sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A droga da peste


A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes
Albert Camus

Imagem do Brasil

 


O demolidor da República e seus cúmplices

Desde sua posse, mas especialmente em meio à pandemia de covid-19, o presidente Jair Bolsonaro não se comportou em nenhum momento como se soubesse o que fazer com o poder que os eleitores lamentavelmente lhe conferiram em 2018. Bolsonaro não preside a República; depreda-a – e nisso é coadjuvado não somente pelos fanáticos camisas pardas bolsonaristas, mas por muitos brasileiros comuns que, por ignorância do que vem a ser uma República, respaldam a vandalização da Presidência e, por extensão, da própria democracia.

Já não é mais possível saber qual dos atentados de Bolsonaro foi o mais grave nos dois anos de seu tenebroso governo, mas a terça-feira passada é forte candidata a entrar para a história como o dia em que o presidente declarou guerra a seus governados. Jamais houve nada parecido com isso em tempos democráticos.

Bolsonaro deu declarações em que explicitamente desencorajou seus compatriotas de tomar a vacina contra a covid-19, fazendo terrorismo acerca de eventuais efeitos colaterais. No dia anterior, Bolsonaro havia informado que, diante das ressalvas dos laboratórios, exigirá de quem queira tomar a vacina a assinatura de um “termo de responsabilidade”. Ele mesmo anunciou que não tomará a vacina, “e ponto final”.


Desde o início da pandemia, a única preocupação de Bolsonaro é livrar-se de qualquer responsabilidade, seja sobre as mortes, seja sobre os problemas econômicos. Mas atribuir aos próprios cidadãos uma responsabilidade que é inteiramente do Estado constitui desfaçatez inaudita até para este governo. Para ser aplicada, qualquer vacina precisa ser autorizada pelos órgãos sanitários competentes, que nesse ato reconhecem sua responsabilidade. Assim, não há nenhuma base jurídica para exigir dos cidadãos um termo de consentimento diante dos supostos riscos.

Mas Bolsonaro nunca esteve preocupado com bases jurídicas ou quaisquer outros pormenores republicanos. Perdeu-se a conta de quantas medidas provisórias, decretos e projetos de lei produzidos por ordem de Bolsonaro foram ignorados, suspensos ou rejeitados pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal por não atenderem aos requisitos mínimos de legalidade e interesse público.

O desdém de Bolsonaro pela República que lhe coube presidir é tamanho que, para ele, nem mesmo sua assinatura vale o papel em que foi escrita. Seu nome chancela o Decreto 10.045, de 4 de outubro de 2019, que determina a inclusão da Ceagesp no Programa Nacional de Desestatização. Contudo, esse mesmo signatário, em tom de comício, subiu num palanque na Ceagesp, na terça-feira passada, para garantir que “nenhum rato” privatizará a companhia. Referia-se, obviamente, ao governador paulista e principal desafeto, João Doria.

Tampouco o princípio republicano da impessoalidade resistiu à ofensiva bolsonarista para aparelhar o Estado com apaniguados a serviço do presidente e de seus filhos. A Procuradoria-Geral da República, a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência são hoje comandadas por leais servidores de Bolsonaro, que parecem empenhados em tranquilizar o chefe e sua prole enrolada na Justiça.

Assim, na sua empreitada para arruinar a República, Bolsonaro conta com vários outros cúmplices – como os comerciantes que se aglomeraram sem máscara e urraram de excitação com o discurso virulento de Bolsonaro na Ceagesp, os policiais e os militares que o tratam como “mito” em eventos País afora e os políticos do Centrão que lhe dão guarida parlamentar em troca de acesso ao butim do Estado.

Confortável, Bolsonaro abandonou de vez a fantasia reformista que inventou para se eleger e anunciou que retomará sua agenda deletéria, a começar pela nova tentativa de ampliar a excludente de ilicitude para policiais, um projeto já rejeitado pela Câmara por constituir evidente licença para matar.

Defender que policiais fiquem fora do alcance da lei para que possam matar à vontade, bem como sabotar os esforços para vacinar a população contra a covid-19, são atitudes típicas de um presidente que, hostil aos princípios republicanos, trata todos os cidadãos da República – com exceção dos que levam seu sobrenome – como inimigos em potencial.

Focinheira, camisa de força e jaula

Em sua guerra contra o povo brasileiro, Jair Bolsonaro ganha cada vez mais posições. O Poder Executivo lhe pertence pelo voto, e seu cartel de apoiadores continua firme, composto de uma multidão de mulheres de malandro —Bolsonaro os trai diariamente, renegando suas promessas de campanha, e eles gostam.

Em dois anos de administração, não se conhece uma medida positiva de sua parte. Ao contrário, dedica-se a destruir tudo que o Brasil levou séculos para construir na educação, na cultura, no meio ambiente, na diplomacia, nos direitos humanos e na relação entre as pessoas. Sua meta é que se matem pelas ruas, a tiros entre si ou pela polícia, esta, a depender dele, com carta branca para disparar.



No Legislativo, Bolsonaro usa o dinheiro público para ir às compras e embolsar políticos. Precisa deles para se proteger contra possíveis ameaças de impeachment e, num lance decisivo, está a ponto de emplacar um presidente da Câmara sensível à voz do dono. Com isso serão dois Poderes sob seu controle. E, no Judiciário, já tem elementos infiltrados na Procuradoria-Geral, na Polícia Federal, na Agência Brasileira de Inteligência e até no STF, para garantir que as acusações contra ele e seus filhos morram na praia. Some-se a isso seu controle do Exército, das polícias militares e de um batalhão de milicianos digitais para nos perguntarmos por quanto tempo ainda teremos democracia.

Mas nada se compara à sua campanha para induzir o Brasil a não se vacinar contra a Covid. É seu preço final contra as derrotas que os fatos lhe impõem e que o obrigam a desdizer-se. OK, o vírus não é uma gripezinha, não está no finalzinho e a vacina vem aí. Mas, diz ele, quem quiser tomá-la será por sua conta e risco —com o que já levou milhões a temê-la.

Bolsonaro é letal no que diz e faz. Consultei um psiquiatra e ele me afirmou que é caso para focinheira, camisa de força e jaula.

Seu desaforista!

Em 1973 não havia liberdade de expressão no Brasil. A ditadura militar torturava dissidentes, exterminava guerrilheiros no Araguaia e tolhia a imprensa. Nas redações dos jornais, censores cortavam reportagens inteiras poucas horas antes de os cadernos começarem a ser impressos nas rotativas. Preencher os vazios abertos pela tesoura da repressão política era um tormento. Este jornal, O Estado de S. Paulo, encontrou uma solução heterodoxa: no lugar do material censurado, passou a publicar trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Entre 2 de agosto de 1973 e 3 de janeiro de 1975, foram 655 inserções do épico lusitano nas páginas do Estado, conforme levantamento feito pelo jornalista José Maria Mayrink.

Pois no mesmo ano 1973, em meio a tantas trevas, entrou no ar uma criação primorosa do dramaturgo brasileiro Dias Gomes: O Bem-Amado. Sob a vigência da mordaça absoluta, O Bem-Amado estreou com a força de uma apoteose libertária e satírica. Era um contrassenso: como podia haver espaço na televisão para tamanha exuberância criativa, e tão crítica, sob uma tirania tão estupidamente violenta?

Dias Gomes era um autor de esquerda, com ligações históricas com o Partido Comunista, e dono de um talento assombroso. O protagonista que ele inventou para O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu (interpretado pelo ator Paulo Gracindo), comandava com mão de ferro, sem nenhum constrangimento de ordem moral, a prefeitura da fictícia Sucupira. Odorico era um canalha corrupto e truculento que, sob o gênio de Dias Gomes, ganhava ares despudoradamente cômicos. Nisso residia seu carisma. Falastrão semianalfabeto, posava de orador erudito à custa de expressões incultas, mas empoladas, que proclamava em tons triunfais. Gostava de xingar os adversários de “desaforistas” e quando queria humilhar os subordinados dizia que eram “desapetrechados de inteligência”.

Se diante dos noticiários de TV a sociedade prestava silêncio obsequioso aos ditadores que se sucediam, diante da novela podia rir deles sem medo da cana. Graças a Odorico Paraguaçu, o país vilipendiado caçoava do arbítrio, da demagogia e da estultice. Foi um sucesso instantâneo e impune. Os homens da ditadura, que se viam como agentes “modernizantes” e “urbanos”, não percebiam que o prefeito de Sucupira, de feitio rural, regionalista, antiquado e ridículo, era o retrato escarrado deles mesmos. A ditadura era burra, tão burra que batia palmas para a televisão que a fazia de palhaça. Contrassenso total.


Odorico se impôs de tal maneira que nunca mais saiu de cartaz. A Rádio CBN andou usando diálogos da antiga novela para ilustrar a desconversa de políticos da vida real acusados de corrupção. Agora, nos dias que correm – embora corram sem sair do lugar –, recortes de cenas impagáveis viajam nas redes sociais para delícia dos públicos mais diversos,

As semelhanças com o presente são efetivamente cômicas, mas também estarrecem. Numa das cenas que hoje circulam nas redes, Odorico aparece conversando com seu assessor direto, o igualmente antológico Dirceu Borboleta, interpretado por Emiliano Queiroz. O assunto é uma epidemia que ameaça Sucupira. O prefeito armou uma tramoia para impedir que o dr. Leão (Jardel Filho), seu desafeto político, distribua a vacina. Dirceu não se conforma. Sabendo que Odorico vai interceptar o carregamento das vacinas do dr. Leão, interpela o chefe para expressar sua discordância exasperante.

Com a voz medrosa, em titubeios que vão e vêm, Borboleta empreende enorme esforço para externar seu protesto. Ele, sempre submisso, está quase fora de controle. Aquilo não pode ser. Dirceu se exalta. Como deixar sem proteção o povo de Sucupira?

O prefeito reage, impaciente: “E daí, seu Dirceu?”. Esse “e daí?” soa chocante. O espectador descobre que a pergunta retórica vem de entranhas imemoriais da política nacional. O “e daí?”, como expressão de desprezo pela vida, não é de hoje.

Dirceu não se cala. Tomado de furor cívico, aumenta a voz: haverá um “assassinato em massa, um genocídio”. Passa a mão direita sobre a manga da camisa no antebraço esquerdo, como se acometido de comichões, dizendo que isso lhe dá “até arrepio”.

Então Odorico se põe em brios patrióticos, ralha com o assessor e começa a explicar seu plano. Diz que não vai impedir a vacinação, mas apenas desviar o carregamento para o posto de saúde que planeja inaugurar na cidade. Aí, sim, entregará a salvação sanitária a todos e todas. O herói será ele, Odorico, e não o dr. Leão, esse tal “que está do outro lado, do lado da oposição”. Dirceu vai se resignando, vai se rendendo, compreende o plano e fica aliviado. De um jeito ou de outro, a vacina virá e, para ele, está bom assim.

É fato que hoje, na Sucupira Central, há um Odorico pior, assumidamente genocida, que quer exterminar a vacina da oposição sem ter nada para oferecer no lugar. O novo Odorico seguirá levando o próprio povo para o altar do sacrifício ritual. Que morram mais, muitos mais. “E daí?”.

Dias Gomes talvez tenha sido um humorista profético. Ou um charadista. Em que chave cômica se explica a tragédia brasileira?

Pensamento do Dia

 


O dia em que os selos acabaram

Enorme surpresa, posso mesmo dizer estupefação, teve o arquiteto Michel em uma agência dos Correios, na Vila Madalena. Levou, como faz todos os anos, e coloquem anos nisso, o primeiro lote das centenas de cartões de Natal desenhados por ele e pela Ciça Barbieri, sua mulher e também arquiteta. Todos os anos, o grupo de amigos espera para ver o que a dupla criou, ambos são designers de alto humor. Michel chegou à agência e encontrou o usual. Pessoas esparramadas, quase aglomeradas na calçada, porque, segundo o protocolo, não podem entrar. E se amontoam para poder descobrir a chamada do número da senha.

Ainda bem que a tal pandemia está no final, segundo o nosso presidente. Afinal, são apenas 180 mil mortos e mais mil a cada dia. Falando em presidente, agora temos mais um filho, o 04. Logo chegaremos ao 007, que terá licença para matar. Finalmente, Michel foi atendido e a funcionária passou um tempo conferindo cartão a cartão. “Estou a conferir os destinos, explicou.” Coisa que jamais vimos. Conferir destinos? Indagada, ela revelou:

“Se for para o México, Colômbia e Turquia não posso aceitar.”

Michel levou um susto. Qualquer um de nós levaria, pensando nas loucuras do Ernesto Araújo, o chanceler que acredita que a terra é plana e a ciência uma charlatanice.

“Por quê? Estamos em guerra com tais países?”

“Não sei se é guerra, ou o que é! Só sei que o correio está sem comunicação com vários destinos e estes três estão no seu pacote.”



Nada mais há a se admirar com este governo demente. Há de tudo. Pois o casal presidencial não exibe em uma vitrine o terno e o vestido da posse? O terno nada tem de especial. Não é londrino, de Saville Row, nem feito sob medida em Roma, ou com o Diógenes Estilista que, no Rio, atendeu a vida inteira o Roberto Marinho, além de ser quem sempre faz os fardões da Academia Brasileira. Um craque.

Ele, o terninho presidencial, pode ter sido comprado no Mappin, na Exposição, na Mesbla, na Isnard, na Sears, no Eron (pioneiro dos crediários), na Cassio Muniz... Epa! Estou delirando, essas lojas desapareceram há décadas, era onde comprávamos a prestação. Mas este governo parece daquela época, estamos andando para trás no tempo. Quantos anos regredimos neste período bolsonarista? Quanto ao vestido da primeira dama, deve ter sido comprado com aquele cheque de 89 mil reais, que ninguém explicou.

Há mais a se admirar. Dias depois, Michel levou ao correio a segunda parte dos cartões e pediu 80 selos. A funcionaria avisou.

“Oitenta? Meu senhor, lamento, não tem nenhum.”

“Nenhum? Alguém comprou todos? O estoque inteiro? Ou existe cota para cada cidadão?”

“Não tem cota coisa nenhuma. Não há selos. Simples assim.”

“Simples? Isso é uma catástrofe. Como não há selos?”

“Acabaram.”

“Acabaram? Correio sem selo é sorveteria sem sorvete, farmácia sem remédio, igreja sem pastor pedindo dízimo...”

“Meu senhor, entenda. Fomos vendendo, as pessoas foram comprando, lambendo e colando nos envelopes. Quando vimos, não tinha mais nenhum.”

“Como assim? Parece o ministro Guedes. Não tem previsão de nada? Uma semana atrás trouxe um pacote de 60 cartões e foi tudo bem.

“Meu senhor, não entende português? Não temos. Nenhuma agência tem. Ninguém tem, não há previsão de reposição.”

Encasquetado (palavra que ele aprendeu em Araraquara, onde conheceu Ciça), meu amigo, que é calmo mesmo diante das maiores anormalidades – e todos sabemos que estamos vivendo o anormal dentro do normal –, voltou à carga.

“Minha boa senhora. Em qualquer comércio, quando falta um produto, o proprietário procura repor. Ou haverá um problema, o dinheiro não entra.”

“Sei disso. Todos sabem. Pedimos os selos, mas comunicaram que não há mais. Acabaram.”

Vai ver, pensou Michel, o papel acabou quando imprimiram as notas de 200, as do Lobo Guará, que ninguém viu, e quem viu não quer, porque ninguém troca.

“Pediram a quem?

“Sei lá, acho que ao chefe do depósito, ou ao gerente, ou ao presidente da organização. Não sei, o controle de material não é comigo. Eu só recebo cartas e vendo selos. Estou muito chateada, toda hora tenho de explicar.”

“Não havia selos em outras agências? Para emprestar.”

“Olhe, me desculpe. Chega. O senhor pergunta sem parar, a conversa demora, preciso atender outros clientes. Por favor, volte depois.”

Michel retirou-se. Algum dia, há de enviar seus cartões, eles chegarão com meses de atraso, talvez anos, décadas. Pode ser que cheguem antes do centenário da Independência. Porque imagino que estamos atrasados assim. E agora meu amigo preocupa-se, pensa em vacinas, que logísticos como o general-ministro confundem com vaginas. Ele reflete e teme como será a vacinação/não vacinação, com armazenamento a 70 graus negativos. Mas, e se faltar geladeira com tal temperatura?

Feliz Natal junto aos seus.

Junto ao seu ou a sua.

A você consigo mesmo.

Notícias do presente sem futuro

Estou cansado que me perguntem como é que estou a passar este tempo.

De repente, o tempo transformou-se neste tempo: um presente absoluto. O passado ficou incrivelmente distante, recordamo-lo como se tivesse acontecido a outras pessoas, como se o tivéssemos visto num documentário. Pior ainda, o futuro deixou de existir. Antes, naquele tal tempo que antecedeu este, dávamos o futuro por adquirido, chegaria na semana que vem, no mês que vem, haveria futuro em 2033, por exemplo. Agora, já não temos a certeza. Agora, o futuro é uma utopia ou uma distopia, dependendo do otimismo/pessimismo de cada um.

Alguns, discípulos de Heráclito com 2500 anos de atraso, asseguram-nos que nada será como costumava ser. Estou cansado dos clichés deste tempo. Estou cansado de ouvir que a adversidade é uma oportunidade, é um desafio. Dispenso esse tipo de desafios.

Juro que não queria escrever sobre isto. Tinha aquela esperança cega e injustificada de que se não falasse sobre o assunto, contribuía para o seu desaparecimento. Falhei, não há negação capaz de cobri-lo, não há fuga. No entanto, repare-se no meu esforço por não utilizar certas palavras. Há certos verbos e substantivos que já não consigo ouvir, menos ainda pronunciá-los, menos ainda escrevê-los, vê-los impressos.

Estou cansado dos especialistas. Cansa-me os que são realmente especialistas, os que se empenharam a fazer licenciaturas e pós-gaduações quando estas disciplinas não estavam na ordem do dia, quando não havia nenhum indício de que fossem chamados ao telejornal para dar o seu parecer. Mas cansa-me sobretudo os especialistas de ocasião, especialistas entre aspas de chumbo, leitores de internet, gente que não gagueja ao falar e que quer sempre falar.

Prefiro as minorias silenciosas, como é o caso de quem está em prisão domiciliária ou de quem sofre de agorafobia. Esses beneficiaram de uma trégua. As crianças deixaram de perguntar porque é que o tio tem uma pulseira na perna e nunca sai de casa. De certa forma, estes meses foram uma redução na pena. Ao mesmo tempo, quem sofre de agorafobia pôde sentir-se normal, não teve de escutar insistências para sair. Algo semelhante aconteceu com as aldeias do interior. Durante este período, foi normal que as ruas estivessem desertas.

Estou cansado da condenação feita pelos puristas do isolamento social, sempre a medirem distâncias com os olhos. Passam dias inteiros à janela só para poderem chamar irresponsáveis aos outros e dizer: já viram isto? Eles nunca são irresponsáveis, eles estão sempre a ver tudo, com a exceção daquilo que preferem não ver, é claro.

Estou cansado da escola em casa, muito cansado. Estou cansado da ginástica em casa, toda a gente do prédio em frente a fazer agachamentos. Mas, mais do que qualquer outra coisa, estou cansado desta agressão aos velhos. Já tinham problemas suficientes: a palavra velho usada como um insulto, por exemplo. Já tinham sido obrigados a aceitar suficientes injustiças. Agora, por cima de todas essas, também esta injustiça.

Estou cansado. Com essa falta de ânimo, assisto ao início da crise económica que já chegou para alguns e, diz-se, tocará a todos, ou quase. Este quase tem enorme importância, mas não o estranhamos, há muito que nos habituámos à desigualdade, aprendemos a justificá-la. Vista daqui, também a desigualdade se apresenta como um eterno presente, uma inevitabilidade do ser humano, não mudou e ninguém prevê que esteja para mudar.

José Luís Peixoto

Legitimidade


É um homem ponderado. Só acredita em fake news verdadeiras

Brasil reage com iniciativas de vida aos instintos de morte de Bolsonaro

Os dois maiores crimes do presidente Jair Bolsonaro em seus dois anos de Governo foram o negacionismo da pandemia, chamando-a de “gripezinha” e depois qualificando de “covardes e maricas” aqueles que se esforçam em tomar as medidas ditadas pela medicina e pela ciência para se proteger do contágio. Para dar o exemplo, Bolsonaro desprezou publicamente todas as medidas de prevenção.

Junto com o desprezo pela epidemia que fez mais de 180.000 vítimas, o que lhe valeu o qualificativo de genocida, Bolsonaro entrará tristemente na história também por seu desprezo pelo meio ambiente e sua destruição da Amazônia, uma das maiores riquezas do país e do mundo.

Diante desses crimes com instintos de morte e destruição, o Brasil começa a reagir com uma iniciativa de vida fortemente simbólica: a de plantar uma árvore para cada vítima da epidemia que terá gravados seus nomes. Dois desafios de vida contra os instintos de destruição do presidente.



O Brasil está, efetivamente, perdendo sua imagem no mundo com as atitudes de morte e destruição de seu Governo. O The New York Times, considerado um dos jornais mais sérios do mundo, acaba de publicar que o Brasil é o país que travou da pior maneira a luta contra o vírus, talvez junto com os Estados Unidos de Trump, o ídolo de Bolsonaro. Não por acaso são os dois países do mundo com mais óbitos.

A pastora evangélica Damares Alves, ministra da Mulher e dos Direitos Humanos que quer que os meninos usem azul e as meninas, rosa, nas escolas, teve o sarcasmo de afirmar que o Brasil finalmente tem o presidente que necessitava: um presidente “macho”. Talvez tenha querido dizer um presidente que odeia as mulheres, as pessoas frágeis, os diferentes, a quem chama de covardes. Um presidente sem empatia pelos que vivem à margem da sociedade, sofrendo o flagelo das terríveis desigualdades sociais e que está destruindo a economia e a convivência nacional. Um presidente com o qual o Brasil perdeu cinco posições no ranking de desenvolvimento humano, como a ONU acaba de anunciar.

Não, o Brasil não precisa de um presidente “macho”. Está precisando de um estadista com projetos de vida e de reconstrução de um país em crise. Um estadista que aposte em projetos de vida e não de morte. Que tenha um sentimento de empatia pelas pessoas, que saiba sofrer com suas dores e suas tristezas. Que seja solidário com as famílias das vítimas, que apresente programas capazes de fazer o país crescer e lhe devolva o amor pela vida e não pela morte. Um presidente que acredite no melhor deste país, que é seu amor pela vida em vez de semear ódios e instintos de morte.

Dizer que o que este país precisa é de um presidente “macho” é ofender as mulheres em um país que mais as mata e onde elas ainda não ocupam o lugar que lhes corresponde na sociedade. É a melhor forma de dizer que o Brasil deve ser governado por machistas, autoritários, amantes das armas, do autoritarismo, que despreza tudo o que é frágil e marginal. É ir na contramão de uma luta universal contra o desprezo pelo feminino e onde, com muito sofrimento e lutas, o mundo da mulher começa a abrir espaço.

Machismo é o que o mundo tem de sobra. Chegou a hora de abrir novos espaços e horizontes para combater definitivamente o preconceito em relação aos valores femininos. Com a presença de Bolsonaro, o presidente macho, o Brasil continuará indo ladeira abaixo em suas lutas para construir uma sociedade mais humanitária, menos classista e desigual. Enquanto isso o Brasil afunda, brincando com o caos, brincando com a vida. O Natal se aproxima, e o presidente macho, que coloca em seu emblema “Deus acima de tudo”, continua apostando na morte em vez de na vida.

Sobre seus ombros cairá a dor de que o Brasil tenha um Natal de luto e de dor por tantas vidas perdidas. Na boca de Bolsonaro, com o nome de Deus que evoca amor por todos e principalmente pelos abandonados e marginalizados, a vida soa mais como uma blasfêmia.
Juan Arias

Bolsonaro, ano 2

No final do ano passado publiquei um artigo com o título Bolsonaro, Ano 1. Mobilizei, intencionalmente, a demarcação temporal recorrendo àquilo que Benito Mussolini estabeleceu para a Itália quando instituiu o fascismo. Contava-se a sequência dos anos da “Era Fascista”, com início em 1922, ano da tomada do poder com a “Marcha sobre Roma”. Como todo aspirante a “revolucionário”, Mussolini acalentava a ideia de alterar o tempo histórico.



Imagino que Bolsonaro tenha, por um instante, cultivado pensamento semelhante, especialmente quando, com menos de três meses de governo, traiu uma de suas posições de campanha e passou a se apresentar como candidato a reeleição em 2022. Mussolini realizou uma obra na Itália nos anos do fascismo. Uma obra infame que deixou marcas. Bolsonaro nos impinge um cotidiano de infelicidade, sem nos legar obra alguma. Sequer exerce sua responsabilidade primária: a de governar.

O Ano 2 – como dizem os jovens – “deu mal” para Bolsonaro. Ao final de 2020, seu destino é cada vez mais incerto, com popularidade declinante (especialmente nos grandes centros populacionais do país) e problemas políticos de grande magnitude. Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico. O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a “País pária” na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo.

Nas eleições municipais, os candidatos que se vincularam à imagem do presidente foram derrotados nas capitais e grandes cidades, com raríssimas exceções. O que indica movimento claro de redirecionamento do voto dado em 2018. É o resultado da postura errática de Bolsonaro nestas eleições, ora se afastando, ora se envolvendo na disputa. Mas o problema é anterior e advém do fracasso na montagem de um partido de apoio integral ao presidente, o Aliança pelo Brasil. Sem partido, Bolsonaro agiu por impulso, de forma temerária. O resultado não poderia ter sido diferente.

O ano termina confirmando a dispersão das lideranças bolsonaristas em cada canto do país. Esse processo começou com as defenestrações promovidas pelo presidente nos quadros do seu governo, atingindo o ápice com a demissão do ex-ministro Sérgio Moro. O resultado foi uma miríade de candidatos bolsonaristas e ex-bolsonaristas batendo cabeça, sem coesão nem unidade. As eleições municipais mostraram a que ponto chegou a fragilidade do bolsonarismo enquanto movimento, muitos duvidando inclusive da sua real existência.

Bolsonaro teve um momento de recuperação ao longo do ano em função do “auxílio emergencial” distribuído aos mais vulneráveis em razão da paralisia econômica imposta pela pandemia. Mas isso durou pouco. A retomada do emprego ainda não foi robusta o suficiente para gerar confiança e projetar nova alta em sua popularidade. E, na contracorrente, as ameaças de retorno da inflação, bem como as dificuldades da indústria, com o represamento dos investimentos, mantiveram a luz vermelha acesa.

Assim, no meio do mandato, temos um presidente enfraquecido e o Centrão – sua âncora de salvação – com mais poder depois de fechadas as urnas. Para Bolsonaro, não há mais espaço para a retomada da “guerra de movimento” do Ano 1 –, momento no qual blogueiros, ladeados pelos filhos do presidente e parlamentares golpistas, pediam intervenção militar, no auge das manifestações antidemocráticas que chegaram a realizar um “bombardeio fake” sobre o STF. A perspectiva de imposição imediata de um regime iliberal, com apoio militar, acabou ficando para trás.

O Ano 2 foi marcado, assim, por uma mudança tática: passou-se à “guerra de posições”. Esta demanda entrincheiramento, movimentos cuidadosos e conquistas parciais, daí a necessidade de protagonismo do Centrão. Entretanto, Bolsonaro também aí se mostra inepto. Despreparado para o exercício do governo, Bolsonaro sequer consegue ganhar uma posição no contexto dramático de combate à pandemia, empreendendo “gestão” desastrosa que não evitou os mais de 183 mil mortos em menos de 12 meses. Sem mencionarmos questões mais estruturais como as reformas tributária e administrativa, que só avançam a despeito do governo.

Sem liderança e sem rumo, a filiação de Bolsonaro a algum partido do Centrão tornou-se disputa rasa, quase um leilão, com vistas a um transformismo que garanta ao presidente um “novo” protagonismo em 2022. Num cenário ainda difuso, já se pode divisar, contudo, outros transformismos em projeção, todos visando alcançar o poder nas próximas eleições.

Se, no Ano 1, o governo foi uma “usina de péssimas ideias”, no Ano 2 a imagem é de “desolação”. 2022 já começou e aos brasileiros importa superar a pandemia que nos assola, bem como a crise que desorganiza a Nação depois da sanha destruidora que se instalou no poder. Só assim se poderá conceber em que termos avançaremos para o futuro, depois da breve – assim esperamos – “era Bolsonaro”.

Escória não tem limites


Se você virar um jacaré, é problema seu. Se nascer barba em mulher ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) nada têm a ver com isso
Jair Bolsonaro

Breve nota sobre a idolatria

A idolatria foi condenada por três religiões diferentes – e nem sempre convergentes – como um dos piores pecados que um ser humano pode cometer. A Bíblia, a Tora e o Alcorão convergem nisso sem a mais pequena reserva. O homem que idolatra não admira com fundamento: adora com fanatismo e vê, nos que ponham reservas a tão aquecida paixão, um inimigo arrogante, um desmancha-prazeres e um convencido. Quiçá um herético ou um infiel a abater. A idolatria renega o equilíbrio, a saúde mental e o sentido crítico.

Sobre a idolatria, o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, disse várias coisas saborosas, entre elas, esta: “O selvagem dobra-se diante ídolos de madeira e de pedra, o homem civilizado, diante de ídolos de carne e osso.” 


A nossa vida intelectual, depois de quarenta e seis anos de democracia e de muitas décadas de saudável pedagogia libertadora de um António Sérgio, vive ainda no comprimento de onda da mais provinciana e infecunda idolatria, como se torna evidente com a histeria obituária que por aí se despenha, de cada vez que se assinala o passamento de um vulto de algum modo mais destacado, no nosso meio cultural. A falta de perspectiva e de aconselhável comedimento que então nos assola é simplesmente assustadora. Uma avaliação honesta, modesta, comedida, e fora das ejaculações mais intemperadas é considerada inveja, mau feitio e desmancha-prazeres. O cronista A, o romancista B, o poeta C, o filósofo D são, no mínimo, verdadeiros gigantes, só que ninguém dá por eles, nos verdadeiros areópagos. Há nesta loucura não tão mansa como isso algo de muito doentio: uma espécie de sobrecompensação para a nossa pequenez e relativa pouca relevância internacional. Debita-se para aí uma ladainha de Bandarra, com promessas férvidas de triunfos que nos compensem de infortúnios pretéritos. Escrevemos então o melhor romance dos últimos cem anos, um poema tão grande como os Lusíadas e temos, entre nós, o melhor filósofo dos últimos três séculos ou mesmo de sempre. E fazemos uma festa com grande espalhafato, que só não nos torna mais ridículos porque ninguém, lá fora, dá por isso.
Na África do Sul, na língua Afikander, há uma palavra capitosa que significa um peixe considerado grande porque habita num lago pequeno. Se eu fosse linguista, inventava, em português, um vocábulo que se ajustasse a este conceito. Teríamos bom uso para ele. 

O pior das idolatrias é que são um terrível entrave ao progresso do conhecimento. Este sempre se fez de um necessário acolhimento à contradição e ao encontrar sucessivo de melhores respostas para as nossas perplexidades. A admiração não faz mal, mas o embevecimento é de mau aviso. Além do mais, o idólatra tende a reduzir o diâmetro do foco da sua atenção: só vê o idolatrado e nada mais à sua volta ou para trás, numa espécie de “criacionismo” que a ciência de há muito rejeita. 

Para terminar, direi que o Portugal de Bento Caraça, de Aniceto Monteiro, de Aurélio Quintanilha, de Tiago Oliveira, de António Sérgio, de Sílvio Lima, de Jaime Cortesão, de Raul Proença, de José Régio, de Rui Luis Gomes, de Abel Salazar, de Jorge de Sena e de tantos bons argonautas da Seara Nova não merece que lhe suceda um Portugalinho idólatra, provinciano, unânime e contente. Alguém dizia que um Professor é um cavalheiro de opinião diferente. Um verdadeiro pensador, um verdadeiro investigador, um verdadeiro artista criador é também isso mesmo: um cavalheiro de opinião diferente A idolatria não acolhe a opinião diferente e é sempre um triste sinal de atraso. Por mim, enquanto o vigor me não abandonar, terei sempre muito orgulho em pertencer à tribo dos cavalheiros de opinião diferente. Até porque, mesmo com a minha provecta idade, não quero ficar parado.