segunda-feira, 6 de junho de 2022

O Brasil que trabalha

 


Um novo Nero entre nós?

As Forças Armadas sempre cumpriram papel crucial, de organismo de defesa do País, protegendo nossas fronteiras e, nas últimas décadas, apoiando o Estado Democrático de Direito. Nossa Constituição coloca o presidente na posição de chefe das Forças Armadas com a clara expectativa de que exerça esse poder pelo povo, para o povo e em nome do povo – jamais permitindo a instrumentalização e o abuso. Aliás, o respeito à Constituição e aos princípios da separação dos Poderes e da prevalência do interesse público é compromisso visceral republicano.

Mas nem sempre foi assim, pois já vivenciamos momentos em que nossos presidentes do passado usaram as Forças Armadas com fins políticos, rompendo a ordem democrática e institucional. O marechal alagoano Deodoro da Fonseca instalou a República por golpe militar em 15 de novembro de 1889. O ex-sargento gaúcho Getúlio Vargas, em 1937, implantou o Estado Novo, governando de forma ditatorial até 1945; e o marechal cearense Castelo Branco foi o escolhido pelos golpistas militares de 1964 para assumir o primeiro governo federal do período da ditadura, que duraria 21 anos.

Eis que, passados 37 anos do fim da ditadura, o capitão paulista reformado, hoje presidente Bolsonaro, tem sinalizado na direção da tirania, ao reapresentar a tese do voto impresso auditável, já examinada pelo Congresso Nacional e rechaçada – parecendo desprezar a votação ocorrida. É ato totalitário pôr em dúvida a realização de eleições em 2 de outubro, assim como questionar a confiabilidade do sistema de urnas eletrônicas, utilizado em mais de 40 nações do mundo, por meio do qual ele mesmo foi eleito oito vezes, sem nunca ter reclamado antes.


Tenta-se construir a teratológica hipótese da apuração eleitoral paralela pelas Forças Armadas, ao arrepio da Constituição, já que a atribuição é exclusiva do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cuja criação foi de importância capital para reduzir a corrupção eleitoral reinante no Brasil e que o projeto de Código Eleitoral em discussão no Senado pretende enfraquecer significativamente. Acaso o presidente da República admitiria que outra autoridade pudesse exercer paralelamente seu poder exclusivo, como o de indicar ministros do STF, do STJ e o procurador-geral da República ou de conceder indultos, como ele propõe ao TSE em relação à apuração dos votos?

Não é a primeira vez que são praticados movimentos em direção a uma hipertrofia militar, neste mandato. Desde o início, seguidores presidenciais repetem à exaustão, sem embasamento constitucional, a tese insustentável de que as Forças Armadas seriam o Poder Moderador, que houve no Brasil, durante o Império, e depois deixou de existir, dando lugar à tripartição do poder: Executivo, Legislativo e Judiciário.

As Forças Armadas e seus líderes evoluíram ao longo de nossa história republicana e têm como norte o respeito à Constituição. O mesmo vale para a segurança pública, comandada pelos governadores dos Estados, cujos integrantes não se deixarão levar por blefes golpistas nem por narrativas elaboradas a partir de referências apontadas por algoritmos de redes sociais, descoladas do mundo real, para justificar eventual derrota. O compromisso de militares e do corpo da segurança pública é com o respeito à soberania do voto do povo no próximo dia 2 de outubro.

Faltam quatro meses até lá, mas o presidente acaba de se posicionar no sentido de que não comparecerá aos debates de primeiro turno, secundado por Lula, caso aquele efetivamente não compareça. A exemplo das eleições de 2018, os eleitores poderão ser privados do confronto de ideias de todos os candidatos.

Negar informações não surpreende, porque o presidente abusou do poder de tornar sigilosos documentos que deveriam ser públicos, mandando cidadãos aguardarem por cem anos o fim do sigilo – é grave nosso declínio em transparência pública.

O presidente fala em defesa da liberdade, mas tudo não passa de embalagem falsa, narrativa enganosa. Roberto Jefferson e Daniel Silveira, para ficarmos em apenas dois exemplos, pregaram contra o Estado Democrático de Direito, e, obviamente, a imunidade parlamentar não os blinda sem limites – não podem dizer o que quiserem. Da mesma maneira, se um parlamentar for à tribuna e pregar pela morte de judeus, negros ou pessoas homoafetivas, jamais se poderá argumentar que estão cobertos pela inviolabilidade da imunidade parlamentar, que lhes garantiria liberdade de expressão. Pregar pela morte da democracia é conduta ainda mais grave. Conceder o presidente indulto após condenação pelo STF por este crime é estopim incendiário à democracia, ato violador da separação constitucional dos Poderes.

Temos assistido ao triste espetáculo diário do incentivo ao conflito e ao armamentismo irresponsável da população, sob o mantra de que “povo armado não é escravizado”. Muitos obedecem como zumbis ao chamamento, que utiliza linguagem que obscurece verdades e semeia a ideologia de um quase fanatismo. Consegue-se arregimentar, via redes sociais, uma matilha de vândalos que idolatram cegamente seu líder, dispostos a tudo, sob seu comando. Seria ele um novo Nero, retratado em Quo Vadis, de Henryk Sienkiewicz, que ateia fogo em Roma apenas para se inspirar, pelo ardor das labaredas, tocando sua lira?

A morte

A morte é o destino dos seres humanos, ao fim de um ciclo natural de vida, que se apresenta como uma espécie de enigma da condição humana. De toda maneira, as pessoas se acostumam gradativamente com essa ideia através da idade e de doenças sucessivas. Logo, passa a ser tida por normal, embora essa normalidade seja a do corpo inerte tomado por bactérias e vermes. A religião veio a ser uma forma de conforto, graças a ideias como a de “salvação”, “outro mundo” e “vida eterna”, entre outras acepções. Pascal, célebre filósofo católico, dizia que a vida era uma forma de “distração”, de “divertimento”, usufruída pelas pessoas procurando esquecer a morte inexorável.

Estados totalitários, aqui, inovaram. Tiraram a morte do seu ciclo natural e conferiram-lhe uma significação propriamente política, de poder, submetendo agrupamentos humanos por raça, religião ou mera diversidade à violência extrema. No nazismo, seres humanos, como judeus, homossexuais, ciganos e testemunhas de Jeová, considerados como “subumanos”, terminaram, por via de consequência, seus dias em câmaras de gás e nos crematórios. Extirpados da categoria dos humanos, a morte violenta lhes foi imposta.


Os comunistas não ficaram atrás, decretando a morte violenta pela fome orquestrada, imposta pela violência política a aproximadamente 3,2 milhões de ucranianos num evento que passou a ser denominado de Holodomor, morte por inação, num episódio da fome planejada pela polícia política stalinista nos anos 30 do século passado, com homens e mulheres esquálidos, cadáveres ambulantes, tendo o canibalismo como um de seus efeitos.

O processo civilizatório tem se caracterizado por prolongar a vida, por evitar a morte violenta, em sociedades que se organizam pela segurança pública, por sistemas de saúde públicos e privados, pelo avanço científico e tecnológico. As pessoas se sentem assim seguras, reconfortadas e evitam a morte, tida por uma forma arbitrária e injustificada de violência. Coisas tão simples como remédios e vacinas, além da integridade física que estaria ao abrigo do arbítrio, são manifestações deste progresso, considerado, então, como algo normal. O que ocorre, porém, se cenas de violência, patrocinadas inclusive por forças policiais, põem em xeque tal concepção?

Um cidadão normal, chamado Genivaldo, foi gasificado num porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal no Estado de Sergipe. O espetáculo do horror introduz a morte violenta patrocinada pelo Estado, cuja função – convém sempre lembrar – consiste em proteger a vida e o patrimônio dos cidadãos. Hobbes já dizia que essa é sua função essencial, sem a qual a sociedade recairia num estado de selvageria, denominado por ele de guerra de todos contra todos. A justificativa inicial utilizada pelo arbítrio foi a de um “mal súbito” sofrido pela vítima, expressão que só pode ser considerada como uma piada macabra. Mal, sim, existe, mas o de uma sociedade que começa a se acostumar com tal tipo de arbitrariedade. Súbito, sim, o descaramento e a ausência de compaixão.

A chacina no Rio de Janeiro, com forças policiais agindo impunemente, matando inocentes no máximo arbítrio, expõe essa faceta de uma sociedade que perde controle de si. A polícia, pilar da organização estatal, abandona sua função, fazendo com que pessoas pereçam pela morte violenta. A segurança dos cidadãos não é mais assegurada de uma forma aberta. Nem o disfarce é utilizado. Se o Estado não cumpre mais sua missão, o que podemos esperar, senão a irrupção da crueldade, da selvageria? Há justificativa para isso?

Em Pernambuco, mais de uma centena de pessoas foi vítima de inundações e desabamentos, em outro teatro do horror que apenas escancara o que já vem acontecendo em outras cidades. Nada disso é normal, na acepção de que seria inevitável. Calamidades naturais fazem parte do mundo, mas o que diferencia um Estado de outro são a prevenção e a forma de enfrentamento desse tipo de fenômeno. Sismógrafos foram inventados para prevenir as consequências desastrosas de terremotos, com operações de defesa civil e afastamento da população atingida para outras regiões. Habitações em zonas de risco podem ser solucionadas por políticas habitacionais e outras ações estatais. Foi mais uma vez desastroso o discurso presidencial, ao considerar as catástrofes como “naturais”. Seus efeitos não o são, se houver políticas sociais ancoradas na ciência e na tecnologia.

O Brasil vive um período particularmente delicado, pois estas formas de “morte social” passam a ser tidas por normais. Nem a compaixão se faz mais presente nas ações governamentais. Se o Estado não se impõe, protegendo os malfeitores e relegando os policiais honestos e conscientes, é porque se encaminha para formas autoritárias. Trata-se, na verdade, de um jogo político com a morte. A sociedade não pode pactuar com tal tipo de “brincadeira macabra”.

Amazônia: o boi-bumbá e o zebu da Volkswagen

Afinal, o que o boi legou à Amazônia? No campo da cultura, o bumba-meu-boi diverte e liberta numa ópera performática com música, coreografia, artes plásticas, teatralização e contação de histórias. Em contrapartida, no pasto da economia o boi zebu explora, escraviza e envenena, como na antiga fazenda da Volkswagen e empresas afins. Um celebra a vida, o outro a despreza. Olelê, olalá, olha o boi, o que te dá?

As toadas do boi bumbá ecoam em junho nas ruas, praças, terreiros e bumbódromos da Amazônia, numa explosão da festa coletiva de criação popular. Já o boi que pastou na fazenda da Volkswagen vai “dançar” em Brasília na próxima semana, em apenas um dia (14/06), quando a empresa, em audiência extrajudicial do Ministério Público do Trabalho, em Brasília, deve responder denúncias recentes repercutidas na mídia alemã sobre a escravização de 900 trabalhadores ocorrida há 50 anos.

O crime está documentado no livro “Volkswagen in the Amazon” escrito pelo historiador da Universidade de Zurique, Antoine Acker. Ele consultou os papéis do padre Ricardo Rezende, coordenador no Pará da Comissão Pastoral da Terra da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), nos anos 1970, e vasculhou os arquivos da Volkswagen na Alemanha. Lá encontrou um documento no qual a matriz pergunta a sua filial: “Por que criar gado na Amazônia?”

A pergunta foi retomada há dias pelas emissoras alemãs NDR, SWR e no domingo passado (29/05) pelo jornal Süddeutsche Zeitung: por que uma fábrica de carros alemã, sem experiência agropecuária, derruba a floresta e planta capim para o gado, cujos arrotos e peidos produzem gás metano e, com isso, aumentam o efeito estufa e o aquecimento global? O então presidente da VW, Wolfgang Sauer considerou “um grande negócio” e aproveitou as vantagens indecentes oferecidas.

Veja - 31/03/1971

Essas vantagens eram divulgadas nas publicidades dos jornais. O anúncio “Volkswagen produzido na Amazônia” traz a foto de um boi zebu (ou Belzebu?). Lá a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), criada pela ditadura militar, prometia mundos e fundos para garantir o lucro fácil sem qualquer risco dos – digamos assim – “investidores”:

– “O Banco da Amazônia dá toda a cobertura financeira. Nada de pagar Imposto de Renda durante dez anos. Você não paga nem impostos estaduais, nem municipais e até o terreno você pode receber de graça. Se for preciso importar equipamentos, você não paga taxas nem impostos de importação”.

“Você” não é você, leitor (a), eram “eles”. Isso fica claro no outro comercial de 1971 – “Toque sua boiada para o maior pasto do mundo” – onde a SUDAM informa que “mais de 250 empresas agropecuárias já estão se instalando na Amazônia”. E assegura cinicamente que “essa gente foi para lá movida por um forte impulso pioneiro patriótico empresarial”. Juro que escreveram isso, invertendo o lema da ditadura: “Entregar para não integrar”. Entreguismo agora camuflado no slogan “Brasil acima de tudo”.

Patriotismo, quantos crimes se cometem em teu nome! Os anúncios omitiam a maior vantagem oferecida: a força de trabalho também gratuita de peões, vaqueiros e outros escravizados pela Companhia Vale do Rio Cristalino (CVRC), conhecida como Fazenda Volkswagen, de 139 mil hectares, com cerca de 300 trabalhadores registrados. O padre Ricardo Rezende calcula que outros 600 recrutados pelos “gatos” na região trabalhavam ali sob regime de cativeiro. O gerente suíço da fazenda chegou a estimar em 7.000 os trabalhadores terceirizados.

Autor de vários livros sobre a escravidão moderna, o padre, que é professor de Direitos Humanos na UFRJ, “ouviu muitas histórias sobre a fazenda”, mas demorou a dar um flagrante, o que ocorreu na visita à fazenda em julho de 1983, em companhia de deputados de São Paulo. Na estrada a caminho da sede da fazenda, a comitiva cruzou com uma caminhonete com alguns trabalhadores aprisionados e amarrados dentro da caçamba. Ao ser questionado, o capataz afirmou que se não fossem amarrados, não trabalhariam direito

O padre conversou com o gerente suíço Friedrich Georg Brügger que, contratado pela Volks, definiu como “o emprego dos meus sonhos” seu cargo de administrador exercido de 1974 a 1986, ano em que a fazenda foi vendida por US$ 20 milhões, sem julgamentos ou indenizações. O suíço viveu quatro décadas no Brasil e só retornou à terra natal em 2017.

O que para ele era “sonho”, para os peões era pesadelo. Lá se trabalhava sete dias por semana, mais de dez horas por dia, sem qualquer pagamento, com alojamentos em locais insalubres, alimentação precária, sem assistência médica e sem acesso à água potável. Os trabalhadores submetidos a violência, espancamento e cárcere privado, com registro até de estupros e assassinatos, permaneciam em cativeiro, impedidos de sair por causa dos “débitos contraídos”, como no sistema de endividamento dos seringais.

– “Era uma forma de escravidão moderna” – denuncia o promotor encarregado do caso, Rafael Garcia. Confrontado pelo Süddeutsche Zeintung, Brügger se justifica:

– “Quando mil homens estão aglomerados, é óbvio que as coisas nem sempre são tranquilas. Especialmente no meio da selva”. O jornal editado em Munique detalha as reações do entrevistado: “Às vezes, ele contesta tudo, às vezes culpa as circunstâncias da época. Às vezes faz piadas de escravo, às vezes se mostra agressivo, às vezes é educado e cordial”.

Ele é um “homem impulsivo” na avaliação do padre Ricardo, que intercedeu por um trabalhador com malária, ardendo em febre, mas foi repelido aos berros por um descontrolado Brügger, sendo depois convidado para jantar com ele, que lhe ofereceu de presente um cálice e uma patena talhados em pau-brasil, árvore protegida por lei nacional e ilegalmente derrubada.

O suíço reconhece que a VW se apropriou de terra indígena. Ele certamente merece uma parte do boi morto desossado pelo Pai Francisco com a faca amolada na bunda da Catirina, que ganhou a tripa fina. Em homenagem ao novo sanduíche de picanha sem picanha da rede McDonald`s, Pai Francisco entoaria:

– A picanha do hamburger, dou pro Georg Brügger, olelê olalá, olha o boi, o que te dá.

A toada prossegue:

– Eu cortei a chã, é pra SUDAM, olelê olalá, olha o boi o que te dá.

Graças à sua atuação, a SUDAM merece a chã de fora, por sua subserviência às multinacionais, mas também a chã de dentro pelo desvio de verbas públicas, favorecimentos de políticos e empresários locais, liberação de verbas para projetos superfaturados, fraudes em contratos e notas fiscais de compras. Que o diga o senador Jader Barbalho, que renunciou ao mandato em outubro de 2001 e foi preso sob acusação de corrupção e libertado no mesmo dia.

Olelê, olalá, olha o boi, o que te dá. Pai Francisco doaria a tripa cagaiteira pra toda essa bandalheira.

Atenção jovens do meu Brasil varonil, fiquem de olho na audiência da terça-feira, 14 de junho. A escravidão da Volks pode mostrar como a ditadura empresarial-militar, cujo modelo de “progresso” reaparece nos discursos atuais, beneficiou centenas de empresas através da SUDAM. “Fazei isso em memória de mim” – dirão os herdeiros dos escravizados, que fazem a fila do osso, diante do preço abusivo da carne, sem medo do boi da cara branca. Olelê, olalá, olha o boi, o que não te dá.