sábado, 18 de abril de 2020

A distribuição da dor

Em artigo sobre a atual pandemia, Nick Paumgarten narrou a história de um capitalista que joga na Bolsa de Valores. O homem é esperto e descreveu sua última proeza. Ao perceber o ritmo de expansão do vírus na China, suspendeu as férias numa estação suíça de esqui, investiu firme em ações de uma fábrica de equipamentos médicos nos Estados Unidos, botou dinheiro em empresas cujas ações subiriam com a disseminação universal da doença, e se mandou para sua casa de campo, bem longe da cidade onde mora. No caminho para o autoconfinamento, comprou o que pôde de máscaras cirúrgicas e luvas para si mesmo e para a família — mulher e três filhos — dois bujões de oxigênio e uma sacola de cloroquina. A salvo, comentou que ficaria feliz e em segurança até o próximo mês de outubro, acompanhando pelo computador a valorização dos investimentos. Até o momento, seu lucro era de 2.000%. Tudo na perfeita paz, dentro da ordem, respeitando a lei.

Ainda há quem ouse dizer que estamos no mesmo barco. Como se sabe, há metáforas que iluminam, outras obscurecem. A do barco pertence ao segundo tipo. Flávia Oliveira colocou o dedo na ferida.

Se a tempestade é a mesma, as condições de seu enfrentamento são diversas, havendo barcos de diferentes tipos: dos poderosos navios de casco de ferro aos barquinhos de papel que podem afundar a qualquer momento. Sem contar os que nem barcos têm e boiam no mar revolto, agarrados a pedaços de madeira encontrados ao léu.

Este é o mundo que nos foi concedido viver.


Há um pouco mais de dez anos, aconteceu a crise econômica de 2008, suscitada pela especulação de títulos imobiliários no mercado estadunidense. Os governos e os bancos centrais intervieram com presteza e salvaram centenas de indústrias e financeiras à deriva, pela própria incúria e irresponsabilidade.

Argumentou-se então que tudo se justificava para salvar a sociedade do caos e defender os empregos das gentes. Aqui e ali ouviram-se vozes favoráveis a processar os principais especuladores. Para servir de exemplo. Era preciso colocar uma folha de parreira para cobrir aquelas vergonhas. Em vão. Não se tem notícia, salvo umas poucas falências, de punições aos responsáveis, cujo nomes e sobrenomes eram conhecidos. Quem pagou a conta, como de hábito, foi a sociedade, em particular os que vivem de salários, no chamado “processo de socialização das perdas”.

Ficou por isso mesmo. E tudo voltou ao que era dantes no quartel de Abrantes. A jogatina retomou os freios nos dentes. No controle, o espectro do mercado e os gênios das finanças, com seus inacreditáveis bônus e rendimentos, ditando os rumos. Estranhos gênios que, a cada dez anos, fazem fila, de pires nas mãos, implorando a ajuda do Estado. As desigualdades voltaram a ganhar ritmo, como demonstrou Thomas Piketty, baseado em evidências estatísticas.

A pandemia neste momento afunda de novo o mundo em crise aguda, com consequências ainda imprevisíveis. Alguém poderia objetar: quem é que poderia prever uma doença? Não só era possível prever, com base em antecedentes conhecidos, como previsões foram de fato formuladas por lideranças políticas e cientistas, mas desconsideradas. Seria viável, sim, lidar melhor com a tragédia, construindo e equipando hospitais, constituindo reservas, dotando as sociedades de indústrias capazes de produzir artigos indispensáveis, formando pessoal qualificado para segurar eventuais trancos que certamente viriam, pois foram anunciados, e vieram.

Estão aí agora, atormentando as gentes, exigindo novos trilhões para que os sobreviventes da pandemia possam continuar a viver.

Quem pagará a conta desta vez? Paumgarten fez uma melancólica e amarga reflexão: “Quando a Covid-19 recuar, deixará uma severa crise econômica. Mas, como no passado, algumas pessoas lucrarão”. Quanto à dor, será distribuída de forma desigual e injusta.

Estaremos condenados ao triunfo da injustiça e da esperteza? E se pudermos imaginar, como um antigo já disse, que as pessoas nem sempre aceitarão morrer calmamente?

Pensamento do Dia


Isso é Bolsonaro

É traço comum das análises sobre o Brasil atual buscar entender o que melhor caracterizaria Jair Bolsonaro e seu governo. Bolsonaro é efetivamente um personagem singular, minimamente letrado, um tanto tosco, que numa circunstância especialíssima chegou à Presidência da República. Não estaria errada essa descrição, mesmo reconhecendo sua insuficiência.

Dizer que ele representa os militares seria uma generalização absurda e um desprestígio da categoria. Os militares compõem uma camada intelectual de relevância incontestável para o Estado brasileiro. Como se sabe, Bolsonaro foi afastado do Exército por indisciplina. Tornou-se político profissional com votos da corporação militar por longos 28 anos. Como parlamentar e agora como presidente permanece um defensor das demandas dos militares – vide a reforma da Previdência. É certo que recheou o Ministério com muitos deles, o que não garantiu identidade absoluta entre o presidente e os militares convidados.

Não há novidade também na caracterização de Bolsonaro como representante da extrema direita. Não apenas ele, mas seus filhos – igualmente políticos profissionais, vale ressaltar – não escondem isso de ninguém, até mesmo as ligações internacionais com essa corrente política. Tal posição, distinta de outras correntes e personalidades desse campo, acabou por definir mais precisamente Bolsonaro como expressão de uma facção da direita que tem cultivado um comportamento fascistizante.


O presidente não abre mão de concentrar em si a narrativa e a estratégia de seu governo. Embora em ambas não haja um programa determinado, coerente e sistêmico, que ele faça questão de explicitar. Mas há uma ênfase digna de menção: a persona (o “mito”) sobrepõe-se ao governo e por isso a dimensão pessoal está sempre à frente da institucional, no limite do decoro. A pessoalização existe, porém, sem nenhum afeto, nem o maneirismo típico da nossa tradição ibero-americana. A Bolsonaro não interessa o savoir-faire da política, as gentilezas com outros atores, mesmo com possíveis aliados.

Ele modula seu comportamento pelo que entende ser o jogo duro do poder. E para isso adota o método do confronto permanente, pondo sempre em relevo as discrepâncias ideológicas no lugar das soluções para os problemas da Nação. A confrontação é essencial para sua estratégia de manter o apoio de parcela significativa do eleitorado, rumo à reeleição de 2022.

Tudo isso lhe garantiu a iniciativa política até aqui. Mas 2020 começou mal para ele e para todos nós. A divulgação do “pibinho” (1,1%) de 2019, a disparada do dólar, a fuga de investimentos e, por fim, o ingresso do Brasil na pandemia do covid-19 alteraram o cenário. A pandemia jogou Bolsonaro nas cordas, fazendo-o perder a iniciativa política. Em poucos dias deu mostras de faltar-lhe o chão e de que sua estratégia maior poderia estar comprometida.

Desde então as ações do presidente visam à recuperação da iniciativa perdida. Com parte da sua equipe contaminada pelo vírus, Bolsonaro lançou-se numa escalada desesperada: não hesitou em cumprimentar os poucos manifestantes que pediam o fechamento do Congresso e do STF. Em seguida, com declarações estapafúrdias, atacou os governadores que determinaram o isolamento social para conter o avanço da epidemia. Essa atitude produziu uma fratura na estrutura federativa do País, criando embate institucional, desorientação política, além de complicar o combate à pandemia.

Mesmo na defensiva, Bolsonaro tenta manter a opção por uma “guerra de movimento” definida desde a campanha e a posse, cujo objetivo é destruir a democracia da Carta Constitucional de 1988 e implantar um regime iliberal no Brasil. Essa espécie de “revolução reacionária” levada em fogo brando (sem violência aguda, até o momento) não pode parar até as eleições de 2022. É nela que Bolsonaro imagina consolidar sua legitimidade e impor ao País uma “nova hegemonia”, não mais com os valores e ideias da “esquerda”. Para ele 2022 é o turning point.

Mas até lá haverá muita turbulência. O certo é que, para confrontar o frágil reformismo liberal-democrático que marcou a trajetória do País desde o fim da ditadura, Bolsonaro não cederá à “guerra de posições”. Em sua avaliação, esse é um ambiente hostil. No limite, poderia fazê-lo, mas imagina que estaria compactuando com um modelo que, segundo ele, marcou os governos dos presidentes que o antecederam, com custos e problemas que não saberia gerenciar.

Diante da pandemia, Bolsonaro age com mão pesada: escanteia governadores e prefeitos, desafia orientações epidemiológicas, desestrutura a federação e tensiona ao limite a relação com o Congresso. Mas não ganha nenhuma posição. Busca resgatar sua “guerra de movimento” e colocar nas ruas os que o apoiam incondicionalmente, pouco se importando em ver o País à beira da conflagração.

Com a recessão às portas, o que pode comprometer sua reeleição, Bolsonaro visa a combater as lideranças que ameaçam seu caminho rumo a 2022. Isso é Bolsonaro.

Governança irônica



Tudo sob controle. Não sabemos de quem
Hamilton Mourão, vice-presidente

A ironia dos trilhões gastos em armas incapazes de matar um vírus e de nos fazer felizes

São quase dois trilhões de dólares (R$ 10 trilhões) o que as nações gastam a cada ano em armamento de guerra cada vez mais mortífero e sofisticado. Para que, se depois chega um vírus invisível contra o qual nem mesmo a bomba atômica adianta? Para que se esses arsenais não construirão um mundo mais feliz e mais justo?

O drama que a sociedade está vivendo, desconcertada, assustada e impotente diante desse vírus, é uma boa lição de humildade às nações mais poderosas. Pensemos somente nos Estados Unidos da América com um Presidente guerreiro como Donald Trump incapaz de parar o vírus. A honradez de um povo e sua segurança não passam pelas armas de guerra. E personagens arrogantes como Trump que são exemplos de discórdia e que entram em guerra até com a OMS em um momento tão doloroso à humanidade vão na contramão do sentir da comunidade mundial.

Na América que se sente poderosa e invulnerável por ter as armas mais sofisticadas da terra, um simples vírus acaba de deixar sem trabalho e comida 22 milhões de pessoas.

Se somente uma parte dessa barbaridade gasta a cada ano em fabricar novas armas fosse empregada em melhorar a saúde e pesquisa médico-científica, e em engendrar uma melhor justiça social, hoje as maiores potências armamentistas não se sentiriam tão impotentes e desnorteadas com o novo vírus.

Desfile fúnebre dos caminhões militares levando
mortos do coronavírus em Bergamo (Itália) 
Do papa Francisco rezando tristemente sozinho na Basílica de São Pedro vazia, aos filósofos e sociólogos de todos os credos políticos e religiosos estão se mobilizando para que essa tragédia que está castigando a arrogância e a cobiça humana sirva como alerta a uma civilização que se sentia até ontem tão forte e segura com suas armas de guerra.

Se não fosse trágico, porque cria dor e morte, seria até cômico que um vírus seja capaz de se vingar da suposta onipotência do Homo sapiens.

A pergunta que hoje se fazem os pensadores em todo o mundo é se essa lição de humildade a que o coronavírus está nos submetendo servirá pelo menos para nos fazer repensar nosso modo de vida até hoje enlouquecido pelo consumismo e o deus do lucro a qualquer custo. Se servirá para repensar nossas estruturas atuais de poder injustas e classistas que condenam milhões de pessoas à pobreza e até à fome e à insegurança.

Ou se, pelo contrário, sairemos desse inferno ainda mais orgulhosos deixando no esquecimento o grito dos sem voz porque foi sequestrada pelos novos poderosos. Esses poderosos que poderiam sair com mais vontade de dominar o planeta voltando a apostar mais na força das armas e do dinheiro do que na regeneração de uma nova esperança universal.

Nunca é tarde, entretanto. E esse teste inédito para nossa geração pelo global e o imponderável também pode fazer o milagre de despertar uma nova consciência social de nossa fragilidade e onipotência. Pode servir para recriar juntos uma nova civilização menos baseada no poder e na cobiça de um punhado de pessoas que tiranizam a maioria.

E para tomar consciência de que todos, sem distinções classistas, somos vulneráveis. Que precisamos nos armar de maior compreensão com a dor alheia. Que as melhores e mais eficazes armas são as das mãos e corações abertos à solidariedade, à compaixão e à procura da paz a todos.

Melhor um mundo com mais medo das armas invisíveis e imponderáveis da natureza, a que estamos maltratando e humilhando, do que a arrogância de nos sentir donos das lojas de armas fabricadas com o sangue dos que sempre pagam a conta da dor.

Que essa tragédia se transforme na humildade de nos saber todos tão insignificantes que um simples vírus desarticula o mundo.

Nada pode ser pior para nossa civilização do que não saber entender a lição que a natureza tão mortificada e depredada está nos impondo.

Seria uma piada se os que até hoje dominaram o mundo com um capitalismo assassino despertassem do susto da pandemia como se nada houvesse ocorrido.

O que a humanidade está vivendo nesse momento não é um “sono ruim em uma pousada ruim”, na expressão de Cervantes em Dom Quixote, e sim uma chamada de atenção para nos despertar de nosso sonho imoral de que os pobres seguirão aceitando continuar sendo carne fácil de resignação.

A dor e a raiva dos sempre humilhados e desprezado pelos que sentem-se amos de todos porque são os donos das armas de morte, podem se transformar em um novo vírus que derrubará seus sonhos de onipotência.

Ou os poderosos pensam que os pobres não acabarão um dia se cansando de se conformar pacificamente com as migalhas que caem de suas mesas?

A tragédia do coronavírus pode servir, como última lição, aos que decidiram que eles são os donos da vida dos outros, entendam que querer perpetuar essa distância entre saciados e famintos pode também acabar sepultando a eles.

Ainda temos tempo. Que esse retiro forçado de todos nos sirva para refletir que, ou aceitamos no futuro viver com mais simplicidade, sem consumismos desenfreados, sem nos importar de que existam pessoas deixadas à sua própria sorte, ou todos podemos acabar vítimas dos imponderáveis da natureza que possui um código de comportamento que não é o nosso.

Se não entendermos a gravidade simbólica dessa pandemia teremos saído dela todos mortos física, social e até espiritualmente.

O vírus nos fez ver que estamos em um fim de época, de revisão do conceito de sociedade, algo como foi o fim da escravidão.

Esse teste nos obriga a repensar conceitos que acreditávamos imutáveis e intocáveis como a divisão de classes, o sentido da globalidade e das fronteiras, o injusto sistema financeiro. E até da moeda e do dinheiro. Também nos obrigará a uma revisão da cultura e da religião.

Se nada mudar depois dessa convulsão teremos perdido a oportunidade de começar a ensaiar juntos um modo diferente de ver e organizar um mundo em que exista um lugar digno para todos.

Mas há uma estrela que brilha no céu ofuscado desse momento. Cresce o número de pessoas que se comovem com a dor alheia e oferecem exemplos de generosidade inédita em nossa sociedade egoísta.

Duas pequenas histórias me emocionaram e me doeram ao mesmo tempo: a primeira na Itália, onde um padre no hospital recusou o respirador para oferecê-lo a alguém mais jovem. A segunda, a mãe brasileira doente junto com o filho de 24 anos. Ela deixou ir antes ao hospital lotado o filho que acabou morrendo e a mãe que por fim se salvou sequer teve o consolo de poder se despedir de seu filho. São fatos reais e sentimentos de empatia que estão despertando o melhor que temos dentro de nós e que o turbilhão da vida havia escondido.

É o rosto luminoso e regenerador do ser humano que a tragédia está resgatando e nos diz que a esperança de um mundo mais humano e compassivo ainda não morreu.

Ou será utopia? Talvez, mas a verdade é que sem uma adição de esperança e nas mãos somente dos profetas do pessimismo, o abismo de dor que nos espera será muito maior.

Responsabilidade intransferível

O governo de São Paulo anunciou ontem a prorrogação da quarentena no Estado. O fechamento do comércio e de serviços não essenciais, que poderia ser suspenso no próximo dia 22 de abril, agora se estenderá até o dia 10 de maio. Segundo o governador João Doria, a medida é necessária em razão do iminente colapso do sistema hospitalar público ante a pandemia de covid-19. Em outros Estados, esse colapso já ocorreu.

Ou seja, o País começa a entrar na fase aguda da crise, com perspectivas funestas, o que demanda a ação rápida, decisiva e inteligente das autoridades no sentido de preservar vidas, mesmo que isso prejudique a economia – afinal, empresas podem superar prejuízos e trabalhadores podem recuperar empregos, mas, como é terrivelmente óbvio, mortos não ressuscitam.


Nenhum esforço regional, por mais competente que seja, é capaz de substituir a liderança federal no combate à pandemia. Por isso, a responsabilidade primária, irrenunciável e intransferível pela condução do País na crise é do presidente da República, Jair Bolsonaro, e ele terá de arcar com o peso de suas decisões sobre a vida de todos os cidadãos. O novo ministro da Saúde, Nelson Teich, assumiu essa mesma responsabilidade quando aceitou o cargo, e por isso mesmo o País acompanhou, atento, suas primeiras palavras, na esperança de encontrar ali um compromisso cristalino com a ciência e o bom senso.

O que se viu até aqui, porém, foi um ministro ciente de que ocupa um cargo político, a ele designado por questões exclusivamente políticas. Tratou de equilibrar-se entre a demanda de seu chefe para determinar o fim do isolamento social e o fato incontornável de que esse isolamento é a única forma, hoje, de enfrentar a pandemia.

O ministro Teich se diz em “completo alinhamento” com o presidente Bolsonaro, que considera exageradas as medidas de isolamento social, mas dias antes de ser nomeado publicou um artigo em que defendeu o isolamento como “a melhor estratégia no momento”. Ou seja: enquanto era apenas um profissional de saúde, o doutor Teich reafirmava aquilo que todos os gestores de saúde sabem; quando se tornou ministro, assumiu o típico discurso político – que muito fala para nada dizer.

Para começar, o novo ministro declarou que é preciso “conhecer melhor” a doença a fim de criar estratégias para a volta à normalidade. Ora, é exatamente isso o que o mundo inteiro está tentando fazer há meses, ainda sem resultados. Segundo o ministro Teich, será necessário elaborar um amplo “programa de testes”, embora o Brasil esteja muito atrasado na aplicação desses exames, por variados motivos, e nada indica que essa situação mudará num futuro previsível.

Para piorar, Bolsonaro mandou suspender uma iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia, em parceria com operadoras de celular, para monitorar o fluxo de pessoas pelo País e assim identificar o nível de adesão à quarentena. Alegando um risco à privacidade inexistente nesse caso, o presidente dificulta a produção de informações necessárias para preparar o sistema de saúde. Desse jeito fica difícil “conhecer melhor” a doença, como quer o ministro da Saúde.

Assim, justamente no momento em que o País mais precisa de determinação e rumo, ante a expansão exponencial da pandemia, o novo ministro da Saúde tem a oferecer apenas palavras ditas sob medida para satisfazer Bolsonaro, que só confia naqueles que o adulam e cultiva antagonistas como método de governança.

A missão do ministro Teich já não seria fácil de qualquer maneira, pois se está diante de um dos maiores desafios globais de saúde pública em um século. Mas essa missão será ainda mais árdua porque é preciso lidar também com um presidente que não acredita em resultados eleitorais chancelados pela Justiça Eleitoral, tampouco nos números da devastação na Amazônia, mas diz acreditar piamente na eficácia de um remédio contra a covid-19 que ainda está em testes; e esse presidente, ademais, encara o novo coronavírus não como uma emergência de saúde pública, mas como arma invisível usada por seus supostos inimigos – dos governadores de Estado ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia – para derrubá-lo.

Temos, no entanto, grandes esperanças de que o ministro Nelson Teich saberá ultrapassar todos os obstáculos que contra ele já se erguem no caminho da superação desta crise global.

A síndrome de Caim

A demissão do Ministro Mandetta ocorreu na segunda-feira. O ritual consumado confirma: a teocracia é o novo sistema de governo brasileiro, fundamentado na encarnação da divindade no governante. O Presidente se acha investido nesses poderes.

Primeiro sinal: o candidato se apresentou como Salvador/Messias, eleito por parcela do eleitorado que acreditou e outra que votou no “menos pior”.

Segundo sinal aconteceu quando o candidato sofreu grave atentado. Sobreviveu: milagre e predestinação.

Terceiro sinal veio de uma atitude de fé respeitável: utilizar o jejum e a oração como remédios para matar um vírus ainda não vencido pela ciência. Trata-se de gesto de solidariedade humana que deve ficar circunscrito à religiosidade individual.

Quarto sinal: o chefe de Estado, o líder tem o dever de, no exercício do poder, pacificar, conciliar e formar consensos, com vistas no futuro do País. Mas não é Profeta. Nem tem o dom da Graça para conduzir o povo à Terra Prometida.


No entanto, o Presidente revelou aos olhos de uma nação perplexa que, ao longo de quinze meses, gastou tempo, energia e confiança ao criar conflitos pessoais, nacionais, institucionais e internacionais. Sem contar com o clima permanente de beligerância contra inimigos diabólicos, imaginários, e agora, invisíveis.

Ressalte-se, ainda, que a narrativa de Mito não se confunde com os personagens simbólicos dos povos e sim, literalmente, com a mentira que se apropria dos seres humanos como enfermidade: a mitomania.

Mito, o poeta Fernando Pessoa define como “o nada que é tudo”.

O quinto sinal vem da Síndrome de Caim que, na narrativa bíblica, mata seu irmão Abel por inveja, levando às últimas consequências a frustração do desejo de ser reconhecido pelos atributos de sua própria vítima.

O destino de Mandetta, o herege, estava selado: arder nas fogueiras inquisitoriais pelas suas reconhecidas virtudes e não pelas suas possíveis falhas. A propósito, a mais grave falha de Mandetta foi conduzir com acertos, sensatez, racionalidade e fraternidade, a tarefa gigantesca de salvar o máximo de vidas, ameaçadas por uma calamidade mundial. Mal sabia o Ministro da Saúde que estaria cometendo um crime imperdoável, aos olhos da presidência: tornou-se admirado pela população. Para isso, não há perdão.

Ministros, o recado está dado. Cuidado com a avaliação das pesquisas de opinião: o teto é a mediocridade turbinada por uma personalidade a merecer devida atenção dos especialistas em patologias comportamentais.  

Brasil e seu messias


Solidariedade e apoio mútuo d. C.

O aspeto mais comovente desta crise é o florescer da sociedade solidária no canteiro de uma cultura contemporânea marcadamente individualista. Do dia para a noite, promove-se, como que por instinto coletivo, um espírito universal de apoio aos mais fracos, cuidado entre gerações, de atenção ao outro, ao doente, ao vizinho do lado. Sem hesitar, assumimos o sacrifício global em nome da proteção dos mais frágeis e dispomo-nos a arcar, todos, com as consequências.

A mudança de comportamentos leva geralmente tempo, mas o impulso solidário civil foi imediato: de prédios onde os vizinhos não se conheciam, brotaram movimentos para proteger os mais velhos das saídas para compras e farmácia. Nas famílias disfuncionais, telefonaram-se parentes que se organizam em tempo recorde para pôr os avós a salvo. Em Itália – logo que a catástrofe se impôs – ouviram-se vozes que cantavam à varanda, tentando fazer com que a esperança fosse a última a morrer. Nas redes sociais, surgem movimentos para proteger os mais pobres, assim como os direitos de quem não tem casa e os de quem está para ficar sem ela. Criam-se campanhas de donativos e crowdfunding. Reconhecendo o papel das artes na saúde mental coletiva,

músicos e agentes dispõem-se a transmitir concertos grátis, em livestream, apelando a que fiquemos em casa. Museus como o Louvre, o Hermitage, o Metropolitan Museum of Art ou a Galeria Uffizi, abrem portas online a quem queira espreitar coleções. Tudo isto num estalar de dedos. Aparentemente, o pânico da doença que se alastra pelo contacto com os outros faz com que passemos a pensar mais neles. Já são vários os filósofos, psicólogos e sociólogos a escrever sobre isto.


No plano político, será interessante ver como, da esquerda à direita, o apelo consensual é, em situação de emergência, a mais Estado Social (mais saúde pública, apoios, intervenção social, regulação da economia) e cuidado com o próximo. No plano europeu, a discussão em torno de como a UE vai gerir esta crise parece evidenciar, aos olhos do cidadão-comum, a importância de um bloco justo, humano e solidário, que honra os valores basilares. A indignação face às infelizes declarações do ministro das finanças holandês veio dar sinais de um novo tempo que conserva bem viva a memória da Europa austera, da troika obscura, ineficaz e castigadora dos mais pobres – como até Christine Lagarde (então presidente do FMI) acabou por admitir – e se recusa a repetir a dose. Não estamos, europeus, dispostos a tolerar as mesmas desumanidades. Num cenário em que Portugal bateu, ainda há meses, o recorde de abstenção nas eleições para o Parlamento Europeu –apenas 31 em cada 100 portugueses com direito a fazê-lo foram votar – será de acreditar que, se as eleições fossem este mês, mais pessoas quereriam saber? Poderá este momento resgatar o sentimento cívico, de cidadão europeu, nacional, mundial? Eric Klinenberg, diretor do Institute for Public Knowledge da Universidade de Nova Iorque, estima que a pandemia possa ser o fim do nosso romance com a sociedade de mercado híper-individualista, por expor a fragilidade de um sistema económico assente no pensamento individual. Ao mesmo tempo, situações como esta parecem ajudar a evidenciar o peso da política na vida de todos: aspiramos a uma sociedade mais culta e consciente perante as filas para a ponte 25 de Abril – aspirando, assim, a mais investimento em cultura e educação -, sonhamos com mais valorização da ciência e saúde enquanto aplaudimos, todos juntos, à varanda – sonhando, assim, com mais investimento na saúde e investigação científica – e pedimos mais humanismo e pensamento coletivo – pedindo, com isso, um sistema bem longe do “cada um por si” neoliberal global. Quando o medo toca às portas todas, compreendemos instantaneamente aqueles que fogem, aqueles que temem e aqueles que lutam, mostrando que, afinal, sabemos todos fazê-lo maravilhosamente. Seremos capazes de levar isto connosco para o futuro?

Não sabemos quanto tempo durará a crise, mas sabemos que será profundamente dura e difícil para todos. Resta-nos tentar garantir que aprendemos com ela.

Aviso internacional

Gostaria de agradecer ao ministro [Mandetta] pelo serviço dele ao povo. É essencial que não só o Brasil mas todos os governos tomem decisões baseadas em evidências. Todos temos o dever de proteger nossas populações mais vulneráveis
Michael Ryan, diretor-executivo da Organização Mundial de Saúde (OMS)

Não podemos deixar a periferia à própria sorte na crise do coronavírus

O coronavírus restaurou um senso de igualdade entre as pessoas ao salientar o que temos em comum: a fragilidade humana. De um ponto de vista abstrato, faz sentido. Materialmente, no entanto, o que se observa é que a covid-19 vem exacerbando desigualdades. Enquanto as vítimas de áreas abastadas surgem aos poucos e dispersas, por negligência à quarentena, nas periferias o povo se vê em uma guerra em que dois soldados de uma mesma equipe podem acabar morrendo dentro de um mesmo quarto.

Muitos já desistiram do presidente, mas nem mesmo os governadores e prefeitos mais dedicados a vencer essa guerra conseguiram oferecer soluções que deem conta da realidade desigual, complexa e bastante particular de nosso país.

O problema é evidente: enquanto observamos bairros nobres parados, com a quase totalidade de seus moradores confinados em casa, muitas das favelas do país notaram apenas uma pequena redução em suas atividades. Isso se dá, ao menos em parte, porque 47% dos trabalhadores destas comunidades são autônomos e outros 8% informais. Para eles, parar de trabalhar significa abdicar de sua renda, decisão que a imensa maioria não pode se dar ao luxo de tomar. De acordo com pesquisa do Data Favela, 72% dos residentes dessas comunidades não têm reservas de dinheiro o suficiente para manter seu já baixo padrão de vida por sequer uma semana.


Se a poupança dos moradores das favelas é insuficiente para sustentar seus custos de vida habituais, que dirá então para arcar com as despesas adicionais que estão sendo impostas em decorrência da pandemia. Além de maiores gastos com remédios e produtos de higiene, muitos estão tendo que financiar refeições extras para seus filhos, que antes se alimentavam nas escolas. Há casos, ainda, de pais que, sem poder parar de trabalhar para cuidar das crianças em casa, estão tendo que custear creches particulares, uma vez que as públicas foram paralisadas.

Colocar luz sobre essa realidade não visa concordar com o ideia que chegou a ser defendida por nosso desastroso presidente de que escolas e creches públicas deveriam seguir funcionando. Muito menos sustentar que não há nada a ser feito para a proteção da população a não ser deixar que aqueles que precisam de renda sigam trabalhando. Tais absurdos acarretariam na disseminação massiva da doença, potencializada pela limitação dos equipamentos de saúde, falta de saneamento básico, abastecimento de água intermitente e precariedade das condições de moradia que assolam as favelas.

Para se ter uma ideia, em São Paulo, bairros periféricos como Brasilândia e Capão Redondo possuem menos de 0,05 leitos hospitalares por mil habitantes, enquanto em bairros centrais como Bela Vista e Jardins esse número é maior do que 30 por mil habitantes. Adotar a lógica do laissez-faire nas comunidades periféricas seria homicida.

É necessário, portanto, pensar em soluções que conversem com a realidade das favelas. O projeto da Renda Básica Emergencial, que entrou em vigor esta semana, é, sem dúvida, um grande avanço na direção correta. Vale ressaltar, no entanto, que algumas dificuldades na obtenção do auxílio evidenciam que ainda há certo descompasso entre nossos governantes e a realidade das periferias. Um fato que chama atenção, por exemplo, é o de a forma preferencial de cadastro para o recebimento do benefício ser online, em um país no qual cerca de 20% da população não tem acesso à Internet em seus domicílios. De forma, geral, contudo, a Renda Básica Emergencial parece ser a solução mais eficiente de garantir que os moradores das periferias fiquem seguros em suas casas, protegendo a si e às suas comunidades.

Há, porém, ainda muito a ser feito. Além da garantia de renda, são necessárias respostas a outros problemas que vêm sendo enfrentados pelas favelas e que tendem a intensificar a crise. A garantia de acesso à água corrente, a distribuição de produtos de higiene e alimentos dentro da própria comunidade, evitando deslocamentos desnecessários, e a reserva de quartos de hotel para pessoas pertencentes a grupos de risco que não podem ficar isoladas em suas próprias casas são apenas algumas das soluções que precisam começar a avançar para garantir segurança às comunidades periféricas.

Colocar em prática todas elas, é claro, trará custos significativos ao Estado. Contudo, se o aumento de gastos, até ano passado, parecia imprudente, hoje ele é tido como única solução possível pela maioria da população e dos economistas. Mais absurdo que aumentar despesas, nesse momento, seria acreditar que as soluções, até agora propostas para o centro, servirão à periferia, largando as favelas à própria sorte e entregando as periferias das grandes cidades, de bandeja, para um doloroso destino.
Samuel Emílio, embaixador do Teach For All no Brasil e Fellow do Programa ProLíder, do Guerreiros Sem Armas e da Arymax

Vamos lá, Leitor, aperte o cinto e abrace a boia

Desculpe, Leitor, a nota é curta como curtíssima é minha paciência com esse governo sem eira nem beira: despreparado, desestruturado, sem cultura, sem educação. Um governo que vive exigindo que o levem a sério, que pede por respeito, que se diz ignorado.

Mas que tem uma qualidade: é sincero. Bolsonaro se declara despreparado para o cargo!


Ele está certo. Não tem nenhuma qualificação para o cargo. Assim como não teve para prosseguir na carreira militar e como não teve nenhum brilho na carreira parlamentar. Aos 65 anos, ainda está, tal qual um adolescente, em busca da rota que deve seguir. Talvez o motivo seja este: preocupado em orientar e cuidar dos filhos, esqueceu de cuidar de si e de sua vida.

No excelente artigo de Juan Arias, do El Pais, “Bolsonaro se isola obcecado por seu messianismo perigoso”, transcrito no Blog do Noblat, li que “o Brasil vive um daqueles momentos históricos em que um erro de cálculo pode arrastar o país para uma aventura da qual um dia terá de se arrepender”.



Temo que esse momento histórico acabe de acontecer. Trocar o Ministro da Saúde quando ainda estamos no início de uma pandemia que vem matando milhares de pessoas no mundo inteiro, foi um erro de cálculo que assustou-nos a todos. Luis Henrique Mandetta conseguiu, por obra e graça de seu modo firme, educado e culto de falar, convencer o Brasil, de norte a sul, da única arma poderosa que um país despreparado como o Brasil tem: o isolamento social.

Em que o ministro errou a ponto de levar o presidente da República a querer demití-lo? Ele só cometeu um erro. Foi tão correto, inteligente, preparado e dedicado ao posto que ocupava que despertou nos brasileiros uma admiração incomensurável. Foi o que bastou para despertar o ciúme e a inveja do inseguro presidente que sentiu ameaçada pelo dr. Mandetta sua ambicionada reeleição em 2022.

Coitado. É duro, muito duro, quando se é psicologicamente fraco como Bolsonaro, sofrer por ciúmes. Ainda mais quando a reeleição é sua única ambição, e sua segurança, pois nela ele apoia o continuado poder dos zeros, seus filhos que, sem o pai, não são nada.

Pobre Brasil. Acaba de trocar o piloto experiente por um co-piloto inexperiente, com o avião com o tanque quase vazio. O que será que vai nos acontecer?
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa