domingo, 23 de abril de 2023

Cadê o Disque-Denúncia?

Onde está o general Heleno? Alguém sabe? Cadê o general? O general Heleno desapareceu. Um homem público, ministro de Estado, que sai das eleições e desaparece. Quem explica o sumiço dele? Onde é que está a valentia do general Heleno?

Cadê eles [os generais Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos, ex-ministros de Bolsonaro]? Cadê o Braga Neto, o fortão? Desapareceram! Por quê? Cadê a valentia deles? Contra as instituições, contra o Brasil!

Parte da imprensa decidiu apontar a cumplicidade da vítima com o estuprador

Que coisa!

Setores da imprensa, nesse episódio do vazamento do vídeo sobre o 8 de janeiro —cuidadosamente editado (por quem?) para transformar o agredido em responsável pela agressão que sofreu —, aderiram à lógica absurda da cumplicidade da vítima com o seu algoz.

Demorou um tempo até que um padrão civilizatório mínimo criasse uma interdição legal e moral que impede que se culpe, ainda que de modo oblíquo, a pessoa estuprada pelo estupro. Não é prudente circular em áreas desertas e mal iluminadas, certo? Mas essa é uma postura preventiva contra qualquer tipo de agressão, note-se. Ainda que não observada, seria uma monstruosidade moral atribuir à vítima algum grau de cumplicidade ou colaboração com o seu agressor. Fazê-lo corresponde a legitimar um suposto lugar do estuprador na ordem das coisas.

A normalização do estupro produziu, a propósito, frases que ainda estão por aí. “Prendam suas cabras que o meu bode está solto”. Você é pai ou mãe de meninas? Guardem-nas, pois. Os genitores de bodes, nessa perspectiva, entendem que seus potenciais violadores cumprem ou uma determinação da natureza ou ocupam seu lugar social.

Em matéria de pântano moral, como deixar Jair Bolsonaro de fora? Em 2018, o então candidato à Presidência, em sabatina na Globonews, tentou explicar declaração misógina dada em 2017, em palestra na Hebraica do Rio — a mesma em que disse que um quilombola se pesava em arrobas e nem servia mais para a reprodução. Afirmou, naquele evento, que, depois de quatro filhos homens, deu uma “fraquejada”, e “veio uma mulher”.

Na entrevista, ele tentou consertar assim a estupidez: “Fiz uma brincadeira. É comum entre nós homens… O elemento é muito namorador, por exemplo, daí vem [nasce] uma menina, e ele fala: ‘Eu vou ser fornecedor, não vou ser mais consumidor’. É uma brincadeira.” Nesse mundo de “fornecedores” e “consumidores”, cada um tem reservado o seu lugar, excluindo-se, por exemplo, o consentimento. É a lógica do estupro! Saia curta, decote, roupa justa… Melhor não provocar os bodes.


Tenho afirmado aqui e em toda parte que o bolsonarismo não contaminou e corroeu apenas as instituições de Estado, como revelam a inércia e a conivência de servidores do GSI, entre outros entes, com os golpistas. O estrago provocado na imprensa é muito maior do que se percebe à primeira vista. Houve avarias importantes — e não sei se sanáveis — nos radares morais e nos sensores que identificam ameaças à ordem democrática. O mais relevante consiste em considerar que o bolsonarismo, a despeito de tudo o que já disse e fez, é uma corrente de pensamento e militância política como outra qualquer e causaria espécie porque não tem vergonha (e como!) de se dizer de direita. Não! Essa é uma bobagem e uma mentira perigosas. Como escrevi em uma coluna da Folha, inexiste virtude nos territórios da morte. Apenas ilustro um dos danos. O objeto deste texto é outro. Adiante.

DE VOLTA AO VÍDEO

Leio em reportagens e em textos de colunistas — com algumas decepções maiúsculas –considerações que vão muito além de recomendar que se evitem ruas desertas mal iluminadas, e até isso teria de ser feito com muito cuidado. O flerte com a culpa da vítima é mais do que uma sugestão. Há até quem infira que Lula experimenta agora uma forma de reverso da fortuna, como se as ações do governo a partir do dia 9 tivessem sido orientadas pelo oportunismo, não por fundamentos que orientam o estado de direito. Teria chegado a hora de pagar a conta.

O flerte com teorias conspiratórias espalhadas nas redes é, muitas vezes, explícito. Quando não, a vítima é vergastada por sua imprudência: “Quem mandou andar naqueles lugares? Onde já se viu sair com essa roupa? Vocês não sabiam que eles eram capazes de coisas assim? Por que não apoiou de cara a CPMI?” Uma pergunta grita o seu silêncio: quem editou o vídeo e com que propósito?

É evidente que o episódio pode e deve suscitar questionamentos e que houve erros grotescos: a mentira contada sobre as câmeras quebradas do terceiro andar, que quebradas não estavam, como se vê; a imposição de sigilo para as imagens; a manutenção no GSI da mesma equipe que serviu a Jair Bolsonaro; quem sabe uma certa subestimação do risco, ainda que a área adjacente ao QG do Exército de Brasília seguisse ocupada.

Que se façam as devidas restrições, admoestações e reparos. Mas cumpre, parece-me, não perder o foco, inclusive o dessa segunda investida — refiro-me, obviamente, ao vazamento do vídeo. A Polícia Federal não tem de correr atrás das fontes da CNN ou de qualquer outro veículo de imprensa. Mas tem de procurar identificar a origem do vazamento. Caso consiga, também se chegará ao propósito. Essa é uma imposição legal.

Ademais, o governo, pela voz de seu líder maior, o presidente da República, jamais descartou a conivência com a barbárie daqueles que, em tese, o serviam, nos limites da lei. Em café da manhã com jornalistas no dia 13 de janeiro, Lula foi explícito:

“Eu ainda não conversei com as pessoas a respeito disso. Eu estou esperando a poeira baixar. Quero ver todas as fitas gravadas dentro da Suprema Corte, dentro do palácio. Teve muita gente conivente. Teve muita gente da PM conivente. Muita gente das Forças Armadas aqui dentro conivente. Eu estou convencido que a portado Palácio do Planalto foi aberta para essa gente entrar porque não tem porta quebrada. Ou seja, alguém facilitou a entrada deles aqui”.

Não se trata de gostar do governo ou não; de aprovar as suas escolhas ou não; de considerar que Lula tem feito as escolhas corretas ou não. Estamos falando dos fundamentos do estado de direito e da democracia. Creio que os registros estão se confundindo. Poderia enumerar aqui os textos que juntam os erros do governo no caso do vazamento com o inconformismo do seu escriba com o arcabouço fiscal ou com as declarações do presidente sobre a Ucrânia. É uma insanidade. É a avaria nos radares morais e nos sensores que identificam ameaças à ordem democrática.

POR QUE É ASSIM?

Por que é assim. Há várias respostas, que requerem muitos outros textos, e não fugirei deles. Uma delas está enunciada no parágrafo anterior: não se está sabendo a fronteira entre a reprovação a medidas do governo — coisa absolutamente legítima — e a tolerância com ameaças às instituições. De novo! Já passamos por isso a um custo gigantesco.

Pesa também o fato de que certos setores da imprensa, identificados com o que dizem ser “liberalismo” ou com a direita democrática se ressentem do que julgam ser falta de voz no governo e no debate público. Os conservadores que compõem o arco de alianças de Lula não os representam. A ojeriza da imprensa ao tal “centrão”, por exemplo, é gigantesca. Falta ao grupo aquele espírito doutrinário do antigo udenismo.

Há mais: dão esses de barato, coisa em que absolutamente não acredito, que o bolsonarismo já está inviabilizado como alternativa de poder. As circunstâncias que o levaram ao poder não se repetirão, e sua notável desorganização política não será capaz de guindar, de novo o grupo ao poder. Assim, exterminada essa vertente do extremismo como alternativa de poder, restaria fulminar a outra: isso a que chamam “lulismo” ou “lulopetismo”. E, assim, combater-se-iam os dois polos considerados nefastos em benefício do centro perdido… Ocorre que o bolsonarismo é, sim, de extrema-direita, mas o petismo não é de extrema-esquerda.

Chega-se mesmo a ver no país um tipo realmente autóctone, inencontrável em qualquer outro lugar: o “extremista de centro”. Mas isso, de fato, será matéria para outros artigos.

CONCLUO

Sim, estou, e deixo claro com frequência, entre aqueles que consideram virtuoso o governo em seus menos de quatro meses — e não quatro anos — de mandato. É evidente que é matéria para controvérsia. E isso nos coloca a todos, entendo, no terreno dos embates democráticos.

O que me incomoda, nessa tentativa de reeditar o golpe — porque o objetivo é evidenciar uma suposta e absurda cumplicidade do governo com o ataque golpista para inviabilizá-lo —, é a imprudência com que imprensa e colunistas passaram a dar piscadelas para o perigo, indagando à pessoa estuprada se, na verdade crua, não acabou sendo cúmplice do estuprador.

Antes que os idiotas sugiram que comparo crimes distintos, relembro: trato de posturas morais e éticas diante do agressor e do agredido. É indecente que jornalistas, que têm um compromisso necessário com a liberdade e a com democracia, digam a Lula que ele não soube cuidar direito das suas cabras, mesmo sabendo que o bode do bolsonarismo estava solto. Trata-se de um comportamento liberticida.

Linguagem emprestada

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada

Karl Marx, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”

Uma pausa

Hoje em dia é difícil encontrar fôlego para pensar no ontem. Simplesmente não sobra espaço para o passado. Nossa tão fragmentada atenção é disputada o tempo todo por notícias, fatos e factoides — e estes, já no instante seguinte, são atropelados por mais notícias, mais fatos e mais factoides. Não espanta que vivamos num acelerado estado de inútil combustão mental, física, afetiva. Na semana passada, para o 80º aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia, nem mesmo a imprensa europeia conseguiu deter-se com o merecido vagar sobre efeméride tão marcante para a Humanidade. Uma lástima, considerando a selvageria da atual guerra na Ucrânia, logo ali ao lado, e o ressurgimento do neonazismo acoplado ao antissemitismo por toda parte.

Foi num 19 de abril de 1943 que os judeus aprisionados feito gado num pedaço da capital da Polônia pegaram em armas. Do total inicial de 400 mil socados naquele gueto, mais de 250 mil já haviam sido deportados para os campos de extermínio nazistas. O levante destinava-se a tentar interromper as deportações. Os insurgentes sabiam que jamais venceriam as tropas nazistas. Também sabiam ser quase impossível sobreviver ao levante. Mas queriam, pelo menos, ser os donos do que lhes restava de vida. E ser donos da escolha de onde e como morrer.


Nas comemorações deste 19 de abril de 2023, que começaram com sirenes uivando por toda Varsóvia, os três chefes de Estado alinhados no pódio eram um retrato das idas e voltas da História.

— Todo aquele que semeia o ódio e pisoteia as pessoas também pisoteia os túmulos dos heróis do Gueto de Varsóvia (...) e de quem os ajudou — discursou o ultraconservador presidente polonês Andrzej Duda, cujos patrícios antepassados ajudaram, e não foi pouco, a insânia de Hitler.

— É imperativo lembrar que este trágico capítulo da História (...) oferece a plataforma para um importante diálogo entre a Polônia e Israel — pontuou o presidente de Israel, Isaac Herzog, sinalizando quanto ainda há pela frente.

O presidente Frank-Walter Steinmeier, em sintonia com uma Alemanha que há décadas encara seu passado, foi o mais direto:

— Cada crime cometido pelos alemães precisa ter espaço em nossa memória — disse.

Os três estadistas traziam um narciso em papel amarelo colado na altura do peito. Outros 400 mil narcisos haviam sido distribuídos entre moradores da capital para ser portados com sentimento. O número faz referência aos 400 mil judeus do gueto. A flor amarela simboliza o levante desde que Marek Edelman, último sobrevivente da resistência, passou a receber em casa, pontualmente a cada 19 de abril, um misterioso buquê de narcisos amarelos. Edelman morreu em 2009, aos 90 anos. O remetente das flores permanece anônimo até hoje. Culpa? Fraternidade? Demônios interiores? Toda guerra tem sua cota de continuidade indelével.

Logo à entrada do que é hoje o Memorial de Auschwitz, do lado direito do infame letreiro Arbeit Macht Frei, um imenso salgueiro plantado muito antes da Segunda Guerra Mundial continua de pé. Está intacto e saudável, ao contrário de três álamos históricos de mais de 90 anos que tiveram de ser derrubados na década passada. Segundo levantamento da entidade de conservação, restam do antigo complexo Auschwitz I, Auschwitz-Birkenau e Auschwitz III apenas duas castanheiras, oito álamos, dois carvalhos e menos de 20 bétulas de mais de 90 anos. Testemunhas silenciosas dos crimes ocorridos naquele chão, essas árvores são reverenciadas em prosa e verso por sobreviventes. “Muitos, como eu, queríamos escalar até o cume e sair voando.../As árvores viram tudo, ouviram tudo,/e como é seu costume,/cresceram, abriram folhas, e permaneceram em silêncio”, escreveu em poema Halina Birenbaum.

Também o 11 de Setembro de 2001, que fez ruir não só as Torres Gêmeas de Nova York, mas todo um mundo que parecia ordenado, tem uma testemunha fincada no solo. Foi encontrada entre as montanhas de ruínas, um mês depois do atentado. Tinha o tronco quase carbonizado, as raízes esmigalhadas e o DNA incerto. Ainda assim, foi depositada como porcelana rara aos cuidados do Departamento de Parques da cidade. Nove anos depois de arrancada pela força do ódio, ainda magrela, porém sadia, pôde ser replantada no local onde nascera. Hoje, essa pereira vistosa e abundante, rebatizada de Árvore da Sobrevivência, vive rodeada de visitantes. A cada ano, também fornece três plantas para comunidades que sofreram alguma tragédia recente, como a cidade de Parkland, onde foram mortas 17 pessoas em chacina escolar em 2018, ou Porto Rico, onde o Furacão Maria deixou um saldo de quase 3 mil mortos.

Hoje sendo domingo, cabe uma pausa na tirania do ininterrupto ser-estar-fazer-postar-ouvir-reagir-clicar. Dar tempo à poesia, à arte, ao pensar solto. No inverno mais amargo de 1916, com a Europa afundada no horror da Grande Guerra, imensas lonas de camuflagem militar começaram a pontilhar uma região campestre do conflito. Destinadas a esconder peças de artilharia do Exército Imperial Alemão, elas destoavam do protocolo bélico. Tinham coloridos ardentes e formatos inesperados, de beleza absurda. Foram criadas pelo então soldado, mas já mestre do expressionismo alemão, Franz Marc. O artista morreu nas trincheiras um mês depois de “tentar pintar o lado espiritual da natureza” em lonas de guerra. Soube viver.