segunda-feira, 2 de julho de 2018

Gente fora do mapa

Azli Jamil 

O barro é esse

A situação do STF é irremediável. Em parte, por culpa própria: não faz o que deve – como decidir, finalmente, sobre o pagamento de auxílio-moradia para juízes e procuradores, que são hoje “a” corporação mandando no Brasil. Ou julgar, finalmente, se é mandatório encarcerar depois de condenação em segunda instância. Em parte, a situação é irremediável por ser o STF um espelho fiel do emaranhado impasse da crise política, cuja maior expressão de gravidade é a impossibilidade de se vislumbrar uma saída.


O STF virou o grande templo da insegurança jurídica por ter se transformado há bastante tempo numa esfera de embate político, que permite até vislumbrar “facções” em torno de um eixo de contencioso. O eixo é a ordem jurídica dentro da qual se dá a Lava Jato, entendida aqui como um fenômeno de enorme abrangência e apenas em segundo plano como uma questão de respeito ou não a normas legais (drama traduzido no bordão que se tornou tão popular: “juiz bom prende, juiz mau solta”).

Como instituição, conseguiu manobrar-se na pior posição possível: a de que a Justiça tarda e falha, que poderosos ali encontram confortável acolhida, e que corruptos são beneficiados por liminares e o volta-atrás em entendimentos (como a prisão após a segunda instância) que pareciam já consagrados. Não estou dizendo que os fatos do ponto de vista técnico necessariamente suportam essa percepção, mas ela se consagrou.

Estou sendo condescendente e retirando na avaliação da atuação do STF as lealdades políticas dos ministros, as preferências pessoais, as vaidades, a falta de preparo técnico e a ausência de escrúpulos por parte de alguns. Se o prezado leitor acha que é isto que explica as decisões ou não decisões do STF, adianto que mesmo crápulas contumazes são parte voluntária ou involuntariamente de um jogo político, no qual vou me concentrar.

A narrativa que impera hoje na sociedade brasileira é a de que a corrupção é o problema central, e que tudo o mais se resolve a partir do combate aos corruptos. Cujo completo domínio da esfera do sistema político-partidário – ao mesmo tempo resultado e causa da atuação dos políticos – justifica a sua destruição. E encarregada dessa destruição, com feroz apoio popular, é “a” corporação.

Incapaz de definir o jogo, ou de deslocá-lo para um outro eixo de debate, a instância política foi substituída, para efeito de grandes decisões, pela política no STF (que cuida hoje até de tabela de frete). Composto por donos e donas de cargo vitalício que, mesmo se fossem 11 santos iluminados, por definição jamais conseguiriam dar as respostas que sociedades organizadas em sistemas democráticos precisam que venham do sistema que, no Brasil, imensa maioria combinou odiar: o sistema político.

Ocorre que “o barro é esse”, expressão atribuída a Teotônio Vilela, nome de Alagoas que virou referência no processo político de redemocratização na saída do regime militar – época na qual o Brasil, num espelho distante dos tempos atuais, também queria se rearrumar. O material para fazer/refazer/renascer o País é composto pelos políticos e seus eleitores que estão aí, ou que querem entrar na política, pelo Congresso que existe, e que pode ser renovado/reciclado, e pelos partidos e movimentos políticos que podem ser fundados ou refeitos.

Essa é a diferença fundamental entre o jogo da política e a política na qual está envolvida “a” corporação que manda hoje no Brasil. Apesar do descrédito com que se encara a política no Brasil, ela é por definição reciclável. O Judiciário e o Ministério Público não são, nem existem para substituir a política, que não se verifica em termos ideais em parte alguma do planeta.

Podemos não gostar, mas o barro é esse.

Máfia de toga

Garantismo à brasileira é uma mistura de compadrio com omertà
Ministro do STF, Luís Roberto Barroso:

Entenda por que Gilmar Mendes exibe esse estranho comportamento bipolar

Com o Supremo Tribunal Federal em recesso, o país pode respirar mais aliviado, sem a expectativa do sobressalto de nova série de libertações de criminosos notórios ou de concessões de habeas corpus que nem tenham sido solicitados, como aconteceu no caso do ex-ministro José Dirceu, presenteado por um de seus melhores amigos, o ministro Dias Toffoli, que foi advogado do PT e depois ocupou a chefia do setor jurídico da Casa Civil, quando Dirceu era uma espécie de primeiro-ministro do governo Lula da Silva.

Até 31 de julho, experimentaremos um pouco da ansiada segurança institucional, as coisas podem fluir melhor para todos os brasileiros de bem, porque o recesso impede que o Supremo continue a voltar a ser Supremo, na visão distorcida e sinistra do ministro Gilmar Mendes.

Sob o ponto de vista psicológico, nem mesmo Freud seria capaz de explicar o estranho comportamento de Gilmar Mendes, que às vezes vota de um jeito, em outras vezes vota de outro.

Não há explicação analítica para essa postura bipolar, mas as coisas ficam mais claras quando se pesquisa qual são os verdadeiros objetivos do surpreendente ministro. Na verdade, ele não pretende implantar o caos nem a insegurança jurídica.

Gilmar Mendes pretende apenas abrir caminho para garantir a impunidade de seu amigo Michel Temer, que, em condições normais de temperatura e pressão, não tem a menor condição de escapar da cadeia. Ao mesmo templo, o ministro busca preservar também seus correligionários do PSDB, que estão sob a mesma ameaça de Temer, como os senadores Aécio Neves, José Serra e Aloysio Nunes.

Enquanto a Lava Jato prendia parlamentares do PT, do PP e outros partidos, Gilmar Mendes defendia a prisão após segunda instância. Somente quando os ventos mudaram e os tucanos e peemedebistas caíram na rede é que o ministro do Supremo mudou de idéia.

Diante desse fato concreto, Freud, Lacan, Jung e Pinel nem precisam analisar nada. O comportamento bipolar de Gilmar Mendes está explicando. Todos os seus atos visam a preservar Temer, os cúmplices dele no agora MDB e os tucanos que começam a ser abatidos em vôo. Pra mantê-los em liberdade, o ministro/sinistro tem de libertar os outros, inclusive Lula, para exibir sua versão de analogia jurídica. Apenas isso.

Jogo de azar

A ANS aprovou, por vias tortas, a proposta de planos de saúde acessíveis do ex-ministro Ricardo Barros, que foi barrada pelo Congresso Nacional. A autorização do aumento de 10% para planos individuais e venda de contratos que preveem valores muito elevados de coparticipação ou franquia atendem a demandas empresariais relativas à comercialização de produtos relativamente mais baratos com restrição de coberturas. Ambas as medidas estão direcionadas pela lógica de vender mais planos e reduzir acesso. O reajuste muito acima da inflação expulsa pessoas de planos individuais, que asseguram assistência mais abrangente, e induz a migração para contratos restritos, que estabelecem maior pagamento direto pelos usuários. Mensalidades mais baixas tendem a atrair adesões de pessoas com menor renda aos planos privados. Mas, quem não pode financiar os atuais preços não conseguirá arcar com pagamentos diretos relativamente vultosos para usar serviços de saúde. Portanto, a decisão protege a expansão de mercados para empresas e dificulta a melhoria da saúde. Haverá mais contratos de planos e repressão de demanda para os serviços de saúde. O plano acessível é um esquema assistencial ilusório, na prática engrossa o fluxo de pacientes para a rede pública e litigações judiciais.

Uma simulação ajuda a entender o que irá ocorrer. Quem paga cem reais por mês e tiver que ir à emergência porque se machucou e precisa de dois pontos, e depois topou em uma pedra e apresenta fissura no dedo mindinho, poderá ter que desembolsar mais cem. Os acidentes foram inesperados, ainda assim serão objeto de cobrança adicional, se tornarão eventos tipo “perdeu, doente.” Pacientes com câncer e outras doenças crônicas, e também as gestantes, terão o tratamento limitado aos procedimentos específicos e onde for determinado pela operadora. Poderá haver cobrança na hora da consulta ou exame para uma grávida que precisar atendimento para diabetes ou apoio fisioterápico, ou nutricional, para doentes em tratamento quimioterápico. Não pagamento para quem precisar atendimento será uma exceção. Quase todos terão que botar mais dinheiro do bolso, exceto os poucos que se enquadrarem nos seguintes critérios: ter exatamente uma das poucas doenças franqueadas sem nenhuma comorbidade, dispensar suporte diagnóstico e terapêutico adicional ao tratamento mínimo e obter assistência somente nas unidades indicadas pelas operadoras. Assim, a isenção se limita ao uso de certos procedimentos em estabelecimentos escolhidos mediante critério de menor valor de remuneração, e não melhor qualidade.

A decisão de permitir, por via administrativa, a comercialização de contratos que transferem para os pacientes até 100% nos gastos contraria a lei que regulamentou os planos e seguros de saúde. A legislação foi promulgada para garantir coberturas, e a atual norma concentra-se em definir apenas o que as empresas não pagarão. Regras para a organização de informações sobre as contas individualizadas de cada cliente e emissão das informações sobre o saldo, como e por quem será cobrada a coparticipação, e especialmente as precauções para impedir a desassistência para condições clínicas graves foram negligenciadas. A promessa, “de boca", de segmentos empresariais de diminuir as prestações em cerca de 20% a 30% para “desonerar” o SUS não justifica revirar a lei de cabeça para baixo. Existem evidências cabais sobre a interdependência entre planos privados e SUS. As filas para a rede pública aumentaram durante a onda de crescimento dos planos. E a recente pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Medicina expõe a insatisfação dos entrevistados com a saúde pública (87%) e privada (94%), e sugere a importância do SUS para a maioria (88%).

Portanto, o pensamento sobre os planos acessíveis tem uma concatenação, no mínimo, questionável. Começa com uma teleologia, o SUS deve ser entendido como sistema falido, ruim, nefasto, e jamais se detém nos desafios concretos para a resolução dos problemas de saúde, sejam os mais simples ou os supercomplexos. A salvação para tudo e todos é o plano privado, seja lá o que se passe a entender por plano e por privado. Plano não é um termo que se aplique a algo que por definição impede qualquer planejamento. A maioria dos problemas de saúde é imprevisível, plano de saúde, digno do nome, é aquele que proporciona alguma tranquilidade financeira em casos de doença. Um sistema de asseguramento para riscos futuros, que prevê o pagamento em dobro durante o mês ou ano, é quase um jogo de azar. E o “privado acessível” refere-se frequentemente apenas ao receptor das mensalidades do plano, já que o local de atendimento de usuários poderá ser o mesmo que atende ao SUS. Remunerar médicos e procedimentos em unidades de saúde com dupla porta é mais barato, ainda que, durante a coabitação público-privado, os preceitos de concorrência e liberdade de escolha evaporem. Coerência e abertura para o diálogo são rarefeitas na equipe empresarial-política que obteve, no tapetão, permissão para a comercialização do plano acessível, no final de um governo que perdeu rumo e prumo. Quando o jogo é democrático, dificilmente a saúde sai derrotada.
Ligia Bahia

Brasil de hoje


Responsabilidade invertida

O Brasil vive um momento particularmente instrutivo. Sem rodeios ou meias palavras, parece ter chegado o tempo de se pôr as cartas na mesa: a fatura da inconsequência das elites políticas e econômicas será, uma vez mais, quitada pelo povo. A inversão do ônus da responsabilidade de ações que resultaram na degradação das instituições no país está em curso.


Impulsionada por essa tendência, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PL 580/2015, que altera a lei de execução penal para que os/as encarcerados/as passem a ressarcir o Estado pela sua manutenção no sistema prisional. Na justificativa da proposta, sinaliza-se que a transferência dos custos do cárcere para os/as presos/as abre espaço para o investimento em outras áreas estratégicas. Nas declarações de muitos senadores/as, está a preocupação de se evitar que o erário seja onerado com a manutenção das “mordomias” patentes nos presídios brasileiros.

Essa pauta está alinhada à uma agenda governamental que trabalha por meio de ações truculentas. Não nos deixa mentir a intervenção militar deflagrada no Rio de Janeiro em fevereiro desse ano. O desfile de tanques de guerra; a humilhação das revistas e o toque de recolher impostos às periferias negras da cidade foram as cenas televisionadas para se sinalizar a firmeza do golpe. Os resultados mais palpáveis desse espetáculo bélico são as pilhas de corpos desumanamente descartados, como no caso que deixou a Maré de luto pelo assassinato de Marcus Vinicius da Silva no último dia 20. Com o slogan do controle e do extermínio, cobra-se o pedágio de quem mais sofreu com as artilharias pesadas da alardeada corrupção.

Com uma previsão de cortes orçamentários e a roleta das urnas se aproximando, o discurso sustentado pela cultura punitiva ganha fôlego renovado. Nessa manobra, a pintura da prisão em cores dóceis é a faceta mais aviltante dessa retórica de perversidades.

O contra-discurso necessário a esse contexto deve ser pautado a partir das vozes que são sistematicamente abafadas, humilhadas, esquecidas. Numa dessas raras oportunidades temos acesso a essas narrativas, visibilizadas no âmbito do projeto Cartas do Cárcere, promovido pela parceria entre PNUD e a PUC-Rio. A análise de mais de 8.000 cartas encaminhadas pelos/as encarcerados/as à Ouvidoria Nacional dos Serviços Penais em 2016, nos permitem visualizar as entranhas do sistema a partir de testemunhos reais e dolorosos.

São cartas que falam de escolhas marcadas pelas armadilhas da exclusão social, da falsidade de acusações, das ameaças que tem a morte como desfecho provável. Relatos que denunciam a superlotação, pleiteiam o acesso à saúde, rogam pelo fim das torturas. Rabiscos desesperados que, na contramão do que se declara na propaganda conservadora, tem o acesso à justiça e não o reclame por frivolidades, como seu principal mote. No espaço em que sobram as iniquidades das violações, da insalubridade e do abandono, se amontam demandas pelas garantias básicas da legislação: a progressão de pena, a assistência judiciária, o proferimento da sentença definitiva.

É na escuta dessas vozes ignoradas e não nos autofalantes de carrascos engravatados que podemos encontrar saídas fora do cinismo político.

Pautado em perspectivas reacionárias, o aludido projeto determina que os/as encarcerados/as que não puderem indenizar o Estado com seu patrimônio, o façam com o suor de sua lida. Trata-se do ciclo insidioso que vulnerabiliza os indivíduos, os encarcera, para depois expropriar sua força de trabalho. O espelho com as marcas históricas da escravidão não é mera coincidência.

Afinal, só um país que renova e aprofunda os sentidos do racismo pode acolher esse tipo de proposta. Há que se lembrar que nosso sistema prisional é o resultado mais bem-acabado dos desmandos institucionais que degradaram as estruturas básicas da saúde e da educação. Nele desembocam os/as representantes da massa negra empobrecida e historicamente perseguida pelo Estado. Agora, é no boleto do cárcere que se quer creditar a sustentação das plataformas sociais que nunca estiveram à serviço desses indivíduos.

Por óbvio, é na conta dos privilégios, e não na exploração das algemas, que os recursos para a compensação do orçamento devem ser procurados. A grande dívida acumulada no país é com as pessoas socialmente marginalizadas, seletivamente encarceradas, gratuitamente exterminadas para que se forjem falsas sensações de segurança. É esse, em verdade, o grande rombo no orçamento no Brasil: o de caráter ético que tem de achar os caminhos de uma revisão política efetiva e não o aprofundamento de nossas tragédias seculares, para que possa ser finalmente liquidado.

Dois pesos...

Quem rouba pouco é ladrão; quem rouba milhões é simplesmente corrupto 

Os donos da bola

Derrotada pela França, a Argentina exige a realização de um novo jogo para tentar vencer. E, enquanto a nova partida não é marcada, se comporta como campeã da Copa.

Parece absurdo – e é. Mas tem sido esse o comportamento dos vencidos no STF quanto à possibilidade de início do cumprimento da pena de condenados em segunda instância.


Sempre que podem – em decisões monocráticas ou no voto na segunda turma, onde três dos cinco ministros perdoadores e perdedores têm assento -, eles desacatam a decisão suprema da Corte para impor seus entendimentos ou vontades. Conduta que se agudizou depois de Lula ir para a cadeia.

A prisão pós-condenação em segunda instância, que vigorou por décadas antes de ser revogada por dádiva da Constituição de 1988, foi votada e autorizada pela maioria dos ministros por duas vezes, a última delas em 2016, por 6 x 5. Placar tão apertado quanto o 4 x 3 que eliminou a Argentina.

Mas as regras do STF são mais frouxas do que as da Fifa e, pior, podem ser alteradas enquanto a bola rola.

Com a já anunciada mutação de voto de Gilmar Mendes, sabe-se que a decisão em vigor será alterada, possivelmente em setembro, quando Dias Toffoli, reprovado em exames para magistratura, assumirá a Presidência do Supremo no lugar de Cármen Lúcia.

Toffoli foi voto vencido. Mas, assim como Marco Aurélio Mello, tem agido por conta própria contra a prisão sem a exaustão dos recursos em instâncias superiores, prática que garante impunidade quase eterna aos que têm dinheiro a rodo para as bancas milionárias de causídicos.

Na semana que passou, ele lembrou os tempos de ex-advogado das campanhas de Lula, protagonizando um voto emblemático ao soltar José Dirceu por meio de um habeas corpus “de ofício”. Ato de iniciativa própria, sem que a defesa do ex-ministro reivindicasse formalmente o benefício.

Toffoli deveria estar impedido de julgar ações envolvendo qualquer um ligado ao PT. Mas, por aqui, um ministro só fica excluído quando ele se auto impõe um cartão vermelho. Imaginem se fosse assim nas pelejas do futebol.

Ainda que com argumentos para fundamentar teses pró e contra a prisão em segunda instância, os dois times plantados no Supremo não mais escondem seus antagonismos. De um lado, os que se dizem “garantistas”, mas que interpretam as leis de acordo com quem são os condenados ou investigados. De outro, os que se imaginam salvadores da pátria, que demonizam a política e que, em nome do combate à corrupção, creem ser os fazedores da justiça.

Juntos, só têm conseguido denegrir a Corte, e, assim, ampliar o descrédito popular nas instituições.

Com suas idas e vindas, pontapés e catimbas, o Supremo se tornou o principal ator da descrença na Justiça. E, sem ela, o fim do jogo é sempre catastrófico: não há civilidade e muito menos democracia
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Mary Zaidan

O peso da camisa

Nos tempos heroicos do futebol, as camisas não tinham patrocínios e as luvas de goleiro eram costuradas à mão. Hoje os jogadores mais parecem outdoors ambulantes, como os chamativos garotos-propaganda que caminhavam pelas cidades promovendo alguma pomada contra o pé de atleta.

Ainda assim, as cores de uma equipe costumam ter valor transcendental. Após a derrota contra o Uruguai em 1950, o Brasil não quis regressar ao campo com sua habitual camisa branca. Qualquer alusão ao Maracanazo traria má sorte. A então Confederação Brasileira de Desportos e o jornal Correio de Manhã organizaram um concurso em busca de um novo uniforme, que foi vencido por Aldyr Garcia Schlee. Assim surgiu a canarinha. O curioso é que Aldyr era devoto da seleção uruguaia. Como em verdadeiro ritos, a mudança de pele precisava do favor de um inimigo.

A Copa do Mundo gera a ilusão de que os protagonistas a disputam em nome de um país e não de uma companhia aérea de Cingapura. Certas camisas ostentam uma condecoração sobre o escudo no lado esquerdo do peito: uma estrela por cada Copa do Mundo. Fala-se do “peso da camisa” em alusão à investidura, quase sagrada, de quem parece triunfar só de pisar na grama. A Alemanha das quatro estrelas pertence a essa legião, mas não esteve à altura de seu uniforme. Assim como a Argentina, que suou para passar de fase e caiu diante da França.

Às vezes, o peso da camisa é literal. Para sua partida crucial contra a Inglaterra, na Copa do México, em 1986, os argentinos deveriam usar seu segundo uniforme: camisas azul marinho, de tecido grosso. Ao contrário das albicelestes, confeccionadas com minúsculos buracos que permitiam a circulação do ar, as camisas reservas absorviam o suor e a chuva, se convertendo em uma couraça insuportável. Carlos Bilardo, treinador argentino, pesava a roupa com o cuidado com que pesava bebês em seus tempos de obstetra. Decidiu que a equipe de Maradona e companhia não poderia jogar com o uniforme B. Um dia antes do jogo, comprou uniformes novos. Por sorte, encontrava-se no México, bastião da economia informal. Em 12 horas, descolou a roupa pirata. Os números foram arrancados de camisas de futebol americano. O emblema da Coq Sportif não parecia um galo, mas sim um frango. Vestidos com essa picardia de bairro, só podiam ganhar.

A habilidade mexicana para improvisar uniformes não diminuiu. Em todas as partes há postos de venda de camisas que variam de preço de acordo com os altos e baixos da seleção.

Juan Carlos Osorio, treinador da Tri, exerce um popular gênero literário: os lemas de camisa. Nos treinamentos, seus jogadores levam no peito o que devem sentir na alma: “amar o triunfo” em vez de “temer a derrota”. Quando jogaram contra a Suécia, esse leva provavelmente ficou na lavanderia. Precisa reestampá-lo na atitude de seus comandados para ter alguma chance contra o Brasil nas oitavas de final.

Um episódio desta Copa na Rússia fala da camisa como uma carteira de identidade. Quando Shin Tae-yong, técnico da Coreia do Sul, soube que seu treinamento era vigiado por espiões suecos, pediu aos seus homens que trocassem de camisetas. Para o limitado olhar ocidental, os números são mais eloquentes que as caras asiáticas.