sábado, 4 de junho de 2022
Pedagogia da subordinação
A morte por tortura de Genivaldo de Jesus Santos não constitui um incidente isolado na relação entre a população negra e as polícias brasileiras. Nos últimos cinco anos, mais de 18 mil pessoas foram mortas pela polícia, sendo 78,9% negras. Muitas com indícios de tortura e sinais de execução.
O que distingue o caso de Genivaldo, portanto, foi a improvisada câmara de gás montada em plena via pública pelos policiais rodoviários federais para torturar uma pessoa acusada de dirigir uma motocicleta sem o uso de capacete.
Como no caso de Cesar Baptista, recentemente submetido à violência por membros da Guarda Civil Metropolitana, no centro da cidade de São Paulo, as câmaras de celular não tiveram a capacidade de inibir a brutalidade por parte de agentes do Estado. Como se a tortura, tradicionalmente praticada às escondidas, estivesse agora autorizada a ocorrer em público, como alerta de que pretos e pobres jamais terão os seus direitos respeitados nesta terra. Difícil não associar esse recrudescimento da violência de Estado à recorrente apologia de torturadores e regimes que torturam pelo presidente e seus apoiadores.
A tortura transformada em espetáculo nada mais é do que uma forma de pedagogia macabra voltada a assegurar a subordinação racial. Seu objetivo é deixar explícito a todos que as vidas negras não importam. Como nas operações policiais em comunidades, chacinas ou mesmo na manutenção de altíssimos padrões de violência que afetam desproporcionalmente as populações negras (77% das vítimas de homicídios são negras), é a própria humanidade o que se está negando às vítimas.
Mesmo que em alguns estados da Federação, como São Paulo, avanços significativos na qualificação das polícias tenham sido implementados, resultando na redução de índices de homicídios e diminuição da violência policial, o número de pessoas mortas pela polícia no Brasil tem crescido nos últimos anos, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As mais de 40 chacinas registradas durante a gestão do governador Cláudio Castro, no Rio de Janeiro, ajudam a explicar esse crescimento.
A superação dessa pedagogia de subordinação racial, baseada na violência, que se reproduz desde as nossas origens, exigirá não apenas a ampliação de uma consciência antirracista, mas também profundas reformas no aparato de justiça e segurança. O fato, porém, é que essas transformações somente ocorrerão como decorrência de um alargamento da participação de pessoas negras nas diversas esferas de poder político, econômico e cultural.
Se as ações afirmativas abriram espaço para que a população negra pudesse gozar de um bem antes reservado prioritariamente aos brancos, que é a educação, o movimento negro tem deixado claro que é necessário avançar muito mais na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Nesse sentido é necessário destacar a importância da iniciativa da Coalizão Negra por Direitos de promover e apoiar mais de 50 candidaturas negras ao Congresso Nacional e Assembleias Legislativas ao redor do país, que ocorrerá no próximo dia 6 de junho, em São Paulo.
Sem que pessoas negras venham a ocupar de maneira ampla e efetiva espaços de poder, a democracia brasileira continuará incompleta, e o Estado de Direito, incapaz de assegurar que todas as pessoas, independentemente de sua cor, sejam tratadas com igual respeito e consideração.
O que distingue o caso de Genivaldo, portanto, foi a improvisada câmara de gás montada em plena via pública pelos policiais rodoviários federais para torturar uma pessoa acusada de dirigir uma motocicleta sem o uso de capacete.
Como no caso de Cesar Baptista, recentemente submetido à violência por membros da Guarda Civil Metropolitana, no centro da cidade de São Paulo, as câmaras de celular não tiveram a capacidade de inibir a brutalidade por parte de agentes do Estado. Como se a tortura, tradicionalmente praticada às escondidas, estivesse agora autorizada a ocorrer em público, como alerta de que pretos e pobres jamais terão os seus direitos respeitados nesta terra. Difícil não associar esse recrudescimento da violência de Estado à recorrente apologia de torturadores e regimes que torturam pelo presidente e seus apoiadores.
A tortura transformada em espetáculo nada mais é do que uma forma de pedagogia macabra voltada a assegurar a subordinação racial. Seu objetivo é deixar explícito a todos que as vidas negras não importam. Como nas operações policiais em comunidades, chacinas ou mesmo na manutenção de altíssimos padrões de violência que afetam desproporcionalmente as populações negras (77% das vítimas de homicídios são negras), é a própria humanidade o que se está negando às vítimas.
Mesmo que em alguns estados da Federação, como São Paulo, avanços significativos na qualificação das polícias tenham sido implementados, resultando na redução de índices de homicídios e diminuição da violência policial, o número de pessoas mortas pela polícia no Brasil tem crescido nos últimos anos, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As mais de 40 chacinas registradas durante a gestão do governador Cláudio Castro, no Rio de Janeiro, ajudam a explicar esse crescimento.
A superação dessa pedagogia de subordinação racial, baseada na violência, que se reproduz desde as nossas origens, exigirá não apenas a ampliação de uma consciência antirracista, mas também profundas reformas no aparato de justiça e segurança. O fato, porém, é que essas transformações somente ocorrerão como decorrência de um alargamento da participação de pessoas negras nas diversas esferas de poder político, econômico e cultural.
Se as ações afirmativas abriram espaço para que a população negra pudesse gozar de um bem antes reservado prioritariamente aos brancos, que é a educação, o movimento negro tem deixado claro que é necessário avançar muito mais na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Nesse sentido é necessário destacar a importância da iniciativa da Coalizão Negra por Direitos de promover e apoiar mais de 50 candidaturas negras ao Congresso Nacional e Assembleias Legislativas ao redor do país, que ocorrerá no próximo dia 6 de junho, em São Paulo.
Sem que pessoas negras venham a ocupar de maneira ampla e efetiva espaços de poder, a democracia brasileira continuará incompleta, e o Estado de Direito, incapaz de assegurar que todas as pessoas, independentemente de sua cor, sejam tratadas com igual respeito e consideração.
A vida em papelão
“Dormir em caixa custa R$ 2,00 por dia em São Paulo.”
Cotidiano, 6 dezembro 1998
A ideia lhe veio ao observar a quantidade de gente dormindo na rua no centro da cidade.
Existe aí uma demanda potencial, pensou. E como estava, ele próprio, desempregado, resolveu arriscar a sorte em um novo negócio: o aluguel de caixas de papelão.
O que não seria nada difícil. Caixas poderiam ser obtidas em lojas, supermercados, fábricas. E os sem-teto aceitariam com entusiasmo a possibilidade de dormirem menos expostos aos elementos – e aos olhares alheios.
O negócio deu certo, e ele foi sofisticando a oferta. Dispunha de caixas em vários tamanhos, algumas acolchoadas, outras pintadas em cores alegres, várias com rádio e TV. Os preços subiam progressivamente, de acordo com a dimensão da caixa e o conforto desta.
Escusado dizer que, durante esse tempo, morava numa caixa, ele também – inclusive para fiscalizar a clientela. E fiscalizar era uma coisa que sabia fazer. Era um cobrador implacável e não hesitava em ameaçar os devedores relapsos: se não pagassem, botaria fogo nas caixas: eram dele, poderia queimá-las se e quando quisesse. Se houvesse alguém dentro, azar.
Ganhou muito dinheiro, encontrou uma linda mulher que aceitou viver com ele. Não numa caixa, naturalmente: ela queria uma casa. Uma casa muito grande e muito bonita.
E uma casa ele fez. Uma casa muito grande e muito bonita, num bairro elegante. É uma casa que chama a atenção de todos, não só pelo design arrojado, como também por uma peculiaridade: é feita de papelão. Papelão especial, muito espesso e impermeável, mas papelão.
Nessa casa de papelão ele vive feliz com a mulher. Só uma coisa o preocupa: tem medo de que algum invejoso bote fogo na casa. O papelão é um grande material, mas, infelizmente, não resiste às chamas. Nada é perfeito.
Moacyr Scliar
Existe aí uma demanda potencial, pensou. E como estava, ele próprio, desempregado, resolveu arriscar a sorte em um novo negócio: o aluguel de caixas de papelão.
O que não seria nada difícil. Caixas poderiam ser obtidas em lojas, supermercados, fábricas. E os sem-teto aceitariam com entusiasmo a possibilidade de dormirem menos expostos aos elementos – e aos olhares alheios.
O negócio deu certo, e ele foi sofisticando a oferta. Dispunha de caixas em vários tamanhos, algumas acolchoadas, outras pintadas em cores alegres, várias com rádio e TV. Os preços subiam progressivamente, de acordo com a dimensão da caixa e o conforto desta.
Escusado dizer que, durante esse tempo, morava numa caixa, ele também – inclusive para fiscalizar a clientela. E fiscalizar era uma coisa que sabia fazer. Era um cobrador implacável e não hesitava em ameaçar os devedores relapsos: se não pagassem, botaria fogo nas caixas: eram dele, poderia queimá-las se e quando quisesse. Se houvesse alguém dentro, azar.
Ganhou muito dinheiro, encontrou uma linda mulher que aceitou viver com ele. Não numa caixa, naturalmente: ela queria uma casa. Uma casa muito grande e muito bonita.
E uma casa ele fez. Uma casa muito grande e muito bonita, num bairro elegante. É uma casa que chama a atenção de todos, não só pelo design arrojado, como também por uma peculiaridade: é feita de papelão. Papelão especial, muito espesso e impermeável, mas papelão.
Nessa casa de papelão ele vive feliz com a mulher. Só uma coisa o preocupa: tem medo de que algum invejoso bote fogo na casa. O papelão é um grande material, mas, infelizmente, não resiste às chamas. Nada é perfeito.
Moacyr Scliar
Bolsonaro não tem o que fazer nos debates
Bolsonaro diz que só deve participar de debates no segundo turno. Nem o mais fanático dos fanáticos da seita ficou surpreso. O presidente, coitadinho, não quer levar "pancada" dos adversários. Esquece que o terceiro colocado nas pesquisas, Ciro Gomes, tem poupado o governo. Só bate em Lula, o líder das intenções de voto. E que Luciano Bivar, da União Brasil, representa um saco de gatos, uma candidatura de mentirinha, uma linha auxiliar do bolsonarismo e do centrão.
É uma estratégia como outra qualquer. FHC e Lula já fizeram isso —e foram elogiados por analistas políticos. Mas, tomada por alguém que se considera o Destruidor, uma espécie de super-herói ungido por Deus, e ainda por cima com histórico de atleta, a decisão revela fraqueza, além de surpreendente franqueza. Para fugir da salutar troca de ideias, Bolsonaro tem preferido as desculpas esfarrapadas ou engolir camarões com cabeça e tudo e se internar em hospitais.
Antes, porém, é necessário que Bolsonaro vá ao segundo turno. A ânsia golpista, usada para desviar a atenção do desastre econômico, não melhora sua imagem. Ao contrário: piora. O mito insiste no discurso que agrada e mobiliza suas bases radicais, mas que ao mesmo tempo afasta mulheres e evangélicos. A impressão é que, fora dos cercadinhos, não há o que dizer ou explicar. O Destruidor só pode propor mais e maior destruição.
Em sua campanha baseada nas mentiras da rede, o presidente costuma repetir que povo armado é povo livre. A população não pensa assim. Segundo o Datafolha, 72% discordam da frase "a sociedade seria mais segura se as pessoas andassem armadas para se proteger da violência"; 71% discordam de que é "preciso facilitar o acesso às armas"; 69% discordam do conceito (de cunho fascista, aliás) segundo o qual "o povo armado jamais será escravizado".
Bolsonaro não convence. Nem se comparecer aos debates exibindo uma escopeta.
É uma estratégia como outra qualquer. FHC e Lula já fizeram isso —e foram elogiados por analistas políticos. Mas, tomada por alguém que se considera o Destruidor, uma espécie de super-herói ungido por Deus, e ainda por cima com histórico de atleta, a decisão revela fraqueza, além de surpreendente franqueza. Para fugir da salutar troca de ideias, Bolsonaro tem preferido as desculpas esfarrapadas ou engolir camarões com cabeça e tudo e se internar em hospitais.
Antes, porém, é necessário que Bolsonaro vá ao segundo turno. A ânsia golpista, usada para desviar a atenção do desastre econômico, não melhora sua imagem. Ao contrário: piora. O mito insiste no discurso que agrada e mobiliza suas bases radicais, mas que ao mesmo tempo afasta mulheres e evangélicos. A impressão é que, fora dos cercadinhos, não há o que dizer ou explicar. O Destruidor só pode propor mais e maior destruição.
Em sua campanha baseada nas mentiras da rede, o presidente costuma repetir que povo armado é povo livre. A população não pensa assim. Segundo o Datafolha, 72% discordam da frase "a sociedade seria mais segura se as pessoas andassem armadas para se proteger da violência"; 71% discordam de que é "preciso facilitar o acesso às armas"; 69% discordam do conceito (de cunho fascista, aliás) segundo o qual "o povo armado jamais será escravizado".
Bolsonaro não convence. Nem se comparecer aos debates exibindo uma escopeta.
Crueldade
Não será fácil desaprender o mal que se espalhou no espírito de parcela dos brasileiros nos anos do governo Bolsonaro.
Especialmente em tempos cinzentos, é preciso “ter medo do guarda da esquina, mais do que do general”, como alertou Pedro Aleixo quando da instauração do AI-5. Os subordinados adotam com facilidade o abuso do poder se os desmandos não são reprimidos, mas dados como positivos pelos superiores.
Segundo a teoria da aprendizagem formulada por Gabriel Tarde e, depois, estudada por Sutherland, a conduta delitiva se aprende em associação com as pessoas que a consideram positiva, gerando o convencimento de estar a agir de maneira certa. Mesmo em face de condutas cruéis, os freios inibitórios são anulados em decorrência do aplauso ao comportamento malvado vindo de autoridades.
Seria a crueldade inerente à pessoa humana, cujo primitivismo deve ser burilado pelos limites impostos pelo processo educacional? Ou a malvadeza é aprendida nas relações sociais, de acordo com o meio social no qual se está inserido?
Indo mais a fundo: o mal é inerente ao exercício do poder? Será um ingrediente ou um meio pelo qual obrigatoriamente o titular do poder se manifesta para mantê-lo ou para afirmá-lo? Haveria até mesmo com gosto pelo mal?
Essas perguntas tocam no fulcro da questão da violência policial.
As perspectivas – a individual, congênita, e a social – combinam-se, mas sem dúvida têm grande peso o incentivo e o elogio a valores negativos vindos dos superiores. A probabilidade de punição (ou, ao menos, a certeza da reprovação moral da conduta nociva) é essencial para o exercício do poder se dar no limite do respeito aos demais.
Por isso a relação do governante com as polícias que atuam com a força na rua é fator relevante, pois a forma de agir do policial decorrerá do quadro de valores transmitido pela autoridade estatal.
Foi marcante o privilégio com que Jair Bolsonaro tratou a Polícia Rodoviária Federal. Aumentou seu efetivo, garantiu proventos na aposentadoria iguais ao do último salário, compareceu a inaugurações de sedes e visitou postos policiais. Neste ano, repetidamente, mencionou que o aumento salarial da Polícia Rodoviária Federal teria tratamento especial, inclusive equiparando a remuneração de seus quadros superiores à dada à Polícia Federal. A proximidade entre o presidente e a Polícia Rodoviária Federal é manifesta.
A tornar mais significativa essa ligação, Sergio Moro, no Ministério da Justiça, estendeu, inconstitucionalmente, a atribuição da Polícia Rodoviária Federal para além das rodovias, quando é claro o § 2.º, artigo 144 da Constituição, que edita: “§ 2.º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. Assim, por portaria ministerial, reiterada em grande parte por André Mendonça como ministro da Justiça, deu-se atribuição para a Polícia Rodoviária Federal atuar em ação conjunta com as polícias militares na área urbana. Ao mesmo tempo, eliminaram-se as aulas de Direitos Humanos previstas no currículo de formação do concursado.
Em consequência, a Polícia Rodoviária Federal, sem expertise para agir em operação policial nas favelas, passou a ser chamada a participar de ações de repressão com o Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio de Janeiro. Veio, destarte, a integrar as forças policiais em duas chacinas na mesma Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, em 11 de fevereiro deste ano, com 8 mortos; e recentemente, em 24 de maio, com o saldo aterrorizador de 23 mortos, sendo metade dos assassinados sem antecedentes criminais.
O presidente da República festejou a ação militar, cumprimentando os policiais pelo morticínio, que “neutralizou vinte”. Negou-se a recriminar, contudo, a crueldade praticada por três policiais rodoviários em Sergipe, que malvadamente lançaram gás lacrimogêneo e de pimenta no porta-malas onde aprisionaram Genivaldo de Jesus Santos, que morreu por asfixia, após ter sido seviciado e empurrado com brutalidade para dentro da viatura.
Esses maus policiais, aos gritos e palavrões, agiram com obsessão para afirmar sua superioridade diante de um pobre cidadão, negro, tido por desprezível: uma pessoa “a ser neutralizada”, como disse o presidente em face dos mortos da Vila Cruzeiro.
Assim, Genivaldo de Jesus Santos, parado pelos policiais por trafegar na moto sem capacete, foi cruelmente morto pela soberba do poder sem controle, em boa parte fruto do aplauso às violências anteriores da corporação.
O poder pessoal do “guarda da esquina” deve estar sob monitoramento, contido por lição de respeito ao direito dos cidadãos, pois, do contrário, abre-se a possibilidade de vir a ser cruel ao ter o mal como meio de afirmação de “autoridade”.
Assim, o exercício do poder, sem o bom exemplo e a fiscalização vindos de cima, viabiliza a instauração do instinto de desumanidade, tendo por consequência a crueldade, que, ensina Montaigne, é o extremo de todos os vícios, a nefasta ausência total de piedade.
Não será fácil desaprender o mal que se espalhou no espírito de parcela dos brasileiros nos anos Bolsonaro.
Especialmente em tempos cinzentos, é preciso “ter medo do guarda da esquina, mais do que do general”, como alertou Pedro Aleixo quando da instauração do AI-5. Os subordinados adotam com facilidade o abuso do poder se os desmandos não são reprimidos, mas dados como positivos pelos superiores.
Segundo a teoria da aprendizagem formulada por Gabriel Tarde e, depois, estudada por Sutherland, a conduta delitiva se aprende em associação com as pessoas que a consideram positiva, gerando o convencimento de estar a agir de maneira certa. Mesmo em face de condutas cruéis, os freios inibitórios são anulados em decorrência do aplauso ao comportamento malvado vindo de autoridades.
Seria a crueldade inerente à pessoa humana, cujo primitivismo deve ser burilado pelos limites impostos pelo processo educacional? Ou a malvadeza é aprendida nas relações sociais, de acordo com o meio social no qual se está inserido?
Indo mais a fundo: o mal é inerente ao exercício do poder? Será um ingrediente ou um meio pelo qual obrigatoriamente o titular do poder se manifesta para mantê-lo ou para afirmá-lo? Haveria até mesmo com gosto pelo mal?
Essas perguntas tocam no fulcro da questão da violência policial.
As perspectivas – a individual, congênita, e a social – combinam-se, mas sem dúvida têm grande peso o incentivo e o elogio a valores negativos vindos dos superiores. A probabilidade de punição (ou, ao menos, a certeza da reprovação moral da conduta nociva) é essencial para o exercício do poder se dar no limite do respeito aos demais.
Por isso a relação do governante com as polícias que atuam com a força na rua é fator relevante, pois a forma de agir do policial decorrerá do quadro de valores transmitido pela autoridade estatal.
Foi marcante o privilégio com que Jair Bolsonaro tratou a Polícia Rodoviária Federal. Aumentou seu efetivo, garantiu proventos na aposentadoria iguais ao do último salário, compareceu a inaugurações de sedes e visitou postos policiais. Neste ano, repetidamente, mencionou que o aumento salarial da Polícia Rodoviária Federal teria tratamento especial, inclusive equiparando a remuneração de seus quadros superiores à dada à Polícia Federal. A proximidade entre o presidente e a Polícia Rodoviária Federal é manifesta.
A tornar mais significativa essa ligação, Sergio Moro, no Ministério da Justiça, estendeu, inconstitucionalmente, a atribuição da Polícia Rodoviária Federal para além das rodovias, quando é claro o § 2.º, artigo 144 da Constituição, que edita: “§ 2.º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. Assim, por portaria ministerial, reiterada em grande parte por André Mendonça como ministro da Justiça, deu-se atribuição para a Polícia Rodoviária Federal atuar em ação conjunta com as polícias militares na área urbana. Ao mesmo tempo, eliminaram-se as aulas de Direitos Humanos previstas no currículo de formação do concursado.
Em consequência, a Polícia Rodoviária Federal, sem expertise para agir em operação policial nas favelas, passou a ser chamada a participar de ações de repressão com o Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio de Janeiro. Veio, destarte, a integrar as forças policiais em duas chacinas na mesma Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, em 11 de fevereiro deste ano, com 8 mortos; e recentemente, em 24 de maio, com o saldo aterrorizador de 23 mortos, sendo metade dos assassinados sem antecedentes criminais.
O presidente da República festejou a ação militar, cumprimentando os policiais pelo morticínio, que “neutralizou vinte”. Negou-se a recriminar, contudo, a crueldade praticada por três policiais rodoviários em Sergipe, que malvadamente lançaram gás lacrimogêneo e de pimenta no porta-malas onde aprisionaram Genivaldo de Jesus Santos, que morreu por asfixia, após ter sido seviciado e empurrado com brutalidade para dentro da viatura.
Esses maus policiais, aos gritos e palavrões, agiram com obsessão para afirmar sua superioridade diante de um pobre cidadão, negro, tido por desprezível: uma pessoa “a ser neutralizada”, como disse o presidente em face dos mortos da Vila Cruzeiro.
Assim, Genivaldo de Jesus Santos, parado pelos policiais por trafegar na moto sem capacete, foi cruelmente morto pela soberba do poder sem controle, em boa parte fruto do aplauso às violências anteriores da corporação.
O poder pessoal do “guarda da esquina” deve estar sob monitoramento, contido por lição de respeito ao direito dos cidadãos, pois, do contrário, abre-se a possibilidade de vir a ser cruel ao ter o mal como meio de afirmação de “autoridade”.
Assim, o exercício do poder, sem o bom exemplo e a fiscalização vindos de cima, viabiliza a instauração do instinto de desumanidade, tendo por consequência a crueldade, que, ensina Montaigne, é o extremo de todos os vícios, a nefasta ausência total de piedade.
Não será fácil desaprender o mal que se espalhou no espírito de parcela dos brasileiros nos anos Bolsonaro.
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