segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


Efeito borboleta

"A gente se move facilmente no que é grande e distante / difícil é apreender o que é próximo e singular", ironiza um epigrama do austríaco Franz Grillparzer. É outra luz de compreensão para o momento político norte-americano, em que a candidatura de Kamala Harris parece avivar chamas da democracia em meio ao seu declínio incipiente na maior potência mundial. Para o escritor angolano João Melo, a eventual vitória de Harris será boa para a sociedade americana e para o mundo, não por qualquer razão geopolítica, mas pelo "efeito borboleta" nos demais países.


O raciocínio é vizinho ao do epigrama, pois se atém a uma singularidade, deixando na sombra o "grande e distante", isto é, a geopolítica imperial. Essa é a dimensão em que circula o slogan trumpista "Maga" ("torne a América novamente grande"), que só parece algo de novo quando se esquece que o mote de Reagan era"America is back again", ou seja, "a América está de volta". Mero delírio cinematográfico de conforto à nação fragilizada pela derrota no Vietnã, acompanhada à distância televisiva por um povo cujos filhos precisavam se drogar na cena de guerra para aceitar que estivessem morrendo por nada.

Mas um delírio autopublicitário, que obtém confiança paradoxal, "aquela que se dá a alguém em função de seu fracasso ou de sua ausência de qualidades" (Jean Baudrillard, em "América"). Nada de credibilidade real, e sim crença sectária nas profecias de um chefe qualquer. Desde Reagan, a América estaria atravessando o que Baudrillard chamou de "histeresia de potência", isto é, um efeito que continua depois que a causa desapareceu e se desenvolve por inércia. Trump, puro efeito de tevê, é imagem dessa potência mítica e publicitária, agora impulsionada por redes protofascistas.

Por trás dessa grande ilusão, está a realidade da aliança do complexo militar com o capitalismo financeiro. Se eleita, Harris nada poderá fazer para alterar o capitalismo bélico, assim como nada puderam Obama ou Biden. Pelo contrário, estimularam a simulação imperial, incrementando guerras e matando inimigos mundo afora. Foram, porém, operadores do "efeito borboleta", que é o percebido como próximo nos países às voltas com instabilidades democráticas.

Neles, o discurso democrata de Kamala Harris, por mais ambíguo que seja, ainda oferece o melhor da América, a sugestão de liberdade política, que faz a diferença entre o horror do grande e a normalidade do singular. Para quem vive em espírito público de qualidade negativa, movido a ódio e baixarias, é uma oferta confortável. Trump, claro, é a obscenidade da cena primitiva americana. Se eleito, não será apocalipse nenhum, mas um "flatus" desagradável da impotência moral da potência.
Muniz Sodré

Venezuela é um caso perdido para Lula

Quem quiser que se iluda: a não ser que haja uma grande rebelião popular, Nícolás Maduro se consolidará como ditador da Venezuela. Usará de todos os recursos institucionais de que dispõe para sua permanência no poder por mais seis anos, reprimirá duramente a oposição e contará com apoio internacional suficiente para sustentar essa posição. Ainda que enfrente grande reação no Ocidente democrático, liderada pelos Estados Unidos. Os esforços do Brasil, do México e da Colômbia para que o resultado das urnas seja respeitado fracassaram.

A Venezuela conta com forte apoio dos seus militares e do eixo euroasiático formado por Rússia, China, Coréia do Norte e Irã, além do apoio de Bolívia, Cuba, Honduras e Nicarágua. Esse sistema de alianças garantirá a sobrevivência do regime venezuelano, mesmo diante do bloqueio econômico que certamente sofrerá dos Estados Unidos e da União Europeia, além de Argentina, Chile, Costa Rica, Panamá, Peru, República Dominicana e Uruguai, países com os quais rompeu relações diplomáticas. Os esforços do Brasil e da Colômbia, que ainda tentam uma saída negociada para a crise venezuelana, estão fracassando.

É uma situação delicada para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que sofre grande desgaste interno em razão de suas relações históricas com o chavismo e uma posição que muitos consideram dúbia, por causa de declarações que contemporizam com Maduro e, de certa forma, teceram o roteiro que o venezuelano pretende seguir para se legitimar perante o Brasil. Lula havia dito que a oposição deve contestar os resultados oficiais na Justiça, como se houvesse independência do Legislativo e do Judiciário na Venezuela. Maduro agarrou a proposta com as duas mãos.


É uma espécie de feitiço contra o feiticeiro. O ativismo diplomático de natureza ideológica de Lula na América Latina, desde a posse, coleciona fracassos, porque não dá conta das contradições e diversidade política da região, ao contrário da nossa tradição de política externa pragmática e independente, que poderia ser mais bem sucedida sem esse viés esquerdista. Todos os setores democráticos que apoiaram Lula contra Jair Bolsonaro, em 2022, para interromper a deriva autoritária em que o país estava, agora cobram seu posicionamento contra a permanência de Maduro no poder. Não foi por falta de aviso.

A possibilidade de o Brasil, a Colômbia e o México serem fiadores de uma solução negociada do impasse subiu no telhado: Maduro precisaria reconhecer a derrota ou convocar novas eleições, sob supervisão internacional. Isso dependeria de uma escalada de endurecimento da posição dos Estados Unidos e de uma fissura interna nas Forças Armadas. Não parece ser o que vai acontecer.

A América Latina passa por uma curva da história, moldada pela presença crescente da China, com investimentos em infraestrutura e recursos vitais, que desafiam a influência dos Estados Unidos na região. A China é um parceiro valioso, principalmente para o Brasil, apesar dos riscos de dependência econômica.

Essa disputa com os Estados Unidos, porém, no caso da Venezuela, tem um ingrediente muito perigoso: o pacto militar com a Rússia, que fornece equipamentos bélicos às Forças Armadas venezuelanas. Os militares ganham mais força e poder durante o governo de Hugo Chávez, entre 1999 e 2013. Sua fidelidade ao governo sustenta-se no poder (ocupam cargos importantes), no dinheiro (controlam petróleo e minérios) e no medo (a dissidência não é tolerada).

A tensão entre Venezuela e Guiana sobre o território do Essequibo, por causa do petróleo, exacerba essa influência militar. A presença dos Estados Unidos na América Latina continua hegemônica, mas precisa oferecer alternativas aos investimentos chineses, manter o equilíbrio geopolítico e respeitar a soberania dos países da região. Diplomacia e cooperação precisam caminhar de mãos dadas com a democracia, os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável.

Um ambiente de paz e equilíbrio na região depende muito do posicionamento do Brasil, que tem 1.987.000 militares na ativa, além de 84 milhões de reservistas. O Brasil possui 723 aviões, 255 helicópteros, 1.707 veículos terrestres, 180 lançadores de foguetes, 110 embarcações e cinco submarinos de combate. Em contraste, a Venezuela conta com 280 aviões, 104 helicópteros, 700 veículos terrestres, 52 lançadores de foguetes, 50 embarcações e dois submarinos.

Entretanto, por causa da Venezuela, crescem a instabilidade e o risco de confrontos na região. No caso da Guiana, a presença de ExxonMobil e as ameaças de anexação de Essequibo pela Venezuela farão com que os americanos queiram implantar uma base militar no país vizinho, uma ex-colônia britânica. O foco dos Estados Unidos na América Latina é a garantia dos seus interesses comerciais, políticos e geoestratégicos, e a consolidação de sua posição como liderança em todo o continente americano.

O Brasil precisa ser claro em relação à sua parceria com os Estados Unidos, um aliado estratégico regional para questões de segurança, como na Segunda Guerra Mundial, quando o país se juntou aos aliados no combate ao nazifascismo na Europa. Mas também como um parceiro comercial, pois é o principal destino de nossas exportações industriais, afora o potencial de parcerias nos campos do pré-sal.
Luiz Carlos Azedo

O governo da Venezuela é uma ditadura de esquerda

O governo da Venezuela é uma ditadura. Não importa que Lula, seu assessor Celso Amorim e o PT afirmem o contrário. O regime de Nicolás Maduro não preenche nenhum dos requisitos de uma democracia, a começar pelas eleições farsescas, como a realizada no domingo (28).

Além de se recusar a divulgar as atas do pleito, o governo interferiu na disputa ao impedir candidaturas da oposição e coagir eleitores.

Como em toda ditadura, o aparato policial do Estado persegue jornalistas e dissidentes. No Índice de Liberdade de Imprensa da ONG Repórteres sem Fronteiras, a Venezuela é a 159ª colocada entre 180 nações.


Estima-se que 125 pessoas foram mortas nos protestos de 2017. O Tribunal Penal Internacional levantou mais de 1.500 denúncias de abusos das forças de segurança, enquanto a ONU computou 122 casos de tortura e violência sexual.

O governo da Venezuela é de esquerda. Não importa que militantes e até parte da imprensa digam que não é —no caso dos jornalistas, solapar dados históricos e princípios básicos da economia e da ciência política desse modo é vergonhoso.

Maduro é cria do chavismo, uma ideologia populista passadista que se apoia no anticolonialismo de Simón Bolívar e no discurso socialista dos anos 1960, como a crítica ao livre mercado e ao imperialismo dos EUA. No Índice de Liberdade Econômica de 2023, a Venezuela está na posição 174 —à frente apenas de outras duas ditaduras de esquerda, Cuba e Coreia do Norte.

Diz-se que seria de direita pois é militarista, tem apoio de evangélicos, não legaliza o aborto, nem respeita homossexuais. Mas tal argumento é um disparate, já que o esquerdismo de Maduro é datado, relativo ao período da Guerra Fria, não o em voga identitário, focado nos costumes.

O governo da Venezuela é uma ditadura de esquerda. Os cerca de 8 milhões de refugiados do país, que escaparam da fome e da violência estatal, a sentiram na pele. Não importa o malabarismo conceitual do PT, da militância e de parte da imprensa.

A mentira voa, a verdade coxeia

Os episódios de violência baseados na difusão de falsidades não começaram agora. Há uma história longa de notícias falsas potenciarem movimentos de violência coletiva ou condenações judiciais infundadas, invariavelmente com o racismo e a xenofobia como panos de fundo. Os Protocolos dos Sábios de Sião, o caso Dreyfus ou o julgamento de George Edlji no Reino Unido são casos exemplares do início do século XX, todos sobejamente retratados, que vale a pena recordar por demonstrarem que as notícias falsas não nasceram hoje e têm consequências.

Sintomaticamente, Jonathan Swift, no século XVIII, alertava já que “uma mentira voa, enquanto a verdade vem a coxear atrás dela”. Mas, do mesmo modo que é errado olhar para a forma como a difusão de falsidades se traduz em violência como uma novidade histórica, é também equívoco desvalorizar a originalidade como isso acontece nos nossos dias.


Recordo isto depois de esta semana, no Reino Unido, um jovem de 17 anos ter assassinado três crianças — e ferido outras oito com gravidade — e ainda dois adultos, num ataque com uma faca durante uma aula de dança dedicada a Taylor Swift. A polícia britânica divulgou pouca informação sobre o ataque bárbaro, até porque o acusado é ele próprio menor. Entretanto, sempre foi assegurando que o crime não estava a ser investigado como ataque terrorista, e o The Guardian escreveu que terá sido motivado por perturbações mentais, enquanto a BBC avançou que o suspeito não tinha ligações a movimentos islâmicos radicais.

De pouco valeu esta informação de duas fontes credíveis ou os apelos dos familiares das vítimas para que o luto fosse respeitado. Nas redes sociais, em particular no X, figuras proeminentes da extrema-direita britânica logo se apressaram a sugerir que o atacante tinha chegado de barco ao Reino Unido e que aguardava resposta a um pedido de asilo. As palavras tiveram consequências: primeiro em Southport, depois por todo o Reino Unido um conjunto de motins levou à detenção de mais de cem pessoas, com 50 polícias feridos.

É natural que uma tragédia como a de Southport gere revolta, mas como é que se passa da justa indignação com a barbárie para motins de pendor racista? A resposta está num ecossistema sociopolítico disponível para acreditar em falsidades e na existência de mecanismos rápidos para a sua propagação.

São complexos os motivos pelos quais a ansiedade económica se transformou também em ódio face ao outro e, em particular, num poderoso movimento de islamofobia. A ambição securitária de regresso a sociedades culturalmente homogéneas (um passado mitificado que nunca existiu) é, hoje, uma alavanca política poderosa. Dir-me-ão, sempre foi: o racismo e a xenofobia estiveram na génese da maior barbaridade do século XX, o Holocausto. É um facto. Mas não secundarizemos o que é novo.

Ao contrário do passado, a inexistência de um movimento social organizado não impede a mobilização política. Pelo contrário, a fragmentação política até se revela vantajosa, pois acaba por se transformar em convergência na ação. Acima de tudo, as redes sociais transformaram a validade da centenária asserção de Jonathan Swift. Em particular o X, agora detido pelo entusiasta do trumpismo Elon Musk, funciona com cada vez menos regulação e promove um ciclo imparável: primeiro, contas anónimas difundem uma falsidade, que logo é amplificada por figuras proeminentes da extrema-direita, para depois ser transformada em ação política nas ruas.

As mentiras hoje voam à velocidade da luz, enquanto a verdade fica paralisada a assistir. Também aí radica o deslaçar político das nossas sociedades.