segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Pensamento do Dia

 


Nem conservador, nem progressista

Dá-se como certo que o Brasil é majoritariamente conservador e até moralista. Que repudia a descriminalização do aborto, o uso recreativo da maconha ou a união homoafetiva, questões associadas à progressistas. Uma visão distorcida que ganhou mais vigor nos tempos do ex Jair Bolsonaro. A realidade é bem outra. Como na política, há tempos polarizada, também nos costumes o Brasil é um país dividido ao meio.

Embora seja o quarto país que menos aprova a legalização do aborto entre as 29 nações incluídas na pesquisa Ipsos Global Views on Abortion 2023, divulgada em setembro, o Brasil registrou empate técnico entre os 43% contra e os 39% a favor do direito à interrupção da gravidez em qualquer circunstância. Considerando eventos específicos, o apoio ao aborto cresce, atingindo 70% quando a gravidez advém de estupro, 66% se a mãe corre risco de vida e 50% cravados se há chances de a criança nascer com sérios problemas de saúde, casos previstos parcialmente na legislação brasileira.

Em junho, o mesmo Instituto Ipsos divulgou a Global Advisor – LGBT+Pride 2023, realizada em 30 países, reunindo 22 mil entrevistas, mil delas com brasileiros. A pesquisa aponta que 51% são favoráveis ao casamento homoafetivo e 69% apoiam que casais do mesmo sexo possam adotar filhos. A margem de erro da Ipsos tanto para o direito ao aborto quanto para união homoafetiva é de 3,5 pontos percentuais.


A descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, cujo debate está em curso no Supremo e no Senado, é aprovada por 53% dos entrevistados pelo PoderData, em pesquisa realizada no final de setembro. No mesmo levantamento, 61% disseram ser contrários à liberação de todas as drogas, algo que nunca esteve em discussão no país. A margem de erro é de 2 pontos percentuais.

O porte de armas de fogo por civis também divide: 49% contra, 48% a favor, segundo a PoderData, em pesquisa realizada em julho de 2022. Já o DataSenado, em levantamento no início deste ano, mostra que 60% discordam de que a posse de armas aumentaria a segurança no Brasil.

A direita faz barulho com esses temas, mas as margens são tão apertadas que seus parlamentares preferem não colocá-los em propostas plebiscitárias. Ainda assim, conseguem encurralar a esquerda. Líderes conservadores, bolsonaristas à frente, batem no peito para pregar contra o direito ao aborto, a liberação da maconha e o “casamento gay”, título com falsa conotação religiosa que conferem aos direitos civis assegurados aos LGBTIA+, como se a luta fosse para que padres, pastores e rabinos consumassem a união homoafetiva.

Esbravejam como se falassem para uma maioria sólida, multiplicam bordões nas redes sociais e, pacientemente, vão colhendo êxitos. De acordo com a Ipsos, em apenas um ano a rejeição ao aborto em qualquer circunstância cresceu 9%.

Acuada por essa turma e pelo alarido insistente de que o Brasil é conservador por natureza – falácia que as pesquisas desmontam -, a ala progressista foge do debate. Nas campanhas eleitorais e no próprio Parlamento, seus líderes tergiversam ao serem indagados sobre essas questões. Dão respostas dúbias, entregam os pontos. Temem empunhar as bandeiras em que dizem crer. Um comportamento covarde, no mínimo estranho, para um grupamento que, recentemente, venceu importantes rounds no convencimento público.

O caso mais simbólico é o da educação domiciliar (homeschooling), um dos eixos da direita no mundo e no Brasil, encampada de corpo e alma pelo bolsonarismo. A campanha contrária foi tamanha que a pauta praticamente não saiu do lugar, sendo rejeitada por oito em cada dez brasileiros, de acordo com pesquisa Cesop/Unicamp e Instituto Datafolha, realizada em maio do ano passado. Mais: dos 2.090 entrevistados, 99,3% concordaram que ir à escola é importante para as crianças, e 90%, que as crianças têm o direito de frequentar a escola mesmo contra a vontade de seus pais.

A ação coordenada de educadores e políticos gerou uma rejeição tão forte que a direita “esqueceu” o tema nos escaninhos da Câmara, onde chegou a protagonizar debates ferrenhos.

Como se vê, é um país dividido. Sem maiorias para um lado ou outro, embaladas por autoritários e moralistas ou pelo viés religioso; por oportunistas e líderes escorregadios, por fé ou descrença. Sua equação é um desafio político: os brasileiros são mais progressistas do que a direita tenta fazer crer e mais conservadores do que a esquerda gostaria.

Descontrole do Estado

A crise na segurança pública é um problema tão grave quanto antigo das cidades brasileiras, mas a situação demonstra ter fugido completamente ao controle do Estado.

Não é segredo que há números da violência no Brasil compatíveis com os de uma guerra civil. Olhando friamente, o fuzilamento do grupo de médicos na orla da Barra da Tijuca é mais um entre as centenas de crimes horrorosos que engordam as estatísticas.

Eles estavam no lugar errado, na hora errada —como ocorre com milhares de brasileiros nas nossas comunidades. Inocentes mortos num campo de batalha comandado por facções criminosas que disputam territórios. Onde as forças policiais perderam, abriram mão ou nunca tiveram domínio, por razões diversas.


O diferencial é que a execução dos médicos escancarou que ninguém está seguro em lugar nenhum. O crime ocorreu em área nobre da capital fluminense —não nas periferias. Para completar, a União havia acabado de anunciar um plano emergencial de segurança para o RJ. Uma conjunção de elementos que, além da comoção, mobilizou as maiores autoridades do país.

Resta saber quando a sociedade brasileira finalmente vai despertar para o fato de que, quando o Estado renuncia à prerrogativa pública de preservação da ordem para proteção das pessoas e do patrimônio, conforme previsto na Constituição, todos ficam sujeitos ao caos e à desordem.

Se "não existe fórmula mágica, bala de prata, receita pronta para resolver o problema da segurança pública no Brasil", como disse o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, resta claro que a solução também não está no encarceramento em massa nem no uso indiscriminado da violência.

Pensar nos fatores sociais relacionados à criminalidade e investir em políticas públicas efetivas voltadas para educação, saúde, esporte, cultura e lazer parece uma boa maneira de começar a enfrentar o problema com profundidade.

O caminho do México

O tráfico de drogas contaminou, seriamente, a sociedade brasileira. Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador são exemplos gritantes do que acontece na cidade grande. Também Fortaleza, que é um hub internacional de empresas aéreas, sofre com os constantes tiroteios. E os estados do norte, na Amazônia, estão varejados pelos agentes das drogas. As ligações do Brasil com a Bolívia são corredores de transporte. A estrada asfaltada que une o estado do Acre, na cidade de Assis Brasil ao Peru é um caminho livre e desembaraçado.

A Venezuela, no governo Maduro, fecha os olhos para o tráfico. A produção da Colômbia escoa pelo país vizinho com destino aos Estados Unidos por meio de aviões, pequenos barcos e até submarinos rudimentares. O Suriname, uma das guianas, é, historicamente, ligado à Holanda. Existem voos comerciais para Amsterdã. As drogas viajam dos países produtores para aquele país e de lá seguem para o mercado holandês, onde a droga é livre. E depois invade os vizinhos europeus. Vez por outra a Força Aérea Brasileira intercepta algum pequeno avião carregado de maconha ou cocaína. Normalmente o piloto pousa em emergência numa estrada e foge.

Os principais produtores de cocaína e maconha são, na América do Sul, Colômbia, Bolívia e Peru. De lá partem os carregamentos. Mas o caminho mais curto para a Europa e África é por intermédio do Brasil. Isso explica a explosão da criminalidade no país. Mais da metade dos crimes são de responsabilidade de drogados. Filhos que matam pais, pais que matam filhos ou a mulher, as loucuras do dia a dia que estão se radicalizando nos últimos tempos se devem exclusivamente à droga. Aos consumidores dela que precisam de dinheiros para sustentar o vício. E aos grupos que distribuem o produto. Eles brigam entre si para obter posições mais favoráveis no comércio.



Na geopolítica das drogas, o Brasil se transformou em grande corredor do tráfico e grande consumidor. Isso provoca uma série de efeitos colaterais. Quanto mais segurança o traficante obtém, mais ele avança. Então, eles se organizam em grandes carteis, entram na política, elegem vereadores, deputados, gente mais graúda e passam a controlar grandes áreas. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, não existe Secretaria de Segurança. Os bicheiros, há muito tempo, se infiltraram na política. Depois vieram os traficantes. Numa terceira etapa os policiais se tornaram milicianos, começaram a vender proteção e outros produtos, como TV a cabo e gás para as comunidades. Quem não comprar, sofre.

Os especialistas estimam que o tráfico de drogas movimente algo em torno de US$ 900 bilhões ao ano, aproximadamente 35% do Produto Interno Bruto do Brasil, ou 1,5% do PIB mundial. É muito dinheiro. Os donos do tráfico, que não estão no Brasil, mas residem de maneira luxuosa em vários cantos do mundo, têm capacidade para subornar desde o guarda da esquina até as mais altas autoridades de um país. Nas democracias trôpegas da América Latina trata-se de enorme risco. Ao contrário do que os bolsonaristas proclamavam, a maior ameaça ao Brasil não vem dos comunistas, mas das máfias das drogas.

As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) tiveram a possibilidade de tomar o poder em Bogotá. Desistiram porque dá muito trabalho administrar um país. Mas seus comandantes chegaram a dominar extensas áreas e várias cidades do sul daquele país. As autoridades do Equador na fronteira com a Colômbia tinham dificuldades em dialogar com seus equivalentes no vizinho porque a região era dominada pelas FARC, que providenciavam meios para as comunidades viverem. Na verdade, as FARC administravam a região.

No Brasil, o tráfico de drogas movimenta cerca de R$19 bilhões por ano. Deste número R$12 bilhões seriam de maconha e R$5 bilhões, cocaína. Em 2015, o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas revelou que 7,7 dos brasileiros de 12 a 65 anos usaram maconha ao menos uma vez na vida e cocaína 3,1%. Além disso, 1,4 milhão de pessoas confirmaram ter usado crack em algum momento. Há, portanto, um grande e crescente mercado consumidor que paga o preço pedido pelo traficante.

O bárbaro assassinato dos médicos num quiosque na Barra da Tijuca, é emblemático. Aquele bairro carioca é uma espécie de capital das milícias, dominado por quadrilhas que substituem o poder público, falido e desorganizado. O governador, antigo cantor de músicas gospel, substituiu o anterior que foi impedido. Outros cinco governadores cariocas foram presos por corrupção. O governo federal precisa acordar para essa realidade. O Brasil está evoluindo no sentido dos traficantes de drogas do México, onde se organizaram em grandes cartéis. E dominam diversas regiões. Não é bom caminho.