quinta-feira, 21 de junho de 2018

Pensamento do Dia


Tribunais de Contas, os permissivos fiscais expostos pela Lava Jato

“As minhas contas foram aprovadas pelo Tribunal de Contas do Estado.” Essa frase está na ponta da língua dos políticos investigados na Operação Lava Jato por fraudar licitações e superfaturar obras. E o argumento não é falso. Os ex-governadores Aécio Neves (PSDB), de Minas Gerais, Sérgio Cabral (MDB), do Rio de Janeiro, e Beto Richa (PSDB), do Paraná – investigados por suspeita de terem favorecido empresas em licitações –, tiveram as contas aprovadas nos tribunais de contas de seus estados, colocando em xeque a credibilidade dos órgãos de controle como mecanismo para coibir esquemas de corrupção.


O problema é que, entre os julgadores das suas movimentações financeiras, estavam aliados políticos. A ONG Transparência Brasil revelou, em estudo publicado no ano passado, que oito em cada dez conselheiros de contas do país exerceram mandatos eletivos ou altas funções em governos. A pesquisa, realizada em 2014 e atualizada em 2016, incluiu membros do Tribunal de Contas da União (TCU), dos 27 tribunais de contas dos estados e do Distrito Federal, e dos tribunais municipais. Existem quatro tribunais de contas do conjunto de municípios dos estados de Pará, Goiás, Ceará e Bahia, e Tribunais Municipais de contas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

O levantamento mostra que 23% dos 233 conselheiros e ministros respondem a processos ou já foram punidos na Justiça e até mesmo nos próprios tribunais de contas. Os supostos guardiões do dinheiro público são acusados de fraudar licitações, superfaturar obras e enriquecer ilicitamente. A mais comum acusação que recai sobre eles: improbidade administrativa.

Embora não tenha havido nenhuma investigação específica sobre elas, a Operação Lava Jato escancarou a participação dos integrantes dessas cortes estaduais, municipais e federal nos esquemas de desvio de dinheiro. No Rio de Janeiro, cinco conselheiros do TCE estão afastados, suspeitos de cobrar propina para fazer “vista grossa” de contratos do governo com empreiteiras.

Até fevereiro deste ano, o ex-ministro das cidades do governo de Dilma Rousseff Mário Negromonte (PP-BA) ocupava uma cadeira no conselho do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado Bahia (TCM). Ele foi acusado de pedir propina de R$ 25 milhões para beneficiar empresas do setor de rastreamento de veículos quando era ministro. Indicado pelo ex-governador Jaques Wagner (PT-BA), em 2014, o conselheiro foi afastado depois que virou réu por corrupção passiva. O senador Agripino Maia (DEM-RN) teria influenciado a mudança de parecer do TCE do Rio Grande do Norte, favorecendo a OAS na construção do estádio Arena das Dunas para a Copa do Mundo de 2014, de acordo com denúncia da Procuradoria-Geral da República, acatada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A operação atingiu também a cúpula do TCU. O filho do ministro Aroldo Cedraz (ex-deputado federal da Bahia pelo PFL, hoje DEM), o advogado Tiago Cedraz, passou a ser investigado em 2015 depois de o dono da empreiteira UTC Engenharia, Ricardo Pessoa, ter dito que o contratou para obter dados de difícil acesso na corte e para comprar uma decisão referente à usina nuclear Angra 3. Procurados pela reportagem da Pública, todos negam as acusações.

Os tribunais de contas estaduais possuem sete conselheiros. Quatro são escolhidos pelo voto dos deputados; um, livremente pelo governador; e os outros dois, também pelo governador, mas têm de ser auditores e procuradores do Ministério Público de Contas.

Procurador do Ministério Público junto ao TCU e presidente da Associação Nacional do Ministério Público de Contas (Ampcon), Júlio Marcelo de Oliveira – conhecido por ser o autor da representação que levou à reprovação das contas de 2014 da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) por fraude fiscal –, alerta que, quanto mais tempo o mesmo grupo político permanece no poder de um estado, mais influência ele tem no tribunal de contas.

É o caso, por exemplo, de Minas Gerais. O PSDB permaneceu no governo por 12 anos, de janeiro de 2003 a janeiro de 2015. Todos os membros do órgão mineiro são ligados aos ex-governadores tucanos Aécio Neves e Antonio Anastasia: os ex-deputados Mauri Torres (PSDB), José Alves Viana (DEM), Wanderley Ávila (PSDB) e Sebastião Helvécio (PDT) foram indicados pela Assembleia Legislativa. Já os dois cargos técnicos, ocupados por Cláudio Terrão e Gilberto Pinto Dinis, foram nomeação de Anastasia.

O levantamento da ONG Transparência Brasil que avaliou a vida pregressa de todos os membros das cortes dos tribunais de contas na ativa em 2016 traz a informação de que, no grupo de conselheiros que jamais ocuparam cargo eletivo nem foram secretários de governo, 6% respondem a processo na Justiça. Já entre os conselheiros que são políticos profissionais, a porcentagem sobe para 27%.

Políticos que perderam o mandato, que estão achando difícil se reeleger, ou que querem aumentar o poder político da família, sendo substituídos na Assembleia pelo filho ou mulher, por exemplo, cobiçam as vagas de conselheiros de contas. Ali, recebem diversos benefícios, como foro privilegiado, cargo vitalício, salários altos – o salário-base é de R$ 30.471 –, além de gratificações e outras vantagens.

Juntos, os tribunais de contas custam mais de R$ 10 bilhões aos cofres públicos, de acordo com o procurador Júlio Marcelo de Oliveira. Os cargos de conselheiros são equivalentes aos dos desembargadores, e os ministros do TCU são equiparados pela Constituição Federal aos ministros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Os membros dos órgãos de controle estão regidos pela Lei Orgânica da Magistratura. No entanto, ninguém os fiscaliza. “Os tribunais de contas não têm controle nenhum. Ninguém fiscaliza esses órgãos”, ressaltou Oliveira.

Valdemiro e o habeas corpus canguru

É comum advogados impetrarem sucessivos habeas corpus em instâncias superiores mesmo sem que tenham decisão definitiva na origem. Basta ao relator do primeiro tribunal acionado indeferir liminarmente a ordem para um novo HC ser impetrado na instância imediatamente superior, e daí sucessivamente. O inconformismo com a prisão do réu ou investigado é normal. Ninguém quer ficar preso.

No jargão forense é o chamado “HC canguru”, que de liminar em liminar pula instâncias, chegando célere ao STF (alguns cangurus mais ousados chegam saltar direto da primeira à última). Mas essa subversão do processo não é regra, porque subtrai a autoridade e a jurisdição dos tribunais cujas turmas ainda não decidiram a matéria. Daí que, para evitar essa supressão de instâncias, o STF editou a Súmula 691: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”.

E o mesmo STF já concluiu que essa regra só poderá ser excepcionada em casos de flagrante constrangimento ilegal ao direito de liberdade, ou seja, situações estapafúrdias ou manifestamente contrárias à jurisprudência do próprio STF.


As exceções, via de regra, são aplicadas de forma restrita pelos tribunais superiores. Recentemente, a Defensoria Pública de SP impetrou no STF o HC 157.704, para obter a liberdade de Valdemiro Firmino, acusado de ter roubado R$ 140 em 2013. Alegava a Defensoria razões humanitárias: Valdemiro é cego, HIV positivo e sofria de ataques de convulsão na unidade prisional.

O relator, ministro Gilmar Mendes, foi rigoroso. A liminar foi indeferida no último dia 4: “na hipótese dos autos, não vislumbro nenhuma dessas situações ensejadoras do afastamento da incidência da Súmula 691 do STF”.

Nesse dia, a mesma caneta conferiu maior sorte a quatro acusados na Operação Câmbio, Desligo, que desvendou um esquema de lavagem de dinheiro de US$ 1,6 bilhão. Outros 17 acusados em operações da Lava-Jato no RJ mereceram a mesma deferência entre maio e junho deste ano. Ao contrário do Valdemiro, todos esses réus foram beneficiados por liminares que devolveram as suas liberdades sem que fosse preciso esperar o julgamento definitivo dos HCs que impetraram no TRF2 e no STJ. Alguns desses HCs sequer chegaram a passar por essas instâncias.

O relator considerou, em geral, que as prisões eram manifestamente ilegais porque os crimes foram praticados sem violência ou grave ameaça e os fatos distantes no tempo (ainda que muitos tenham sido cometidos até 2017). No entanto, o que mais aflige as pessoas e deteriora a sociedade: a violência do Valdemiro ou a suposta “não-violência” de uma macrocriminalidade que se organizou de forma sistemática para corromper, lavar dinheiro de toda espécie de delitos e desviar verbas públicas da segurança, transportes, infraestrutura e saúde?

A Procuradoria-Geral da República tem recorrido dessas decisões e o STF terá a oportunidade de reafirmar que é o guardião maior das garantias não somente dos investigados, mas também da sociedade vitimizada pelos seus atos. Nesta linha, a nossa Corte Maior tem promovido julgamentos que conferem a todos a certeza de que, em matéria de combate à corrupção, o país tem avançado, como é o caso do reconhecimento da legalidade de institutos como os da execução provisória da pena, da investigação criminal pelo MP e da colaboração premiada. A desconfiguração de qualquer desses institutos é a bandeira de uma minoria que quer mudança para que tudo permaneça como sempre foi no reino da impunidade.

José Augusto Vagos

Brasil de hoje


Meditações futebolísticas

1. Um dos mistérios da vida coletiva é justamente o sentido da vida coletiva. Movidos a individualismo, ficamos estupefatos diante do significado do coletivo que, a rigor, não deveria ter capacidade de criar as circunstâncias não previstas que nascem do previsto e do esparrado. Do café malfeito ao gol do adversário; da vitória mundial no futebol da chamada sub-raça, forçada a redefinir-se; da investigação policial que - eis o inesperado do inesperado - leva à prisão quem se pensava acima da lei e - eis outra ironia - torna republicano um sistema avesso à igualdade.

2. O coletivo não é uma soma de indivíduos. Ele tem sua realidade e os seus códigos - a língua, a geografia e a história. Suas constituições e palcos nos quais entramos sem sermos chamados. Tal conjunto se faz por determinações coletivas. Concordo com Lévi-Strauss quando ele, freudianamente, põe em dúvida a consciência individual. E com Louis Dumont quando ele denuncia o primado do indivíduo (e da parte) como um valor instituído pela modernidade.

3. O esporte é uma instituição social delimitada. Ao contrário da rotina que não tem fim, ele tem tempo, espaço, gestos, objetos, vestimentas e regras próprias. No futebol da Copa que me embriaga, tirando os goleiros, nenhum jogador pode tocar a bola com a mão. Mas no mundo público nacional, dentro do qual o futebol acontece, os poderosos podem meter a mão nos dinheiros públicos e é somente neste século 21 que se cogita em puni-los com as reações que todos conhecemos. De um lado, há os que querem uma igualdade de todos como no futebol; do outro, há os que querem mudar as regras ainda que isso custe o fim do jogo.


4. Há um elo óbvio entre esporte e democracia.

5. No futebol, há um dinamismo contrário às rotinas. Mas as regras ancoram tudo. Numa sociedade constituída pelo “jeitinho” para certas situações e pessoas, conforme revelou minha colega e querida amiga Lívia Barbosa, começamos a ter uma clareza futebolística. Sem limites, não há chance de viver democraticamente. A distribuição equitativa de justiça e bem-estar exige talento e, acima de tudo, respeito às leis.

6. No esporte não cabe populismo, embora os populistas, fascistas e seus simpatizantes possam tirar proveito dos seus resultados. O humano não é puro.

7. Imagine um jogo de futebol no qual os jogadores ricos, famosos e de talento pudessem seguir seus desejos.

8. A famosa “transparência” é simplesmente a coerência entre pessoa, papel e norma coletiva. Quando isso não ocorre, temos malandragem. E o malandro, conforme mostrei em Carnavais, Malandros e Heróis, é personificado por Pedro Malasartes - o rei do mal-entendido que desmantela o planificado. Mestre da ironia, Malasartes é uma saída para o trabalho estigmatizado pela escravidão e por um sistema dominado por um Estado opressor e juridicamente onipotente.

9. Tenho reiterado que a experiência inconsciente da igualdade é básica na popularidade desse esporte no Brasil e no mundo. A integração pela igualdade permitiu juntar pretos e brancos, ricos e pobres, analfabetos e letrados. Foi o futebol que permitiu redefinir nossa autoestima. Hoje, quando punimos os pênaltis cometidos pelos poderosos, ele ajuda a desmistificar o nosso enraizado populismo.

10. Condenar um goleiro que “engole frangos” - um “frangueiro”, como se dizia antigamente- é uma coisa. Outra coisa é saber que o “frango” foi proposital num jogo que envolve o País e demanda honestidade e altruísmo - serviço para a coletividade e não para si próprio. O esporte, como o teatro, o romance (e os mitos) não mentem porque eles são ficcionais. Num filme ou romance não há “fake news” porque tudo é “fake”. Nessa esfera da vida, há uma desigualdade de raiz entre o produtor e o espectador.

11. Situado entre ficção e realidade, o esporte é, para lembrar Victor Turner, um “liminoide” - um espaço entre a realidade inexorável do trabalho e o entretenimento que permite com ela lidar.

12. A crise brasileira tem tudo a ver com luta para aplicar no campo político essa honradez às regras que legitima e dignifica o futebol.

*
PS: Atordoado pelo futebol, eu digo. Não adianta reclamar. Na vida, como no jogo, temos de sobreviver a todas as falhas: as nossas, as que fazem parte da partida e as dos juízes.

Indecência na Copa e fora dela

O que é mais imoral? Donald Trump separar filhos de pais que migraram ilegalmente para os Estados Unidos e trancá-los em gaiolas? Ou um bando de torcedores brasileiros idiotas assediaram jovens russas para que repitam indecências em uma língua cujo significado das palavras elas simplesmente desconhecem?

Não será imoral uma ex-presidente da República, com tudo pago pelo Estado brasileiro e à custa de patrocinadores internacionais, sair mundo a fora pregando que o Brasil vive sob uma ditadura? A ter que denegrir a imagem do seu próprio país, que o faça pelo menos abrindo mão dos benefícios que ele lhe concede.


Não é menos imoral um condenado e preso por corrupção, lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio, aproveitar o que lhe resta de popularidade para assegurar que será candidato de qualquer jeito, a não ser que lhe tirem a vida ou que rasguem a Constituição. Para ele, rasgar a Constituição quer dizer não fazer a sua vontade.

Imoral é também um país onde 171.480 ricaços acumularam no ano passado um patrimônio de 4, 5 trilhões de dólares. Eles representam apenas 0,8% da população, mas têm renda e patrimônio superior a mais de 60% dos brasileiros, segundo o relatório global de 2018 divulgado ontem pela empresa de consultoria Capgemini.

Os bagrinhos imorais pagarão pelo que fizeram na Rússia – sinal promissor de que a tolerância com crimes de tal natureza começa a chegar ao fim. A pressão sobre Trump foi tamanha que ele admitiu recuar do propósito de separar pais de filhos. A ver, uma vez que ainda não anunciou o que fará.

As transgressões cometidas por Dilma e pelo encarcerado de Curitiba serão corrigidas tão logo se tenha um novo governo livremente eleito. Quanto à imoralidade de um país tão absurdamente desigual, levará muito, muito tempo. Será tarefa para os nossos filhos, e para os filhos dos filhos deles.

Hoje não se fez justiça

Na terça-feira passada a Justiça do Trabalho concluiu um processo de reintegração e condenou o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) a pagar R$ 80 milhões a dez servidores, de um grupo de 12, que ficaram dez anos afastados das suas funções. Eles foram demitidos da estatal em 1989 e reintegrados numa primeira decisão judicial em 1999. Na ocasião, a empresa pública também foi condenada a ressarcir aos funcionários reintegrados os salários não pagos ao longo do período em que ficaram sem trabalhar.

Por uma série de razões, desde perda de prazos até falhas da defesa na apresentação de dados e documentos, o Serpro foi acumulando derrotas, e os servidores reintegrados foram vendo seu crédito com a empresa pública aumentar. No ano passado, a estatal devia R$ 500 milhões aos servidores. Além dos salários, os advogados dos funcionários conseguiram na Justiça que fossem somados juros do período. Juros sobre juros, na verdade, construindo para o Serpro uma dívida praticamente impagável de meio bilhão de reais.

Na decisão da terça-feira, os dez funcionários que aceitaram o acordo receberam cheques que variaram de R$ 2 milhões, para servidores de nível médio, até R$ 25 milhões, para aqueles que tinham cargos de chefia na ocasião da demissão. O pagamento foi feito depois de uma negociação entre os novos advogados contratados pelo Serpro e os dos servidores que durou cerca de um ano. A decisão agradou ao Serpro, que economizou R$ 420 milhões. Mas, incrível, nem todos os funcionários saíram satisfeitos.

Além da indenização milionária, os servidores foram aposentados com vencimentos de R$ 12 mil a R$ 32 mil por mês. Só mesmo no serviço público brasileiro isto seria possível. Mesmo assim, dois funcionários resolveram não assinar o acordo. Na petição inicial, de 1989, 12 servidores processaram o Serpro, todos foram reintegrados, mas dois não fecharam o acordo desta semana para não abrir mão de novos pleitos contra a empresa, o que seria proibido pelo acerto entre as partes.

Uma servidora de 72 anos, que receberia R$ 10 milhões pelo acordo proposto pelo Serpro, não aceitou os termos da negociação para prosseguir o litígio onde ela espera receber o dobro, R$ 20 milhões. Outro funcionário, que assinou o acordo e recebeu cerca de R$ 10 milhões, produziu a seguinte frase à saída do tribunal: “Hoje não se fez justiça”. Não há como concordar mais com ele. Foi absolutamente injusto pagar tanto a tão poucos.

Com muita boa vontade, supondo que todos os dez funcionários ganhassem o salário teto do serviço público, que equivale à remuneração de ministro do Supremo Tribunal Federal, ou R$ 33,7 mil, o máximo que o Serpro deveria pagar equivale a cerca da metade do que de fato desembolsou. Isso, se todos fossem presidente da empresa. O que obviamente não é, nem foi o caso, basta olhar a disparidade entre as indenizações. Sem querer dar aula de matemática, mas se considerarmos que as indenizações foram de R$ 2 milhões a R$ 25 milhões, a indenização justa deveria ficar entre R$ 10 milhões e R$ 20 milhões para o grupo inteiro.

Mas neste caso estamos tratando do serviço público federal e da Justiça do Trabalho, duas instituições que merecem atenção especial. Dificilmente um patrão ganha uma causa nos tribunais do trabalho, mesmo se estiver bem documentado e com uma boa defesa. Quanto maior o patrão, maior a gana da Justiça do Trabalho. Imagine então quando este patrão é o poderoso Estado brasileiro tendo uma defesa mais do que ineficiente, na verdade ausente durante diversas etapas do processo. A coisa só andou em direção ao acordo quando o Serpro contratou um novo time de advogados.

Essa montanha de dinheiro só foi produzida porque lá atrás, quando o processo de reintegração começou a caminhar, a defesa inepta falhou seguidamente no cumprimento de seu dever. Mesmo assim, considerando até mesmo uma indenização um pouco maior por causa de eventuais danos morais causados aos servidores demitidos, ninguém pode dizer que os R$ 80 milhões conformam um pagamento justo. Ao contrário, a fortuna que foi injetada nas contas correntes dos dez funcionários é quase imoral, embora resulte de um acordo judicial.
Ascânio Seleme

Imagem do Dia

Aquavia nos campos de arroz em Ninh Binh (Vietnam)

O árbitro de vídeo como instância recursal

Presumo que o leitor destas páginas, habitualmente dedicadas a assuntos inadiáveis, como inflação, eleição, corrupção e obnubilação, há de ter sido informado de que transcorre na Rússia, por estes dias, um campeonato mundial de futebol. O esporte em tela vem a ser, atualmente, o mais popular no mundo e os frequentadores deste espaço, habitantes deste planeta, sabem perfeitamente em que consiste a sua prática: chutar. Mas, aí, diferentemente do que se dá em outros domínios da vida, chuta-se com destreza. Em certames mundiais, são raros os pernas de pau. Além de chutes, os atletas também dão cabeçadas.

No mais, o futebol não tem atrativos. É pura monotonia. Nunca há novidade em seus cenários. Com sua imutabilidade, desperta paixões furiosas em pessoas comuns, como advogados, garis, políticos e sacerdotes – e fúrias passionais em multidões numerosas. Há notícias de turbas uniformizadas que se enfrentam em batalhas campais em que torcedores de um lado matam torcedores do outro. Assim é a rotina modorrenta e entediante do ludopédio, com seu conservadorismo feroz. Nada de novo sob os holofotes. O futebol é uma longa tragédia sem surpresas, cuja prosa são as entrevistas dadas pelos jogadores e seus treinadores, tecidas de irrelevâncias sobre o vazio. As massas deliciam-se com o vácuo de sentido. As massas são como as crianças de antigamente, que na hora de dormir pediam pra mamãe reler sempre a mesma historinha.


Dado o contexto, não deixa de chamar a atenção que, neste ano de 2018, espocou um dado diferente nisso a que chamam de Copa do Mundo (deveria ser Taça do Mundo, mas parece que nesse caso espanholaram o português). A mudança da temporada é o árbitro de vídeo. Liguei a TV para ver esse negócio. Que coisa mais caipira! A bilionária atração da indústria do entretenimento chamada futebol, que antes era apenas sem graça, agora ficou mais tristonha.

Caso o improvável leitor não se tenha dado conta do que se vem passando na Rússia, passo a uma breve descrição do tal árbitro de vídeo. Trata-se do seguinte: interpelado por um instante de incerteza factual, como, digamos, saber se foi pênalti ou não foi, o juiz interrompe a partida, corre até um pequeno “altar” instalado na entrada dos vestiários na lateral do campo (suponho que você tenha a memória, ainda que longínqua, da planta de um estádio de futebol) e ali se posta em recolhimento silente, de costas para o estádio. No “altar”, o que o espera é um monitor, uma tela eletrônica onde o juiz vê, por outros ângulos, a jogada que o deixou em dúvida. Quem assiste à partida pela televisão – e, portanto, já viu o replay umas 400 vezes, até em câmera lenta – tem a impressão de que o pobre homem faz uma oração ali parado, à espera de uma verdade que se lhe revelará.

Enquanto isso, os jogadores aguardam em campo, disciplinados como recrutas. Uns esfriam. Outros olham o céu ou batem as chuteiras contra o piso verde. A maioria gesticula e faz careta. Eles sabem que estão em cena e, com a consciência teatral de quem atua profissionalmente, proferem discursos gestuais e faciais segundo os códigos imagéticos ditados pelas leis do espetáculo. Alguns erguem os braços vigorosamente com indignação a reclamar que “foi pênalti”. Outros se aquietam, mãos espalmadas para cima, com a expressão aparvalhada: “Não foi pênalti”. Com isso o script da partida de futebol incorpora mais um recurso dramático e o suspense se instala. Vamos do nada ao nada eletrônico. A novidade na várzea russa é a arbitragem se alimentar de LED.

Mas, a rigor, a novidade não é novidade. É apenas a releitura de um verso antigo. Isso que acaba de chegar aos “gramados” – na expressão dos narradores profissionais que animam as transmissões dos jogos na TV – já é comum em outros esportes, além de ser a norma na vida social há muito tempo: à imagem eletrônica se atribui a função de separar a verdade da mentira.

A imagem eletrônica tem o monopólio da mediação entre os olhos humanos e a dita realidade. Um olho nu não vale mais nada, não tem credibilidade alguma. O espaço entre os homens e a natureza, que um dia já foi habitado pela cultura, hoje se encontra invadido e ocupado por esse amontoado de dispositivos que se ligam na tomada. É uma microcâmera de vídeo que entra pelo corpo do paciente para atestar que ele tem um tumor nas entranhas.

Quem bisbilhota a existência de corpos celestes são telescópios digitais que enxergam raios que nossa retina não registra. A câmera de vigilância avisa se um suspeito se acercou do seu portão. Casais enamorados trocam nudes no WhatsApp. Juras de amor e de desejo cruzam o ciberespaço traduzidas na língua universal das imagens (e transcodificadas em bits). Mensagens de ódio seguem as mesmas trilhas. No ponto de ônibus, a moça usa o celular para retocar a maquiagem. Em Marte, um robô de olhos artificiais detectou a presença de uma molécula que indica que houve vida por lá. Nos tribunais, cinzentos personagens togados aceitam como prova um filminho em que um cidadão parece correr na ponta dos pés, à noite, numa calçada escura, carregando uma valise preta.

Eis então que agora, finalmente, no mundinho do futebol, o mais retardatário no pelotão dos mais retrógrados, o árbitro de vídeo passou a valer e entra em campo como instância recursal solene, como uma sacristia. Ou como um oráculo ambíguo e caprichoso.

Nos “lances” mais controversos, os fatos que o vídeo mostra são inconclusivos. Aí o vídeo responde com um enigma, uma charada, como a esfinge. O juiz precisa interpretar. Ele apita. Na sua discricionariedade, sobrevive a imperfeição humana. Os atletas voltam a correr atrás da bola em homenagem a uma humanidade que não tem mais fé em nada que não seja a imagem eletrônica, essa entidade suprema que governa a nossa vida e não resolve os mistérios de um chute ou de uma cabeçada.

Exército faz política e expõe flacidez institucional

De todos os sintomas do enfraquecimento de Michel Temer o mais inusitado é a agenda do comandante do Exército. O general Eduardo Villas Bôas recebe presidenciáveis em seu gabinete com notável desenvoltura. Pluripartidária, a lista de interlocutores do general já soma nove candidatos. Sua movimentação contrasta com a paralisia de Temer, um presidente débil que teve de abdicar da pretensão de influir na própria sucessão.

Pela Constituição, o presidente da República é o comandante em chefe das Forças Armadas. Em tese, o general Villas Bôas lhe deve, mais do que obediência, uma certa reverência constitucional. Mas a desqualificação de Temer e do seu governo promoveram, por assim dizer, uma espécie de subversão liturgia militar. O comandante do Exército sente-se à vontade para recepcionar até os maiores desafetos do presidente.

A pretexto de discutir temas relacionados à defesa nacional e à segurança pública, o general já recebeu de Marina Silva a Geraldo Alckmin. Causou desconforto no Planalto ao recepcionar Jair Bolsonaro e Ciro Gomes, que chamam Temer de “ladrão” e “escroque”. Incluir na agenda Fernando Haddad, o Plano B do PT.

Num instante em que proliferam os pedidos de volta dos militares, o ciclo de conversas do comandante do Exército revela uma flacidez institucional que deseduca o pedaço mais alienado da sociedade brasileira.

A Copa do Mundo e uma ideia para os candidatos a presidente

Depois dessa enorme mixórdia de tendências que tomou conta da sucessão presidencial, boa ideia seria submeter antes os candidatos a presidente, na eleição do próximo dia 7 de outubro, a um autêntico “reality show”, que funcionaria como um choque de realidade.

Em resumo: os candidatos seriam internados, durante 30 dias, em hotel cinco estrelas, pago por eles, distante dos grandes centros urbanos. O tratamento seria de primeira, com duas diferenças, que o distinguiriam dos demais hotéis: ficariam hospedados em regime de internato obrigatório, sem qualquer ajuda de marqueteiros e sem possibilidade de deixá-lo antes de decorrido o tempo estabelecido. Passariam 30 dias juntinhos. O tema sobre o qual teriam que refletir seria somente este: “O destino de 210 milhões de brasileiros”. Para facilitar seu entendimento, depois dele viria este subtítulo: “A verdadeira missão de um homem público começa e acaba na promoção do bem comum”.

Nas discussões internas, os candidatos poderiam, sim, tratar de assuntos óbvios. Exemplos: corrupção, previdência pública, defesa da liberdade e da democracia, reforma política, educação, saúde pública, urna eletrônica, ajuste fiscal etc. Deixariam do lado de fora, todavia, a vaidade e a preocupação com o destino financeiro pessoal.

A ideia pode ser maluca, leitor, e de fato é, mas, posta em prática, poderia, em primeiro lugar, possibilitar a desistência, por arrependimento, de alguns deles. Aos corajosos que fincassem pé, e depois de porradas de toda espécie, abrir-se-ia excelente oportunidade para que, enfim, se discutisse a verdadeira missão do “homem público”.

Escolhida a dupla de presidente e vice, ela seria submetida ao aval popular por meio do voto de cada um de nós. Poderíamos, então, dizer que, enfim, temos candidatos em condições de pensar no futuro da nação brasileira. Em nosso futuro. O resto – no Congresso Nacional, nos governos estaduais, nas Assembleias legislativas, nos municípios, nas Câmaras municipais, viria por acréscimo.

Pois é. Falei sobre assunto sério: o futuro da nação brasileira. E é aqui que entra o assunto do dia – o futebol, que, em época de Copa do Mundo, leva muita gente a pensar e, o que é pior, a admitir que a conquista do hexacampeonato pelo time canarinho levará nosso país à conquista de um futuro menos injusto para todos os brasileiros.

Peço licença, leitor, para usar uma expressão que me deixou fascinado quando a descobri, em plena (e poética) adolescência: ledo engano! Nada mais falso e sem base de sustentação. Quem pensa assim confunde João Germano com gênero humano. Poderia citar Picasso, mas… E não vai aqui crítica ao futebol, de nossa seleção, repleta de craques. Da minha parte, torci e vou torcer pelo hexacampeonato. Não misturemos as marchas. Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. E estamos conversados. Copa do Mundo, como diz meu neto Bruno, é de quatro em quatro anos. Só. E como estarei na próxima?

Pra frente, pois, Brasil! E a vocês, meninos ricos de 2018, um apelo: se vocês não se lembram, peçam a seus pais ou avós para lhes contar algo sobre os craques de 1958 ou de 1970. Quase todos jogavam aqui e deram o suor por seu país. Hoje, quase todos vocês estão fora, alguns há muitos anos, e talvez só pensem (o que, de certo modo, seria até explicável) no dinheiro. Que é bom, mas, às vezes, só funciona como esterco do diabo ou como um bom adubo à injustiça.

Mirem-se nos exemplos!