terça-feira, 3 de julho de 2018

O abismo à frente

A crise ética, a violência do cotidiano, a desagregação da família e uma economia que demanda mais tecnologia e menos mão de obra explicam muita coisa, inclusive o recrudescimento da misoginia, do preconceito, da intolerância e da radicalização política

A famosa Escola de Frankfurt, que reuniu a nata da inteligência judaico-alemã — Theodor Adorno, Max Horkheimer, Hebert Marcuse, Erich From, Friedrich Pollok, Franz Neumann e Jürgen Haberman, Walter Benjamin, entre outros — exerceu notável influência sobre o pensamento social-democrata e liberal no século passado. Surgiu para explicar o fracasso da revolução socialista (espartaquista) na Alemanha, mas acabou dedicando boa parte de sua “teoria crítica” ao estudo das razões que levaram o povo alemão a apoiar o nazismo.

O livro Grande Hotel Abismo (Companhia das Letras), do jornalista britânico Stuart Jeffries, conta a história desse grupo de jovens intelectuais judeus de famílias abastadas, que foi obrigado a fugir da Alemanha para sobreviver ao nazismo e buscou refúgio nos Estados Unidos. Curiosamente, o Instituto de Pesquisa Social nasceu sob influência soviética e foi financiado por um banqueiro alemão, numa cidade onde os judeus buscavam a plena integração e o sucesso social, tendo eleito o prefeito local em 1924. Em 1933, eram 26 mil asquenazes em Frankfurt; antes que terminasse a Segunda Guerra Mundial, 9 mil haviam sido deportados. Hoje, os mortos do Holocausto são homenageados em 11.134 cubos de metal na Wand der Namen.

Entretanto, a Escola de Frankfurt, como se tornou conhecida, logo renegou a ortodoxia marxista. Seus integrantes não concordavam com a tese de que os intelectuais devem transformar o mundo, eram céticos em relação à luta política e se colocavam acima dos partidos. Haviam abandonado a conexão entre a teoria e a prática, mas não imaginavam que muitos anos depois, após maio de 1968, intelectuais como Adorno e Marcuse seriam os gurus de estudantes radicais e da chamada nova esquerda.

Para a esquerda mais ortodoxa, o fascismo era “a ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas, mais imperialistas do capital financeiro”, uma fórmula simplificada, que permitiria aos comunistas alemães classificarem a socialdemocracia como uma força “social-fascista”, num ajuste de contas pelo fracasso da Liga Espartaquista, que tentou tomar o poder em 1919. Enquanto a esquerda se digladiava, o fascismo se expandia pela Europa, com ajuda das tropas nazistas (Itália, Alemanha, Hungria, Bulgária, Áustria, Espanha, França, Holanda, Romênia, Suíça, Polônia, Grécia e Iugoslávia), chegava ao Oriente (Japão, China e Líbano) e à América Latina (Brasil, Chile e Costa Rica).

Como explicar a adesão das massas ao fascismo? Esse debate emergiu na Escola de Frankfurt por vias completamente diferentes da abordagem tradicional. Wilhelm Reich, por exemplo, em 1933, no livro Psicologia de massas do fascismo, atribuiu sua ascensão à repressão sexual. Para ele, a família não era, como tinha sido para Hegel, uma zona autônoma que resistia ao Estado, mas a miniatura de um Estado autoritário que preparava a criança para sua ulterior subordinação. Esse debate foi retomado por Erich Fromm, o principal formulador do grupo na área de psicanálise, para quem o sadismo era a outra face da moeda do masoquismo, conforme a conclusão de Freud. O sadomasoquismo era caracterizado por um esforço compulsivo em busca de ordem.

Na República de Weimar, quando a Alemanha transitava para o capitalismo monopolista de Estado, o povo alemão estava impotente, esmagado pela crise econômica e espiritualmente alienado. De forma sadomasoquista, não pretendia mudar o próprio destino, preferiu se submeter à autoridade que faria isso por ele. “O desejo de estar sob uma autoridade é canalizado para um líder forte, enquanto outras figuras paternas específicas tornam-se alvo de rebelião”, escreveu Fromm. A personalidade autoritária de Hitler não somente governou a Alemanha em nome de uma autoridade maior, a superioridade racial ariana, como a tornou atraente para o povo alemão, principalmente uma insegura classe média.

Essa abordagem freudiana do fascismo tornou-se predominante na Escola de Frankfurt, mas não era única. Foi contestada por outros intelectuais, que viam o fascismo como a resultante do capitalismo de Estado e do nacionalismo, entre outras causas. Mas há que se reconhecer: ela tem o seu valor, pode ajudar a compreender certos fenômenos que não têm uma explicação aparente e nos surpreendem pelo mundo afora. Não é à toa que a chamada “teoria crítica” da Escola de Frankfurt desperta um novo interesse. A crise das democracias e a estagnação econômica no Ocidente contrastam com a modernização e emergência de regimes autoritários no Oriente.

No Brasil, por exemplo, o buraco negro do chamado centro democrático não tem a ver apenas com a crise ética de nossa elite política; a violência do cotidiano, a desagregação da família unicelular-patriarcal e uma economia que, demandando mais tecnologia e menos mão de obra, explicam muita coisa, inclusive o recrudescimento da misoginia, do preconceito de gênero e racial, da intolerância religiosa e da radicalização ideológica no debate eleitoral. “O indivíduo assustado busca alguém ou algo a que possa atrelar o seu ‘eu’”, diria Fromm. Ou seja, à incapacidade de mudar o seu próprio destino, o cidadão comum desesperançado procura alguém que supostamente possa fazê-lo na marra.

Lula no mata-mata

Com a chegada do recesso do Judiciário, bateu o desespero no ex-presidente Lula e nos seus advogados, que saíram em desabalada carreira para entupir o Supremo de recursos, tentando atropelar o plenário e até o sorteio eletrônico (!) para escolher não só a turma, mas o próprio relator desses recursos. Esse serve, esse não serve... Uma audácia incrível, no vale tudo para Lula trocar a prisão em Curitiba pela campanha à Presidência.

Nessa corrida, com chute, cotovelada e empurrão, os advogados Sepúlveda Pertence e Cristiano Zanin disputam homem a homem quem apresenta seus recursos primeiro e, no fundo, quem cai mais nas graças do cliente famoso. Sepúlveda tem mais credenciais, como ex-presidente e grande referência no Supremo. Zanin, bastante esforçado, foi escolhido por ser genro de um dos maiores benfeitores de Lula, Roberto Teixeira.


Assim, Pertence, mais experiente, mais pé no chão, trabalha com a prisão domiciliar de Lula como lance na negociação com o Supremo. Mas o próprio Lula, a cúpula do PT e Zanin aderiram ao tudo ou nada, têm uma posição menos jurídica e mais política e não admitem um milímetro a menos do que a anulação da condenação do juiz Sérgio Moro e do TRF-4, com a conversão do réu em vítima. Por isso, a defesa acabou apresentando dois recursos conflitantes.

O primeiro foi para anular a condenação e todos os seus efeitos: a prisão e a inelegibilidade. O segundo, num evidente recuo, para anular apenas a prisão e deixar a questão da inelegibilidade para lá. Por que? Porque o PT pretende registrar a candidatura Lula até 15 de agosto e a partir daí guerrear contra a impugnação na Justiça Eleitoral, mas, se o STF confirmar a inelegibilidade antes, nada feito, a guerra já estará perdida. O STF tem sempre a última palavra.

Enquanto rola solto o confronto de egos e estratégias entre os advogados de Lula, mais o Supremo vai se organizando em três grupos. O dos que gritam pelo fim da prisão em segunda instância e, até lá, soltam todo mundo e abrem caminho para soltar Lula também. O dos que não soltam ninguém, não admitem votar pela quarta vez a prisão em segunda instância e não parecem dispostos a salvar Lula. E um terceiro que serve de pêndulo.

Assim, foram eleitos os “amigos” de Lula, os “inimigos” e as “incógnitas”. Entre os amigos, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello. Entre os inimigos, Cármen Lúcia – que vai chegando ao fim de sua presidência sem por em pauta a revisão da prisão após a segunda instância – e Edson Fachin, o “petista roxo” que bate de frente o tempo todo com os lulistas (desde sempre ou de ocasião) na Segunda Turma. Entre as incógnitas, Celso de Melo e Rosa Weber, que guardam seus votos para... a hora do voto.

E, assim, chegamos a julho com Cármen Lúcia no olho do furacão. Ela distribuiu a pauta de agosto sem os recursos de Lula, mas assume poderes monocráticos durante o recesso e pode decidir a qualquer momento levar esses recursos ao plenário na primeira quinzena de agosto. Uma responsabilidade monumental, porque impacta a Lava Jato, a autoestima do brasileiro, a percepção internacional sobre o combate à corrupção no Brasil, a eleição presidencial e, sem exagero, o rumo da história.

O Brasil está parado, com a respiração suspensa, não só pela disputa do hexa na Rússia, mas também pela indefinição de uma eleição que praticamente congelou. O líder nas pesquisas é uma ficção, o segundo é um perigo, os demais não vão nem para a frente nem para trás. Passada a Copa e decidido finalmente o destino de Lula (e, com ele, o da Lava Jato e da Ficha Limpa...), os advogados vão parar de correr e a eleição vai enfim andar. Na verdade, enfim começar.

O preço da inconsequência

O tempo está passando rápido, para especial alegria daqueles que contam com a boa vontade e a inércia do Judiciário. E, para ajudar, o STF entrou em férias por 30 dias, mantendo de plantão apenas sua presidente, Cármen Lúcia, reservada para tomar eventuais decisões que não puderem esperar pela volta dos companheiros da Corte, com seus assessores, capinhas, seguranças, motoristas e empurradores de poltronas. Levando-se em conta que cada ministro do STF tem a seu serviço 220 funcionários, 2.200 estão unicamente ocupados com o nada. Melhor assim. Glória a Deus!

Absurdo esse sentimento, mas é notável como se respira com certo alívio quando em Brasília as instituições se acham operando a meia-boca, independentemente do poder a que estejam vinculadas e das responsabilidades que a Constituição formalmente lhes reserva.

Um exemplo disso foi a decisão, ao apagar das luzes, do ministro Ricardo Lewandowski, aquele que desastradamente presidiu no Senado o impeachment de Dilma Rousseff, deixando-a habilitada para, depois de tanta burrice, lambança e corrupção, ainda poder disputar cargos eletivos, com a ameaça de que possa vir a ser, segundo fontes bem-informadas, candidata ao Senado por nossa já tão sofrida Minas Gerais. “Só Deus na causa”, para iluminar a nós, mineiros, e nos livrar desse agravo.

Voltando a Lewandowski, nosso ministro do STF decidiu suspender, em medida liminar, o leilão com o qual se sonhava para privatizar a Ceal (Companhia Energética de Alagoas), um cadáver em forma de concessionária de energia elétrica, totalmente falida e posta à venda por um lance inicial de R$ 50 mil (quase o preço de um carro popular com alguns opcionais). Isso para que os alagoanos – já punidos por terem tido, na produção de seus fracassos, o concurso de nomes como Fernando Collor, Renan Calheiros pai e filho, os Liras, atores de toda sorte de tragédias sempre em profusão – pudessem tirar de suas costas encargos gerados dentro de uma empresa estatal por políticos escolhidos a dedo. Estes foram naturalmente selecionados pela incapacidade de cada um deles e conseguiram produzir um quadro desastroso, cujos números expressam um endividamento de R$ 1,98 bilhão, com prejuízos de R$ 920 milhões, acumulados nos últimos cinco anos.

Trata-se de um quadro de total inviabilidade econômica e financeira e sem créditos, a não ser se forem tomados em bancos públicos, para não serem pagos. Esse bonde chamado Ceal, assim não enxergado pelo ministro Lewandowski e por seus assessores, já não poderá ser leiloado, porque há um questionamento do Estado de Alagoas sobre um passivo que tal concessionária deve aos cofres do governo. Suspensa essa privatização, duas situações são certas. Primeiro, nós, contribuintes brasileiros, continuaremos a pagar, em impostos sempre majorados pelas necessidades do Tesouro, o preço da histórica má gestão que o Estado brasileiro sempre representou. E, ainda, esses cadáveres insepultos, chamados de “empresas estatais”, continuarão dentro de armários à espera de abrigar políticos malsucedidos em eleições ou outra classe de apaniguados, destacados para praticar, com raras exceções, os mais degradantes desmandos, todos de custoso sustento, verdadeiros sorvedouros de recursos que deveriam ser destinados pelo poder público à promoção e ao avanço da sociedade. Enquanto houver tais posturas, resta-nos pagar a conta.

Gente fora do mapa

Estação de trem do aeroporto de Dhaka, na Índia (Tanveer Hassan Rohan), prêmio National Geographic  de 2018 

O gosto amargo dessa eleição

Os avanços e retrocessos das nações geralmente decorrem dos seus modelos de desenvolvimento. Em países democráticos, os programas de governo são necessariamente submetidos ao crivo de parlamentares eleitos pelo conjunto da sociedade. Nos regimes totalitários, onde o comando da nação resulta de golpes de Estado ou de estratagemas para perpetuar no poder determinados grupos políticos, as decisões são tomadas de cima para baixo sem anuência da população.

Achei oportuno trazer à tona essa dualidade por estarmos vivendo um momento político extremamente delicado. A proximidade das eleições trouxe um sabor amargo ao colocar diante de nós posicionamentos ideológicos fortemente antagônicos. Não obstante o fato de não concordar com os discursos de certos candidatos, defendo o direito de manifestarem as suas opiniões com absoluta liberdade.


Infelizmente temos observado comportamentos extremados de parte a parte, principalmente dos seus correligionários. Em geral, a reação ao contraditório tem se dado por meio de posturas agressivas que beiram o desequilíbrio emocional. Um candidato com esse perfil se eleito for, certamente, ao primeiro contratempo, jogará a toalha pela incapacidade de governar em sintonia com os demais poderes constituídos.

Para agravar essa apreensão vemos viúvas da ditadura destilando ódio e conclamando uma nova intervenção militar. Juntam-se a essas figuras esdrúxulas os indivíduos que gostam de se intitular “cidadãos de bem” e empunhar bandeiras preconceituosas contra quem não compartilha do seu ideário político e seus costumes ultrapassados. Felizmente, nossas instituições democráticas falam mais alto que o discurso rancoroso desses radicais da intolerância.

Também não dá para se deixar levar pela retórica de candidatos outsiders que tentam ganhar espaço demonizando a própria estrutura política da qual anseiam participar. Apoiados em postulados empresariais consagrados mercadologicamente, fazem dos seus discursos uma valorização específica da sua vivência como gestores profissionais. Esquecem, contudo, que administrar um país com a extensão e a complexidade do Brasil é muito diferente do que dirigir uma empresa privada.

Além do mais, os futuros mandatários deverão estar cientes de que terão que enfrentar os graves problemas conjunturais que afetam diretamente os nossos estados combalidos. No caso específico do Rio de Janeiro, será preciso resgatar a sua imagem de prosperidade, atualmente comprometida pela corrupção deslavada que se apoderou do governo passado. Será preciso grande sensibilidade política para que o novo governador obtenha o apoio necessário do governo federal e das administrações municipais.

Reativar a economia, atrair novas empresas nacionais e internacionais e proporcionar oportunidades diversificadas de trabalho, dependerá de grandes investimentos em infraestrutura urbana, ambiental e tecnológica. E, sobretudo, na completa reformulação das políticas de mobilidade urbana para suprir as demandas da população. Integrar os modais de transportes coletivos, privilegiando os trens e o metrô, não pode ser mais adiado.

Todavia, de nada adiantará esse esforço se não houver, de fato, uma política de segurança pública integrada que envolva solidariamente os governos federal, estadual e municipal. Não dá continuar fechando os olhos para essa violência urbana descontrolada, que ceifa vidas de inocentes, que mata policiais aleatoriamente e que incentiva a execução sumária de bandidos. Trata-se de mais uma guerra sem vencedores ou vencidos que evidencia as condições adversas que estamos vivendo.

Por serem referências da existência humana, as cidades não podem continuar sendo apreciadas unicamente por sua materialidade. O convívio pacífico nos espaços públicos constitui o principal instrumento para valorizar a ambiência urbana e desenvolver uma sociabilidade coletiva harmoniosa.

Entendo que o resgate da urbanidade perdida seja uma questão de honra para os que decidiram continuar morando no Brasil e uma questão de sobrevivência para quem vive entre os limites da pobreza e da miséria. Quando se sabe mais claramente o que se quer, sem dúvida, fica mais fácil fazer suas escolhas.

Futuro só virtual

O Brasil ainda corre o risco de ficar obsoleto antes de ficar pronto
Claude Lévi-Strauss (1908 - 2009)

Lamentamos informar que o próximo governo não conseguirá salvar o país

Quando compôs a trilha sonora do documentário “Jango”, dirigido por Silvio Tendler com roteiro de Cláudio Bojunga, o pianista Wagner Tiso mostrou a música-tema ao seu amigo e parceiro Milton Nascimento, que ficou tão encantado que resolveu escrever uma letra para a belíssima canção. Nascia, assim, uma obra extraordinária que passou a se chamar “Coração de Estudante” e acabou virando slogan do movimento das diretas já.

A letra de Milton é belíssima e verdadeira, especialmente na parte em que se refere a “renova-se a esperança”. Em toda eleição presidencial é sempre assim. Não importa o valor dos candidatos, seus objetivos e qualificações, há sempre uma esperança de que as coisas possam melhorar.

Esse sentimento é tão forte que ocorreu até no regime militar, quando não havia eleições. Sempre que mudava o general-presidente, surgia a esperança de dias melhores. Aconteceu com mais intensidade quando houve eleições internas nas Forças Armadas, com cerca de 240 oficiais-generais escolhendo o candidato preferido para suceder Costa e Silva (ou a “troika” que assumira no lugar dele).

O general nacionalista Afonso Albuquerque Lima, que se demitira do Ministério do Interior e abrira dissidência, foi o vencedor desta eleição do oficialato, mas não levou, porque era general de três estrelas. Se ele tivesse sido o presidente, o Brasil hoje seria outro.

Repetiu-se, assim, o que ocorrera em 1945. Naquela época, se Vargas tivesse lançado Oswaldo Aranha, ao invés do general Eurico Dutra, o Brasil também teria sido outro.

Agora, mais uma vez, renova-se a esperança. As pessoas se animam com as candidaturas, acham que as coisas podem melhorar. Mas talvez isso não seja possível. O mal que Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff fizeram ao país foi tão profundo que será muito difícil consertar a médio prazo, não importa quem vença a eleição.

É triste lembrar que após o governo renovador de Itamar Franco, o Brasil tinha tudo para deslanchar, mas aconteceu o contrário – os Três Patetas (FHC, Lula e Dilma) deixaram a dívida pública se multiplicar desmesuradamente e o país se tornou refém dos “investidores”, que deveriam ser chamados de “exploradores” ou “aproveitadores”.

Cada um a seu jeito, os Três Patetas incharam a máquina pública e permitiram que Estados e municípios fizessem o mesmo, tudo sem base sólida, à custa de endividamento.

Hoje, os brasileiros trabalham para rolar (não é pagar…) a dívida interna e sustentar a máquina pública e sua orgulhosa nomenklatura, beneficiada por penduricalhos e mordomias de toda sorte. Não há investimento, apenas custeio. O único setor que cresce é a agricultura, porque não depende diretamente do governo, que só faz atrapalhar.

É um país endividado, mas que teve dinheiro para construir em Cuba um dos mais modernos portos do mundo e que financiou obras em muitos outros países, todas elas sem a menor garantia de pagamento, e o ex-presidente do BNDES, Luciano Coutinho, continua solto, nem processado está.

Além disso, um país que não tem mais plano de carreira no serviço público, em muitas funções o concursado já entra recebendo o teto da função, embora nada – nada, mesmo – funcione adequadamente na máquina estatal.

Anestesia geral

Ouvimos, lemos, sabemos ou somos diretamente atingidos, diariamente, por toda sorte de acintes, assaques, misérias, decretos e decisões que visivelmente nos prejudicam – a todos. Leis lidas a bel prazer. Bancos, seguradoras, poderosos limpam os pés nas nossas costas. Vemos gente pela qual temos apreço ou mesmo mal conhecemos, sofrendo ou caindo, miseráveis, seja nos postos de saúde ou nas calçadas, mortas pela violência desmedida e sem fim. Assistimos impassíveis a embates públicos nojentos e é como se nada daquilo nos dissesse respeito, estivesse ocorrendo em outro planeta.

Doenças terríveis que já haviam sido erradicadas – sarampo, raiva, poliomielite! – voltam céleres. Matam. E há quem tenha – para isso, sim – energia e coragem de negar as vacinas; pior, criminosamente tentam ainda argumentar contra elas do alto de suas ignorâncias, e acabam conseguindo, atingem uma importante parcela da população, aquela que a cada dia mais não sabe onde está parada. Apenas está parada esperando o futuro do país do futuro que não chega nunca.

Faltam pouco mais de três meses para a eleição de um novo presidente da República, repito, presidente. Isso, além dos cargos de governadores e deputados que serão regentes dessa desafinada orquestra a partir do primeiro dia do ano que vem. E é como se nada da crise braba que estamos vivendo, das terríveis descobertas de corrupção, roubos, extorsões, pilhagens e pilantragens em geral fizessem real diferença fora dos vídeos feitos com celular deitado. Depoimentos que mostram, sim, um Brasil real, pobre, largado, cheio de recônditos de nomes estranhos, de pessoas e cidades, e onde se fala uma língua que portuguesa não é, com seus esses e plurais esquecidos tanto quanto eles próprios.

O primeiro colocado nas pesquisas eleitorais, feitas com esses nominados aí que pretendem por a mão na direção, aparece; e é um preso com várias condenações e que de lá onde está trancafiado ainda posa de mártir e redentor, perseguido, um Messias. O segundo colocado é um ser abominável, incapaz de nada a não ser de bravatas, que até parecem soar reais nesse verdadeiramente desesperador momento: é como se ele pudesse bater, balear, fuzilar todos os problemas. Nas intenções de voto, vêm seguidos de outros: um amorfo, uma amorfa, um destrambelhado e outros pequenos seres prontos a negociar suas cadeirinhas nos estúdios de tevê por algum cargo. Estão ali no meio do campo, meio transparentes, correndo como os bobinhos, esperando quem sabe qual será a jogada.

O resultado mais plausível nesse instante é que saiam vitoriosos os votos nulos, brancos e abstenções. Afinal, em quem votar nessa seara, nesse deserto de ideias e propostas reais? Mais: como levarmos esses seis meses que temos adiante com um presidente que só consegue cair cada vez mais em desgraça e impopularidade? Que anda com cascas de banana nos bolsos e que vai jogando a cada passo que dá, escorregando?

A apatia é tanta que alcançou o que jamais imaginaríamos possível, as demonstrações populares. O futebol. Ah, que bom, tem Copa do Mundo. Ponto. Ah, que bom, o Brasil ainda está classificado. Gol. Depois do silêncio e da tensão que acompanham as sofridas partidas – como todas têm sido – gritos rápidos nas janelas, uma bombinha aqui; outra ali. Pronto. Ah, acabou o jogo e o Brasil ganhou. Não se ouve mais nada, a não ser a vida tentando voltar ao seu normal. Até o ufanismo das bandeirinhas espalhadas para decorar os espaços pouco tremulam.

O tempo está passando e não conseguimos mover o pé para fora dessa areia movediça que nos imobiliza.

Belisquem-se. Alguém, por favor, ligue o alarme. Bote água para ferver. Dê um antídoto para a população acordar e ver o que ainda podemos fazer; mas de verdade, não pelas redes sociais que parecem ser o que nos anestesia!

Eu só queria muito poder desejar um feliz segundo semestre. Percebeu que o ano já chegou à sua metade?

Marli Gonçalves