sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Brasil de mercadinho

 


O presidente fujão

Bolsonaro deixou o país devido à fracassada tentativa de quebra da ordem institucional e o receio sobre sua situação jurídica ao passar do fórum privilegiado do STF para a 1ª instância do judiciário.

Roberto Damatta em O que faz o brasil, Brasil, diferencia entre o Brasil com b minúsculo dos nossos indicadores sociais, e o Brasil com B maiúsculo do nosso congraçamento cultural. Max Weber, em A Política como Vocação, diferencia entre dois tipos de políticos, o que trata a política como se fosse um negócio, e o que trata a política como representação social. Bolsonaro foi um presidente com p minúsculo, o da quebra da ordem institucional, e não o Presidente com P maiúsculo, da representatividade pelo bem social.


A caneta de Lula usada na posse difere da caneta de Bolsonaro para a ensejada Op GLO – Operação de Garantia da Lei e da Ordem. A caneta de Lula, presente de um eleitor do Piauí, representa o cidadão e o respeito pela democracia. A caneta de Bolsonaro, no uso da Op GLO, em interpretação equivocada por sua parte, representaria um instrumento de exceção para a quebra da ordem institucional.

Foi de fundamental importância a atuação do STF e do TSE na vigilância e manutenção da lei, expresso aqui na pessoa do Ministro Alexandre de Moraes.

Bolsonaro atentou continuamente contra a ordem institucional. Os 300 do Brasil, ataques ao STF, a tentativa de bloqueio do Planalto pelos caminhoneiros no 7 de setembro de 2021, o episódio da prisão do Deputado Daniel Silveira, as investigações do STF sobre fake news, o 7 de setembro de 2022 no Rio de Janeiro, o período pós-eleitoral com os caminhoneiros e patriotas à frente dos quartéis, o silêncio na expectativa do que não ocorreu. Como nada deu certo, Bolsonaro saiu do país.

O legado de Bolsonaro é danoso. De 2018 a 2021, o PIB caiu de US$ 1,9 trilhões para US$ 1,6. No COVID, 693 mil mortes, 10,5% dos óbitos mundiais para 2,7% de sua população. Foram prejudicadas a saúde, a educação, a cultura e o meio ambiente. As relações internacionais se deterioraram. O Brasil foi reincluído no Mapa Mundial da Fome da ONU.

O Bolsonarismo radical é mais diminuto do que se possa imaginar. Nas pesquisas Sensus, somente 2% são bolsonaristas radicais, contra a democracia e dispostos à ação política. Mas Bolsonaro se ausentou perante seus seguidores, não cumprindo seu papel de líder. Como diz Simmel, na liderança existe um processo recíproco de subordinação e superordenação, onde o liderado busca por um líder para se eximir da responsabilidade da ação social. Bolsonaro faltou a seus seguidores.

Bolsonaro não tem futuro na política Presidencial. O gabinete criado pelo PL para Bolsonaro parece mais para “Inglês ver”. Parece mais parte de acordos que possam ter ocorrido entre as partes políticas para melhor amortecer a inevitável saída de Bolsonaro. Bolsonaro foi um ponto fora da curva da história política brasileira. Pregou o inexistente.

Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.

Bertolt Brecht

Ufa! Ou... o valor dos símbolos

Eu sei: já é quinta-feira e a posse foi no domingo, quase uma vida atrás. Mas vou falar da posse mesmo assim, porque há muito tempo eu não via uma cerimônia cívica tão bonita e tão carregada de símbolos positivos. Nós estávamos muito precisados disso, de beleza e de uma simbologia representativa do que temos de bom, do lado melhor da nossa natureza.

Foi exaustivo passar quatro anos sob peso de rancor e ressentimento, exprimidos em mãos fazendo arminhas, em motociatas intermináveis e naquele profundo desprezo a qualquer forma de gentileza, de educação e de diversidade.


Na vida pública tudo é símbolo, e foi uma alegria imensa rever o Brasil simbólico de que tanto gostamos subindo a rampa numa celebração de cores; foi um alívio ver seres verdadeiramente humanos em desfile, na companhia triunfal de Resistência, a Primeira Cã.

O ar está mais leve, respiramos melhor.
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Por falar em símbolos — tenho duas lembranças marcantes da posse de 2019: a presença imprópria do 02 sentado no capô do Rolls-Royce e a presença suave da primeira dama fazendo um discurso em libras. Um símbolo de psicopatia contrapondo-se a um símbolo de afabilidade, fato e fake na mesma medida.

Que pesadelo.

E que diferença para o Rolls-Royce de 2023, com dois antigos rivais lado a lado, sorridentes, unidos num ideal comum.
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A ausência do cramulhão permitiu o melhor da festa. Janja encontrou a receita do verdadeiro significado da subida da rampa, aquela que, uma vez vista, parece óbvia. É claro que tem que ser assim, um grupo, a sociedade representada em sua ampla pluralidade.

Haverá tantas combinações possíveis quantas cabeças se dedicarem a pensar no assunto, mas é isso, um conjunto de pessoas, e não aqueles casais solitários, raramente à vontade, em que ela poucas vezes foi mais do que uma sombra.
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Não tenho dúvidas de que vamos passar muita raiva com Lula e vamos nos desesperar com incontáveis problemas do novo governo; para já, é duro ter que aceitar uma ministra envolvida com milicianos, completamente estranha à pasta e que, ainda por cima, se nomeia “Daniela do Waguinho” em pleno ano de 2023.

(Ou Turismo é um assunto importante e como tal teria que ser tratado, ou não tem importância nenhuma — e, nesse caso, nem precisaria de ministério. Do jeito que ficou é uma ofensa a quem leva a área a sério.)

Ainda assim, daqui para a frente pisaremos no terreno da Democracia, e não na zona minada do golpismo latente, na região patológica de uma perversidade indefinível.

A profunda felicidade que sentimos com a posse não foi necessariamente por Lula, mas pelo Livramento.
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Quem não acompanha os movimentos de proteção animal talvez não faça ideia da importância da presença de Resistência na posse. Resistência, a Primeira Cã, apareceu no acampamento em frente à Polícia Federal de Curitiba, e passou a dar plantão com a militância. Quando Lula e Janja se casaram, a levaram consigo. Vários recados importantes subiram a rampa nas suas quatro patinhas, sendo o principal deles o de que os animais fazem parte indissociável das nossas vidas e merecem todo o respeito.

As redes sociais festejaram.

— Ela é o segundo animal a subir a rampa!

— É, mas ela está com todas as vacinas em dia.

Mourão sentiu o impacto das primeiras medidas de Lula

Lula tem, acertadamente, revogado medidas de última hora do governo Jair Bolsonaro e outras que fazem parte de uma visão ideológica equivocada do ex-presidente da República, como a distribuição descontrolada de armas. Para o senador eleito Hamilton Mourão, contudo, uma eleição como a do ano passado – voto a voto – dá ao bolsonarismo algum tipo de salvo conduto eterno.

Disse o general da reserva à Folha: “[Lula] chegou com espírito de revanche e sem entender que venceu uma eleição no photochart, portanto sem um apoio francamente majoritário”.

Depois de ser a linha auxiliar de uma gestão que colocou o país no retrocesso, no negacionismo e no obscurantismo – ou seja, nas trevas – Mourão quer que o presidente eleito mantenha as bizarrices que, em parte, incomodavam até ele mesmo.

Como se sabe, Mourão virou pária para a família do ex-presidente. E muitas vezes por ter uma postura menos extremista (o senador também é afeito ao extremismo) que a do seu companheiro de chapa de 2018. Não à toa, foi preterido da chapa de 2022.

Outro dia, o vereador Carlos Bolsonaro chamou o senador eleito de “bosta”. E sabem o que Mourão fez para merecer isso? Com razão, afirmou que o silêncio de Bolsonaro após o resultado das urnas estava criando o caos no país.

Aliás, o caos foi criado em vários momentos do mandato anterior. Caos institucional, caos na Saúde, caos no meio ambiente, caos na Cultura, caos nas Forças Armadas, caos na Polícia Federal, caos nos direitos humanos, caos nas Relações Internacionais.

Mas, segundo o senador eleito, o que está mesmo na hora, após dois dias de governo, é de o PT “compreender o país que precisam governar, despindo seus preconceitos políticos, econômicos e ideológicos”.

Mourão bem que poderia ter dito isso nos últimos quatro anos.

Assim se passaram quatro anos

Há dias, numa roda de amigos que falavam dos 21 anos da ditadura (1964-1985) e de como os militares tinham vergonha de sair à rua fardados, o filho adolescente de um de nós perguntou: "Se eles eram tão impopulares, por que vocês deixaram que ficassem tanto tempo no poder?".

Boa pergunta e difícil de responder. Alguém explicou que os militares não estavam sozinhos, que contavam com civis dispostos a alterar e corromper as instituições para lhes dar respaldo jurídico. Que, em certo momento, rapazes e moças, com coragem e ingenuidade suicidas, pegaram em armas para tentar derrubá-los, mas foram esmagados à custa de prisão, tortura e mortes; e que, em outro, fomos às ruas aos milhões exigindo eleições diretas — em vão. Derrotados, conformamo-nos em esperar que os milicos se cansassem e nos devolvessem o país.


No futuro, outro adolescente perguntará por que aturamos viver sob Jair Bolsonaro durante quatro anos se, já no dia de sua posse, em 2019, ele declarou que iria destruir tudo para depois "reconstruir". Significava fazer do Brasil ruínas e imperar sobre elas no primeiro mandato e, no segundo, consolidar uma nova ordem legal de modo a se eternizar no poder. Para tanto, Bolsonaro passou quatro anos nos ameaçando com o Exército (o "seu Exército"), o feitor armado a seu serviço, pronto a um golpe para nos enquadrar.

Um dia, de fato, a constatação de que o Exército se deixou usar por um desclassificado será uma resposta. Mas não a única. Deveremos olhar para nós mesmos e perguntar por que, quando a situação exigia, não saímos às ruas para protestar, promover comícios, denunciar as fake news, apoiar a imprensa independente, a CPI da Covid e os ministros do STF e do TSE, chamar os liras e aras pelos nomes que mereciam, enfim, mostrar que existíamos —como os bolsonaristas de então e até hoje.

Não fizemos isso, e assim se passaram quatro anos.