terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O insustentável peso de ser

Em seu aclamado livro “A Insustentável Leveza do Ser” (1984), o tcheco Milan Kundera mostra que nossas vidas são marcadas pelos signos do peso ou da leveza, condicionantes do modo de ser, que levam uns e outros a ser diferentes nas atitudes em relação ao amor, à compaixão, à solidariedade, às mudanças; enfim, aos valores humanos. A leveza está mais próxima a qualidades positivas, já o peso carrega um viés negativo, nos termos da observação feita pelo filósofo grego Parmênides, citado por Kundera.

Os quatro personagens do romance vivem, cada um a seu modo, o dilema da escolha entre a leveza e o peso. Leitura literária à parte, fiquemos na dualidade peso e leveza para um pequeno exercício de análise política, a começar pela dúvida sobre a pertinência da questão: haveria um insustentável peso do ser? Arriscamo-nos a responder de maneira afirmativa.


O argumento que se pode usar nessa direção é a divisão entre dois territórios da política: um, habitado por valores positivos, abençoados pela deusa da democracia, abrangendo liberdades, direitos, deveres, respeito, cumprimento da norma, obediência ao rito. Entre outros, claro. Outro território é o contraponto, que agrega desrespeito, censura, discriminação, restrição às liberdades e aos direitos, incentivo ao ódio e quebra da liturgia institucional.

Pois bem, são essas as duas bandas do nosso país. Não é o caso de descrever quem faz parte do lado A ou do lado B. Mas é imperativo cívico apontar desvios de conduta daqueles que se investem de autoridade, a partir dos protagonistas legitimados pelo voto popular. Nesse ponto, cabe nominar sua excelência, o mandatário-mor da nação, presidente Jair Bolsonaro.

Por mais que se tente estudar e explicar a índole do ex-capitão e parlamentar que passou 28 anos no Parlamento nacional, é tarefa das mais árduas compreender a razão pela qual continua ele a usar um vocabulário esdrúxulo, de baixíssimo nível, agressivo, discriminatório, que afronta todas as classes sociais —à exceção de hordas engajadas numa luta ideológica. Luta que, aliás, não tem a magnitude a ela atribuída, tanto pelo fato de que a principal liderança do PT, condenada em três instâncias, não tem mais poder para mobilizar as massas como pela óbvia observação de que exacerbar o discurso é um jogo que interessa aos adversários.

O presidente está muitos níveis abaixo da liturgia que cerca o mais alto posto da nação. Quase todos os dias, com bananas de braço e expressões, algumas chulas, desferidas contra “pseudo-inimigos” ou aqueles que não comungam com suas ideias, o presidente desce do altar do cargo para a sarjeta. E o que mais impressiona é o silêncio da qualificada equipe de generais de alto nível que o cerca.

Por que não aconselham o chefe a usar linguagem castrense da caserna, bem-educada e respeitosa? É inimaginável que sua excelência, em tom de piada, use um termo jornalístico para abrigar a mais vil insinuação (de duplo sentido) que já se ouviu de um presidente da República para sujar a imagem de uma repórter, Patrícia Campos Mello, desta Folha. Algo não se encaixa. Será assim até o fim do governo? Ou essa artilharia expressiva terá continuidade nos próximos tempos?

Voltemos ao livro “A Insustentável Leveza do Ser”. Se a liturgia do poder não for resgatada, com respeito à linguagem do alto mandatário, se o deboche ampliar seu volume contra a imprensa, se o presidente da República fizer ouvidos de mercador nesses tempos de Brasil em transição, vai ser difícil, muito difícil, sustentar o “peso bolsonaro de ser”.
Gaudêncio Torquato

Retroescavadeira e bala

Retroescavadeira e bala. Essa — a do aterramento, do excludente de ilicitude moral — é a linguagem brasileira corrente. O próprio espírito do tempo. Retroescavadeira e bala. Remover entulho — para a nova ocupação de espaços de poder outrora políticos — e atirar, a imposição de um modo de comunicar instigador de violências e que não se acanha ante a possibilidade de matar.

É onde estamos: a truculência que se pretende manifestação política; que despertou — que anima — a alma ressentida dos que dão corpo à febre reacionária; que faz sentido, vende transgressão, a uma juventude desesperançada em busca de formas para existir.


Retroescavadeira e bala. As forças de destruição que materializam a percepção da democracia como empecilho. O próprio espírito do tempo. O Zeitgeist que autoriza — não pense que sem encadeamento, leitor — jornalista a dar na cara de entrevistado; que legitima parlamentar a se valer de calúnia para disseminar a misoginia característica do reacionarismo que capturou o imaginário nacional; que endossa o investimento do presidente da República contra a imprensa, difamando uma mulher, como se o ofício fosse prostituição; que impulsiona o chefe do Executivo federal a desafiar governadores; que estimula um general do Exército — chefe da inteligência institucional do governo — a apostar na instrumentalização do povo nas ruas para emparedar o Poder Legislativo; que fundamenta o sentimento da elite financeira que visita a China e volta encantada com aquele tipo de sistema em que tudo se ergue com rapidez, no que vai contida, embora não declarada, a ideia de que a vida seria mais fácil sem essas chatices de democracia representativa e de estado de direito.

Retroescavadeira existe — Cid Gomes sabe — para limpar terreno; esvaziá-lo do indesejado. Avaliemos, pois, a mensagem difundida por seu uso contra pessoas. Avaliemos a mensagem disseminada por seu uso — nas mãos de uma autoridade, contra cidadãos — como ferramenta de ação política. Ou alguém duvidará de que o recurso empregado pelo senador — ex-governador — contra os policiais cearenses fora pensado como um gesto político para efeito midiático? Decerto calculou que sairia do teatro como um corajoso herói em nome do povo. Esse é o lugar autoritário em que a razão se acoelhou: o do trator como expressão do discurso político.

Veja, leitor, a gramática da negociação que prepondera: um senador da República que trata policiais grevistas tentando lhes passar o trator por cima; uma polícia amotinada que tapa o rosto e reage metendo bala num senador da República.

Não é pouca a ousadia desses agentes da segurança pública, os primeiros a violar a fronteira — a da prudência — que separa Estado e bandidagem. A Constituição veda qualquer tipo de movimento grevista por policiais — o Supremo foi expresso a esse respeito em decisão de 2017. Aqueles policiais, no entanto, não apenas se amotinaram em greve; mas foram às ruas para promover o terror — determinar toque de recolher, mandar fechar o comércio, como fazem os traficantes — e ameaçar a população que juraram proteger. Mais precisamente: usaram a vida da população para chantagear governante.

Para que não reste dúvida: um sujeito, armado pelo Estado como prerrogativa de sua função profissional, que atira — que usa sua condição de vantagem — não em defesa da sociedade, sob o que regra a lei, mas em benefício de interesses corporativos, não é policial. É miliciano.

Não tardaria, entretanto, para que os teóricos da revolução reacionária começassem a ensaiar — aliás, assim como quando da greve criminosa dos caminhoneiros — o texto de que o terrorismo dessa milícia seria manifestação popular de liberdade... A quem interessa incentivar — dar lastro intelectual — a levantes policiais Brasil adentro? A quem interessaria — senão a um projeto autocrata — o enfraquecimento dos governos estaduais?

Atos como os havidos no Ceará — conjunto de erros alarmante — ilustram o conceito de que, testada com rara frequência, esticada sob intensidade sem precedentes em tempo democrático, a corda da democracia, quando brevemente afrouxada, nunca volta ao lugar anterior. As imagens de um senador que pretendeu tratorar indivíduos, os quais poderia matar, e que recebe como resposta tiros disparados a esmo, em meio à multidão, por policiais em atitude de milícia, corroboram isso; são a expressão de que os envolvidos — todos os enredados na barbárie de Sobral — já se moviam num terreno avançando da regência autoritária, e sem necessariamente perceber.

A ideia de que se deva tomar partido no que é — de qualquer possível lado — barbárie absoluta representa a falência do equilíbrio político entre nós. A brutalidade tribalista é a régua identitária mais atraente que há.

Saravá folia

Então. A Mangueira levou Jesus pro Sambódromo. E foi bonito. Desfilou Jesus, rebelde com causa, na sua indignação e no seu calvário. Um Jesus de hoje, que chamou de Jesus da gente, e apresentou com cara e corpos de mulher, de índio. Fechou com um crucificado gigante – negro, jovem, de cabelos descoloridos, torturado e baleado como dezenas dos meninos mortos, todo dia, nas favelas e nas periferias Brasil afora.
Nasci de peito aberto, de punho cerradoMeu pai carpinteiro, desempregado Minha mãe é Maria das Dores Brasil Me encontro no amor que não encontra fronteira Procura por mim nas fileiras contra a opressão
Seguiu indagando: Mas será que todo povo entendeu o meu recado? Porque, de novo, cravejaram o meu corpo Os profetas da intolerância  Favela, pega a visão Não tem futuro sem partilha Nem messias de arma na mão&
E quem não entendeu o recado. Quem é mesmo o messias de arma na mão? 

"Mangueira, seu samba é reza". Era o refrão.

A Grande Rio ensinou: Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé. Eu respeito seu amém. Você respeita o meu axé. Portela foi direta: Nossa aldeia é sem partido ou facção. Não tem bispo, nem se curva a capitão. 

Beija Flor seguiu no papo reto: Por mais que existam barreiras, eu vim pra vencer no teu ninho. E é bom lembrar, eu não estou sozinho.

Em São Paulo, a Mancha Verde emendou com homenagem à luta das mulheres: É preciso lutar, exaltando Penhas e Marias/Que clamam por direitos, igualdade...

Concorrente no futebol e no samba, a Gaviões da Fiel, com amor, cobrou paz: Por que viver num mundo sem amor? Se a paz aqui na terra acabou/E o caos é o grande rei deste lugar, que faz a mãe chorar...


Contundente, a São Clemente apostou que “o burro vai tomar a decisão”. Falou de jogo armado, de conto do vigário – e vigário de gravata, que abençoa a mamata. Lembrou dos laranjas – uma é três e três é 10. E deu a letra:
Só trabalho com dinheiro Chamou o VAR, tá grampeado Vazou, deu sururu Tem marajá puxando férias em Bangu&...Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu E o país inteiro assim sambou Caiu na fake News.
União da Ilha fez alegoria do desrespeito, desfilando poderosos, de faixa verde amarela no peito, sentados em privadas, de calça arriada. Tipo: “obrando e andando” para o povo.

Nem a pequena Feitiço do Rio deixa por menos. Ainda longe das grandes, no Grupo de Avaliação, desfila no sábado 29, fechando o carnaval e fevereiro dos assombros, de monstrengos e assombrações de carne e osso. Com samba homenagem à negra Luísa Mahin, rebelde de todas as lutas da Bahia do século XIX, manda:
Quilombo, a fuga é forçada. Roubaram saúde e educação. Justiça, ainda vedada. Imprensa esquecida, sem opinião.
No quintal da chefia nacional, o tradicional bloco Pacotão, famoso por fazer a imprensa com opinião e escrachar desditas do poder, repete a façanha e, no pé do Queiroz, solta marchinha com milícia e laranjal:
O Pacotão vai escrachar nesse carnaval, essa milícia e também o laranjal. O seu Queiroz, que vida boa, engordando a rachadinha da patroa. Esse Queiroz né mole, não, também remexe no cofrinho do patrão
Foi mole, não. Teve mais. Samba, marchinha e recados. Brasil afora, simples, alegre e direto, o Carnaval faz desapego à cerimônia com o poder e os poderosos da vez. Zoando, canta o país no córner, surrado e calado, apanhando feio de falsos profetas – senhores dos preconceitos, milicianos das violências.

Pensamento do Dia


Em nome da lei

Quando o presidente Donald Trump declarou ser o principal responsável pelo cumprimento da lei no seu país, ele não estava rompendo formalmente nenhum preceito legal. Mas, quebrou uma regra de ouro do presidencialismo democrático, que demanda de presidentes a neutralidade nos processos judiciais. O procurador-geral é nomeado pelo presidente e tem, em princípio, o comando sobre os inquéritos. Trump politizou o cargo, como tem feito com vários outros com poder regulatório.

Desta forma, esvazia instituições de seu papel de freios e contrapesos no processo judicial, na proteção ambiental e na regulação do mercado.

No caso da Justiça, o presidente pressionou o procurador-geral, buscando interferir no sentenciamento de um amigo, Roger Stone, comprovadamente envolvido em obstrução de justiça e manipulação de testemunhas, no caso da interferência da Rússia nas eleições. A pressão de Trump não conseguiu absolver o companheiro, mas logrou reduzir sua sentença.

A invasão do espaço judicial pelo presidente, com objetivos pessoais e políticos, ocorreu logo depois que ele foi absolvido pelo Senado no processo de impeachment, por obstrução das investigações da Câmara.

Este é apenas um dos perigos envolvidos nos processos de impeachment em ambientes altamente polarizados. A absolvição pode ser interpretada como uma delegação de poderes ainda mais amplos. Trump recebeu a impunidade, ou imunidade, como uma delegação de superpoderes e os está usando para bombardear o sistema de freios e contrapesos, que impõe limites à ação presidencial.

Um dos procuradores da Justiça envolvidos no processo de Stone pediu demissão e disse que Trump agia como um governante em um regime autoritário. Não estava exagerando.

Analistas respeitáveis, como Yascha Mounk da Universidade Johns Hopkins, têm alertado que há riscos concretos e presentes ao sistema democrático nos Estados Unidos derivados do comportamento autocrático de Trump e de seus ataques às instituições que garantem seu equilíbrio e estabilidade.


Avisa, ainda, que o padrão é que os governantes com inclinações autoritárias escalem seus ataques à democracia no segundo mandato. Portanto, os descaminhos da oposição Democrata e a polarização extremada, que imuniza Trump contra críticas pelo lado Republicano, aumentam o risco de danos à democracia em paralelo ao crescimento das chances de reeleição.

Não é um caso idiossincrático, que não encontra paralelos em outros países. Ao contrário, é parte de um padrão que se espalha no estágio da transição global que vivemos. Aconteceu na Polônia, apesar dos alertas prévios de que o sistema constitucional estava sendo desmontado pela ultradireita no poder.

A Polônia esteve na liderança do movimento contra a dominação soviética autoritária, que redundou na dissolução do sistema e no restabelecimento da democracia nos países centro-europeus. Aconteceu na Hungria, com Viktor Órban. Aconteceu na Turquia, com Recep Tayyip Erdogan. Está acontecendo no Brasil, com Bolsonaro.

Os novos autoritários trabalham por dentro das democracias. Sua porta de entrada são eleições atípicas. Chegam como governantes incidentais, que jamais teriam sido eleitos, não fossem as condições especiais das eleições que disputaram.

Em geral, o voto ocorreu em ambientes marcados por crises graves e profundas, ou por uma polarização extremada e emocionalizada, ou pela soma das duas. Uma vez instalados no poder, eles começam a ocupar os postos com capacidade de neutralizar instituições, como o Departamento de Justiça, nos Estados Unidos, o ministério da Justiça, a Comissão de Ética da Pública, a Procuradoria Geral da República, no Brasil.

Também procuram interferir nos instrumentos de influência sobre o sistema educacional e a produção cultural, além de usarem as redes digitais para disseminar ideias falsas ou truncadas. Fazem tudo alegando não estarem a descumprir a lei, ao contrário, afirmam estar implementando a lei da forma adequada pela primeira vez.

Os novos autoritários vão, desta forma, minando as instituições democráticas. Matam a democracia, em nome da lei.

Visam, principalmente, de início, as regras de convivência e procedimento que exigem dos governantes comportamento respeitoso e decoro institucional. É fácil ver que nenhum desses governantes de mentalidade autocrática e egocêntrica têm respeito e decoro no trato com as instituições e com as pessoas. Ofendem, distratam e vilipendiam nos seus tuítes e declarações. Fazem ameaças veladas ou abertas. Os alvos principais dos novos mandões são a imprensa e os jornalistas independentes.

A imprensa livre é uma das instituições fundamentais de freio aos avanços antidemocráticos de presidentes de mentalidade autoritária. Daí ser atacada, frequentemente com vileza, por presidentes como Trump e Bolsonaro. Tendem a eleger alguns veículos mais oportunistas e pouco competitivos, ávidos por ganhar espaço, e outros mais frágeis, que trocam os princípios pela sobrevivência.

A pressão sobre o Judiciário e o controle do Legislativo por meio da polarização e do pragmatismo daqueles que se propõem a viabilizar os governos, como meio de alavancar suas próprias carreiras políticas, são instrumentos importantes de combate aos anticorpos da democracia contra as infecções autoritárias. A censura e a doutrinação, a mentira e as fake news, a desqualificação e difamação dos adversários interditam o debate democrático e intoxicam a conversação pública.

A democracia não pode usar as mesmas armas. Seria como converter-se ao mal. Render-se ao autoritarismo. Só lhe resta alertar, resistir e trabalhar operosamente pela união dos democratas e pela resiliência das instituições que ainda não foram infiltradas.

Lembrai-vos de 1968, de 1937 e de 1984

A incontinência da retórica política dos Bolsonaro, do general da reserva Augusto Heleno e até mesmo do ministro Paulo Guedes indica que eles cultivam um conflito institucional. Pelos seus sonhos, com o Congresso, mas na falta dele qualquer coisa serve. Com 12 milhões de desempregados, “pibinho”, filas nas agências do INSS, motins de PMs e encrencas com milicianos, busca-se uma briga.


Há um ano tudo parecia fácil, de um lado estaria um presidente cacifado por 58 milhões de votos e do outro, um Congresso de crista baixa. Em 13 meses, Jair Bolsonaro conseguiu um prodígio de desarticulação política, implodiu seu partido, não criou outro e demitiu colaboradores imediatos, entre os quais seis generais da reserva. Trocou um ministro da Educação delirante por outro, desastroso. Defenestrou o presidente do BNDES, o secretário da Receita e dois presidentes do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). 

No endinheirado FNDE ainda falta saber quem preparou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops ao custo de R$ 3 bilhões. A CGU apontou o vício do certame e ele foi revogado, mas jabuti não sobe em árvore. Como disse o presidente há poucos dias, “nossa luta contra a corrupção continuará sendo forte, fazendo o possível pelo Brasil melhor”. Faça-se.

Um governo pode viver das brigas que inventa (basta olhar para Donald Trump), mas elas não o livram de encarar os problemas cotidianos da administração. Nesse departamento, Bolsonaro vai devagar, quase parando.

A turma que está em Brasília a fim de arrumar uma briga pode estar perdendo seu tempo. Dois governos armaram cenários que desembocavam em golpes e foram bem-sucedidos. O de Costa e Silva, em 1968, e o de Getúlio Vargas, em 1937. Ambos tinham conjunturas internacionais radicalizadas. Vargas enfrentara uma insurreição militar em 1935. Costa e Silva estava diante de um surto terrorista e deixou-se boiar numa provocação palaciana que criou o conflito com o Congresso. A Bolsonaro e aos seus cavaleiros do Apocalipse ainda faltam todos esses ingredientes. As ruas estão em paz e, hoje, em festa. Quarta-feira abre-se a quitanda e continuarão lá os PMs dispostos a se amotinar, bem como os milicianos.

Os golpes bem-sucedidos são sempre lembrados, mas aprende-se também com aqueles que fracassam. Em 1984, quando Tancredo Neves estava virtualmente eleito (indiretamente) para a Presidência, armou-se no invencível Centro de Informações do Exército (CIE) uma provocação venenosa. Pediram-se soldados ao Comando Militar do Planalto para colar em paredes de Brasília cartazes vermelhos, com a foice e o martelo, a sigla PCB, uma figura de Tancredo e o slogan: “Chegaremos Lá”. Ia tudo muito bem até que a polícia prendeu os soldados, e o carro do CIE que lhes daria cobertura escafedeu-se. Exposta a provocação, fez-se silêncio, até que na reunião do Alto Comando do Exército o general que comandava a tropa do Rio perguntou o que tinha sido aquilo. “Gente do meu gabinete, não foi”, respondeu o ministro. O general Newton Cruz, comandante do Planalto, estava na reunião e viria a contar: “Senti um frio na espinha. O CIE era um anexo do gabinete dele. Se não tinham sido eles, tinha sido eu.”

Não tinha, mas acabou sendo. A tropa era dele, porém a operação era do CIE. Nas semanas seguintes fritaram Newton Cruz, negando-lhe a promoção, e ele passou para a reserva, transformado em bode expiatório de todas as bruxarias.

Chefe militar
Em janeiro de 1961 a Assembleia Legislativa de São Paulo negou um aumento ao Corpo de Bombeiros e à Polícia Militar (Força Pública, na época). Amotinados, eles hastearam uma bandeira preta no alto de uma escada Magirus do quartel da Praça Clóvis Beviláqua. Uma tropa mandada para controlá-los insubordinou-se.

No dia seguinte, amotinados seguiram em passeata e cercaram portões do Palácio dos Campos Elíseos, onde vivia o governador. 

O comandante da 2ª Divisão de Infantaria chegou acompanhado de um major e, empunhando seu bastão de general, informou: “Isso é uma baderna. Será dissolvida a bala. Pensem nos seus filhos.” Logo depois veio sua tropa, com blindados.

O que havia sido uma passeata virou coluna em marcha, cantando o Hino Nacional em direção à cadeia. Foram indiciados 513 policiais.

O general chamava-se Arthur da Costa e Silva. Antes de chegar à Presidência da República, fizera fama como chefe militar, daqueles que comandam sua tropa. 

(Em tempo: os amotinados ganharam uma anistia do Congresso, pedida pelo então deputado Ulysses Guimarães.)

Recado do general Santos Cruz aos seus colegas e a quem interesse

Ex-chefe da Secretaria de Governo da presidência da República, demitido por Jair Bolsonaro a pedido dos seus filhos, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, criticou, ontem, o uso do Exército para uma convocação de atos de rua contra o Congresso.

Circula nas redes sociais de bolsonaristas um cartaz com a foto de quatro militares do governo e a frase: “Fora Maia e Alcolumbre”. Maia é Rodrigo (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados. Alcolumbre, David (DEM-AP), o presidente do Senado.


Embaixo da foto, onde aparecem, entre outros, os generais Hamilton Mourão, o vice, e Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, está escrito: “Vamos às ruas em massa. Os generais aguardam as ordens do povo”.

Como os retratados e ninguém pelo Exército se pronunciaram sobre o cartaz assinado pelos Movimentos Patriotas e Conservadores do Brasil”, Santos Cruz decidiu fazê-lo. E ensinou na sua conta no Twitter a quem interessar, possa:
“IRRESPONSABILIDADE Exército Brasileiro – instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Confundir o Exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má fé, mentir, enganar a população.”
Duas horas depois, trocou a mensagem anterior por esta:
"MONTAGEM IRRESPONSÁVEL Exército – instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Não confundir o Exército com alguns assuntos temporários. O uso de imagens de generais é grotesco. Manifestações dentro da lei são válidas.”
O que se passou entre uma mensagem e outra, só Santos Cruz sabe.