sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Infiltrações autoritárias na democracia brasileira

O curto regime bolsonarista fez e continua fazendo muitas revelações do que é o Brasil político. Mostrou-nos que o que imaginávamos ser o país utopicamente democrático da Constituição de 1988 é, na verdade, um país de democracia híbrida infiltrada por estruturas autoritárias e por uma cultura acentuadamente intolerante.

O descuido pós-ditatorial, dos que lutaram pela democracia contra a ditadura de 1964, em relação a essa infiltração, permitiu que o autoritarismo crescesse e se multiplicasse nutrido pelos direitos do regime democrático. E criasse as bases sociais do que Theodor Adorno, em famoso estudo por ele coordenado nos EUA, chamou de personalidade autoritária. Bolsonaro a expressa e aglutina os dela dotados.

A mudança de governo não mudará essa realidade, a menos que leve em conta que é preciso identificar e neutralizar os focos dessa vulnerabilidade.


Os indícios já conhecidos das preocupações do novo governo, que assumirá na primeira hora de 2023, sugerem uma reiteração dos temas sociais e econômicos do período dos anos do petismo no poder. Os produtores de conhecimento crítico sobre a realidade social e histórica e das condições de superação de suas contradições não nos legaram os instrumentos para compreender e vencer o autoritarismo.

Aparentemente, estamos desatualizados em relação ao possível e necessário nesta hora escura de incertezas e fragilidades.

Ainda não conseguimos repensar a democracia deste novo momento, sua arquitetura, seus alicerces sociais e políticos. Estamos pensando em transição de maneira abstrata e, de certo modo, messiânica, fortemente dependente do carisma de uma só pessoa. Democracia, na verdade, é um empreendimento social e comunitário no campo da política e não apenas no dos políticos.

A lentidão e a demora na releitura de um projeto democrático para o Brasil faz com que, de vários modos, Bolsonaro e os militares que o cercam adulam e usam saiam politicamente vitoriosos, apesar de derrotados nas urnas. Eles conseguiram dar visibilidade política e ideológica ao crônico autoritarismo brasileiro, conseguiram dar-lhe um nome e uma identidade antidemocrática - direita - como disse o próprio Bolsonaro no curto e contrariado discurso em que reconheceu que perdera.

Tudo indica, no entanto, que os que ele representa não foram derrotados. Com essa identidade, eles conseguiram disseminar-se pelo país inteiro, por todas as classes sociais, até mesmo entre os pobres, pelas igrejas fundamentalistas ideologicamente aprisionadas no interior das muralhas indevassáveis da falsa consciência, com grande força de reprodução ampliada e de crescimento. Elas se tornaram a fábrica principal da alienação que veta e inibe no cotidiano a consciência crítica essencial à democracia. O autoritarismo bolsonarista, agora enraizado, e seus beneficiários dependem desse mecanismo de gestação e reprodução da consciência antidemocrática.

As oposições ao autoritarismo organizado só tardiamente se agruparam em torno de Lula, simplesmente porque as pesquisas de opinião apontavam que ele era o único candidato potencial que poderia vencer Bolsonaro. Uma pessoa e não um programa de governo, que só agora está sendo montado. Nem é, ainda, um projeto democrático de nação.

A estrutura organizada de um governo democrático e pluralista poderá não ser suficiente para vencer ou ao menos neutralizar a força autorreprodutiva da intolerância e do preconceito, valores de orientação e fundamentos da situação política antidemocrática que, apesar dos resultados da eleição, continuarão ativos.

Os diferentes grupos organizados de referência na reprodução da intolerância com o outro, política ou religiosa, e reprodução ampliada da direita, desenvolveram uma sociabilidade autoimune, que aprisiona as pessoas em formas fechadas de vida social e de compartilhamento de ideias socialmente redutivas. As que podem ser definidas como próprias do que Goffman define como instituições totais. Nesse sentido, marcadas pela difusão de uma cultura autoritária no subterrâneo da democracia. Pela ressocialização de seus membros é ela formadora de personalidades autoritárias. Isto é, potencialmente ou mesmo ativamente fascistas.

Isso se tornou notório no governo que acaba. Bolsonaro deu a esses grupos não só um nome, na definição como direita, mas uma identidade baseada na usurpação de símbolos da unidade nacional, fornecendo-lhes até mesmo uma motivação religiosa, como “Deus, pátria e família” e “Deus acima de todos, Brasil acima de tudo”. Concepções totalizantes e totalitárias, nesse sentido, ele não protagoniza uma ideologia, mas uma crença. Ele transformou o fascismo numa religião.

Pensamento do Dia

 


Lula não é um herói a ser punido; é só um eleito contra a herança maldita

Fosse a Presidência da República uma distinção apenas pessoal, Lula poderia estar a flanar de felicidade, não é? A forma como foi recebido na COP27, o seu discurso impecável, a reação do mundo à sua fala... "Exuberante", "rockstar", "herói".

Herói? Pois é. A resposta "Duzmercáduz", como se percebe, não é boa. E já que se empregou aqui a palavra "herói", a imprensa antevê o pior e decide atuar como o coro a comentar o desfecho trágico daquele que há de ser punido por sua "húbris", que é a soberba de afrontar os deuses olímpicos. Ocorre que Lula só está confrontando a herança maldita de Jair Bolsonaro e um Orçamento de mentira.

Como sabem os especialistas da área, ninguém consegue parar o sistema punitivo do drama trágico. O subgênero tem um propósito didático. A catarse existe para restaurar a ordem. E convenham: esse tal Lula está aí há muito tempo a arrostar com a máquina do mundo. Seu último feito foi ficar 580 dias preso em razão de uma condenação sem prova e saltar da cela para a Presidência.


É evidente, por essa abordagem inicial e por coisas que tenho escrito e dito em outros sítios, que considero histérica e precoce a gritaria que se promove em nome da responsabilidade fiscal. E é certo que não a desprezo. Reconheço, como se pudesse ser diferente, que a gastança irresponsável é o caminho do desastre. O que pergunto é se Lula fez essa escolha. E me parece que não.

Já sugeri aqui que os críticos da PEC de Transição imponham a si mesmos a exigência que se faz aos estudantes na prova de redação do Enem: apresentem o problema e também uma solução. A peça orçamentária de 2023 é uma mentira inventada por Paulo Guedes em conluio tácito com "Uzmercáduz".

O Bolsonaro das PECs ilegais do ICMS e dos benefícios enviou ao Congresso um Orçamento que prevê, a partir de janeiro, R$ 405 para o Bolsa Família, não os R$ 600 que passaram a ser pagos a menos de três meses da eleição, embora anunciasse em campanha que não haveria a redução do valor. Custo anual da diferença: R$ 52 bilhões. Existe esse dinheiro? Não. O coro ficou mudo.

Não se prevê aumento real do mínimo, mais uma vez, ainda que, no debate da Globo, o presidente tenha prometido R$ 1.400. A três dias da eleição, Guedes deu uma dica ao chefe. Deveria dizer ao petista: "Se você paga um salário mínimo de R$ 1.200, eu pago R$ 1.400; se você paga R$ 1.400, eu pago R$ 1.500". Segundo o ministro, isso seria possível porque eles roubam menos. Eis a qualidade do debate.

Tentar impor a Lula que governe o país com o Orçamento de 2023 corresponde a exigir que faça o que nem Bolsonaro faria. E isso expõe uma das faces do presidente: a do farsante. Há a do perverso. O "Casa Verde Amarela", que é a demolição do Minha Casa Minha Vida, sofreu um corte de 95%. Reserva-se ao programa a soma de R$ 34,1 milhões.

O Orçamento do Farmácia Popular despencou de R$ 2,04 bilhões para R$ 842 milhões. Os 21 milhões que dependem de remédios para hipertensão, diabetes e asma têm de entender que "todo mundo morreu um dia". É o governo do coveiro. Reserva-se para o ano que vem um investimento correspondente a 0,22% do PIB: R$ 22 bilhões. São alguns exemplos do descalabro.

A dupla Bolsonaro-Guedes pode ser acusada de quase tudo, menos de ser fiscalmente responsável. Ocorre que, à diferença de Lula, o atual ministro da Economia fala tudo o que "Uzmercáduz" querem ouvir, ainda que não pratique quase nada, exceto a irresponsabilidade social. Ele é, assim, como os idealistas criticados por Marx e Engels em "A Ideologia Alemã": está mais interessado em colonizar espíritos e em provar a superioridade de sua filosofia, com suas respostas simples e erradas para problemas difíceis, do que em ser eficaz.

Como inexiste governo, a não ser para dar amparo a golpistas, Lula vive a insólita circunstância de já ser presidente estando na oposição. E se cobra dele uma resposta para a herança maldita de Bolsonaro, mas reverenciando a doxa guediana, que prevê o apagão social contra o qual o petista se elegeu. Lula não é um herói a desafiar os deuses. Está negociando um Orçamento realista para governar o Brasil. Que não seja punido por isso.

Agrogolpismo ameaça democracia e financia vivandeiras de quartel

Quando os bolsonaristas começaram a fechar rodovias, o procurador Mário Sarrubbo avisou que havia uma organização criminosa por trás dos protestos contra o resultado das urnas. Investigações da Polícia Federal mostram que o chefe do Ministério Público paulista tinha razão.

Em ofício enviado ao Supremo, a PF identificou dezenas de suspeitos de financiar os atos golpistas. Com base no relatório, o ministro Alexandre de Moraes mandou bloquear as contas bancárias de 43 pessoas físicas e jurídicas.

A lista é dominada por empresários e empresas agrícolas e de transporte de cargas. Uma delas tem nome sugestivo: Berrante de Ouro Transportes Ltda. Sua sede fica em Sorriso (MT), que reivindica o título de capital nacional do agronegócio.


Jair Bolsonaro se aliou aos setores mais atrasados do ruralismo, que se recusam a adotar práticas sustentáveis e respeitar a legislação ambiental. Em sintonia com a turma, desmantelou o Ibama, cancelou multas e encarregou um ministro de “passar a boiada”.

A derrota do capitão criou um problema para esses empresários. Em vez de modernizar seus negócios, eles querem empastelar a democracia e impedir a posse do presidente eleito.

O dinheiro do agrogolpismo abastece as vivandeiras de quartel. Em Brasília, elas acampam diante do QG do Exército, conhecido como Forte Apache. No Rio, aboletam-se em frente ao Palácio Duque de Caxias, antiga sede do Ministério do Guerra. As aglomerações se arrastam há três semanas sem que os militares se mexam para dispersá-las.

Na terça-feira, o general Villas Bôas criticou a imprensa e saiu em defesa dos radicais. Classificou-os como pessoas “identificadas com o verde e amarelo” que estariam preocupadas com “ameaças à liberdade”. De ameaças o general entende bem. Em 2018, ele pressionou o Supremo a manter o candidato do PT na cadeia, facilitando a vitória da extrema direita.

As cenas de bolsonaristas em transe, escalando caminhões ou cantando o Hino Nacional para um pneu, podem passar a ideia de que os atos golpistas são inofensivos. É um erro encará-los assim. Desrespeitar o resultado das urnas e pregar o rompimento da ordem constitucional é crime, lembra o ministro Moraes. As instituições precisam se defender de quem quer destruí-las.

Inflação está na raiz da crise no mundo da tecnologia

Os sinais vindos do Vale do Silício não são bons e apontam para a pior crise do mundo da tecnologia desde o estouro da bolha das ponto-com em 2000. A esta altura, já fizeram grandes demissões Snpachat, Netflix, Twitter e Meta (Facebook). A elas se juntaram a Stripe, de pagamentos, a Salesforce e a Lyft, concorrente da Uber. Nesta semana, foi a vez da Amazon. Todas demitiram mais de 10% da tropa. No início do ano, já havia entrado em colapso a WeWork. Agora foi a FTX, terceira maior corretora de criptomoedas — que, aliás, no fim agia menos como corretora e mais como esquema de pirâmide. Não é só. Mesmo empresas que não sinalizaram demissões, como Apple e Google, pararam de contratar.

A comparação com a bolha de 2000 não é referência gratuita. Quem estava no Vale naquele tempo e lá continua repete com frequência: a sensação é a mesma.


O assunto é importante e mexe com a vida de todos. Não porque faltarão novidades nos apps que usamos — embora isso também seja verdade. É porque, das dez maiores empresas americanas em valor de mercado, cinco são de tecnologia. Se o setor vai mal, é porque a economia americana vai mal, e, se a economia americana pega um resfriado, a brasileira não para na tosse.

Os lucros trimestrais de quase todas essas companhias estão menores. Seu crescimento diminuiu. A Amazon espera vender menos entre a Black Friday e o Natal. Facebook e Google foram atingidas por uma queda no setor de publicidade. A Apple, cujas vendas dependem de um tipo específico de consumidor que paga mais caro por seus gadgets em todo o mundo, é um raro caso de empresa que não foi atingida pela desaceleração da economia. Ao menos, não ainda.

Há, também, o problema do investimento. O Vale do Silício vive de investimento — de gastar dinheiro hoje em produtos que existirão no futuro, e alguns deles não farão sucesso. Só que dinheiro para investir tem custo. Nos últimos mais de dez anos, com os juros básicos do Fed no chão, esse dinheiro era barato. Não havia muito mais em que colocar o capital em busca de retorno. Mas, à medida que a inflação americana começou a subir, e o Banco Central começou também a puxar o juro para cima, o capital de investimento encareceu. Outras maneiras de conseguir retorno apareceram.

Nos EUA, não tem quem faça o discurso de que o juro sobe para os especuladores fazerem dinheiro. Não: lá, o desenho é compreendido como ele é. Se tem inflação, é preciso combatê-la. Isso é feito pelo Fed, puxando os juros para cima. A ação já está tendo efeito na economia. A inflação está em queda. Mas não sem outro resultado. O dinheiro que se usa para investir ficou mais caro. Evidente. Um título do Tesouro americano pode render menos que a grande novidade da tecnologia, mas o título dá retorno sempre. A grande novidade pode fracassar inteiramente.

O resultado é este a que estamos assistindo. Com menos dinheiro nas mãos, a Amazon olhou para sua assistente Alexa e escolheu diminuir a equipe. O Facebook cortou na moderação e na área de combate à desinformação, porque sua prioridade é botar o que tem no metaverso. O Twitter pôs todas as fichas na esperança de que ter um selo azul valha US$ 8 por mês. A Netflix lançou uma nova assinatura mais barata, que vem com propaganda. Mesmo a Apple, se não diminuiu a tropa, reduziu o número de produtos que está criando para o futuro.

Inflação. Esse é o problema — puro e simples. E, sim, pessoas perdem seus empregos, a economia se contrai, uma recessão está com toda a cara de que vem por aí. Quem conseguir equilibrar suas contas é quem sobreviverá.

Imaginação sociológica

Lula não deveria está sendo criticado pelo que diz, o Mercado é que deveria estar preocupado com o que pensa. Lula, como presidente, é Pessoa, necessidade e ansiedade. O Mercado, como atividade, é bolsa, dólar e juro. Há na ética da discussão uma questão da verdade.

Não é uma briga de família onde um não aceita o fato de que o outro tenha opiniões infalíveis. É a necessária ecologia da sobrevivência de uma comunidade que não anda sendo motivada pela racionalidade. O Mercado é impessoal, opera moeda estrangeira, muda de opinião sem culpa. A Pessoa tem um coração, usa a moeda nacional, muda de opinião para não se arrepender.


O Mercado não é uma família fraterna. Surgiu da tradição especulativa da economia, joga jogos rivais. Não gosta de admitir que sua realidade é feita de duas perspectivas diferentes, mas complementares e igualmente importantes na vida de uma nação. Mesmo assim gosta de considerar que só “ele”, somente ele pode se reconhecer como fonte última e mais importante das suas opiniões falíveis.

A escola do Mercado não ensina o que está ocorrendo na luta geral pelo poder. Seu praticalismo é frio e não estabelece relação afetiva com o dinamismo da sociedade. A escola da Pessoa é o calor da vida, sua insurgência e as relações mutuas estabelecidas fora dos altos círculos econômicos. Separadamente elas não conseguirão construir uma engenharia social de mudança.

O Mercado é sectário, focado nos seus problemas internos, não é abrangente, nem comunicativo. Mas pensa ter um padrão institucional moralmente antisséptico, um baluarte do formalismo, fornecendo regras para a ação prática do governante, visto como seu cliente. A Pessoa é perplexa, tem vida de artesão, professa isenções às vezes vagas e diluídas, inclusive sobre o Mercado que, ingrato, não quer sua intimidade.

Mercado e Pessoa precisam se encontrar para melhor expressar as características presentes na vida brasileira, especialmente as tradições não proveitosas e inexatas, que distanciaram nossa sociedade um do outro. Esse abandono do diálogo entre economia e sociedade na nossa história torna impossível compreender e enfrentar a inflexibilidade de status que nos domina e a rigidez de nossa estrutura de classes.

A falta de mobilidade social crônica e a necessidade permanente de políticas sociais complementares é uma decadência. Têm sua origem na falta de comunicação e combinação entre os diversos componentes e as diversas funções executadas pelas instituições diante da variedade humana. O certo é que o Mercado encontrou seu lugar na “estrutura” que tanto critica, enquanto a Pessoa continua a procura do “ambiente” que a reconheça e valorize.

Opor princípios a ideias, realidade a interesses está cada vez mais difícil no Brasil. Quanto de realidade o Mercado e a Pessoa suportam? A imprevisibilidade social, econômica e fiscal é um problema dos membros da mesma família da moeda. Até que alguém seja capaz de propor um acordo que defina soluções aceitáveis para todos os envolvidos é inútil um tentar sufocar o outro.

É hora de imaginação sociológica. Mercado e Pessoa devem estabelecer vínculos em busca de melhor argumento para enfrentar as dificuldades de conviverem.