domingo, 3 de novembro de 2019
Bolsonaro e os demônios
Como é perfeitamente normal em sistemas políticos abertos, atribulações com o Judiciário são fartamente utilizadas por adversários. Que agem segundo o habitual método (nem foi a Lava Jato que inventou isso) dos vazamentos de inquéritos ou, nos últimos dias, de divulgação de áudios de figuras como Fabrício Queiroz, essa espécie de assessor “faz-tudo” que é muito útil no dia a dia dos políticos e muito perigoso pelo o que podem dizer.
Note-se que adversários, nesses casos mais recentes, não são apenas a oposição composta por correntes políticas antagônicas, empenhadas como em qualquer outro lugar em atrapalhar o governo. Os ex-companheiros de luta do próprio presidente são hoje seus mais ferozes críticos, e os mais raivosos ao prometer vinganças.
É o resultado comum de ondas disruptivas como a das eleições de 2018: depois da vitória, os diversos componentes dela vão disputar o poder entre si, e Bolsonaro sempre favoreceu seu clã em detrimento do resto. Fatos concretos levaram o “mito” a criar fortes laços de dependência em relação a duas instâncias políticas que ele, como candidato, jurou que desprezaria ou transformaria radicalmente.
A primeira é o âmbito do STF, através sobretudo da figura de seu presidente, ministro Dias Toffoli, visivelmente empenhado em aliviar dores de cabeça políticas e pessoais de Bolsonaro. Mas, se quiser, pode aumentá-las substancialmente.
A segunda questão é a esfera da “política tradicional”, à qual Bolsonaro se dedica agora de forma tácita, porém não declarada, pois admitiu com perigosa lentidão que não governa sem ela.
O desarranjo de suas próprias forças, ilustrado no episódio das brigas do PSL, tem como óbvia consequência a necessidade incontornável de se apoiar e depender de outros grupos, a exemplo do que já acontecia com a liderança do governo no Senado. Com um pouco de distanciamento, percebe-se que esse contexto acima nada tem de excepcional, muito menos as brigas de Bolsonaro com setores da imprensa (pode-se dizer que há décadas a história política do Brasil está recheada desse tipo de conflito entre governantes e grupos de mídia).
Ocorre que os verdadeiros donos de sabedoria política tratam de exercitar a serenidade e o cálculo frio, essenciais para se navegar em águas turbulentas – mas o que Bolsonaro está exibindo é a caricatura de um personagem consumido no caldeirão fervente de seus próprios demônios, às vezes chamados de “hienas”. Ele prefere enxergar sobretudo conspirações e inimigos ocultos (seu ídolo, Donald Trump, fala sempre de um “deep state”) mancomunados para derrotá-lo em sua missão divina e tornada possível por um milagre (sobreviver à facada), num tipo de visão de mundo que inclui mesmo o resto do mundo (conspirações ou forças do mal arquitetando-se no Chile, Argentina, óleo nas praias, Amazônia, etc.).
Lutando contra seus demônios, vai sendo engolido pelo “buraco” (a expressão é do próprio Bolsonaro) no qual está um País estagnado, recuperando-se muito lentamente da mais brutal recessão da sua história, habitado por milhões cujas expectativas não atendidas crescem tanto quanto sua impaciência – isto sim, é diabólico.
1992, A volta
É um filme que eu já vi, embora haja diferenças entre o início do governo Bolsonaro e o início do meu governo, parece que está passando novamente na minha frente. Certos episódios e eventos me deixam muito preocupado, talvez não cheguemos a um bom termo sobre o mandato mal exercido pelo presidente da República — a começar por essa falta de interesse em construir uma base sólida de sustentação no Parlamento. Partindo-se do princípio de que, sem maioria no Congresso, não se governa — isso é uma condição sine qua non em um regime presidencialista, mas também no parlamentarista.
O desinteresse em construir essa maioria nos leva a temer um desenlace diferente do que gostaríamos. E, num clima de ingovernabilidade, tudo pode acontecer. Foi um descuido de minha parte, nesse ponto, eu vejo a semelhança de não ter me preocupado, não ter dedicado a atenção devida desde o início do meu governo a um melhor relacionamento com a classe políticaFernando Collor de Mello, senador (PROS) e ex-presidente
Bolsonaro ambiciona democracia sem imprensa
A aversão de Jair Bolsonaro à imprensa que o imprensa revela que o capitão, embora seja beneficiário direto da democracia, não assimilou após 28 anos de mandato parlamentar e dez meses de exercício da Presidência os rudimentos da noção de cidadania. Decorridas mais de três décadas do fim de uma ditadura que se dizia proclamada em nome de ideais democráticos, Bolsonaro ainda supõe que a sociedade brasileira está disposta a aceitar uma democracia de fachada. Outros tiveram a mesma ilusão. Deram-se mal.
Na semana em que o filho Zero Três contaminou a atmosfera com a ideia tóxica de um "novo AI-5", Bolsonaro editou o primeiro ato institucional da nova era. Ordenou a todas as repartições públicas federais que cancelem assinaturas do jornal Folha de S.Paulo. Fez isso macaqueando seu amado Donald Trump, que anunciara dias antes o corte das subscrições do New York Times e do Washington Post. O mito tropical esboçou o seu AI-2. Ameaçou cassar a concessão que mantém no ar a TV Globo.
Ironicamente, Folha e Grupo Globo sustentam em suas linhas editorias ideias congruentes com as que o ministro Paulo Guedes (Economia) tenta colocar em prática. Coisas como responsabilidade fiscal, privatizações, eliminação de privilégios, enxugamento da estrutura do Estado, desburocratização, integração do Brasil à economia mundial ... Mas o que preocupa Bolsonaro é a sua agenda paralela: controlar a caixa registradora do PSL, blindar o Zero Um, sedar o faz-tudo Fabrício Queiroz e seus vínculos milicianos, virar do avesso o depoimento do porteiro, livrar o Zero Dois na CPI das Fake News, servir filé mignon para o Zero Três...
A despeito da energia que desperdiça fabricando as crises internas que prejudicam o seu próprio governo, Bolsonaro ainda encontra tempo para desmantelar o aparato ambiental, caluniar ONGs, desmoralizar cientistas, fustigar instituições com a fábula do leão e das hienas, criticar artistas, sufocar organizações culturais e intimidar a imprensa —sobretudo o pedaço da imprensa que veicula em voz alta, com franqueza e lealdade à opinião pública, as coisas que os próprios ministros e aliados de Bolsonaro comentam às suas costas.
Para o capitão, a Folha desceu "às profundezas do esgoto" e a Rede Globo dedica-se à patifaria. O penúltimo presidente que expressou sentimentos semelhantes foi Lula. Tachava a Folha de "preconceituosa". Em 2010, retirou-se bruscamente de uma mesa de almoço no jornal. Alegou estar ofendido com um par de perguntas do então diretor de redação Otavio Frias Filho sobre sua política fisiológica de alianças e sobre o fato de ostentar desprezo pelo estudo mesmo depois de se tornar um líder nacional.
Quanto à emissora, Lula disse há nove dias, numa das inúmeras entrevistas que concedeu na cadeia: "Um dos desejos que eu tenho é fazer um ato público na frente da TV Globo. Passar um dia inteiro falando e mostrando as mentiras contadas a meu respeito".
Bolsonaro e Lula sustentam que a imprensa está desmoralizada e perde relevância. O morubixaba do PT diz isso desde a cadeia. Corrupto de terceira instância, aguarda por uma manobra do Supremo que anule suas sentenças. O capitão já foi informado por pesquisas de diferentes institutos de que não é incondicional nem inesgotável a boa vontade da plateia. Às voltas com uma popularidade declinante, o inquilino do Planalto torce para que o Supremo não desative os escudos que inibem investigações sobre os subterrâneos da família.
A imprensa tem muitos defeitos. Mas arrosta a antipatia de gente como Bolsonaro e Lula por conta de uma virtude: cumpre a missão jornalística de adequar as aparências à realidade e não adaptar a realidade às aparências, como prefeririam os imperadores da política. O papel da imprensa não é o de apoiar ou de se opor a governos. Sua tarefa é a de levar à plateia tudo o que tenha interesse público. Só não entende isso quem não dispõe de discernimento intelectual para conviver com o livre curso de informações e ideias.
Jair Bolsonaro, por exemplo, não aceita senão o apoio irrestrito e a capitulação. Por isso sonha com uma democracia de fachada, sem imprensa independente. Há pessoas cuja obra só será devidamente entendida daqui a um século. Bolsonaro só poderia ser perfeitamente entendido no século passado.
'Sabe com quem está falando?'
Dia desses e outros também tenho visto muita gente reclamar das carteiradas constantes. Muitas são inevitavelmente dirigidas a jornalistas, cujo trabalho é apurar fatos, mas muita gente no Brasil de hoje — no mundo de hoje — não gosta de fatos. Fatos muitas vezes são inconvenientes. Por exemplo: imagine que você tenha ficado preocupada e tenha decidido pesquisar sobre a Amazônia. Se você fez seu trabalho de forma cuidadosa, leu vários artigos científicos, aprendeu sobre as minúcias dos pontos de não retorno — os tipping points a partir dos quais a floresta vira savana —, conversou com cientistas, ambientalistas e ministros e ministras do Meio Ambiente de governos anteriores. Se você é economista tem a vantagem de ter passado por um rigoroso treinamento matemático. Quem sabe você aprendeu a gostar especialmente de modelos dinâmicos não lineares, aqueles que retratam a instabilidade do mundo como ele realmente é. Sendo esse o caso, há uma boa possibilidade de que você tenha decidido fazer umas contas para traçar cenários sobre a morte da floresta. Cenários não são certezas, mas ajudam a dar uma boa noção da urgência de certos problemas. E, bem, se dia sim e outro também você está acompanhando a cobertura jornalística dos desastres ambientais brasileiros, a Amazônia tem moradia certa em sua cabeça. Você faz a conta e traça o cenário. Eis que você descobre que o cenário catastrófico que tantos temem pode estar mais próximo do que muitos imaginam.
Inevitavelmente, você escreve e publica um artigo sobre a Amazônia. Evidentemente, alguns cientistas concordarão com seus achados e outros discordarão deles. Concordar e discordar fazem parte do método científico, da dialética da descoberta, por assim dizer. Sistemas dinâmicos não lineares, comumente chamados de sistemas dinâmicos complexos, são fascinantes pelo alto grau de instabilidade e imprevisibilidade. São, por essa razão, um prato cheio para o debate científico. Mas... “o governo desconhece o debate científico. O governo conhece apenas o pensamento linear”
Vejam, o pensamento linear, quando bem embasado por vetores, matrizes e álgebra linear, pode ser bastante sofisticado. Mas o pensamento linear unidimensional baseado em crendices, teorias conspiratórias e pitadas de magia pueril nada tem de interessante. Tem, sim, o poder destruidor. E, é claro, não consegue resistir à carteirada. Como assim você produziu um cenário de que não gostamos? Como ousa dizer que nosso governo pode vir a ser o responsável pela maior catástrofe ambiental do planeta, acentuada pelas mudanças climáticas em curso — nas quais não acreditamos — e com capacidade de acelerar as próprias mudanças climáticas em curso — e já dissemos que nelas não acreditamos? Em bom inglês: how dare you?
O presidente aparece na TV. Aparece na TV na Arábia Saudita. Ao aparecer na TV na Arábia Saudita para falar a um grupo de investidores, ele afirma ter potencializado as queimadas e o desmatamento na Amazônia porque ele não se “identificou com políticas anteriores no tocante à Amazônia”. Arremata: “A Amazônia é nossa! A Amazônia é do Brasil!”. Dias antes, membros do governo dele haviam tentado dar a carteirada em você porque seus números, poxa, seus números. A carteirada vem com um palavrório sobre os compromissos do governo com a Amazônia. A Amazônia acima de tudo, a Amazônia acima de todos. Trata-se da melhor política ambiental do planeta. Ela é fantástica, ela é memorável, ela é estupenda. How dare you?
O problema. O problema é que logo em seguida você e toda a torcida do Flamengo — sim, do Flamengo, viva o Flamengo — viram o presidente na TV. Na Arábia Saudita. Coitada da carteirada. Ela já não tem mais o fôlego de outrora. “Sabe com quem está falando?” Sei muito bem. Portanto, sente-se aí porque ainda não acabei de dizer tudo que tenho a escrever sobre a Amazônia.
Monica de Bolle
Aos 'tresloucados e malucos'
Villas Bôas relatou que respondia com o artigo 142 da Constituição àquela versão atualizada das “vivandeiras alvoroçadas” que, segundo o marechal Castello Branco, primeiro presidente do regime de 1964, exigiam “extravagâncias” do Poder Militar. Por esse artigo, as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Boa lembrança, já que o capitão da reserva Jair Bolsonaro nem completou um ano de mandato e seu filho Eduardo, deputado federal e quase embaixador (em Washington!), choca o País inteiro ao defender a volta do demoníaco AI-5, enquanto o presidente, como informa o repórter Renato Onofre, costura sua filiação ao ainda em gestação Partido Militar Brasileiro.
Assim, o novo partido embolaria perigosamente o presidente da República com militares, policiais, a bancada da bala e “tresloucados e malucos” de diversas espécies. E sob o número 38, em referência ao revólver mais conhecido, principalmente entre os bandidos, no bang-bang nacional. O presidente no “três oitão”...
Eduardo Bolsonaro uniu o País inteiro, da esquerda à direita, do PT de Lula ao PSC do Pastor Everaldo, ao defender a volta do demoníaco AI-5. Para o pai Jair, quem fala uma coisa dessas está “sonhando, sonhando, sonhando”. Há quem sonhe com o paraíso, ganhar na loteria, a casa própria ou um bom prato de comida. Fazer apologia a ditaduras não é sonho, é pesadelo — além de crime.
Só não é novidade no clã Bolsonaro, já que o patriarca saiu pela porta dos fundos do Exército após ser acusado de planejar explodir quartéis, passou três décadas no Congresso defendendo ditadores, torturadores, censura e dedicou seu voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff a Brilhante Ustra, a estrela dos livros sobre tortura no Brasil.
Já eleito presidente, Bolsonaro chocou o Paraguai ao elogiar Stroessner e irritou o Chile duas vezes: com loas ao igualmente sanguinário Pinochet e depois atacando o pai da ex-presidente Michelle Bachelet, morto sob tortura. Até o atual presidente Sebastián Piñera reagiu.
Foi assim que Bolsonaro criou os filhos. Eduardo já tinha feito a bravata infantil de que, para fechar o Supremo, bastam um cabo e um soldado. Carlos lidera uma guerra insana pela internet contra tudo e todos. Flávio mantém relações complexas com ex-policiais de má fama no Rio.
Perguntei a um oficial muito entrosado com as três Forças como militares reagiam à fala sobre o AI-5 e ele: “Rindo. Só rindo de um absurdo desses”. E disse que “nunca” haverá um partido militar, incompatível com a missão constitucional das Forças Armadas e um retrocesso gravíssimo no longo processo de profissionalização e descontaminação dos quartéis.
A manifestação do oficial está perfeitamente de acordo com o que me disse naquela entrevista o brilhante general Villas Bôas, ao descartar aventuras golpistas e apelos de vivandeiras: “Nós aprendemos a lição. Estamos escaldados”. Só que o presidente e seus filhos talvez não.
A Câmara, por corporativismo ou preguiça, apenas advertiu o deputado Jair, que em 1999 queria fechar o Congresso, disse que “o erro do regime militar foi (só) torturar, não matar” e lamentou que o então presidente Fernando Henrique não tivesse sido fuzilado. Parecia só bravata e, impune, Jair acabou presidente. Como a Câmara vai reagir agora ao deputado Eduardo?
Os sonhadores do nosso pesadelo
A veloz sobreposição dos desvarios é a lógica dos ataques corrosivos com que o movimento autoritário vai expulsando do país, sem reação, os “ares democráticos” —na boa designação do ministro Marco Aurélio Mello para o nosso indefinível regime.
Os intervalos prestam-se a desautorizações de Bolsonaro e outras saídas inconvincentes. Caso, por exemplo, da explicação para os registros comprometedores de entradas e comunicações no condomínio de Jair e Carlos Bolsonaro. A confusão agora atribuída ao porteiro experiente, entre os números 58 e 65 no registro de entradas, está longe de ser admissível. E ainda a confusão entre duas vozes, que ouve há muitos anos, na autorização para entrada de um envolvido na morte de Marielle, isso apenas completa o primarismo do socorro buscado pelos Bolsonaros.
Tanto mais que, entre a correta revelação, feita pela TV Globo, das anotações originais e a inculpação do porteiro, o filho Carlos teve em mãos o material da portaria, teve contatos com o porteiro, e foi o lançador da nova versão. Já descuidado então das hienas levadas ao saite, ou ao zoo, que divide com o pai, para insultar o Supremo, a ONU, a CNBB, a OAB, o Congresso, a “mídia”.
O filho da vez, Eduardo, costuma ser mais direto. Assim como se referiu ao fechamento do Supremo, apenas com o poder de um cabo e um soldado, invocou o AI-5 como possível solução para insatisfações por aqui. O que mereceu do pai um comentário dúbio, não por inteligência, mas por lapso freudiano: quem “fala em AI-5 está sonhando”. Está fora da realidade ou o seu sonhar é ter um desejo forte? Não é o caso do velho “ou ambos”.
A realidade, hoje, não é só ameaçadora. Já derrubou muitos valores da democracia e da civilização. Como sabem os artistas, os docentes universitários, os pesquisadores científicos, os que lutam pela Amazônia, os ambientalistas todos, os indígenas, os cansados de ver as “reformas” tirarem sempre dos que menos têm.
O ataque constante ao sistema constitucional de Três Poderes independentes, a intromissão ideológica na política interna de países vizinhos, as contradições da política externa, além daquelas violentas práticas administrativas, são realidades objetivas.
Se os desatinos dos Bolsonaro fossem apenas blefes, como alguns imaginam, esses fatos não estariam tão à vista de quem os queria ver a sério. Blefe, obviamente por ser blefe, nem se pode saber se é, até que por fim se exponha, caso o faça.
Os Bolsonaro não suscitam dúvida. A incógnita está nos militares, em especial os do Exército, da ativa e reformados. Sabe-se, por exemplo, que as ideias adotadas por Bolsonaro para a Amazônia, para as reservas indígenas e para os próprios índios coincidem, como conjunto, com as vigentes no Exército.
Já no começo dos anos 1970, Médici no Planalto e o AI-5 no poder, isso foi explicitado publicamente, sobretudo a partir de intenções devastadoras para os ianomâmi. A “questão indígena do Brasil” tornou-se preocupação internacional, e a ditadura foi compelida a conter-se.
Mas o silêncio dos generais bolsonaristas diante dos acontecimentos produzidos pelos Bolsonaro e seus bolsonaretes, dos mais grotescos aos mais comprometedores do país, significa algo que não se sabe o que é. Sim, quem cala consente. Mas nem sempre. E se consente, por que o faz e até onde o fará? Não há sequer sugestão de resposta, embora não falte quem veja resposta na ausência de resposta.
A profissionalização militar parece prosseguir na Marinha e na Aeronáutica, as duas forças nas quais, não por coincidência, a formação tem melhor nível em conhecimento e em costumes. No Exército, a profissionalização sofreu forte recuo, personificado no general reformado Eduardo Villas Bôas.
Patrocinador da candidatura Bolsonaro, conselheiro do governo, é a voz das pressões sobre o Supremo contra decisão que possa libertar Lula (na primeira investida, a pressão foi vitoriosa; a segunda não está decidida).
Mas não há clareza sobre a representatividade política desse general nos dias atuais, nem tampouco a do também bolsonarista Augusto Heleno, que contradiz com ira extremada e permanente o diminutivo Heleninho do tratamento de camaradas.
O bolsonarismo sonha e não para. Dos democratas, apenas se sabe que dormem. Ou fingem dormir.
Ecoturismo faz renascer região abalada por um dos piores desastres ambientais do governo militar
Nos anos que se seguiram à crise do petróleo, na década de 1970, o governo militar e a Eletronorte decidiram construir uma hidrelétrica na cidade de Presidente Figueiredo, pouco mais de 100 quilômetros rio acima.
Decomposição das árvores submersas produz impacto 25 vezes maior no efeito estufa do que antes da hidrelétrica |
O objetivo declarado da construção da usina de Balbina era reduzir a dependência de Manaus de usinas movidas a combustíveis fósseis. A usina, porém, inundou uma área de floresta nativa equivalente a 2,4 mil quilômetros quadrados, quase duas vezes maior que a do Lago de Itaipu (maior hidrelétrica do mundo,) para produzir menos de 2% da energia produzida pela usina binacional.
Mesmo depois que a obra ficou pronta, Manaus continuou dependendo de usinas térmicas para mais da metade de sua demanda na época. Quando a cidade se conectou ao Sistema Interligado Nacional (SIN), com o linhão de Tucuruí, em 2013, Balbina não respondia por mais de 20% da eletricidade consumida na capital do Amazonas.
Contaminada pelo apodrecimento das árvores e animais mortos pelo lago, a água do Uatumã nessa área se tornou imprópria para banho e consumo humano e, assim que as comportas foram abertas, em 1989, deixou um rastro de mortes de peixes e animais rio abaixo.
Essa história é contada, entre outras fontes, no documentário "Balbina no País da Impunidade", também de 1989, e por matérias de importantes jornais estrangeiros.
Orçada oficialmente em US$ 750 milhões, Balbina levou quase nove anos para ser construída. Tida como cara e de alto custo de manutenção, recebeu críticas desde que ainda era projeto.
Para o físico e então reitor da Universidade de São Paulo, José Goldemberg, havia alternativas melhores, como a construção de térmicas abastecidas por gás natural que a Petrobras havia descoberto em Juruá, a 500 quilômetros de Manaus.
Também se falava do fato de a obra ser construída em uma região de floresta com imensa biodiversidade. Em março de 1988, cerca de seis meses após o início do alagamento dessa região da Amazônia, a repórter Marlise Simons, do The New York Times, acompanhou uma das equipes de um grupo de 250 pessoas encarregado de encontrar, capturar e soltar em áreas seguras animais ilhados.
O título apontava: "O Brasil quer hidrelétricas, mas a que custo?"
"Os animais terrestres aqui ou fugiram ou morreram", contava à jornalista o zoólogo Bento Melo, enquanto seguiam pelo rio em expedição. "Estamos buscando animais de árvores, como primatas, preguiças, felinos e tamanduás."
Sem o mesmo tipo de socorro, bichos menores como lagartos, escorpiões e aranhas se defendiam como podiam - ficavam amontoados na copa das árvores, o que resultava em imagens insólitas de folhagens tomadas por essas espécies.
Animais que nadam bem foram deixados sozinhos. O alagamento resultou na criação de mais de 3,5 mil ilhas no lago, algumas pequenas, outras com alguns quilômetros quadrados. "Ninguém tem a mínima ideia de quantos bichos há nesta área, nem a quantidade de vida que ela pode sustentar", dizia Melo.
Ao menos duas aldeias indígenas existentes na região do lago — como a dos Waimiri-Atroari — foram transferidas e, com a morte dos peixes, após o início da operação, muitos moradores da região ficaram sem ter o que comer e beber.
Os efeitos ambientais são sentidos até hoje. A decomposição das árvores submersas geram dióxido de carbono na superfície e, no fundo do lago, metano, com impacto 25 vezes maior no efeito estufa do que antes da hidrelétrica, segundo cálculos do ecólogo Alexandre Kemenes, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Preso ao fundo pela pressão, o gás é liberado na passagem da água pelas turbinas da usina e contribui para a morte de peixes do fundo do rio, como os bagres. Com isso, de acordo com Kemenes, Balbina emite dez vezes mais gases do efeito estufa que uma usina termelétrica a carvão com a mesma potência — há outros estudos que apontam um número menor, mas todos trazem evidências de que a hidrelétrica emite mais gases de efeito estufa que uma termelétrica com potencial equivalente.
Por tudo isso, e pela baixa capacidade de geração em relação ao tamanho do lago, recentemente a usina foi considerada a pior hidrelétrica brasileira, em uma lista de mais de 100 nomes composta por especialistas como Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás e professor de planejamento energético da Coppe/UFRJ.
Passados 30 anos, a água do Uatumã ainda não voltou a ser potável e peixes de algumas espécies, antes comuns, são hoje relativamente raros.
"Quando as águas baixaram, o cheiro de peixe morto era insuportável. Tudo aqui em volta, no mato, onde a água chegou, cheirava muito mal", lembra o ribeirinho Antônio Martins Queirós, de 65 anos.
A situação, hoje, é outra e o que era degradação, nos últimos anos, vem se transformando em oportunidade para quem vive em uma área rica em belezas naturais.
Três décadas depois do desastre ambiental, o ecoturismo encontra espaço no rio Uatumã, com a criação de uma reserva de desenvolvimento sustentável, controle do acesso de barcos-hotéis vindos de fora e participação da população local na atividade turística.
Aos poucos, o turismo vai substituindo como fonte de renda a pesca, a caça e outras formas de extrativismo nocivas ao meio ambiente.
Sentado sobre uma pilha de tijolos, descalço, de bermuda e camisa pólo, o ribeirinho Antônio Queirós discorre sobre seus planos. Até 2018, vivia da agricultura de subsistência e da venda de melancias que plantava no entorno da casa onde mora.
A picada de uma surucucu (a segunda), no entanto, o levou a repensar o futuro.
Animado pelos resultados de outros ribeirinhos, decidiu usar suas economias para construir uma pousada e se somou ao grupo que vem investindo no ecoturismo.
Já são dez as pousadas em funcionamento na região, e outras cinco devem entrar em operação até 2020. Até cinco anos atrás, eram apenas duas pousadas. "É minha aposentadoria. Já não tenho disposição para a agricultura", diz Queirós.
O bom momento atual é reflexo de ações de preservação ambiental na região.
Em 2004, depois de um período de forte degradação do rio, iniciado com a abertura das comportas de Balbina, o governo do Estado do Amazonas transformou uma área quase duas vezes maior que o município de São Paulo, no entorno do rio, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã (RDS Uatumã).
A unidade de preservação ambiental foi o ponto de partida de um plano estratégico de desenvolvimento sustentável para a região, que prevê, entre outras coisas, a exploração do ecoturismo, do turismo de base comunitária e da pesca esportiva como alternativas de renda para as populações ribeirinhas.
Primeiro, veio a proibição à exploração de pousadas na região por quem não fosse morador — havia duas, hoje fechadas. Depois, o ordenamento para a construção de pousadas pelos ribeirinhos.
Mais recentemente, houve a restrição a barcos-hotéis, vindos de Manaus, que até 2016 podiam circular em qualquer um dos três pólos da reserva.
As embarcações costumavam trazer dezenas de pessoas e deixavam para trás apenas lixo, contam os ribeirinhos.
Desde então, porém, a circulação ficou restrita a um dos pólos, o menor, onde não há pousadas. "Assim, os barcos deixaram de concorrer com as comunidades locais", afirma Cristiano Gonçalves, gerente da unidade de preservação.
Mesmo depois que a obra ficou pronta, Manaus continuou dependendo de usinas térmicas para mais da metade de sua demanda na época. Quando a cidade se conectou ao Sistema Interligado Nacional (SIN), com o linhão de Tucuruí, em 2013, Balbina não respondia por mais de 20% da eletricidade consumida na capital do Amazonas.
Contaminada pelo apodrecimento das árvores e animais mortos pelo lago, a água do Uatumã nessa área se tornou imprópria para banho e consumo humano e, assim que as comportas foram abertas, em 1989, deixou um rastro de mortes de peixes e animais rio abaixo.
Essa história é contada, entre outras fontes, no documentário "Balbina no País da Impunidade", também de 1989, e por matérias de importantes jornais estrangeiros.
Orçada oficialmente em US$ 750 milhões, Balbina levou quase nove anos para ser construída. Tida como cara e de alto custo de manutenção, recebeu críticas desde que ainda era projeto.
Para o físico e então reitor da Universidade de São Paulo, José Goldemberg, havia alternativas melhores, como a construção de térmicas abastecidas por gás natural que a Petrobras havia descoberto em Juruá, a 500 quilômetros de Manaus.
Também se falava do fato de a obra ser construída em uma região de floresta com imensa biodiversidade. Em março de 1988, cerca de seis meses após o início do alagamento dessa região da Amazônia, a repórter Marlise Simons, do The New York Times, acompanhou uma das equipes de um grupo de 250 pessoas encarregado de encontrar, capturar e soltar em áreas seguras animais ilhados.
O título apontava: "O Brasil quer hidrelétricas, mas a que custo?"
"Os animais terrestres aqui ou fugiram ou morreram", contava à jornalista o zoólogo Bento Melo, enquanto seguiam pelo rio em expedição. "Estamos buscando animais de árvores, como primatas, preguiças, felinos e tamanduás."
Usina de Balbina foi considerada a pior hidrelétrica brasileira, em uma lista de mais de 100 nomes composta por especialistas |
Animais que nadam bem foram deixados sozinhos. O alagamento resultou na criação de mais de 3,5 mil ilhas no lago, algumas pequenas, outras com alguns quilômetros quadrados. "Ninguém tem a mínima ideia de quantos bichos há nesta área, nem a quantidade de vida que ela pode sustentar", dizia Melo.
Ao menos duas aldeias indígenas existentes na região do lago — como a dos Waimiri-Atroari — foram transferidas e, com a morte dos peixes, após o início da operação, muitos moradores da região ficaram sem ter o que comer e beber.
Os efeitos ambientais são sentidos até hoje. A decomposição das árvores submersas geram dióxido de carbono na superfície e, no fundo do lago, metano, com impacto 25 vezes maior no efeito estufa do que antes da hidrelétrica, segundo cálculos do ecólogo Alexandre Kemenes, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Preso ao fundo pela pressão, o gás é liberado na passagem da água pelas turbinas da usina e contribui para a morte de peixes do fundo do rio, como os bagres. Com isso, de acordo com Kemenes, Balbina emite dez vezes mais gases do efeito estufa que uma usina termelétrica a carvão com a mesma potência — há outros estudos que apontam um número menor, mas todos trazem evidências de que a hidrelétrica emite mais gases de efeito estufa que uma termelétrica com potencial equivalente.
Por tudo isso, e pela baixa capacidade de geração em relação ao tamanho do lago, recentemente a usina foi considerada a pior hidrelétrica brasileira, em uma lista de mais de 100 nomes composta por especialistas como Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás e professor de planejamento energético da Coppe/UFRJ.
Passados 30 anos, a água do Uatumã ainda não voltou a ser potável e peixes de algumas espécies, antes comuns, são hoje relativamente raros.
"Quando as águas baixaram, o cheiro de peixe morto era insuportável. Tudo aqui em volta, no mato, onde a água chegou, cheirava muito mal", lembra o ribeirinho Antônio Martins Queirós, de 65 anos.
A situação, hoje, é outra e o que era degradação, nos últimos anos, vem se transformando em oportunidade para quem vive em uma área rica em belezas naturais.
Três décadas depois do desastre ambiental, o ecoturismo encontra espaço no rio Uatumã, com a criação de uma reserva de desenvolvimento sustentável, controle do acesso de barcos-hotéis vindos de fora e participação da população local na atividade turística.
Aos poucos, o turismo vai substituindo como fonte de renda a pesca, a caça e outras formas de extrativismo nocivas ao meio ambiente.
Sentado sobre uma pilha de tijolos, descalço, de bermuda e camisa pólo, o ribeirinho Antônio Queirós discorre sobre seus planos. Até 2018, vivia da agricultura de subsistência e da venda de melancias que plantava no entorno da casa onde mora.
A picada de uma surucucu (a segunda), no entanto, o levou a repensar o futuro.
Animado pelos resultados de outros ribeirinhos, decidiu usar suas economias para construir uma pousada e se somou ao grupo que vem investindo no ecoturismo.
Já são dez as pousadas em funcionamento na região, e outras cinco devem entrar em operação até 2020. Até cinco anos atrás, eram apenas duas pousadas. "É minha aposentadoria. Já não tenho disposição para a agricultura", diz Queirós.
O bom momento atual é reflexo de ações de preservação ambiental na região.
Em 2004, depois de um período de forte degradação do rio, iniciado com a abertura das comportas de Balbina, o governo do Estado do Amazonas transformou uma área quase duas vezes maior que o município de São Paulo, no entorno do rio, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã (RDS Uatumã).
A unidade de preservação ambiental foi o ponto de partida de um plano estratégico de desenvolvimento sustentável para a região, que prevê, entre outras coisas, a exploração do ecoturismo, do turismo de base comunitária e da pesca esportiva como alternativas de renda para as populações ribeirinhas.
Primeiro, veio a proibição à exploração de pousadas na região por quem não fosse morador — havia duas, hoje fechadas. Depois, o ordenamento para a construção de pousadas pelos ribeirinhos.
Mais recentemente, houve a restrição a barcos-hotéis, vindos de Manaus, que até 2016 podiam circular em qualquer um dos três pólos da reserva.
As embarcações costumavam trazer dezenas de pessoas e deixavam para trás apenas lixo, contam os ribeirinhos.
Desde então, porém, a circulação ficou restrita a um dos pólos, o menor, onde não há pousadas. "Assim, os barcos deixaram de concorrer com as comunidades locais", afirma Cristiano Gonçalves, gerente da unidade de preservação.
Levantem-se pelos mortos!
Neste Dia de Finados me dei conta do quanto os mortos estão presentes na vida. Na vida pessoal e na política também. Por mais que tentamos esquecê-los, apagar ou deturbar suas memórias, eles voltam.
No Brasil, é o caso Marielle Franco. Cada vez mais aparecem contradições. A intenção de acobertar o crime fica cada vez mais evidente.
Nesse contexto pesado, Eduardo Bolsonaro ligou a metralhadora verbal. Insinuou que os protestos atuais no Chile poderiam acabar chegando ao Brasil. Tentou criar um cenário ameaçador dizendo que, caso haja um efeito de contágio no Brasil, um novo AI-5 poderia ser editado.
Será que a intenção dele era tira a atenção do caso Marielle e "proteger" o pai dele? Se for, o plano não deu certo. Mas a atitude dele revela em dose dupla a falta de respeito perante os mortos. Brasileiros mortos por motivos políticos, como Marielle e as vítimas da ditadura.
Mostra também a ilusão de que reprimir adversários políticos pode resolver a briga pelo poder ou por ideologia. Pois os mortos não respeitam a lei do silêncio. Os espíritos deles continuam rodando e "perturbando”, confrontando todo mundo com o passado.
Na Alemanha, infelizmente, a vontade de banalizar e minimizar os perigos da extrema direita também cresce. Faz pouco tempo, o partido populista de direita alemão Alternativa para a Alemanha (AfD) gerou enorme controvérsia ao comentar sobre o memorial aos judeus mortos no Holocausto em Berlim.
O chefe da AfD no estado de Turínga, Björn Höcke, afirmou que os alemães são "os únicos do mundo a ter plantado um monumento da vergonha no coração de sua capital". E continuou: "Essas políticas estúpidas de enfrentar o passado nos paralisam – tudo de que precisamos é de uma virada de 180 graus na política da memória".
Nas eleições estaduais de 27 de outubro, esse político ultradireita da AfD conseguiu 23,4 por cento dos votos. Foi uma vitória arrasadora, pois quatro anos atrás, o partido AfD tinha conquistado 10,6%.
Durante muitos anos, o crescimento da ultradireita na Alemanha foi banalizado. E com isso, também, a violência e os crimes antissemitas, xenófobos e racistas. Só com o escândalo do grupo terrorista Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU), o erro ficou evidente, e um debate foi iniciado.
O grupo neonazista NSU foi fundado em 1999 com o "objetivo” de assassinar estrangeiros na Alemanha. Os integrantes do grupo mataram dez pessoas entre 2000 e 2007 e tentaram matar outras 43. As investigações, porém, excluíram motivos xenófobos durante muitos anos.
As vitimas da NSU foram assassinadas em plena democracia por motivos políticos. Como Marielle no Brasil. E como muitos outros líderes comunitários, ativistas e militantes políticos em diferentes regiões brasileiras.
No Dia de Finados, eles levantam a voz novamente. Morreram, mas os ideais continuem vivos. Eles precisam de aliados, como a democracia que precisa ser defendida. Os mortos governam juntos. Vamos nos levantar por eles.
Astrid Prange de Oliveira
Os BolsoLulas
"Eu fico imaginando o tesão da Globo colocando a minha fotografia preso. Eles vão ter orgasmos múltiplos. (...) Eles têm de saber que vocês, quem sabe, são até mais inteligentes que eu, e queimar os pneus que vocês tanto queimam, fazer as passeatas, as ocupações no campo e na cidade; parecia difícil a ocupação de São Bernardo, e amanhã vocês vão receber a notícia que vocês ganharam o terreno que vocês invadiram."
Era sonho. Lula foi para a cadeia, ninguém foi para a rua, seu candidato a presidente foi derrotado por 55% a 45% e em janeiro de 2019 o capitão Jair Bolsonaro tomou posse na Presidência da República. Logo o capitão, que Lula achava fácil derrotar.
Passaram-se dez meses, Lula conta o tempo para deixar a carceragem de Curitiba e os Bolsonaros deixaram na porta da sua cela a bandeira da pacificação. Num país com 12 milhões de desempregados eles brigam aqui e alhures, para nada. Se Lula vai empunhar essa bandeira, só ele sabe, mas vale a pena lembrar que há poucas semanas o PT foi para a avenida Paulista com poucas camisas vermelhas. A deputada Gleisi Hoffmann vestia uma camiseta branca com o rosto de Lula enfeitado por flores.
Em sua entrevista a Leda Nagle, o deputado Eduardo Bolsonaro disse que "vai chegar um momento em que a situação vai ser igual ao final dos anos 60 no Brasil, quando sequestravam aeronaves, quando sequestravam-se e executavam-se autoridades, cônsules, embaixadores, com execuções de policiais e de militares. Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar de uma resposta. Ela pode ser via um novo AI-5".
Eduardo Bolsonaro corrigiu-se e seu pai condenou a fala. Mesmo assim deve-se registrar que no final dos anos 60 havia também um terrorismo de direita, cujo núcleo clandestino era composto por militares e civis. Era menos letal, mas buscava estimular a tensão política.
O nervo da formulação do deputado esteve na frase "se a esquerda radicalizar". E se a esquerda não radicalizar? Até agora, o radicalismo da inépcia foi monopólio do governo. Ademais, o último atentado terrorista ocorrido no Brasil, em 1981, foi a bomba do Riocentro, mas ele saiu do DOI-Codi do 1º Exército.
Há radicais na esquerda, mas no Brasil o que está na vitrine é outro radicalismo tosco, demófobo e desorientado. Ele teceu a bandeira da pacificação, levou-a a Curitiba e deixou-a na porta da cela de Lula.
Porteiros e polícia
Além do fantasma de Marielle Franco, outra assombração ronda o movimento de carros no condomínio onde viviam Jair Bolsonaro e o miliciano Ronnie Lessa no dia do assassinato da vereadora. É o risco de que acabe sobrando para o porteiro que registrou a entrada de Élcio Queiroz na propriedade.Não se sabe o que aconteceu naquele dia, mas uma velha história ensina que polícia e porteiros produzem situações fantásticas.
Em maio de 1976, Íris Coelho, ex-secretária do general Golbery do Couto e Silva e do presidente Castello Branco, escreveu-lhe uma carta contando o que havia acontecido ao porteiro de seu edifício. Haviam roubado objetos de carros que estavam na garagem e ele foi preso. Com 11 anos de serviço e pai de três filhos, soltaram-no 24 horas depois: "O pobre estava todo machucado, os tímpanos perfurados. Aplicaram-lhe choque, bateram-lhe a cabeça contra a parede. Foi fichado como ladrão de automóveis e arrombador".
Íris não era uma novata. Depois de uma audiência com o embaixador soviético, Castello chamou-a para ditar uma minuta da conversa secreta.
Passaram-se seis meses e o governador do Rio remeteu o resultado da investigação a Golbery, o então poderoso Chefe da Casa Civil da Presidência. Resultava que depois de novos depoimentos e acareações, a polícia apurou o seguinte:
1- O porteiro disse que conversou com Íris, expressou-se mal ou ela não entendeu o que ele falou. Além disso, não a autorizou a fazer qualquer reclamação.
2- As marcas que tinha pelo corpo eram produto de uma alergia.
Íris Coelho voltou a escrever:
"Sinto muito, acredite que lastimo realmente ter sido causa de tanto trabalho e perda de tempo. Do modo como o processo se encaminhava, achei que a melhor solução seria aquela que foi dada na acareação com o porteiro. Creia-me, aprendi uma grande lição."
Seja qual for versão, sempre que se chega à conclusão de que o porteiro mentiu, vale a pena perguntar quem estava interessado nisso.
Em estado de autoflagelo
Certamente seus partidários mais fiéis vão dizer que é um placar semelhante ao 7 a 1 aplicado pela seleção de futebol da Alemanha na seleção do Brasil na Copa da Fifa de 2014, competição que Dilma chamou de “Copa das Copas”, e que para o Brasil foi o vexame dos vexames.
Bolsonaro não disse, mas isso ninguém costuma mesmo dizer, é que os índices econômicos tão diferentes para melhor foram conseguidos por vários motivos, com destaque para dois. O primeiro, é que ele recebeu do presidente Michel Temer uma economia já em recuperação, lenta, mas não mais em depressão. O segundo é que sua equipe econômica trabalha duro e sem interferências mais sérias. Na economia, nem o presidente nem seus filhos criam crises como criam na política. Além do mais, o Congresso decidiu parar de fazer marolas, de votar pautas-bomba. Abraçou as reformas econômicas, passou confiança para o mercado, permitiu que investidores pensem no Brasil como um bom lugar para pôr o dinheiro que têm.
Imagina o cenário que o presidente poderia mostrar no Twitter se o País tivesse um mínimo de paz na política, se o presidente não criasse uma crise nova a todo momento, se os filhos decidissem ser só o que são: filhos do presidente da República, um envolvido com o trabalho no Senado, outro com o trabalho na liderança do PSL e na presidência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e outro na sua função de vereador no Rio de Janeiro, fiscalizando o que faz a administração de Marcelo Crivella. E não pensando que, por serem filhos do presidente, podem também ocupar a Presidência de vez em quando. E nessa função à qual não têm direito, pensar em uma guerra contra inimigos imaginários, planejar a assinatura de um novo AI-5 e jogar a Nação e seu povo de volta a uma ditadura que ninguém quer.
Sem as crises políticas, Bolsonaro poderia usar o Twitter não só para fazer uma comparação entre seu governo e o de Dilma. Poderia também dizer que em seu governo não se registrou, até agora, nenhuma crise política, ao contrário do que ocorreu no de Dilma em 2015. Naquele ano, em novembro, aliados fugiam dela como se ela fosse o diabo. E dali a um mês seria aberto um processo de impeachment.
O problema é que Bolsonaro não consegue usar o Twitter só para enaltecer as coisas boas que seu governo tem feito, e que até permitiram uma recuperaçãozinha do emprego. Vai à rede social para agredir instituições que são os pilares do estado democrático de direito, como fez com o STF, ao compará-lo a uma hiena que tenta destruir o leão-Bolsonaro. E os filhos, um aproveita que o pai está fazendo uma cirurgia para dizer que o regime democrático não permite mudanças rápidas, insinuando que as coisas só se resolvem numa ditadura; o outro dá uma entrevista para convocar fantasmas e falar que pode ser necessário editar um novo AI-5. Isso contra um adversário hipotético, incapaz de chamar uma manifestação de rua contra a reforma da Previdência. E que ainda reúne os cacos do desastre em que se meteu ao confundir o público com o privado, ao criar uma máquina de corrupção nas estatais. O que permitiu a eleição de Bolsonaro.
O sonho da grande pátria
Hoje, somam 337 mil os presos “provisórios” – 41,5% dos encarcerados. Prevê-se que se aprofunde o ciclo da prisão provisória em mais um estrangulamento no sistema, retrocesso a ser endossado pela mais alta Corte.
Numa expressão enganadora, governantes dizem controlar o crime organizado. Balela. O poder invisível festeja a barbárie sem escrúpulos. Só falta mobilizar seus “exércitos nas ruas e nos cárceres” em movimentos cívicos contra os “criminosos da política”.
Não será surpresa se parcela da população aplaudir a bandidagem do andar de baixo contra a turma do andar de cima. Afinal, a criminalidade e a impunidade são escandalosas. O ex-juiz Sergio Moro imaginou que, como ministro, poderia agregar mais força no combate ao crime. Ledo engano. O Legislativo, por conveniência, faz restrições a seus projetos. Ante a possível decisão do STF, corruptos e facínoras farão uso da protelação – recursos e embargos até eventual condenação em terceira ou última instância.
Não é de estranhar que a anomia – o descumprimento da lei – tome conta do país. Voltaremos aos idos da Colônia e do Império. Tomé de Souza, primeiro governador geral, chegou quando os crimes proliferavam. Avocou a imposição da lei e tirou o poder das capitanias. Mandou amarrar na boca de um canhão um índio que assassinara um colono. Mas o tiro não assombrou os tupinambás. Difícil evitar a desordem. Então apareceram as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que vigoraram até 1830. Severas, com pena de morte para a maioria das infrações, o que espantou Frederico, o Grande, da Prússia. Ao ler Livro das Ordenações, indagou: “Há ainda gente viva nas terras de Portugal?” Com o tempo, castigos foram atenuados, e a criminalidade voltou.
Entre sustos e panos quentes, o Brasil semeou a cultura do faz de conta na aplicação das leis. A população ficou indiferente diante de crimes mais atrozes. Nesse ambiente floresce o poder invisível, cancro das democracias. A violência no Brasil custa cerca de R$ 300 milhões por dia, segundo cálculos antigos do ex-secretário nacional de Segurança Pública coronel José Vicente. Mas o custo emocional é impagável. Morre-se um pouco a cada dia, levando a esperança, a fé e o sonho de uma grande pátria.
A história de umas sandálias
Começamos a conversar sobre nomes e destinos e acabamos, quase sem dar conta, discutindo a difícil situação de Angola e do mundo. Quando me queixei dos dias que correm, Janaína saiu em defesa deles. Fiquei surpreso, pois são poucos aqueles que defendem estes dias. A maioria das pessoas mostra mais carinho e simpatia pelo passado ou pelo futuro do que pelo presente. O presente é muito desvalorizado.
Fui forçado a dar-lhe razão. Angola enfrenta muitos problemas — milhões de desempregados, uma sociedade dividida entre uma larga maioria de pessoas muito pobres e uma estreita minoria de gente extremamente rica; assistência médica precária e um péssimo sistema de ensino público etc. Contudo, já vai sendo difícil encontrar alguém descalço nas ruas das principais cidades. O mesmo acontece no resto do continente.
“O teu problema é que tens mais sapatos do que pés”, dizia-me a minha avó, sempre que eu me queixava sem um motivo sério. Depois contava-me a história do Joãozinho Centopeia, que nascera com três pernas e três pés, de forma que quando precisava comprar sapatos ficava com um a mais. Acho que ela inventava aquelas histórias, as quais, de resto, seriam impublicáveis nos dias que correm. E pronto, lá estou eu a queixar-me dos dias que correm. Venho tentando não o fazer, juro. Lembrar-me da história de Janaína ajuda-me. Lembrar-me da minha avó também. Elas estão certas: por um lado o mundo já foi um lugar pior, guerras por todo o lado, ditaduras e miséria extrema. Por outro, na maioria das vezes as nossas queixas (as minhas queixas) são fúteis. Afinal de contas, tenho sapatos. Tenho, inclusive, mais sapatos do que pés.
José Eduardo Agualusa
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