segunda-feira, 19 de dezembro de 2022
O cheiro de queimado em Brasília
O cheiro de queimado aqui é metafórico. Tem chovido com frequência, e os sinais do fogo ainda podem ser vistos na grama defronte à delegacia atacada por extremistas de direita. Ônibus e carros destruídos já foram retirados das ruas, de forma discreta e rápida, como se retiram corpos de quem morre num hotel.
Brasília não foi feita para grandes manifestações. Os gritos se perdem na solidão do Planalto, ninguém abre as janelas para jogar papel picado, água ou mesmo máquina de escrever, como no Rio dos anos 1960. Mas o clima aqui mudou. A concentração diante do Q.G. do Exército ainda tem gente, embora não tanto quanto no princípio. Amiga que passa por lá diz que, de vez em quando, rezam ou cantam o Hino Nacional. Os vendedores ambulantes foram retirados, e o clima de feira livre se dissipou.
Atos violentos costumam marcar o fim de movimentos de massa. São uma espécie de ruidosa extrema-unção. Mas, apesar disso, é preciso reconhecer que nunca se protestou tanto contra um resultado eleitoral. No passado, os perdedores tendiam à resignação ou mesmo à indiferença. Desta vez, houve um movimento intenso e capilarizado.
A cada dia, surgia uma esperança: o relatório das Forças Armadas, o Tribunal Internacional. Houve quem acreditasse que o vencedor tinha morrido, e um clone ocupara o seu lugar. Há uma psicologia de seita religiosa que, certamente, o curso dos meses atenuará. No entanto é preciso prudência.
O que acentua o cheiro de queimado no ar é a festa de uma eleição vitoriosa sem levar muito em conta esse clima. Estamos no momento da lua de mel, em que os vencedores se sentem à vontade. Uma lua de mel diferente. E parece que essa singularidade escapa às cabeças dominantes. A luta pelos ministérios deixa muita gente preocupada com cargos e honrarias, no momento em que é preciso desenhar um esquema de governo eficiente para realizar sua tarefa histórica.
A Lei da Estatais foi para o espaço. Num só dia, aumentou-se a cota de publicidade que as empresas podem usar, e retiraram-se os obstáculos para que políticos voltassem a ocupar os cargos diretivos. Observadores políticos reclamam que os erros do passado não foram entendidos. Mas os erros do passado foram esquecidos pela sociedade, que elegeu de novo os mesmos atores.
A verdadeira lição que o pragmatismo político ensina é esta: é possível cometer grandes erros históricos porque o preço é a vitória de uma extrema direita tosca e alucinada, que dura pouco no poder. Em menos de quatro anos, a maioria estará de novo sonhando com a volta do antigo esquema. Esse parece ser o círculo de ferro em que a História moderna do Brasil se encerrou. Não se pode perder nunca a esperança de quebrá-lo.
Ainda é tempo de evitar os mesmos erros e suprimir a extrema direita dessa alternância no poder. Um dos caminhos é compreender um governo de frente não como um ajuntamento, mas como resultado de uma escolha dos mais representativos e capazes. É desenhar o organograma não como um espaço elástico para acomodar todas as ambições, mas como um desenho inteligente para realizar a tarefa histórica.
Afinal, é pedir muito querer uma tentativa real de sair disso que o querido Cazuza chamava de “museu de grandes novidades”? Brasília ferve no calor dos incêndios extremistas, na temperatura da surda luta pelo poder, na força regressiva das velhas tendências fisiológicas do Centrão.
Enfim, apesar das chuvas, ainda não consigo afastar das narinas esse desconfortável cheiro de queimado.
Brasília não foi feita para grandes manifestações. Os gritos se perdem na solidão do Planalto, ninguém abre as janelas para jogar papel picado, água ou mesmo máquina de escrever, como no Rio dos anos 1960. Mas o clima aqui mudou. A concentração diante do Q.G. do Exército ainda tem gente, embora não tanto quanto no princípio. Amiga que passa por lá diz que, de vez em quando, rezam ou cantam o Hino Nacional. Os vendedores ambulantes foram retirados, e o clima de feira livre se dissipou.
O cheiro de queimado ainda está no ar porque ninguém foi punido, até agora. Ninguém foi preso no dia do fogaréu. Tudo se passa como se Brasília fosse invadida por extraterrestres que voltaram ao espaço sideral: não há mais como alcançá-los. Apesar de tantos vídeos e rastros deixados no caminho.
Atos violentos costumam marcar o fim de movimentos de massa. São uma espécie de ruidosa extrema-unção. Mas, apesar disso, é preciso reconhecer que nunca se protestou tanto contra um resultado eleitoral. No passado, os perdedores tendiam à resignação ou mesmo à indiferença. Desta vez, houve um movimento intenso e capilarizado.
A cada dia, surgia uma esperança: o relatório das Forças Armadas, o Tribunal Internacional. Houve quem acreditasse que o vencedor tinha morrido, e um clone ocupara o seu lugar. Há uma psicologia de seita religiosa que, certamente, o curso dos meses atenuará. No entanto é preciso prudência.
O que acentua o cheiro de queimado no ar é a festa de uma eleição vitoriosa sem levar muito em conta esse clima. Estamos no momento da lua de mel, em que os vencedores se sentem à vontade. Uma lua de mel diferente. E parece que essa singularidade escapa às cabeças dominantes. A luta pelos ministérios deixa muita gente preocupada com cargos e honrarias, no momento em que é preciso desenhar um esquema de governo eficiente para realizar sua tarefa histórica.
A Lei da Estatais foi para o espaço. Num só dia, aumentou-se a cota de publicidade que as empresas podem usar, e retiraram-se os obstáculos para que políticos voltassem a ocupar os cargos diretivos. Observadores políticos reclamam que os erros do passado não foram entendidos. Mas os erros do passado foram esquecidos pela sociedade, que elegeu de novo os mesmos atores.
A verdadeira lição que o pragmatismo político ensina é esta: é possível cometer grandes erros históricos porque o preço é a vitória de uma extrema direita tosca e alucinada, que dura pouco no poder. Em menos de quatro anos, a maioria estará de novo sonhando com a volta do antigo esquema. Esse parece ser o círculo de ferro em que a História moderna do Brasil se encerrou. Não se pode perder nunca a esperança de quebrá-lo.
Ainda é tempo de evitar os mesmos erros e suprimir a extrema direita dessa alternância no poder. Um dos caminhos é compreender um governo de frente não como um ajuntamento, mas como resultado de uma escolha dos mais representativos e capazes. É desenhar o organograma não como um espaço elástico para acomodar todas as ambições, mas como um desenho inteligente para realizar a tarefa histórica.
Afinal, é pedir muito querer uma tentativa real de sair disso que o querido Cazuza chamava de “museu de grandes novidades”? Brasília ferve no calor dos incêndios extremistas, na temperatura da surda luta pelo poder, na força regressiva das velhas tendências fisiológicas do Centrão.
Enfim, apesar das chuvas, ainda não consigo afastar das narinas esse desconfortável cheiro de queimado.
As tias e primos perdidos para a porta dos quartéis
Desde 30 de outubro, em algo assemelhado a uma comédia familiar, alguns amigos perderam tias e primos para a porta dos quartéis. Trocaram a macarronada dos domingos por uma sopa rala e banheiro químico. Com o fechamento dos bingos, descobriram ali nova forma de estar entre os iguais.
O cérebro humano continua a ser um dos grandes mistérios do planeta. Por sua capacidade de criar invenções e por sua incapacidade de aprender com os erros. As vivandeiras do pós-goiabeira são netas, sobrinhas-netas ou agregadas dos militantes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, afamada bucha de canhão, ou massa de manobra, basta escolher, que clamaram pelo golpe militar levado a cabo em 1964. Foram 21 anos de perseguições políticas, assassinatos, falta de liberdade, carestia brutal e inflação descontrolada.
Não aprenderam nada. Lá estão novamente as cunhadas e irmãs, como ventríloquos, na porta dos quartéis; alguns brandem um tal perigo comunista; outros escandem um fundamentalismo religioso próximo à Inquisição, loucos, se autorizados, para queimar imaginárias deidades. Desculpe a incorreção: ao atirar contra os policiais federais, eles já as nomearam como suas bruxas.
A falta de lazer e de áreas públicas para o convívio social, como parques e praças com bancos, ao mostrar que os shoppings já não cumprem mais essa função, resultou por certo no adensamento de genros e enteados na calçada das corporações. Ao contrário do que é vendido pelos pastores tuiteiros, é mais uma questão urbano-afetiva que de caráter ideológico. Basta observar a bonança vinda com a multiplicação das sopas, oferecida por Michelle Bolsonaro aos militantes intelectualmente desnutridos na porta do Palácio da Alvorada. Estando o quase ex-presidente anda deprimido e inapetente, possivelmente distribuiu o excesso da despensa. Pimba! Soa uma ação prática às mulheres companheiras dos maridos: por que deixar a comida estragar? Não chega a ser brioche, mas é o que havia para o jantar.
Desconcertados diante da prosódia do líder, bolsonaristas do meio-fio — favor não confundir com o populacho das barricadas das estradas, que nem sequer ganhou banheiro químico dos militares —, brigam para que seu mundo não tenha mudanças. O slogan “Deus, Pátria, Família” significa no fundo “Sofá, Miami (em seis vezes) e lasanha (gratinada)”. Em terreno assim, não se admitem novas ideias ou mesmo mudar de lugar o controle remoto.
O mundo tem andado muito rápido. Faça as contas: agora as domésticas têm filhos na universidade, também voavam para a Disney; mulheres pretas são nomeadas ministras; político de projeção se assume gay; pior, o Papa tolera as pautas de esquerda. E Valdemar Costa Neto está na oposição. Tem de gritar na porta de quartel.
Sair da fila do orelhão para mensagem de texto no aplicativo, em menos de duas décadas, abala os dogmas. A cada temporada, novas descobertas desmantelam as escrituras vindas há séculos do deserto distante. Imagine uma delas: computadores que leem nossos pensamentos e, assim, obedecem a comandos diversos como jogar videogames ou auxiliam pessoas a mexer o braço robótico.
Na busca aflita por um um banheiro químico, o pessoal esquece que, na abertura da Copa de 2014, um homem paraplégico, pela ação de comandos mentais levados a seu exoesqueleto, deu o pontapé na bola no início da partida. Não foi um milagre, mas obra do cientista brasileiro Miguel Nicolelis. Aleluia.
De novo, o jogo. Os voyeurs de guarita encontram ecos na velha esquerda. Algo como uma irmandade no atraso, atávicos em seu ludismo. Não entregam a modernidade porque têm credos arcaicos, haja vista a justificativa da bancada do PT para querer um dos seus no cargo de ministro da Educação. Refutam um ícone da área, alguém reconhecido internacionalmente, como a educadora Izolda Cela, sob o argumento de o posto ter de ser ocupado por um político. Chamemos a isso convicção do pobrismo petista. Natural incentivar uma fábrica de bife e não brigar por usinas industriais de chips ou microprocessadores. O subdesenvolvimento da direita e da esquerda é uma opção e uma estratégia.
Triste, repete-se a história. Na virada do século retrasado para o passado, os empresários e as autoridades, mergulhados no pensamento de branqueamento da população, buscaram trabalhadores europeus para tocar as fazendas de café e, principalmente, as fábricas que inauguravam a industrialização brasileira.
Em lugar de capacitar a imensa população de ex-escravizados, que rodavam as periferias da cidade em busca de colocação, fizeram duas apostas. A primeira, pelo branqueamento, com a chegada de milhares de imigrantes brancos (e poucos asiáticos). A segunda, contra a educação, ao não montar um programa de qualificação profissional.
Na época, os petistas da Gleisi venceram os defensores da integração social e da capacitação da mão de obra. Mais de cem anos depois, diante da Revolução Digital, o Brasil corre o risco de novamente apostar errado.
O cérebro humano continua a ser um dos grandes mistérios do planeta. Por sua capacidade de criar invenções e por sua incapacidade de aprender com os erros. As vivandeiras do pós-goiabeira são netas, sobrinhas-netas ou agregadas dos militantes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, afamada bucha de canhão, ou massa de manobra, basta escolher, que clamaram pelo golpe militar levado a cabo em 1964. Foram 21 anos de perseguições políticas, assassinatos, falta de liberdade, carestia brutal e inflação descontrolada.
Não aprenderam nada. Lá estão novamente as cunhadas e irmãs, como ventríloquos, na porta dos quartéis; alguns brandem um tal perigo comunista; outros escandem um fundamentalismo religioso próximo à Inquisição, loucos, se autorizados, para queimar imaginárias deidades. Desculpe a incorreção: ao atirar contra os policiais federais, eles já as nomearam como suas bruxas.
A falta de lazer e de áreas públicas para o convívio social, como parques e praças com bancos, ao mostrar que os shoppings já não cumprem mais essa função, resultou por certo no adensamento de genros e enteados na calçada das corporações. Ao contrário do que é vendido pelos pastores tuiteiros, é mais uma questão urbano-afetiva que de caráter ideológico. Basta observar a bonança vinda com a multiplicação das sopas, oferecida por Michelle Bolsonaro aos militantes intelectualmente desnutridos na porta do Palácio da Alvorada. Estando o quase ex-presidente anda deprimido e inapetente, possivelmente distribuiu o excesso da despensa. Pimba! Soa uma ação prática às mulheres companheiras dos maridos: por que deixar a comida estragar? Não chega a ser brioche, mas é o que havia para o jantar.
Desconcertados diante da prosódia do líder, bolsonaristas do meio-fio — favor não confundir com o populacho das barricadas das estradas, que nem sequer ganhou banheiro químico dos militares —, brigam para que seu mundo não tenha mudanças. O slogan “Deus, Pátria, Família” significa no fundo “Sofá, Miami (em seis vezes) e lasanha (gratinada)”. Em terreno assim, não se admitem novas ideias ou mesmo mudar de lugar o controle remoto.
O mundo tem andado muito rápido. Faça as contas: agora as domésticas têm filhos na universidade, também voavam para a Disney; mulheres pretas são nomeadas ministras; político de projeção se assume gay; pior, o Papa tolera as pautas de esquerda. E Valdemar Costa Neto está na oposição. Tem de gritar na porta de quartel.
Sair da fila do orelhão para mensagem de texto no aplicativo, em menos de duas décadas, abala os dogmas. A cada temporada, novas descobertas desmantelam as escrituras vindas há séculos do deserto distante. Imagine uma delas: computadores que leem nossos pensamentos e, assim, obedecem a comandos diversos como jogar videogames ou auxiliam pessoas a mexer o braço robótico.
Na busca aflita por um um banheiro químico, o pessoal esquece que, na abertura da Copa de 2014, um homem paraplégico, pela ação de comandos mentais levados a seu exoesqueleto, deu o pontapé na bola no início da partida. Não foi um milagre, mas obra do cientista brasileiro Miguel Nicolelis. Aleluia.
De novo, o jogo. Os voyeurs de guarita encontram ecos na velha esquerda. Algo como uma irmandade no atraso, atávicos em seu ludismo. Não entregam a modernidade porque têm credos arcaicos, haja vista a justificativa da bancada do PT para querer um dos seus no cargo de ministro da Educação. Refutam um ícone da área, alguém reconhecido internacionalmente, como a educadora Izolda Cela, sob o argumento de o posto ter de ser ocupado por um político. Chamemos a isso convicção do pobrismo petista. Natural incentivar uma fábrica de bife e não brigar por usinas industriais de chips ou microprocessadores. O subdesenvolvimento da direita e da esquerda é uma opção e uma estratégia.
Triste, repete-se a história. Na virada do século retrasado para o passado, os empresários e as autoridades, mergulhados no pensamento de branqueamento da população, buscaram trabalhadores europeus para tocar as fazendas de café e, principalmente, as fábricas que inauguravam a industrialização brasileira.
Em lugar de capacitar a imensa população de ex-escravizados, que rodavam as periferias da cidade em busca de colocação, fizeram duas apostas. A primeira, pelo branqueamento, com a chegada de milhares de imigrantes brancos (e poucos asiáticos). A segunda, contra a educação, ao não montar um programa de qualificação profissional.
Na época, os petistas da Gleisi venceram os defensores da integração social e da capacitação da mão de obra. Mais de cem anos depois, diante da Revolução Digital, o Brasil corre o risco de novamente apostar errado.
Fétidos poderes
As relações entre os poderes Executivo e Legislativo costumam ser pouco ou quase nada republicanas. Não raro, mal cheirosas. Por aqui, o toma lá dá cá começou ainda no Império e funciona a todo vapor desde a Velha República. O tempo passou, o mundo mudou, e as moedas continuam as mesmas: farta distribuição de cargos e de dinheiro público. É esse binômio podre e o poder que ele confere aos seus operadores que estão por trás de toda a celeuma envolvendo o acintoso orçamento secreto, a PEC da Transição, as mudanças na Lei das Estatais e a formação do novo governo.
Trata-se de uma quadrilha perversa. Antes mesmo de tomar posse, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva se viu refém do presidente da Câmara, Arthur Lira, que só se dispõe a votar a PEC da Transição já aprovada no Senado se as emendas do relator (RP9), conhecidas como orçamento secreto, não despedaçarem. Por sua vez, Lula retardou a formação do governo pressionando pela votação da PEC nas bases acordadas há uma semana com Lira, em troca de sua reeleição ao comando da Casa: R$ 145 bilhões extra-teto por dois anos.
Temendo a derrubada, pelo STF, da dinheirama sigilosa – R$ 19,5 bilhões só para 2023 -, com a qual compra a sua base de apoio, Lira atacou os cargos. De surpresa, orquestrou a votação de alterações na Lei das Estatais, entre elas a redução radical da quarentena – de três anos para 30 dias – para que políticos possam assumir postos de comando em empresas públicas e nas agências reguladoras, algo com potencial entre 600 e 700 cargos.
O movimento foi tão brusco e escancarado que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, puxou o breque, postergando a inclusão das mudanças para 2023 e, claro, empunhando uma espada própria sobre a cabeça de Lula. Ressalte-se que o PT votou a favor do arranjo de Lira. Não só para facilitar a nomeação de Aloizio Mercadante ao BNDES, como disseram os mais apressados, mas para abrir o “cofre da governabilidade” via cargos nas empresas públicas – moeda dificultada pela Lei das Estatais.
O STF também fez das suas. Integrou-se à encrenca do orçamento secreto como parte, sugerindo alterações como se legislador fosse. Ao que parece, com a simpatia do presidente eleito. Depois de colher o placar de 5 x 4 pela inconstitucionalidade das RP9, a Corte suspendeu a votação na expectativa de que o Congresso apresentasse uma alternativa à excrescência criada em conjunto pelo Parlamento e pelo governo Jair Bolsonaro.
Câmara e Senado nem esconderam a existência de um acordo prévio com integrantes do Supremo, algo para lá de impróprio. Na velocidade da luz votaram, na sexta-feira, uma resolução para “consertar” as emendas do relator, que desde sempre todos eles sabiam ser inconstitucionais. Produziram um frankenstein, que corrige parcialmente a falta de transparência, distribui emendas para um número maior de parlamentares, mas sem isonomia, e oficializa os presidentes das duas casas e líderes partidários como executores orçamentários.
Coisa sem pé nem cabeça.
Imaginem, por exemplo, se a deputada Carla Zambelli, a atiradora dos Jardins, virar líder do PL em 2023 e se tornar controladora do maior butim de emendas do Congresso.
Como de hábito na política brasileira, remenda-se um erro com outro erro. Desta vez, com chances de ser referendado pelo STF. Se isso se confirmar na votação desta segunda-feira, teremos um fato gravíssimo: o aval do Supremo a uma flagrante inconstitucionalidade, oficializando o balcão de negócios que rege as relações entre os poderes.
O resultado no STF é aguardado com ansiedade, mas Câmara e Senado certamente têm outras ideias fedorentas caso sofram revezes. Nas mãos, Pacheco tem a Lei das Estatais, Lira, a PEC da Transição. Pelo novo arranjo, ambos detêm 15% do orçamento secreto – dinheiro dos impostos dos brasileiros. Nada menos de R$ 1,7 bilhão para cada um deles fazer o que bem (ou mal) quiser. São moedas de troca, toleradas como promissórias de governabilidade, mas que perpetuam a podridão da política e empobrecem ainda mais o país.
Trata-se de uma quadrilha perversa. Antes mesmo de tomar posse, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva se viu refém do presidente da Câmara, Arthur Lira, que só se dispõe a votar a PEC da Transição já aprovada no Senado se as emendas do relator (RP9), conhecidas como orçamento secreto, não despedaçarem. Por sua vez, Lula retardou a formação do governo pressionando pela votação da PEC nas bases acordadas há uma semana com Lira, em troca de sua reeleição ao comando da Casa: R$ 145 bilhões extra-teto por dois anos.
Temendo a derrubada, pelo STF, da dinheirama sigilosa – R$ 19,5 bilhões só para 2023 -, com a qual compra a sua base de apoio, Lira atacou os cargos. De surpresa, orquestrou a votação de alterações na Lei das Estatais, entre elas a redução radical da quarentena – de três anos para 30 dias – para que políticos possam assumir postos de comando em empresas públicas e nas agências reguladoras, algo com potencial entre 600 e 700 cargos.
O movimento foi tão brusco e escancarado que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, puxou o breque, postergando a inclusão das mudanças para 2023 e, claro, empunhando uma espada própria sobre a cabeça de Lula. Ressalte-se que o PT votou a favor do arranjo de Lira. Não só para facilitar a nomeação de Aloizio Mercadante ao BNDES, como disseram os mais apressados, mas para abrir o “cofre da governabilidade” via cargos nas empresas públicas – moeda dificultada pela Lei das Estatais.
O STF também fez das suas. Integrou-se à encrenca do orçamento secreto como parte, sugerindo alterações como se legislador fosse. Ao que parece, com a simpatia do presidente eleito. Depois de colher o placar de 5 x 4 pela inconstitucionalidade das RP9, a Corte suspendeu a votação na expectativa de que o Congresso apresentasse uma alternativa à excrescência criada em conjunto pelo Parlamento e pelo governo Jair Bolsonaro.
Câmara e Senado nem esconderam a existência de um acordo prévio com integrantes do Supremo, algo para lá de impróprio. Na velocidade da luz votaram, na sexta-feira, uma resolução para “consertar” as emendas do relator, que desde sempre todos eles sabiam ser inconstitucionais. Produziram um frankenstein, que corrige parcialmente a falta de transparência, distribui emendas para um número maior de parlamentares, mas sem isonomia, e oficializa os presidentes das duas casas e líderes partidários como executores orçamentários.
Coisa sem pé nem cabeça.
Imaginem, por exemplo, se a deputada Carla Zambelli, a atiradora dos Jardins, virar líder do PL em 2023 e se tornar controladora do maior butim de emendas do Congresso.
Como de hábito na política brasileira, remenda-se um erro com outro erro. Desta vez, com chances de ser referendado pelo STF. Se isso se confirmar na votação desta segunda-feira, teremos um fato gravíssimo: o aval do Supremo a uma flagrante inconstitucionalidade, oficializando o balcão de negócios que rege as relações entre os poderes.
O resultado no STF é aguardado com ansiedade, mas Câmara e Senado certamente têm outras ideias fedorentas caso sofram revezes. Nas mãos, Pacheco tem a Lei das Estatais, Lira, a PEC da Transição. Pelo novo arranjo, ambos detêm 15% do orçamento secreto – dinheiro dos impostos dos brasileiros. Nada menos de R$ 1,7 bilhão para cada um deles fazer o que bem (ou mal) quiser. São moedas de troca, toleradas como promissórias de governabilidade, mas que perpetuam a podridão da política e empobrecem ainda mais o país.
Cronicando: A política e o espírito natalino
O analista político costuma usar uma veia por onde corre a seiva de seu pensamento: é o artigo, o comentário, o texto interpretativo. O roteiro é conhecido: a hipótese, no início, a argumentação, no meio, e a conclusão, ao final. Já aos poetas (cronistas, acrescento) e pintores abre-se a mente criativa, com o jogo de palavras, o uso das metáforas, a imbricação de figuras de linguagem, os versos, o ritmo, enfim, a leveza das frases sob a permissão que Vergílio lhes concedia na Eneida: “poetis et pictoribus, omnia licet” (aos poetas e pintores, tudo é permitido).
E se o articulista optar pela seara que não é bem a sua? Tentar, por exemplo, caminhar pela vereda dos sentimentos, pelas dobras do coração, pela complexa maquinaria da linguagem para conseguir o intento de ler a política e o espírito do tempo, adotando outra modelagem, sem recorrer a narradores que não ele? Intuo que os leitores perceberam meu desejo de seguir essa trilha.
Pois vamos lá. Começo com o óbvio: o Natal está chegando e os sinais mostram o espírito do tempo: sacolas cheias nos shoppings, trânsito intenso, irritação dos mais apressados, ruas cheias, a contraditar a expressão de que as luzes natalinas iluminam um tempo de paz e harmonia.
Haverá paz na era da competição? Não no campo da política, espaço de contendas e emboscadas, de ódio e vingança. Arengueiros de todos os calibres estão a postos, conquistando ou reconquistando o poder para abater adversários e aqueles que não comungam com seus interesses. Habitantes dos assentos nas arquibancadas da política procuram seus lugares nos estádios construídos por mandatários. O céu para uns, o inferno para outros. Pátria amada, Pátria desarmada, pregam os desafetos. Estocadas recíprocas.
A guerra não cede aos contendores. Cada qual tem balas no bornal. Uns, limpando a poeira, refazem imagens com a tintura das estações. Outros, procurando novo habitat, se refugiam nas dispersas ilhas do imenso arquipélago. Guerreiam para ganhar lugar na ilha principal, no centro do território. Lá onde só se respira poder.
Nos desvãos do inconsciente, a historinha alimenta predadores e suas caças. “Toda manhã na África, a gazela acorda. Ela sabe que precisa correr mais rápido que o mais rápido dos leões para sobreviver. Toda manhã na África um leão acorda. Ele sabe que precisa correr mais rápido que a mais lenta das gazelas senão morrerá de fome. Não importa se você é um leão ou uma gazela. Quando o sol nascer, comece a correr.”
Triste realidade. Nascer, crescer, amadurecer e lutar para sobreviver na corrida da vida, cumprir as leis, seguir os ditames, sob pena de ser engolido pelas garras ferozes do “homem (que) é o lobo do homem”, conforme apregoava Thomas Hobbes. É essa a cena que estamos vendo em terras do planeta, onde irmãos se tornam inimigos uns dos outros, vivendo um conflito pela conquista de territórios. Todos de um lado contra todos de outro.
O desânimo é o ânimo sem vontade. Como animar-se depois de uma tragédia que matou perto de 700 mil pessoas em nossas plagas? Que harmonia podemos construir vivendo um clima de final de ano em um país que viu sumir a alegria de milhões de famílias? A intensa gastronomia natalina pode saciar o apetite dos estômagos, mas não supre as carências da mente.
O olhar para a manjedoura, nas igrejas e nos lares cristãos, contempla a mãe, Maria, o pai, José, e o filho, o criador que nasceu para nos salvar. Mas o olhar vem acompanhado de aflição e angústia, sob a tênue esperança de um futuro menos doloroso.
Como salvar os seres que vivem sob o ódio, destilam o veneno da crueldade, depredam propriedades privadas e públicas, despindo o véu de sua humanidade? Onde estão o bucolismo dos tempos de outrora, a conversa nas calçadas, os passeios tranquilos nas tardes e na boquinha da noite? A memória dos nossos antepassados vai se perdendo na poeira do tempo, sufocada pelo turbilhão de barulhos e clamores da agitada vida urbana.
Resta como consolo a pequenina chama de nossos candieiros, uma fatia de crença de que o amanhã será melhor do que o ontem, o sinal de que a ciência avança, abrindo as gavetas de remédios e drogas capazes de estender o tempo de nossas vidas. Resta ouvir as palavras do velho Zaratustra, no alto da montanha, sobre a beleza da vida:
– Amo o que ama a sua virtude, porque a virtude é vontade de extinção e uma seta do desejo… Amo o que faz da sua virtude a sua tendência e o seu destino, pois assim, por sua virtude, quererá viver ainda e deixar de viver…. É tempo que o homem tenha um objetivo… É tempo que o homem cultive o germe da sua mais elevada esperança…. É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.
E se o articulista optar pela seara que não é bem a sua? Tentar, por exemplo, caminhar pela vereda dos sentimentos, pelas dobras do coração, pela complexa maquinaria da linguagem para conseguir o intento de ler a política e o espírito do tempo, adotando outra modelagem, sem recorrer a narradores que não ele? Intuo que os leitores perceberam meu desejo de seguir essa trilha.
Pois vamos lá. Começo com o óbvio: o Natal está chegando e os sinais mostram o espírito do tempo: sacolas cheias nos shoppings, trânsito intenso, irritação dos mais apressados, ruas cheias, a contraditar a expressão de que as luzes natalinas iluminam um tempo de paz e harmonia.
Haverá paz na era da competição? Não no campo da política, espaço de contendas e emboscadas, de ódio e vingança. Arengueiros de todos os calibres estão a postos, conquistando ou reconquistando o poder para abater adversários e aqueles que não comungam com seus interesses. Habitantes dos assentos nas arquibancadas da política procuram seus lugares nos estádios construídos por mandatários. O céu para uns, o inferno para outros. Pátria amada, Pátria desarmada, pregam os desafetos. Estocadas recíprocas.
A guerra não cede aos contendores. Cada qual tem balas no bornal. Uns, limpando a poeira, refazem imagens com a tintura das estações. Outros, procurando novo habitat, se refugiam nas dispersas ilhas do imenso arquipélago. Guerreiam para ganhar lugar na ilha principal, no centro do território. Lá onde só se respira poder.
Nos desvãos do inconsciente, a historinha alimenta predadores e suas caças. “Toda manhã na África, a gazela acorda. Ela sabe que precisa correr mais rápido que o mais rápido dos leões para sobreviver. Toda manhã na África um leão acorda. Ele sabe que precisa correr mais rápido que a mais lenta das gazelas senão morrerá de fome. Não importa se você é um leão ou uma gazela. Quando o sol nascer, comece a correr.”
Triste realidade. Nascer, crescer, amadurecer e lutar para sobreviver na corrida da vida, cumprir as leis, seguir os ditames, sob pena de ser engolido pelas garras ferozes do “homem (que) é o lobo do homem”, conforme apregoava Thomas Hobbes. É essa a cena que estamos vendo em terras do planeta, onde irmãos se tornam inimigos uns dos outros, vivendo um conflito pela conquista de territórios. Todos de um lado contra todos de outro.
O desânimo é o ânimo sem vontade. Como animar-se depois de uma tragédia que matou perto de 700 mil pessoas em nossas plagas? Que harmonia podemos construir vivendo um clima de final de ano em um país que viu sumir a alegria de milhões de famílias? A intensa gastronomia natalina pode saciar o apetite dos estômagos, mas não supre as carências da mente.
O olhar para a manjedoura, nas igrejas e nos lares cristãos, contempla a mãe, Maria, o pai, José, e o filho, o criador que nasceu para nos salvar. Mas o olhar vem acompanhado de aflição e angústia, sob a tênue esperança de um futuro menos doloroso.
Como salvar os seres que vivem sob o ódio, destilam o veneno da crueldade, depredam propriedades privadas e públicas, despindo o véu de sua humanidade? Onde estão o bucolismo dos tempos de outrora, a conversa nas calçadas, os passeios tranquilos nas tardes e na boquinha da noite? A memória dos nossos antepassados vai se perdendo na poeira do tempo, sufocada pelo turbilhão de barulhos e clamores da agitada vida urbana.
Resta como consolo a pequenina chama de nossos candieiros, uma fatia de crença de que o amanhã será melhor do que o ontem, o sinal de que a ciência avança, abrindo as gavetas de remédios e drogas capazes de estender o tempo de nossas vidas. Resta ouvir as palavras do velho Zaratustra, no alto da montanha, sobre a beleza da vida:
– Amo o que ama a sua virtude, porque a virtude é vontade de extinção e uma seta do desejo… Amo o que faz da sua virtude a sua tendência e o seu destino, pois assim, por sua virtude, quererá viver ainda e deixar de viver…. É tempo que o homem tenha um objetivo… É tempo que o homem cultive o germe da sua mais elevada esperança…. É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.
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