terça-feira, 20 de agosto de 2019

A lógica do fusível

Em 21 de junho, Jair Bolsonaro se referiu a um ministro — era Onyx Lorenzoni — como fusível. Um dispositivo cuja existência consiste em ser uma proteção condenada a queimar para que queimado não seja o sistema; para que preservado seja o presidente. Era Lorenzoni, mas poderia ser Sergio Moro — e (não se iludam, liberais) até Paulo Guedes.

Já alguns fusíveis fundiram no curso da ainda breve jornada que vai dando caráter a esta República do Curto.


A imagem é preciosa porque expressa um importante fundamento da mentalidade bolsonarista: a forma utilitária, fritadora de outros protagonistas, como dispõe de colaboradores e mesmo de estruturas, a depender dos interesses circunstanciais da nova corte. Era Lorenzoni. Poderia —poderá —ser Moro ou Guedes. Já foram Bebianno e Santos Cruz. Logo será o PSL. Talvez mesmo a Lava-Jato, operação sem a qual Bolsonaro não teria vencido; isto porque a República do Curto também é da Caça, aquela que não hesita em degolar antigos sócios-predadores.

Duas notas constitutivas da persona de Bolsonaro foram realçadas desde que, sentindo o peso imperial da caneta de presidente, mediu que haveria tinta para testar limites: o inconformismo ante o que (quem) não pode controlar e a incompreensão de que um órgão do corpo federal possa ser de Estado e não de (seu) governo. A Polícia Federal, por exemplo; aquela — a das operações espetaculares — que tanto o ajudou e com a qual, vê-se, já estão deflagradas crises. Bolsonaro, ser interferente, quer submissão — e tem sido bem-sucedido em seus arreganhos. Ele foi convidado.

É da natureza do bolsonarismo só admitir a adesão absoluta, incondicional; de maneira que os virtuosos que lhe servem serão os virtuosos que não contestam —e que, assim, endossam. Pagarão o preço. Como o ex-juiz Moro, ora ministro, sob cuja hierarquia, aliás, está a PF, o herói justiceiro inventado pela imprensa, o queridinho de repente visto rindo — asquerosamente rindo — ao ouvir o presidente declarar que, se excesso jornalístico resultasse em cadeia, todos os jornalistas estariam presos.

Fusível outrora voluntário, cuja existência individual foi descarregada, Moro, o ex-Moro, hoje é um refém de Bolsonaro, seu autoritarismo independente já tragado por aquele, o que manda, do projeto de poder bolsonarista.

O bolsonarismo é um fenômeno revolucionário que se orienta pelo personalismo do líder carismático, daí por que opere para cooptar e diluir quaisquer carismas que possam esboçar ameaças, e para esvaziar qualquer associação com a gramática da atividade político-partidária, razão pela qual trata o partido do governo como formalidade necessária e descartável.

Reacionário, move-se para provocar choques institucionais e se robustece a cada vez que o discurso generalizador desqualifica as instituições republicanas. Autocrático, fareja brechas para lucrar com representações quede em materialidade—no caso, sangue—ao espírito do tempo jacobinista segundo o qual Congresso e Supremo seriam colegiados do crime e, logo, os inimigos no caminho do processo purificador que passará o país alimpo.

O projeto de poder lavajatista, aquele que criminalizou o exercício da política, financiou o bolso na ris mo. E ainda terá de pagara conta. Já paga; desde que, eleito Bolsonaro, foi abocanhado pela máquina do governo, a Lava-Jato transformada em Ministério da Justiça. Haveria aí — contratado para o futuro —um conflito de autoritarismos ambiciosos, confronto que o presidente soube neutralizar ao entender que o episódio chamado de Vaza-Jato enfraquecia Moro e sua força-tarefa e os curvava à medida exata do cabresto. É onde estamos. O autoritarismo ingênuo do ex-juiz—erguido sob a crença togada de que tudo poderia —bancou a fé de que teria carta branca no governo de um autoritário cuja constituição populista simplesmente não contempla outras estrelas.

O que será de Moro — um demissível — sem Bolsonaro, o patrão? O presidente conhece a resposta. Não lhe deve ser pouco saboroso saber que detém as rédeas sobre o destino do fusível mais popular do Brasil.

Da parte de quem percebe que a tragédia brasileira, para muito além da recessão econômica, situa-se no aprofundamento de uma depressão política talvez sem precedentes em tempos democráticos, o desafio está em desenvolver uma linguagem que demova signos como ruptura e radicalização do lugar de prazer social em que se encontram. Talvez lembrando que a República do Curto e da Caça não é a melhor apetrechada para gerar empregos. Chega uma hora em que ir à forra contra “tudo isto que está aí” —o sentimento vingativo que fez de Bolsonaro e Moro mito e herói —é ir à forra contra nós mesmos.

Para vencer a mitologia criada pelo ressentimento bolsonarista — cuja instrumentalização do lavajatismo alçou-se ao estado da arte —, a República brasileira precisará conceber um centro capaz de tornar a ideia de equilíbrio, de estabilidade, novamente desejável.

Intestinos e instituições estão funcionando?

Atravessando uma fase de obsessão pelo cocô, o presidente tem se esforçado em empurrar seu programa de governo adiante. Preso visceralmente a seu eleitorado, especialmente o de tipo mais cruento, tem buscado dar vazão a promessas de campanha, mas muitas delas não têm seguido pelo caminho reto. Por vezes, sentindo a obstrução dos canais institucionais, recorre à glicerina dos decretos. Entretanto, até mesmo o uso desse instrumento não tem se mostrado eficaz na desobstrução da agenda governamental, limitando-se o efeito a poucos mas ruidosos espasmos. Especialmente as propostas mais indigestas não têm encontrado fluxo livre pelo sistema político mais amplo, sendo obstadas pelo tratamento grosso do Congresso, ou pelo controle mais fino do delgado STF. Aos poucos, promessas se ressecam e o presidente vai ficando cada vez mais enfezado.


Tramitação peristáltica, flora parlamentar, rompimento do trato institucional, a metáfora abunda, como se vê, mas em respeito ao leitor, encerro por aqui a alegoria escatológica.

A contar do início do mandato, o presidente sofreu muitas derrotas. De decretos a medidas provisórias, passando por projetos de lei a propostas de emenda constitucional, suas vontades foram contestadas, algumas contornadas, várias corrigidas e outras simplesmente derrubadas.

Como se recorda, o início de seu governo foi bastante tumultuado, marcado por idas e vindas, afrontas e recuos. Quando finalmente começou a implementar sua agenda, surpreendeu a todos por sua visão pouco elaborada do sistema político, apesar dos quase trinta anos de carreira parlamentar.

Empolgado inicialmente com sua Bic, Bolsonaro disse que tinha mais poder do que Rodrigo Maia, presidente da Câmara, porque, “apesar de você fazer as leis (sic), eu tenho o poder de fazer decretos”. De fato, utilizou esse recurso para viabilizar uma de suas propostas mais caras, a de ampliar a posse e o porte de armas. Fez um tiroteio de decretos que foram sustados pelo Senado, evento raro nas relações entre poderes.

Depois disso, a matéria passou a tramitar no Congresso sob a forma de projeto de lei, porém de baixo calibre e de modo bem mais lento do que gostaria o armamentista.

Dizendo-se avesso à velha política, o presidente desprezou a necessidade de formar uma coalizão de partidos no Congresso, mas fez uso de medidas provisórias como seus antecessores. Por meio de MP, tentou transferir a demarcação de terras indígenas da FUNAI para o Ministério da Agricultura e repassar o poderoso COAF do Ministério da Fazenda a Sergio Moro, mas a falta de sólida base parlamentar se fez sentir e nenhuma das mudanças foi aprovada. Quando o presidente reincidiu na primeira delas, editando nova MP, foi a vez de o STF colocá-lo de volta no quadrado, afirmando por unanimidade que o presidente abusava do poder, em demonstração de “indisfarçável autoritarismo”. O mesmo STF já havia imposto derrota a Bolsonaro quando o impediu de extinguir, por decreto, os Conselhos de participação social no nível federal, salvaguardando a prerrogativa do Legislativo de zelar pela matéria. Há outros tantos pedidos tramitando na Corte, contra medidas do governo e até atitudes do presidente, como as declarações sobre as circunstâncias da morte do pai do dirigente da OAB durante o regime militar.

Focos de resistência aparecem no seio da própria administração pública. Em áreas como educação e meio ambiente, os respectivos ministros enfrentam dificuldades para reorientar suas burocracias e as novas políticas avançam pouco e de maneira errática. A intervenção do presidente na superintendência da Polícia Federal no Rio quase levou a direção da corporação a uma renúncia coletiva. Depois de dizer publicamente que “quem manda sou eu”, Bolsonaro teve que recuar e deixou de exigir o substituto de sua preferência para o cargo. Na relação com o Ministério Público, a indicação do novo PGR se arrasta e se complica, sinal de dificuldades para escolher e emplacar um nome de sua preferência.

Nem sequer a aprovação da Reforma da Previdência pela Câmara pode ser considerada uma vitória do planalto. O impasse que marcou o início da tramitação apenas se rompeu quando Rodrigo Maia tomou para si a tarefa de forjar a coalizão necessária para a aprovação da proposta de emenda constitucional. Antes ela foi desidratada e seu carro chefe, o sistema de capitalização, abandonado. Estados e municípios, pelo menos até agora, ficaram de fora da reforma. Ainda no plano constitucional, o Congresso aprovou a PEC34, que torna obrigatória a execução de emendas de bancada por parte do governo, aumentando o poder do Congresso em matéria orçamentária, em detrimento do executivo.

Pode ser que o acúmulo de derrotas e a perda de poder institucional do executivo vis-à-vis os demais poderes levem o presidente a rever suas escolhas estratégicas. Se, contudo, ele insistir no figurino Johnny Bravo e os conflitos evoluírem para uma situação de paralisia decisória do governo, duro será ouvir do presidente: “precisa acabar com essa constipação aí, talkey? Laxante neles!”

Risco global e erros internos

O risco do Brasil é viver uma tempestade perfeita. De um lado, a crise internacional afugenta o capital externo do país e o medo de uma recessão global assombra o mundo. De outro, a política ambiental insensata está criando mais riscos. O Brasil exporta US$ 17,8 bilhões de produtos agrícolas para a Europa, só do complexo soja são U$ 5,4 bi, e isso começa a ficar em perigo. Ontem a imprensa alemã pediu o que já se fala entre consumidores europeus: o boicote aos produtos brasileiros. A ideia de que ninguém nos substitui na produção de alimentos é arrogante.

Os próximos meses serão de muita incerteza na economia internacional. Os conflitos entre a China e os Estados Unidos oscilam ao sabor das instabilidades de Donald Trump ou de seus interesses de criar o inimigo externo para espantar suas dificuldades locais em ano pré-eleitoral. A economia de inúmeros países está mostrando desaceleração. E isso afugenta o capital dos países emergentes.

Para se ter ideia do que já aconteceu. Os investidores estrangeiros sacaram R$ 19,1 bilhões da bolsa brasileira este ano. Somente em agosto foram R$ 8,7 bilhões. O minério de ferro perdeu 20% do valor no mês, apesar de acumular alta no ano, e o petróleo caiu 8%. O dólar ontem bateu o maior valor desde 20 de maio. No mês, a alta é de 6,46%. Há problemas em várias áreas.


Os próximos meses serão quentes no meio ambiente e não falo das queimadas que agora se espalham, animados que estão os incendiários pelos sinais que chegam de Brasília. O governo tem mandado os estímulos errados e não quer ouvir as vozes que alertam para os riscos. Aos ambientalistas e cientistas se juntaram líderes do agronegócio. O governo continua em seu delírio ideológico contra o meio ambiente. Nos países consumidores aumentam as pressões para que sanções sejam impostas ao Brasil pelo desmatamento da Amazônia.

O presidente Jair Bolsonaro trata tudo com a displicência de sempre, e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, cumpre a pauta dele. E ela não é a do meio ambiente. Nem mesmo do agronegócio. Na última semana, os ex-ministros Blairo Maggi e Kátia Abreu alertaram para os riscos de aumentar o desmatamento. A ex-ministra, que tinha posição oposta à dos ambientalistas, fez um discurso no Senado e deu uma entrevista em que disse com sinceridade que estava errada e havia mudado de opinião. “Tenho muito orgulho de ter evoluído”, disse e defendeu a preservação ambiental como parte integrante do sucesso do agronegócio. Nessa mesma linha foi Blairo Maggi. O presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Marcello Brito, fez a este jornal um alerta importante. O pecuarista paraense Mauro Lúcio Costa disse à “Folha de S. Paulo” no fim de semana que o discurso do governo Bolsonaro tem “inflamado a vontade das pessoas de desmatar”.

Mauro Lúcio é de Paragominas, e a primeira vez que o entrevistei foi em 2008. Em 2017, fiz uma reportagem em sua fazenda. Ele vem dizendo há muito tempo que não há conflito entre preservação e produção. Ele respeita a reserva legal e tem alta produtividade com técnicas como a de rotação de pasto. “Se eu disser que uma ONG vai acabar com a soberania nacional é a conversa mais idiota que possa existir”.

No mundo, há o conflito comercial EUA x China que ameaça virar guerra cambial, o Brexit sem acordo, Itália com risco politico, Alemanha com queda do PIB no trimestre, China querendo intervir em Hong Kong, a crise argentina piorando. Os bancos centrais de alguns países começam a falar em relaxamento monetário, porque mesmo com os juros negativos as economias não reagem. Nos Estados Unidos, o Fed está dividido. A consequência de tudo isso é uma postura mais conservadora dos investidores, queda das commodities e alta do risco de países como o Brasil.

No meio desses tremores, o governo brasileiro toma decisões erradas na área ambiental. O Brasil ficará exposto nos próximos meses em eventos como o Sínodo da Amazônia, a COP do Chile, o número oficial do desmatamento anual, Prodes, que o Inpe normalmente divulga entre outubro e novembro. E se o governo tentar esconder será pior. A política ambiental alimenta o risco de barreira ao produto brasileiro. As crises externas podem se somar aos erros cometidos pelo governo Bolsonaro. Essa é a tempestade que se forma.
Míriam Leitão

Imagem do Dia


Operação abafa tem ares de estelionato eleitoral

Está em franco andamento algo muito parecido com uma megaoperação abafa. O movimento passa por intervenções em órgãos estratégicos como Receita Federal, Polícia Federal e Coaf. Inclui a sucessão na Procuradoria-Geral da República. Envolve, de resto, investidas legislativas como a recém-aprovada Lei de Abuso de Autoridade, pendente de sanção presidencial.

Um dos aspectos mais incômodos do abafa é o comportamento de Jair Bolsonaro. Eleito como solução por mais de 57 milhões de eleitores, o capitão tornou-se parte do problema. Atua movido pelo interesse pessoal e dos filhos. As conveniências do filho 01 conduziram Bolsonaro para um cerco ao Coaf e à Receita, numa parceria tóxica com o presidente do Supremo, Dias Toffoli.

As circunstâncias do filho 03 empurraram Bolsonaro para um balcão onde a cadeira de embaixador em Washington é trocada por favores variados, inclusive a eventual sanção de artigos radiotivos da Lei de Abuso de Autoridade. Alega-se ao redor do presidente que não há nada de anormal no fato de Bolsonaro querer premiar um filho ou nomear auditores e delegados de quarto ou quinto escalão. O diabo é que em política nada é uma palavra que pode ultrapassar tudo.

Vai ficando difícil para Bolsonaro manter a pose. Mantida a lealdade do presidente da República à sua dinastia em detrimento dos interesses republicanos, será preciso começar a chamar o fenômeno pelo nome: estelionato eleitoral. Bolsonaro elegeu-se enrolado nas bandeiras da ética e da meritocracia. Está entregando outro tipo de mercadoria.

A longa noite do meio ambiente

O dia virou noite em São Paulo na tarde desta segunda (19). Meteorologistas explicam: além de nuvens carregadas, a terra da garoa recebeu a “pluma de fumaça” de queimadas e incêndios que ocorrem no Centro-Oeste, Paraguai e Bolívia. Sem recorrer a nenhuma revelação mística, esse breu em pleno dia é o presságio do que a política ambiental do governo nos reserva.

O incêndio que devastou 21 mil hectares no Paraguai é algo de proporções dantescas, mas as queimadas estão em alta acelerada inclusive no Brasil. Há um aumento de 70% nos núcleos de queimadas em comparação com 2018. Sinal de que a política do governo nessa área vem falhando?


Infelizmente não. Queimar nosso patrimônio ambiental parece ser projeto. O ministro Ricardo Salles segue firme no desmonte da estrutura nacional de fiscalização —Ibama, ICMBio— do desmatamento. A população não deixa de corresponder ao discurso que vem de cima. No dia 10, fazendeiros e grileiros do sul do Pará promoveram um “dia do fogo”, produzindo queimadas em nível recorde. Um novo festejo cívico para uma nova era. Em Rondônia, o fogo que deixou Porto Velho imersa em fumaça já matou pessoas e obrigou aviões a desviar para Manaus.

Quando o governo é alertado da piora no desmatamento, faz o quê? Insinua que o Inpe está a serviço de “ONGs” (esse bicho-papão genérico que encerra discussões) e exonera o diretor do órgão.

A preservação da Amazônia nos interessa por vários motivos, como pela biodiversidade que ela guarda e pelo papel dela em garantir as condições climáticas que favorecem nosso agronegócio. E interessa também ao resto do mundo, que vai lentamente se conscientizando dos perigos do aquecimento global.

Imagine que bom seria se a preservação da selva brasileira fosse de tal maneira valorizada por países desenvolvidos que eles estivessem dispostos a nos dar dinheiro simplesmente para que não a devastássemos. Boa notícia: é exatamente isso que faz o Fundo Amazônia, grande vitória da diplomacia brasileira. A má notícia é que o descaso do governo com o meio ambiente é tal que Alemanha e Noruega já bloquearam os pagamentos ao fundo. São quase R$ 300 milhões que estamos jogando no lixo.

A reação do presidente até agora foi acusar a Noruega de matar baleias. Ok, verdade. Mas no que isso ajuda a Amazônia? Ao contrário do que disse Bolsonaro, a questão ambiental não é preocupação apenas de “veganos que só comem vegetais”. Todos nós já sofremos —e sofreremos muito mais— os danos da ação humana predatória aos nossos biomas e ao clima da Terra. As secas que se acentuam em nosso país —aumentando as queimadas— são parte disso.

A coisa é tão grave que até os maiores nomes do agronegócio, como o ex-ministro da agricultura Blairo Maggi, dão voz à preocupação. Se continuarmos assim, a Europa erguerá barreiras à importação de nossa soja. Nem mesmo as pressões do capitalismo, contudo, convencem o governo a preservar a natureza.

Não temos muito tempo. A mudança climática vem a passos rápidos. O desmatamento da selva amazônica se aproxima do ponto sem retorno. Nosso território contém o maior patrimônio ambiental da humanidade. Ele pode ser ativo central de um desenvolvimento sustentável, de longo prazo, para todos ou pode ser queimado para garantir lucros de curto prazo para alguns, gerando uma catástrofe nacional e global irreversível. Mesmo quem apoia o governo deve apontar o descaminho grave de sua política ambiental. A noite cairá sobre todos nós.

Da ilegitimidade das nossas leis

Não é abuso de poder os representantes sabe-se lá de quem aprovarem anonimamente na madrugada, quase como gatunos usando máscaras, uma lei contra o abuso de poder?

O problema do Brasil vocal é ignorar olímpicamente a realidade e discutir as mazelas institucionais do país como se ele fosse uma democracia representativa. Não é. Nunca foi. Tem a chance de vir a ser se passar a encarar-se como o que é e tirar seus políticos e juristas do conforto de serem tomados pelo que não são.

Não se trata de defender que fique impune o abuso de autoridade. Mas é no mínimo farisaísmo faze-lo sem mencionar que cumprir as leis que nos ditam implica, em primeiro lugar a impunidade absoluta de quem as dita e da guarda pretoriana dos servidores que eles subornam com a dispensa de serem responsabilizados pelo que fazem e sofrer os efeitos da crise crônica que isso nos custa e, em segundo lugar, a impunidade de todo bandido não estatizado que puder pagar advogados para guia-lo pelo infinito labirinto recursal desenhado para que nenhum julgado transite até o fim.


Encaremos a realidade, portanto. 1) Esta lei não foi feita para proteger o cidadão. Nunca ninguém se preocupou com o abuso dos três “pês”. As “excelências” só se moveram quando, pela primeira vez em nossa história, os ricos e os poderosos começaram a ser presos. 2) Também não é uma lei para disciplinar os três poderes, é uma lei do poder que tem sido preso contra o poder que prende, sua polícia e o Ministério Público. 3) Tudo o mais nela está absolutamente desfocado pois, sendo o seu principal detonador o “prejuízo” do “abusado”, fica sem resposta a pergunta: quando é que prender alguém, do chefe do PCC para baixo, deixa de prejudicá-lo?

Atribui-se a Rui Barbosa a frase: “A pior ditadura é a do Judiciário. Contra ela não há a quem recorrer”. Ha sim! O que a revolução democrática fez, essencialmente, foi definir um novo “controlador mais alto do sistema”, sua majestade o povo, do qual passa a emanar todo poder. No Brasil, que de democracia nunca teve mais que a casca, o povo acostumou-se ao papel de “Geni” da privilegiatura que pode “montá-lo” como bem entender. Mas a questão que, desde o primeiro dia, configurou-se como o maior desafio enfrentado pelos inventores da nova ordem não era “se” o poder Judiciário deveria ser submetido ao povo, essa coletividade cujos elementos constitutivos ele tem por função julgar individualmente, mas “como” faze-lo sem que ficasse prejudicada a isenção possível às instituições humanas que ele deveria manter ao fazê-lo.

Quando os governos das 13 colônias que aderiam à União foram formados nos Estados Unidos, seguiu-se, para a constituição do Judiciário, o padrão do absolutismo europeu em que permanece encalhado o Brasil até hoje, no qual os chefes do Executivo nomeavam os juízes que teriam por função vigiá-los e julgá-los. Mas a contradição com o fundamento básico da democracia era evidente. Em 1830 já as 13 colônias, depois de muitas idas e vindas, tinham aderido ao novo modelo de eleição direta dos juízes pelo povo. Para elegerem-se, no entanto, os juízes tinham de fazer campanha e, portanto, de conseguir dinheiro para isso, o que os tornava vulneráveis ao poder econômico, diziam os “contra”. Vulneráveis ao poder econômico todos nós, mortais, sempre somos, respondiam os “a favor”, e sendo assim, preferimos que o nosso juiz vulnerável ao poder econômico possa ser destituído por quem o elegeu se não honrar seu mandato com um bom comportamento.

A norma mais sagrada do novo regime que, não por acaso, chama-se “democracia representativa”, é a da fidelidade da representação do verdadeiro dono do poder – o povo – que deve estar institucionalmente armado para fazer valer esse seu poder hegemônico. Por isso mesmo todos os cargos do funcionalismo público que têm por função fiscalizar o governo (Ministério Público e outros) ou prestar serviços diretos ao público (a polícia, entre outros) são, desde o início, diretamente eleitos pelo povo.

Como a maior preocupação inicial dos fundadores era, porem, evitar a volta da monarquia, os mandatos desses representantes, no desenho original, foram excessivamente blindados pelo tempo que durassem. Essa incolumidade logo mostrou seus dentes. Intocáveis por quatro anos, os políticos e funcionários corrompidos tinham tempo para se locupletar antes que os seus representados pudessem alcança-los na eleição seguinte. Resultado: pelo final do século 19, o sistema estava apodrecido dos pés à cabeça, fazendo lembrar em tudo o Brasil de hoje.

A resposta, dada nas reformas iniciadas na virada para o 20 que tomaram por base o remédio que a Suíça encontrara 40 anos antes para o mesmo problema, foi rearmar os cidadãos para atuar diretamente contra os maus representantes. Eleições distritais puras para tornar transparente a relação entre cada representante e os seus representados, direito à retomada dos mandatos (recall) e referendo das leis vindas dos legislativos, direito à iniciativa de propor leis que os legislativos ficam obrigados a processar, eleições periódicas “de retenção” de juíizes nos seus poderes a cada quatro anos. Eles podem ser indicados pelo Executivo, dentro de regras estritas, mas o povo os julga a cada quatro anos, o que tira o controle popular da porta de entrada que tinha os inconvenientes acima descritos, e o reposiciona na porta de saída.

No Brasil, onde o sistema eleitoral não permite saber quem representa quem e o povo deixa de ter qualquer poder sobre o seu representante no momento em que deposita o voto na urna, as leis são feitas para os legisladores e contra os legislados que têm de engoli-las do jeitinho que vierem. No mundo que funciona toda lei pode ser desafiada e tem de ser chancelada por quem vai ter de cumpri-las antes de entrar em vigor. Por isso todo mundo, lá, respeita a lei e o povo todo zela pelo seu cumprimento e aqui todo mundo acoberta o desrespeito às leis porque elas são fundamentalmente ilegítimas.

Paisagem brasileira

Alexandre Reider

Autoritarismo a galope

No começo foi o auto-engano alimentado pelos que votaram nele e também por aqueles dispostos a tolerá-lo como se fosse um mal menor. O pior mal teria sido a volta do PT ao poder depois de um curto período fora dele.

Apostou-se então que Jair Bolsonaro, expulso do Exército por indisciplina, deputado federal do baixo clero por quase 30 anos, uma vez empossado como presidente da República seria uma pessoa distinta da que se elegera.

O candidato misógino, homofóbico, defensor de ideias estúpidas, sem um projeto para o país que não fosse o de destruir tudo o que havia para construir depois se sabia lá o quê, daria lugar a um presidente normal como os outros.

Bolsonaro chegou a falar em mais de uma ocasião que se comportaria como o presidente de todos os brasileiros – os que votaram nele e os que lhe negaram o voto. E os devotos de raiz, e as almas de boa vontade, acreditaram.

Acreditaram também que se não fosse assim, se ele sofresse recaídas, os militares empregados no seu governo dariam um jeito de enquadrá-lo. E que seus filhos acabariam se conformando com um pai diferente do que conheciam.

A 12 dias de completar oito meses no cargo, vê-se que o Bolsonaro de antes é o mesmo de hoje. Se algo mudou foi o país que tenta se adaptar a ele. O risco que se corre é de Bolsonaro normalizar o país a seu gosto e não o contrário como seria o natural.

Nunca na história do Brasil um presidente eleito pelo voto tentou concentrar tantos poderes como o faz o ex-capitão, um ressentido com seus companheiros de farda que o refugaram no passado, e também com a elite do Congresso que nunca lhe deu importância.

Suas iniciativas mais recentes são escandalosas e parecem mais a serviço de um projeto de ditador do que de um governante simplesmente autoritário, o que por si só já estaria para além dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico do país.

A Polícia Federal é um órgão de Estado, não de governo. Responde às ordens da Justiça. Apenas administrativamente está subordinada ao Ministério da Justiça. E, no entanto, Bolsonaro ocupa-se em domesticá-la para que atenda aos seus desejos.

Ocorre o mesmo com o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e com a Receita Federal. A intenção inicial de Bolsonaro é valer-se da Federal, do COAF e da Receita para proteger seus dois filhos (Flávio e Carlos) metidos em rolos fiscais.

Se for bem-sucedido, o passo seguinte será o de valer-se dos mesmos meios para ameaçar ou perseguir eventuais adversários dos negócios políticos e econômicos da família. A esses meios, se junta a Agência Brasileira de Inteligência que ele já controla.

E em breve deverá juntar-se a Procuradoria Geral da República, onde ele pretende pôr alguém que o obedeça incondicionalmente. Não basta engavetar processos incômodos. Terá de processar quem ele queira. A hierarquia acima de tudo. Como num quartel.

A obra jamais estará completa. Mas avançará com o preenchimento de duas vagas a serem abertas no Supremo Tribunal Federal com a aposentadoria dos ministros Celso de Mello em 2020 e de Marco Aurélio Mello em 2021, ano da próxima eleição presidencial. 

Por que o espanto?

Não é possível é modificarmos o que já passou. E aborrece-me cada vez mais a crítica constante ao passado por quem não o viveu: como é que é possível os nazis, como é que é possível não sei quê. É possível porque não são marcianos. E continua a ser possível, não percebo o espanto
Dulce Maria Cardoso

Minha presada Leilane Neubarth

Querida Leilane Neubarth, eu estava de olho na Globonews quando você se pôs a chorar ao vivo depois de apresentar a notícia sobre as balas perdidas que deixaram seis jovens mortos. Milhares de pessoas choraram junto. Foi o momento jornalístico mais revelador, na semana passada, de como vai o país. Esta carta que agora de público envio é de aplauso e solidariedade à sua sensibilidade.

Você deve ter ouvido na faculdade, e também nesses muitos anos de redação, que jornalistas se movem pela bússola da objetividade. Eles não deixam a gaveta do peito aberta para que os outros percebam ter se manifestado pelo gosto de suas personalidades.

Jornalistas não piscam seus afetos. Seriam de um modo geral pessoas duras, assemelhados cinicamente ao personagem do "Nervos de aço" do Lupicínio, aquele "sem sangue nas veias e sem coração". Os manuais de redação pedem zero de sentimentalismo. Recomendam que os jornalistas ouçam as fontes e, pelo amor a Herbert Moses, usem ao dar a noticia o verbo curto e grosso da impessoalidade.

O sonho de um editor seria uma equipe só de repórteres como o Clark Kent ou abnegados robôs, a versão atualizada do Super-Homem. Ainda bem, Leilane, que você foi na contramão desses paradigmas clássicos e, vítima também desse impressionante acúmulo de notícias ruins que chicoteia o Brasil, refletiu com seu choro o momento de fragilidade geral.


"Ao ver tantas vidas perdidas a gente se pergunta" - você disse na apresentação da notícia dos jovens mortos pela PM, sem pudor de apagar com a mão as lágrimas que escorriam - "onde foi que a sociedade errou e o que pode ser feito?"

Eu sei que você gosta de música, Leilane. Por uma ironia do destino - clichê que, tenho certeza, uma boa jornalista como você jamais escreveria - o seu choro triste aconteceu às vésperas deste 18 de agosto, quando se comemoram os 80 anos da primeira gravação de "Aquarela do Brasil". É o segundo hino nacional, uma ode à harmonia racial e à felicidade de ter nascido aqui.

O orgulho de Ari Barroso delira numa letra de exaltação das fontes murmurantes, da Sá Dona arrastando o vestido rendado, tudo sob a merencória luz da lua e aos pés do coqueiro que dá coco. O Brasil era o paraíso na Terra - e eu só estou falando de música numa hora dessas para complementar a sua pergunta, Leilane.

O que pode ser feito para abrir a cortina do passado e deixar cantar de novo o trovador com boas notícias sobre o país? Onde foi que a sociedade errou e o Brasil deixou de ser lindo e trigueiro?

Tenho a impressão, Leilane, que foi aí, na percepção de tantas perguntas se acumulando, da ineficiência das respostas apresentadas até agora, que a sua sensibilidade de brasileira falou mais alto e, sem querer afrontar o ombudsman, mandou às favas os rigores do manual interno. A escalada do horror não cabe mais no lead tradicional do jornalismo. Tiraram o Rei Congo do congado. Na "Aquarela 2019", PMs espalham o medo com caveira nos uniformes. Como descrever tamanha barbárie?

Foi aí, prezada Leilane Neubarth, na observação fina de que as palavras já não são suficientes, que você mandou muito bem. Deixou de lado a velha objetividade jornalística e sublinhou a notícia desse tempo lamentável com o espanto cívico de suas lágrimas. Parabéns.

A Sibéria queima e a Groenlândia derrete

O Alasca não é mais necessariamente sinônimo de frio. Anchorage, a cidade mais populosa desse Estado norte-americano localizado no canto noroeste da América, registrou em 4 de julho 32 graus, uma temperatura insólita nessa latitude. Ao mesmo tempo, na Groenlândia o gelo permanente de outras épocas derrete a enorme velocidade, e na Sibéria o fogo devorou até agora quase 15 milhões de hectares, segundo o Greenpeace.

O presidente russo, Vladímir Putin, toma o sol na Sibéria
Grande parte dos incêndios florestais que assolam os vastos territórios russos ocorreram em áreas remotas, onde as autoridades nem sequer têm a obrigação de combatê-los. Ecologistas estimam que na Sibéria —onde Vladimir Putin está acostumado a fazer caminhadas e tomar sol— as florestas queimadas precisarão de mais de um século para a reposição da vegetação perdida.

Toda essa combinação de fatores alimenta vorazmente as mudanças climáticas. O pesquisador australiano John Church, ganhador do Prêmio Fronteiras do Conhecimento, alerta: "Estamos perigosamente perto de alguns limites no sistema climático". Se não houver um forte controle do aquecimento global, o risco de expansão dos oceanos se multiplica. O coquetel formado pela concentração de gases do efeito estufa e o aumento das temperaturas da atmosfera desencadeará uma perigosa elevação do nível do mar.

Neste verão, no hemisfério norte, os alarmes começam a soar. Glaciologistas argumentam que o aquecimento no Estado do Alasca é o resultado do aumento das temperaturas no Oceano Pacífico tropical, em decorrência do incremento das emissões de gases do efeito estufa. Ao mesmo tempo, em julho, a camada de gelo da Groenlândia perdeu 197 bilhões de toneladas, o equivalente a 80 milhões de piscinas olímpicas. Se prosseguir nesse ritmo, o derretimento poderia ser o maior desde 1950, quando começaram os registros com uma metodologia confiável.

A gigantesca ilha dinamarquesa —na qual Donald Trump colocou os olhos com a intenção de comprá-la— é uma das métricas mais precisas para a medição dos estragos no planeta. Pesquisadores estimam que se todo o gelo da Groenlândia derreter, em alguns lugares do planeta o nível do mar subiria até sete metros.
Rosario G. Gómez