domingo, 28 de março de 2021

Pra frente Brasil

 


Com suas obsessões e mentiras, Bolsonaro está ficando sozinho

Seria uma reunião dos chefes dos três Poderes para tratar da pandemia, pois o número de mortos havia passado dos 300 mil. Foi uma palhaçada típica das marquetagens oficiais. A encenação tinha a ver com o Executivo, e só com ele. Os outros dois Poderes nunca se meteram com a cloroquina nem com a “gripezinha”. Além disso, a presença do ministro Luiz Fux na fotografia era meramente simbólica.

Bolsonaro levou para o encontro alguns de seus ministros e governadores amigos. Ao fim da reunião, anunciou a formação de comitê para tratar da pandemia e delegou ao presidente do Senado a coordenação do trabalho com os governadores.

Confundiu cloroquina com cloro de piscina. O presidente do Senado não tem mandato nem jurisdição para tratar de um assunto que é só do Executivo. Se isso fosse pouco, em março do ano passado, quando a Covid havia matado só uma pessoa, Bolsonaro criou um comitê para assessorá-lo diante da pandemia. Foi entregue ao chefe da Casa Civil, general Braga Netto. Deu em nada e sumiu. No dia 22 de março, quando a pandemia matou 1.383 pessoas, ele tirou férias.

O evento de quarta-feira tinha tudo para dar errado, e horas depois o presidente da Câmara respondeu:

“Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar: não vamos continuar aqui votando e seguindo um protocolo legislativo com o compromisso de não errar com o país se, fora daqui, erros primários, erros desnecessários, erros inúteis, erros que que são muito menores do que os acertos cometidos continuarem a serem praticados.”

(...)

“Os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais. Muitas vezes são aplicados quando a espiral de erros de avaliação se torna uma escala geométrica incontrolável. Não é esta a intenção desta presidência. Preferimos que as atuais anomalias se curem por si mesmas, frutos da autocrítica, do instinto de sobrevivência, da sabedoria, da inteligência emocional e da capacidade política.”

Como ensinou Guimarães Rosa: “Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão”. Com suas obsessões e mentiras, Bolsonaro está ficando sozinho. É como gosta e como sempre esteve, desde quando era um capitão bagunceiro e transmutou-se num político irrelevante. Essa condição vai bem para a pessoa de Bolsonaro, mas está arruinando o país.

De novo, Guimarães Rosa avisou: “O Diabo na rua, no meio do redemoinho...”

Altos e baixos

Entramos numa fase em que até as palavras começam a perder oxigênio. A indignação nacional represada pela Covid-19 faz nascer uma sensação de atrofia verbal. Chegamos ao estágio em que a voz de todo um Brasil condenado à própria sorte/morte precisa de um empurrão para se manter vivo. Por enquanto, apenas a curta associação de dois vocábulos — Bolsonaro + genocida —mantém intacto seu poder de síntese para as gerações futuras.

Esta foi mais uma semana montanha-russa. As esperanças que dispararam com o anúncio de duas possíveis vacinas nacionais tiveram de conviver com dados abissais. Neste ano 1 de pandemia, a terra brasileira se viu escavada para abrigar seus primeiros 305 mil mortos de Covid-19. Haverá muitos mais. Os que até agora escaparam convivem com o peito sobressaltado pela necessidade de se atualizar com alarmes novos. Nos primórdios da pandemia, havia a falta de máscaras para a população e da proteção inadequada para os agentes de saúde. Houve escassez de leitos hospitalares, de respiradores, houve a multiplicação de covas-relâmpago. Depois veio a constatação da vacinação tardia, a conta-gotas, de leitos transbordantes também em enfermarias, do criminoso esgotamento do oxigênio hospitalar em Manaus, da iminente falta de kits de entubação em todo o território nacional. Por fim, chegamos à real ameaça de colapso dos próprios profissionais de saúde — sem que nenhuma das carências anteriores esteja dominada.


Tome-se o caso da Santa Casa de Misericórdia de São Carlos, cidade de 250 mil habitantes do interior de São Paulo. Na quinta feira, reportou Ana Letícia Leão no GLOBO, à instituição só restavam kits de entubação para as 48 horas seguintes. O atendimento na UTI teve de ser suspenso, um apelo de transferência de 60 pacientes foi encaminhado à central estadual, e 27 técnicos de enfermagem e enfermeiros pediam demissão. O caso leva a pensar em condenados à morte na acepção convencional do termo.

Nos Estados Unidos, a pena de morte foi restabelecida em 1976 após um hiato de quatro anos, à condição de que fosse executada de forma menos bárbara do que a forca ou a cadeira elétrica. O Estado do Texas, eterno campeão na modalidade, introduziu então um método de mascarar a violência da execução, tornando-a mais “higiênica”: a injeção sequencial de três drogas que levam a óbito. Em princípio, seria indolor. Afivelado numa maca em recinto de aspecto hospitalar, o condenado recebe duas sondas em cada braço. A outra extremidade dos fios dessas sondas fica numa saleta contígua, longe da vista das testemunhas obrigatórias por lei. Ali, dois enfermeiros voluntários acionam as seringas na sequência indicada (o Conselho Americano de Anestesiologia proíbe a participação de seus filiados): primeiro um sedativo, depois um bloqueador neuromuscular, por fim a dose de cloreto de potássio para cessar o funcionamento cardíaco do “paciente”.

Em tese, o procedimento não é “nem cruel nem incomum”, como manda a Oitava Emenda da Constituição americana. Só que nem sempre tem sido assim. À medida que a pena capital foi sendo varrida das nações civilizadas, que passaram da abolição à condenação da prática, a União Europeia passou a proibir os laboratórios dos países-membros de vender esses insumos à Justiça criminal americana. Resultado: o coquetel letal original teve de ser substituído por alternativas locais e mambembes, resultando em procedimentos muitas vezes sombrios. O pior deles ocorreu em 2014, quando o condenado Joseph Wood teve de receber 15 injeções, sofreu 640 microconvulsões e viveu duas horas de suplício antes de poder morrer.

Em comum entre a aplicação do coquetel da morte nos EUA e o recurso para salvar vidas de brasileiros necessitados de entubação, apenas os dois ingredientes cruciais que aliviam a agonia: sedativos e o bloqueador neuromuscular. Na ausência de uns ou outro, o suplício físico de quem vai morrer ou de quem espera viver é semelhante. A diferença maior está no estender dos braços para a injeção. A maioria dos condenados à morte teve tempo para amadurecer seu medo, pois passou em média mais de 10 anos em cela solitária. O infectado em estado grave pela Covid-19 não teve nenhum preparo para se conciliar com o medo de não mais acordar.

Algumas notícias animadoras vez por outra amenizam a montanha-russa diária do brasileiro. Na sexta-feira, a cidade paulista de Araraquara pôde anunciar zero morte de Covid-19 nas 24 horas anteriores, graças ao radical lockdown de 20 dias decretado pelo prefeito petista Edinho Silva. Também foi merecedor de alívio o comunicado da criação de uma nova vacina contra a Covid, a Butanvac, com grife do Instituto Butantan e promessas de entrega ainda para este ano. Algumas horas mais tarde, o anúncio da estreia de uma segunda vacina iminente, a Versalume, impulsionada pelo governo federal, ajudou a temperar a escalada de 3.650 mortos nas 24 horas anteriores. Os testes clínicos em humanos de ambas ainda não foram iniciados, e nesta corrida prevalece a disputa política entre Brasília e a São Paulo de João Doria. Não importa. É uma arrancada.

A única constante a temer é a mente de Jair Bolsonaro, que continua congelada criogenicamente.

A raiz do mal

Bolsonaro quase me matou em 5 de outubro de 2018.

A dois dias do primeiro turno das eleições presidenciais, bastante tenso com a possibilidade de o candidato da extrema-direita vencer os dois turnos, tive um enfarte agudo do miocárdio.

Aos amigos e ao colunista Ancelmo Góis, de O Globo, esclareci que sofrera, na verdade, um “bolsonaro agudo do miocárdio”. Ninguém contestou, nem duvidou. Uma semana e três stents depois, já estava em casa, pronto para o segundo turno, cujo trágico desfecho, felizmente, não me levou de volta ao hospital.

A simples ideia de ouvir “o presidente Jair Bolsonaro” desafiava minhas coronárias e alentava minha crença na Primeira Lei de Murphy. Se algo pode dar errado, certo não dará.

Imaginar na presidência da República aquele deputado do baixo clero, inapto, demagogo, fanfarrão, que nada de útil ou relevante fizera em quase três décadas de politicagem, era algo que me soava tão absurdo e inimaginável quanto William Bonner noticiar que Trump restaurara a monarquia nos EUA e agora era rei, ou que Fernanda Montenegro aceitara participar do próximo BBB.


Parecia-me então que, tão ou mais duro do que metabolizar a presença do ex-paraquedista na presidência, seria vê-lo a toda hora na TV, a proferir asneiras com aquela inflexão vulgar de chefe de torcida de futebol: a fala em staccato para disfarçar a espessa ignorância, o tatibitate de um espírito tosco, inteiramente despreparado para o cargo a que o oportunismo político e a insensatez de um eleitorado ressentido e envenenado por distorções e mentiras das mídias sociais haviam conduzido.

Ao menos para mim, foi mais duro, sim. E muito pior ficou depois que ele a seu vastíssimo currículo de defeitos – não sendo a maneira de falar e a compulsão para a mentira os menos nocivos de todos – acrescentou uma sádica propensão ao extermínio de pessoas indesejadas.

Bem antes de tornar-se réu em potencial do Tribunal de Haia, acusado de genocídio e ecocídio, Bolsonaro, ainda deputado, já defendia a esterilização em massa de pobres, por uma perspectiva malthusiana jeca: “É gente demais! Não tem mais lugar para deitar na praia!”, discursou, em 5 de agosto de 2010.

Depois, como também está registrado em vídeo – e façamos aqui um brinde à implacabilidade da internet –, ameaçou mergulhar o País numa guerra civil, para matar, no mínimo, umas 30 mil pessoas.

Era só o trailer do filme.

Entre os cabras por ele marcados para morrer estava o mesmo FHC que há dias não apenas reiterou sua rejeição ao impeachment como avaliou Bolsonaro “mais competente que a Dilma” em lidar com os interesses que o seguram no poder; embora infinitamente menos passível de uma punição parlamentar, faltou ressaltar, mas ressalto eu, contornando, par delicatessen, a palavra “golpe”, por sinal já admitida até por seu maior beneficiário, Michel Temer.

Afinal, o que foram as “pedaladas fiscais” da Dilma comparadas aos estragos promovidos, em todas as instâncias e gradações, pelo capitão, em 28 meses de disfunção administrativa? E nem estou incluindo nesse passivo as 300 mil mortes por covid por ele estimuladas de várias formas – ininterruptamente.

300 mil! Dez vezes mais mortes do que os assassinatos prometidos por sua guerra civil.

Nada disso (ou pelo menos em tais proporções) teria acontecido se Bolsonaro tivesse sido cassado quando pela primeira vez, ainda como deputado, exaltou da tribuna da Câmara o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o Dr. Tibiriçá das masmorras da ditadura militar e seu mais notório torturador. Ou se, também por falta de decoro parlamentar, tivessem-no punido com o devido rigor por hostilizar, de corpo presente, o Palácio do Planalto como “uma pocilga”, cheia de porcos “com faixa presidencial e broche de ministro de Estado, zombando, debochando do povo brasileiro”.

O mais grave senão da carta-manifesto de economistas e banqueiros, divulgada esta semana, com críticas às ações de Bolsonaro no enfrentamento da pandemia, à parte a necessidade de sua elaboração (a elite econômica precisando defender a adoção de medidas de saúde pública!), foi não exigir, explicitamente, que o presidente fosse afastado, para o bem do Brasil.

Bolsonaro é o núcleo, o eixo, a medula, o epicentro, a célula-mãe de toda a crise sanitária, diplomática, econômica, moral e cultural instalada no País, o teimoso fiador das nulidades, dos robôs e sabujos que escalou em seus ministérios, dos quais só passou a abrir mão com menor resistência depois que seu governo começou a afundar inexoravelmente. Inútil trocar ministros e deixar o capitão fazendo prevalecer, sempre, a sua vontade, as suas doentias e obtusas certezas e as de sua prole delinquente, abduzida pelo olavismo e os delírios nível Lex Luthor de Steve Bannon. É preciso cortar o mal pela raiz.

Em seu comentário da última terça-feira, no YouTube, o jornalista Bob Fernandes revelou como o governo Bolsonaro, transviado pelo chanceler olavista Ernesto Araújo, entubou as pressões de Trump para não comprarmos a vacina russa Sputnik e medicamentos afins da China, Venezuela e outros “países mal-intencionados”, na visão Guerra Fria do trumpismo.

Essa torpe submissão aos interesses de um lunático que já deixou a Casa Branca resultou na morte de milhares de brasileiros e pode ser comprovada no Relatório de 2020 do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA.

Afastado o Genocida, seus ministros irão para o vinagre. Aí zeramos a fita e tentaremos salvar o que ainda é possível. Não é só o que o Brasil precisa e espera, mas o que o mundo também espera, para não ser contaminado.

A vida de antes

Autonomia. Era o tínhamos até março de 2020. Uns mais, outros menos. Um medo aqui, uma dúvida ali. Mas gente de vida normal – não encarcerada - ia e vinha movida pelo desejo, pela necessidade. Ou por obrigações.

Era assim. Gente mais para o normal, vez por outa, dava-se o sagrado direito de descumprir obrigações – grandes ou pequenas. Necessidade sempre foi coisa mais rígida. O “tem que” é mais impositivo. Mas o bom e velho desejo tinha autonomia para desfazer, desarrumar e rearrumar tudo. Sempre foi possível desobrigar-se. Soberano, o desejo garante (ou garantia) a autonomia, com o limite de não ferir, não matar, não roubar.

Foi assim até um ano atrás. Nossa autonomia era tanta que nos permitiu fazer Presidente da República um coiso. Não foi desejo de todos, mas foi de muitos. Para alguns uma birra, desejo incontrolável de fazer perder os que vinham ganhando sempre. Ser humano tem dessas coisas.

Pra outros o coiso foi uma escolha. Tosca, é verdade, mas escolha, fruto do autônomo desejo - às vezes, como no caso, inconsequente, temerário.


Os que a gente, na nossa autonomia de pensar, enxerga como toscos incomodam-se muito com costumes que não são os seus, com jeitos diferentes de viver a vida, com horizontes mais largos e sem comandos de fé, padre ou pastor. Incomodados, revoltam-se e, dizendo defender Deus, pátria e família, votam. Às vezes, pior, provocam guerras. Nada santas.


No voto ou à bala, o propósito será esmagar os diferentes, as diferenças. Sem saber desfrutar de autonomia pessoal, juntam-se em bandos. Não serão razoáveis em nada, com nada. Praticam obediência cega às suas descrenças. Têm olhos cercados por antolhos, ódio como inspiração.

Pois então. No ano em que um vírus roubou nossa autonomia de viver segundo nosso desejo, indo, vindo ou ficando, topamos de frente com dois monstros: a doença no modo aerossol e o governo dos toscos. Um ameaça com a morte, outro, incompetente, atrapalhado e malvado, força para antecipar as mortes. A julgar pelo que assistimos, por puro prazer.

Se diariamente vivemos o difícil desapegar-se da autonomia de antes em favor da sobrevivência, também toda hora, o dia inteiro, tememos pelo o que mais virá dos toscos.

O game é violento, tipo Mortal Kombat, Wolfenstein 3D ou GTA. Passamos da fase do isso-não-está-acontecendo, para a do é real – tudo está acontecendo. Somos os alvos, eles os snipers.

A vida de antes já é memória. A de agora é pânico. Sem autonomia. Sobrevive o desejo de viver para contar – o que foi? o que poderia ter sido? o que ficará?
Tânia Fusco