, que pagam impostos com seu trabalho sem receber a contrapartida de serviços públicos com um mínimo de qualidade.

O Habeas Corpus e o abismo da política

A semana terminava irremediavelmente morta, nos lamentos pela sorte da Seleção Brasileira, na Copa do Mundo. Um sentimento de perda e de mesmice tomava a sala e se misturava aos aromas do almoço de domingo. Seria o tédio, não houvesse no país tantos desacertos; não houvesse essa incapacidade de rearrumar a casa após a tempestade que, é verdade, nunca passa e vai delineando o dilúvio.

No Brasil destes dias, não há espaço para o luto quanto menos para resguardos. A emoção e a instabilidade são a lei desta quadra histórica. A notícia chegou pelo rádio, pela TV; na internet e nas notificações de WhatsApp que soavam frenéticas no celular: surpreendentemente, um desembargador de plantão resolvera acatar o Habeas Corpus impetrado pelos advogados que pediam a liberdade do ex-presidente Lula. De um lado, a euforia; de outro, a fúria. Não havia dúvidas, o país ferveria nas horas seguintes.

O episódio deixa, porém, algumas certezas: 1) o vale tudo para livrar os políticos, de qualquer agremiação, das garras da Lava Jato está posto sobre a mesa; 2) o Poder Judiciário, tomado pela política, entrou em pane, perdendo a capacidade de arbitrar conflitos e, portanto, a previsibilidade; 3) um perigoso e desconfortável ambiente instável será a lógica desta eleição. O país costeia o abismo.

Ao tentar por mais uma vez libertar o ex-presidente Lula de sua cela na prisão de Curitiba, o PT buscou o caminho das pedras trilhado também por tucanos e emedebistas, volta e meia libertados por ordem de ministros do Supremo Tribunal Federal. Como se sabe, há no STF uma prática que tem se estabelecido como normal, em que ministros autocraticamente e ou turmas de ministros deliberam Habeas Corpus ou anulam prisões ao arrepio de posicionamentos antes estabelecidos pelo Plenário da Corte.

Pode-se afirma que há no STF não apenas duas turmas, mas, pelo menos dois times — ou duas bancadas que se contrapõem. Seus protagonistas são, de um lado, Gilmar Mendes e José Antônio Dias Toffoli, mais críticos da Operação Lava Jato e mais condescendentes com os réus; de outro, Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin, mais duros e favoráveis ao tratamento que tem sido dispensado pela Lava Jato a seus réus.

(Quem está certo, só os valores ou a torcida de cada um serão capazes de dizer)

Pois, em busca de um mesmo ambiente e circunstâncias, deputados do PT recorreram ao plantão do Tribunal Regional Federal do Rio Grande do Sul (TRF-4) na busca de um genérico de Gilmar Mendes. Em sentido oposto, o desembargador Rogério Favreto, com o mesmo princípio ativo, talvez avaliasse libertar o ex-presidente. Jus Sperniandis, direito de reclamar. Mas, é claro, foi também um movimento político calculado para criar um fato.

Com alguma sorte e desatenção, o HC poderia libertar Lula e reestartar. Mesmo não sendo candidato, o ex-presidente é capaz mobilizar e articular a política de um modo que o PT é incapaz de fazer. Quando menos, a própria negativa aguçaria o discurso de vitimização, demonstrando que, em se tratando do petista, o rigor parece maior.

O frenético vai-e-vem de despachos evidenciou o desgaste das instituições de um modo no geral, do Judiciário, em particular. Também obrigou o juiz Sérgio Moro a se expor, agindo para retardar a ordem de Favreto e ganhar tempo até que demais membros do TRF-4 frustrassem os aliados de Lula.

Foi, enfim, uma tarde de domingo sem futebol, mas de Ópera Bufa; confusão que explicita os desacertos e os problemas do país. E agrava-se o conflito entre as torcidas políticas.

Adversários de Lula denunciam as relações de Dias Toffoli e, agora, Favreto com o PT. Mas é verdade que se calam quanto à proximidade — em fotos, festas e histórias — de Sérgio Moro, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes com PSDB e MDB. Acusações de “golpismo” cruzam os céus do país. Aponta-se dedos e liquida-se a possibilidade de diálogo, base da política. O país não sai do buraco porque não consegue parar de cavar a terra sob os pés.
Carlos Melo 

Mala do Brasil


O baile da ilha Fiscal e a festa dos ratos

Em 9 de novembro de 1889, a agonizante monarquia brasileira organizou um baile em homenagem aos oficiais do navio chileno Almirante Cochrane. Um baile grandioso, um exagero de comidas e bebidas sem limites, para mais de 4000 participantes entre convidados e penetras. Ocorreu na ilha Fiscal, na baia da Guanabara, pois lá se localizava a alfândega da época, onde se arrecadava dinheiro para o Erário Público. O nome do navio chileno era em honra a um mercenário escocês, Thomas A. Cochrane, que vendeu suas habilidades navais para as incipientes marinhas do Brasil e do Chile no período da independência.


A ilha antes da construção da Alfândega era conhecida como a ilha dos Ratos. Seis dias após o baile, a monarquia terminou. (GOMES, L., 1889, ed. Globo). Como último ato público um regime moribundo gastou dinheiro público com uma dispendiosa festa, para homenagear marinheiros de um outro país, cujo nome do navio era de um estrangeiro mercenário e oportunista. Creio que a ilha deveria continuar se chamando dos Ratos.

O regime político mudou mas a essência do baile continua. Os “ratos”, agora eleitos, seguem devorando o erário público em “bailes” diários e cada vez mais dispendiosos. Como isso pode mudar? Há várias respostas para essa pergunta. Arrisco algumas:

1.Intervenção militar, golpe de Estado. Rasga-se a Constituição Federal e começamos de novo. Obviamente que isso não daria certo. A história mostra que, principalmente na América Latina pródiga em golpes de estado, isso nunca levou a uma necessária transformação. No início pode-se ter uma sensação de melhora, alguns políticos opositores fogem, outros são presos, mas depois a vida volta ao “normal”. Não creio em solução de força.

2.Eleger os “líderes” carismáticos de plantão, os salvadores da pátria, os que tem a certeza de tudo e todas as soluções para nossos males seculares. Esta opção é a que está nos primeiros lugares nas pesquisas eleitorais, com pré-candidatos autodeclarados de direita ou de esquerda. Não importa a ideologia ou o ideário político, o importante é vender ilusões na campanha, uma vez eleito tudo será diferente. Não creio em “salvadores da pátria”.

Tentar algo novo, que muitos chamarão de utópico. As mudanças que transformam se iniciam com novas ideias e ideais. Assim, creio que devemos incentivar a que todos votem, a lutar por uma baixa abstenção. Não votar em branco e nem anular o voto, MAS não votar em políticos tradicionais. Votar apenas em candidatos íntegros, com novas ideias. Creio em soluções democráticas e participativas.

Posso ter a certeza que esses, se eleitos, vão fazer as reformas que o país precisa? Não, não posso, mas o que sei é que se os de sempre ganharem, nada vai mudar. Nesse caso o Brasil permanecerá sendo o país do déficit fiscal para a alegria dos “ratos” e o baile continuará.
Celso Tracco

Brincando à beira do abismo

No lúdico Brasil, que já viveu as trevas da ditadura e a queima das liberdades no altar do autoritarismo, pode-se brincar com tudo, menos com a democracia.

Fechada sua porta, não existe por trás dela nada além da barbárie e da miséria que arrasta consigo
Juan Arias 

A instabilidade é o poder

A pergunta que importa é muito clara.

Quem ganhou e quem perdeu diante desta tentativa de deputados e advogados de pedir para soltar Luiz Inácio Lula da Silva e do magistrado plantonista de mandar soltá-lo?

A campanha eleitoral tem sido feita nas mídias sociais enlouquecidas. Nas ruas vazias. No horário eleitoral que ainda não chegou. E, sobretudo, nos recursos judiciais dos códigos de processo penal e civil.

Já que juízes titulares não soltam Lula, apela-se para juízes plantonistas. Médicos de emergências?

Será que realmente acreditaram que poderiam soltá-lo? Ter sucesso?

Acredito que não.


Qualquer análise de risco judicial demonstraria que a pré-candidatura não era fato novo, mas fato requentado. Que o Supremo Tribunal Federal já decidira pela prisão sabendo da pré-candidatura. Que, diante de decisão de tribunal, plantonista não poderia dar ordem a juiz ou agentes da Polícia Federal.

Por que, então, enquanto agiam esses terceiros em seu favor, assumindo risco judicial tão alto, Lula ficou estrategicamente quieto?

O que ganhariam diante do perder provável?

Ganhariam mídia, imagens e narrativas, locais e globais, de Lula sendo solto mesmo que por lapso de tempo. Pautariam a mídia no fim de semana. Ainda mais sem Copa do Mundo.

O maior concorrente de Lula e do PT, nestas eleições, não é Ciro Gomes, Marina Silva, Geraldo Alckmin ou Jair Bolsonaro. O maior concorrente é o atestado de réu por corrupção passado pelo Poder Judiciário.

Como contestar esse atestado?

O marketing judicial, patologia da democracia, tem sido nestas eleições tão importante quanto foi no passado o marketing eleitoral.

Este foi o maior desafio. Rachar o Judiciário, colocar dúvida no eleitor. Lula seria candidato perseguido, em vez de ser réu condenado.

Foi essa a mensagem vitoriosa? O tiro saiu pela culatra?

Em Brasília, muitos temem a próxima viagem do presidente Michel Temer à Africa do Sul, no fim deste mês, para a reunião dos países que formam os Brics.

Rodrigo Maia e Eunício Oliveira não vão assumir a Presidência. Tornar-se-iam inelegíveis em outubro. A ministra Cármen Lúcia assumiria a Presidência da República.

Seu vice, o ministro Dias Toffoli, será presidente do Supremo por alguns dias.

Uma nova janela de oportunidade se abriria para a defesa de Lula. Peticionar a Toffoli para beneficiá-lo?

Acredito que não. Seria desestabilizar por antecedência a gestão de Dias Toffoli no Supremo. Rachá-lo de vez.

Mas o fato é que a instabilidade decisória do Judiciário é a nova forma de poder. Poder fugaz. Até mesmo de um juiz de plantão.

A culpa dos nossos fracasso é dos outros

A tradição brasileira de glorificar o Estado, como agente de desenvolvimento, modernizador e instrumento indispensável para resolver as demandas sociais, e a identificação dos Estados Unidos — o famigerado imperialismo americano, raiz primeira do nosso atraso — como o agente causal do fracasso nacional tiveram uma curiosa pré-história ideológica.

Estes dois pilares supostamente explicativos das nossas mazelas nem sempre foram dominantes no debate político. Dois bons exemplos — um no século XIX e outro no século XX — foram André Rebouças e Monteiro Lobato. Ambos criticaram a ação estatal na economia e tiveram os Estados Unidos como referência positiva, enfrentando a contínua demonização dos ianques.


No sentido contrário, numa primeira tentativa de antiamericanismo, ainda em um momento em que a Europa era o padrão econômico-cultural para a elite nacional, Eduardo Prado escreveu “A ilusão americana” (1893). O autor centrou seu ataque no governo Floriano Peixoto e no apoio americano recebido pelo presidente durante a Revolta da Armada. Segundo Prado, “é tempo de reagir contra a insanidade da absoluta confraternização que se pretende impor entre o Brasil e a grande república anglo-saxônica, de que nos achamos separados, não só pela grande distância, como pela raça, pela religião, pela índole, pela língua, pela história e pelas tradições do nosso povo.”

Durante os anos 1930, as empresas e os capitais americanos eram bem-vindos. A visita do presidente Franklin Roosevelt, em 1936, reforçou ainda mais os laços com o Brasil. A influência cultural americana era muito presente, especialmente no cinema. Roosevelt fez questão de destacar esta proximidade, até dando a Vargas um protagonismo hemisférico que não tinha: “Uma coisa eu quero lembrar. Existem duas pessoas no mundo que inventaram o New Deal: o presidente dos Estados Unidos e o presidente do Brasil.” No seu diário, Getúlio anotou que: “Roosevelt mostrou-se muito interessado em auxiliar o Brasil na solução dos problemas de sua defesa militar e econômica.”

Se durante o Segundo Reinado e os primeiros 50 anos da República o sentimento antiamericano nunca foi um elemento expressivo no debate político brasileiro, tudo começou a mudar logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. O início da Guerra Fria trouxe ao Brasil não só o antiamericanismo, como o discurso estatista e, como consequência, o socialismo como uma das alternativas econômicas.

Após a Revolução de 1930, o papel do Estado foi a cada dia mais presente na cena política. Houve, então, uma confluência ideológica entre a esquerda — já nesta época sob hegemonia comunista — com o ultraconservadorismo varguista — basta recordar a ditadura do Estado Novo. Da esquerda veio o discurso antiamericano, já com a alcunha de anti-imperialista; e da ditadura estado-novista veio o nacionalismo. Se na arena política eles eram adversários acérrimos, no campo econômico tinham enorme proximidade. O laço da aliança ideológica foi dado pelo culto ao Estado, que deveria ser fortalecido ao extremo: para a esquerda como um caminho para a ditadura do proletariado; para a direita varguista, como um instrumento de poder.

No pré-1964, o discurso do atraso, com tinturas de “libertação nacional”, ganhou um espaço (e até legitimidade) nunca visto. O atraso econômico brasileiro seria uma consequência do imperialismo americano, ou seja, o nosso fracasso é que tinha possibilitado o sucesso americano. Neste clima de histeria e de manipulação histórica, acabaram virando rotina livros que apontavam até a necessidade da expulsão do Brasil das empresas americanas. Um deles, depois de quase 200 páginas e um discurso monocausal, concluiu que “o nosso país, assim como as nações coirmãs da América Latina, são os financiadores que, em sua miséria, enviam anualmente parcelas maciças de suas riquezas para financiar o ‘colosso revolto do Norte’”. E exortou “os trabalhadores, os estudantes e o povo em geral a unir todos os seus esforços em defesa do Brasil e exigir o banimento da nossa terra de todas as grandes empresas dos monopólios do imperialismo ianque.”

Em meio a este clima político, foi absolutamente natural que as visões de Rebouças ou Lobato acabassem literalmente desaparecendo completamente do debate político. Foram consideradas ingênuas ou datadas. O moderno era fortalecer o Estado, atacar o imperialismo americano e defender o nacionalismo — até com fortes tinturas xenófobas. E o lado oposto, ocupado por interlocutores tão vinculados ao capitalismo estrangeiro — especialmente o americano —, que retirava legitimidade do seu discurso, caracterizado por uma defesa caricata do liberalismo econômico e uma submissão a interesses antinacionais. Dessa forma, um pensamento original que poderia dar sustentação a uma visão de mundo que combinasse um projeto de desenvolvimento capitalista, com equilíbrio entre a presença nacional e estrangeira, foi suprimido da cena política. E a demonização do estrangeiro — especialmente do americano —, o inchamento do Estado e a vazia retórica nacionalista dominaram por mais de meio século o campo das ideias e da prática político-administrativa. E quem perdeu — e como! — foi o Brasil.
Marco Antonio Villa