domingo, 10 de agosto de 2025
O ataque ao Brasil pode ser um fator de mobilização
A natureza da agressão dos EUA ao nosso país é claramente intervencionista, política na origem e nos objetivos que persegue. A escandalosa coação ao Judiciário, imiscuindo-se em nossa domesticidade em nível jamais conhecido entre nações soberanas em paz, tanto quanto o “tarifaço”, atingindo em cheio nossa economia e anunciando desemprego, não se encerra em si mesma, pois muito está por vir, e o que nos espera poderá agravar-se se não encontrar a resistência de uma sociedade organizada, apta à mobilização e preparada política e ideologicamente.
Os idos de 2025 olham para 2026.
O projeto trumpista, apoiado pelo grosso da sociedade estadunidense, pelo seu Congresso, pela Suprema Corte, é movimento que visa a fortalecer, ampliar e dar consequência à marcha da extrema-direita em todo o mundo — fantasma que não é de hoje. Ele assombra a Europa, pervade a América Latina e agora volta ao comando dos EUA, mirando o resto do mundo.
A ameaça toma os contornos de fato concreto, corre como rastilho de pólvora; sua relevância muda de qualidade quando passa a ser conduzida pela — ainda — maior potência econômica e militar dos últimos cem anos, ferida pela sua crise interna, acossada pela desindustrialização, assustada com as ameaças à sua hegemonia representadas pela ascensão de uma Eurásia liderada por uma China desenvolvida e em crescimento.
Neste quadro, a lei do mais forte substitui o diálogo; a força se antepõe à persuasão ideológica, que pede tempo para frutificar: a submissão do colonizado aos interesses e à vontade do colonizador. O discurso se mostra ineficiente, e as novas circunstâncias reclamam o retorno do big stick, a doutrina que, no início do século XX, inspirou as relações imperiais dos EUA com a América Latina, nada diversas das relações das grandes potências europeias com suas colônias — e do que foi, entre nós, no Império, a preeminência inglesa.
Não se trata, pois, de mero acaso sua vinculação com a extrema-direita brasileira e, mais precisamente, com o bolsonarismo, hoje um movimento de massa. Muito menos podem parecer desarrazoados os braços dados ao sionismo e a associação ao genocídio do povo palestino. Os EUA levam a cabo verdadeiro bullying contra o humanismo e a paz — valores sempre secundários para o autoritarismo que se transfigura em fascismo, o destino a que sempre nos condena o capitalismo em crise. A ascensão da extrema-direita é, assim, produto do processo histórico, e o Brasil se apresenta, pela sua economia, pela sua população, pelo seu território, pela sua liderança, como peça importante a ser conservada como território de segurança.
A internacional neofascista encontra no Brasil de hoje um espaço de penetração facilitado pelo vira-latismo de nossa classe dominante e pelo excepcionalismo de uma direita entreguista que investe contra a nação — logo ela, que tanto gosta de bater no peito, fazer continência e gritar o amor à pátria, trajando a amarelinha da CBF. Estranha horda de “patriotas”, que faz continência à bandeira dos EUA e, nas passeatas, estende com orgulho a bandeira de Israel, para registrar seu aplauso ao sionismo e a seus horrendos crimes. No plenário da Câmara dos Deputados e nos palanques dos comícios, seus próceres, como o governador de São Paulo, se exibem com o boné da campanha de Trump, onde se lê MAGA — Make America Great Again.
O partido de Jair Bolsonaro expulsa de seus quadros um deputado federal que ousa criticar Trump quando este nos ataca. Que faz aqui — e em Washington — a família do capitão? Que faz aqui a maioria parlamentar que controla o Congresso? Que fazem o PL e seus similares? Que fazem aqui os governadores dos mais importantes Estados da federação? Nada se deve esperar das chamadas elites, do grande capital internacionalizado, de um empresariado rentista sem visão de país e nação.
A burguesia que aqui reside na maior parte do tempo só tem olhos para a constância de seus lucros, e não hesitará em mudar de rumo, ramo ou país — como já anunciaram uma grande metalúrgica gaúcha fabricante de armas e a Embraer, de malas prontas para migrarem para os EUA. A montadora de aviões (erguida e viabilizada, como se sabe, com dinheiro do contribuinte brasileiro) já anunciou investimentos de US$ 500 milhões em suas instalações na Califórnia, para onde pretende levar o projeto do KC-390, apresentado como o maior avião militar já fabricado na América do Sul.
Esta é a resposta do grande empresariado nacional ao tarifaço.
As lideranças empresariais reclamam de nosso governo uma negociação que ele sempre buscou — sem êxito — e exigem que o presidente Lula tome a iniciativa de procurar Trump e, preferencialmente, seja atencioso e prestativo. O conceito de dignidade nacional é ignorado pela elite aqui instalada.
Os EUA, com o tarifaço — mas principalmente com sua justificativa, abusivamente reiterada por Trump — já intervieram na política brasileira. Estamos ainda distantes do ponto de chegada, mas está evidente que a operação em curso olha para o processo político e eleitoral brasileiro. O objetivo é intervir na história, seja invertendo os números do apertado pleito de 2022, seja transformando em sucesso a frustrada intentona de 2023, seja interferindo nas eleições de 2026. Seu alvo é assegurar a consolidação do projeto neofascista, interrompido com a eleição e posse de Lula, eventos fundamentais, mas insuficientes para garantir a consolidação de nossa democracia — tão frágil e tão ameaçada, hoje, não menos que ontem.
Há uma disputa institucional, há um confronto na sociedade, e há a registrar o avanço da extrema-direita, no limite de conquistar uma nova maioria — a nuvem negra que se anuncia desde 2018 e chegou tão perto de se transformar em realidade em 2022. E, porque ganhamos as eleições presidenciais, cuidamos de esquecer que havíamos perdido a disputa na maioria dos Estados e no Congresso.
A resistência neofascista e a intervenção dos EUA indicam o que deverão ser as eleições do próximo ano (uma disputa, a rigor, já iniciada), quando as forças populares enfrentarão um bloco de direita e extrema-direita organizado: como sabemos, não lhe falta base popular, nem o conforto oferecido pelo apoio da maioria dos governadores de Estado, da maioria dos prefeitos municipais, da maioria esmagadora de deputados estaduais e federais, da maioria dos senadores, da velha imprensa, o apoio político e financeiro da Faria Lima e, agora, o apoio ativo, explícito e incondicional dos EUA (que terá faltado ao putsch de 2023).
Um quadro que traz um incômodo sentimento de déjà vu a quem acompanhou as eleições de 1962 e viveu os idos de 1964.
Por contraditório que pareça, contudo, muito passamos a dever aos EUA, ao trumpismo e a esse intervencionismo. Trump escancarou a natureza do imperialismo (inclusive com a manipulação grosseira do conceito de Direitos Humanos, que Washington nunca teve tão pouca moral para invocar). Assim, foram postas na ordem do dia questões descuradas pela esquerda brasileira desde que passou a flertar com o neoliberalismo. Por ingenuidade política, deformação teórica ou mesmo por comodismo, ela supôs estar no poder — e supôs ainda que a conciliação ideológica era o caminho mais simples para nele permanecer. Esqueceu-se de que há uma coisa chamada consciência de classe, valor bem cultivado pela classe dominante. Ideologia não é brinquedo...
Assim, ganhamos, mas com limitadas condições de governança, das quais derivam graves riscos à institucionalidade democrática. A maioria parlamentar de hoje é (e não é preciso qualquer esforço para ver) ainda mais reacionária, obtusa e irresponsável do que aquela que decretou o impeachment da presidente Dilma Rousseff, “corrigindo” o resultado das eleições de 2014. Aprende com as lições da história quem quer.
Na última semana, o chorume neofascista paralisou as atividades do Congresso para protestar contra a decretação da prisão de Bolsonaro, criminoso contumaz. Com isso, o bolsonarismo impediu a votação de ao menos um projeto de interesse da população: a isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil. O deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) repudiou a ação do bando, mas ironizou: “Deputados do PL terem se autoimposto a colocação de esparadrapos na boca, eu acho uma boa medida. É uma ação voluntária para contribuir com a paz.”
Lamentavelmente, não se trata de um raio em céu azul o avanço do pensamento e da ação da direita e da extrema-direita. O processo político que nos inquieta seria inviável sem nossa colaboração, ainda que involuntária: a política é produto da luta social, à qual renunciamos, deixando de desempenhar o papel fundamental de vanguarda. Mas, se não nos faltar ânimo, sobrarão condições objetivas de enfrentar o desafio, com a retomada da luta ideológica.
O trumpismo, com sua agressividade tóxica, nos oferece a oportunidade de discutir o interesse nacional, de falar em nação e em nacionalismo, retomar a defesa de nossas riquezas naturais, voltar a falar em imperialismo — pois ele, em lento declínio, arreganha os dentes — e denunciar seu papel corrosivo. É a oportunidade de encontro da sociedade com o país, o despertar da consciência de pertencimento a um projeto comum.
Seremos, afinal, uma nação, e, em torno desse sentimento, poderemos construir uma nova maioria nacional, progressista, apta a enfrentar o maior dos desafios da nacionalidade: a desigualdade e a injustiça social estampadas na segunda maior concentração de renda do mundo.
Aviso aos navegantes — Há mouros na costa.
Tem gente com fome 1 — É difícil, e talvez inútil, tentar identificar o que há de mais horrendo e repugnante em um genocídio. Mas o lento assassinato de civis desarmados pela desnutrição forçada choca especialmente. Assim, gravaram-se na memória da humanidade as imagens de corpos esqueléticos dos prisioneiros de Auschwitz — uns ainda vivos, outros jogados em pilhas de cadáveres, como se nem humanos fossem. O horror se repete com o genocídio, em curso, dos palestinos de Gaza, que, além dos bombardeios covardes (assistidos por uma “comunidade internacional” inerte e desmoralizada), enfrentam agora a escassez de remédios, água e alimentos imposta pelo Estado de Israel. E repetidas vezes são atacados pelos terroristas de Tel Aviv quando se aglomeram na busca desesperada de ajuda humanitária! Relembremos Primo Levi: “Destinados a uma morte quase certa, resta-nos uma única opção, que devemos defender a qualquer custo, justamente porque é a última: a de não permitir que nos façam virar um ‘nada’.”
Tem gente com fome 2 — Nesse cenário de horror, deveria ser dada atenção especial ao relatório SOFI 2025, lançado no último 28/07 durante a abertura do UN Food Systems Summit +4, na Etiópia. O documento destaca que, embora o número de pessoas com fome no mundo tenha se estabilizado após o pico da pandemia, ele continua em patamar preocupante: mais de 730 milhões de pessoas estavam em situação de fome crônica em 2024, com Ásia e África concentrando cerca de 90% desse total. Quanto ao Brasil, um ansiado anúncio positivo: o país foi oficialmente retirado do Mapa da Fome da ONU, menos de três anos após haver retornado ao ranking, na longa noite bolsonarista.
Tem gente com fome 3 — Evidentemente, os dados dignos de festejo não podem nos fazer esquecer que a desnutrição ainda afeta milhões de brasileiros, e que o país tem diante de si o desafio de melhorar a qualidade da alimentação do seu povo, hoje repleta de ultraprocessados. Mas essa vitória já mostra um caminho a ser perseguido e aprofundado: a combinação de políticas de incentivo à geração de emprego e renda, manutenção de benefícios como o Bolsa Família e o BPC, e apoio à agricultura familiar. Além do repúdio ao fascismo. O necessário sentido de urgência é dado pelo verso do poeta, multiartista e militante comunista pernambucano Solano Trindade, que adverte: “tem gente com fome”.
Os idos de 2025 olham para 2026.
O projeto trumpista, apoiado pelo grosso da sociedade estadunidense, pelo seu Congresso, pela Suprema Corte, é movimento que visa a fortalecer, ampliar e dar consequência à marcha da extrema-direita em todo o mundo — fantasma que não é de hoje. Ele assombra a Europa, pervade a América Latina e agora volta ao comando dos EUA, mirando o resto do mundo.
A ameaça toma os contornos de fato concreto, corre como rastilho de pólvora; sua relevância muda de qualidade quando passa a ser conduzida pela — ainda — maior potência econômica e militar dos últimos cem anos, ferida pela sua crise interna, acossada pela desindustrialização, assustada com as ameaças à sua hegemonia representadas pela ascensão de uma Eurásia liderada por uma China desenvolvida e em crescimento.
Neste quadro, a lei do mais forte substitui o diálogo; a força se antepõe à persuasão ideológica, que pede tempo para frutificar: a submissão do colonizado aos interesses e à vontade do colonizador. O discurso se mostra ineficiente, e as novas circunstâncias reclamam o retorno do big stick, a doutrina que, no início do século XX, inspirou as relações imperiais dos EUA com a América Latina, nada diversas das relações das grandes potências europeias com suas colônias — e do que foi, entre nós, no Império, a preeminência inglesa.
Não se trata, pois, de mero acaso sua vinculação com a extrema-direita brasileira e, mais precisamente, com o bolsonarismo, hoje um movimento de massa. Muito menos podem parecer desarrazoados os braços dados ao sionismo e a associação ao genocídio do povo palestino. Os EUA levam a cabo verdadeiro bullying contra o humanismo e a paz — valores sempre secundários para o autoritarismo que se transfigura em fascismo, o destino a que sempre nos condena o capitalismo em crise. A ascensão da extrema-direita é, assim, produto do processo histórico, e o Brasil se apresenta, pela sua economia, pela sua população, pelo seu território, pela sua liderança, como peça importante a ser conservada como território de segurança.
A internacional neofascista encontra no Brasil de hoje um espaço de penetração facilitado pelo vira-latismo de nossa classe dominante e pelo excepcionalismo de uma direita entreguista que investe contra a nação — logo ela, que tanto gosta de bater no peito, fazer continência e gritar o amor à pátria, trajando a amarelinha da CBF. Estranha horda de “patriotas”, que faz continência à bandeira dos EUA e, nas passeatas, estende com orgulho a bandeira de Israel, para registrar seu aplauso ao sionismo e a seus horrendos crimes. No plenário da Câmara dos Deputados e nos palanques dos comícios, seus próceres, como o governador de São Paulo, se exibem com o boné da campanha de Trump, onde se lê MAGA — Make America Great Again.
O partido de Jair Bolsonaro expulsa de seus quadros um deputado federal que ousa criticar Trump quando este nos ataca. Que faz aqui — e em Washington — a família do capitão? Que faz aqui a maioria parlamentar que controla o Congresso? Que fazem o PL e seus similares? Que fazem aqui os governadores dos mais importantes Estados da federação? Nada se deve esperar das chamadas elites, do grande capital internacionalizado, de um empresariado rentista sem visão de país e nação.
A burguesia que aqui reside na maior parte do tempo só tem olhos para a constância de seus lucros, e não hesitará em mudar de rumo, ramo ou país — como já anunciaram uma grande metalúrgica gaúcha fabricante de armas e a Embraer, de malas prontas para migrarem para os EUA. A montadora de aviões (erguida e viabilizada, como se sabe, com dinheiro do contribuinte brasileiro) já anunciou investimentos de US$ 500 milhões em suas instalações na Califórnia, para onde pretende levar o projeto do KC-390, apresentado como o maior avião militar já fabricado na América do Sul.
Esta é a resposta do grande empresariado nacional ao tarifaço.
As lideranças empresariais reclamam de nosso governo uma negociação que ele sempre buscou — sem êxito — e exigem que o presidente Lula tome a iniciativa de procurar Trump e, preferencialmente, seja atencioso e prestativo. O conceito de dignidade nacional é ignorado pela elite aqui instalada.
Os EUA, com o tarifaço — mas principalmente com sua justificativa, abusivamente reiterada por Trump — já intervieram na política brasileira. Estamos ainda distantes do ponto de chegada, mas está evidente que a operação em curso olha para o processo político e eleitoral brasileiro. O objetivo é intervir na história, seja invertendo os números do apertado pleito de 2022, seja transformando em sucesso a frustrada intentona de 2023, seja interferindo nas eleições de 2026. Seu alvo é assegurar a consolidação do projeto neofascista, interrompido com a eleição e posse de Lula, eventos fundamentais, mas insuficientes para garantir a consolidação de nossa democracia — tão frágil e tão ameaçada, hoje, não menos que ontem.
Há uma disputa institucional, há um confronto na sociedade, e há a registrar o avanço da extrema-direita, no limite de conquistar uma nova maioria — a nuvem negra que se anuncia desde 2018 e chegou tão perto de se transformar em realidade em 2022. E, porque ganhamos as eleições presidenciais, cuidamos de esquecer que havíamos perdido a disputa na maioria dos Estados e no Congresso.
A resistência neofascista e a intervenção dos EUA indicam o que deverão ser as eleições do próximo ano (uma disputa, a rigor, já iniciada), quando as forças populares enfrentarão um bloco de direita e extrema-direita organizado: como sabemos, não lhe falta base popular, nem o conforto oferecido pelo apoio da maioria dos governadores de Estado, da maioria dos prefeitos municipais, da maioria esmagadora de deputados estaduais e federais, da maioria dos senadores, da velha imprensa, o apoio político e financeiro da Faria Lima e, agora, o apoio ativo, explícito e incondicional dos EUA (que terá faltado ao putsch de 2023).
Um quadro que traz um incômodo sentimento de déjà vu a quem acompanhou as eleições de 1962 e viveu os idos de 1964.
Por contraditório que pareça, contudo, muito passamos a dever aos EUA, ao trumpismo e a esse intervencionismo. Trump escancarou a natureza do imperialismo (inclusive com a manipulação grosseira do conceito de Direitos Humanos, que Washington nunca teve tão pouca moral para invocar). Assim, foram postas na ordem do dia questões descuradas pela esquerda brasileira desde que passou a flertar com o neoliberalismo. Por ingenuidade política, deformação teórica ou mesmo por comodismo, ela supôs estar no poder — e supôs ainda que a conciliação ideológica era o caminho mais simples para nele permanecer. Esqueceu-se de que há uma coisa chamada consciência de classe, valor bem cultivado pela classe dominante. Ideologia não é brinquedo...
Assim, ganhamos, mas com limitadas condições de governança, das quais derivam graves riscos à institucionalidade democrática. A maioria parlamentar de hoje é (e não é preciso qualquer esforço para ver) ainda mais reacionária, obtusa e irresponsável do que aquela que decretou o impeachment da presidente Dilma Rousseff, “corrigindo” o resultado das eleições de 2014. Aprende com as lições da história quem quer.
Na última semana, o chorume neofascista paralisou as atividades do Congresso para protestar contra a decretação da prisão de Bolsonaro, criminoso contumaz. Com isso, o bolsonarismo impediu a votação de ao menos um projeto de interesse da população: a isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil. O deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) repudiou a ação do bando, mas ironizou: “Deputados do PL terem se autoimposto a colocação de esparadrapos na boca, eu acho uma boa medida. É uma ação voluntária para contribuir com a paz.”
Lamentavelmente, não se trata de um raio em céu azul o avanço do pensamento e da ação da direita e da extrema-direita. O processo político que nos inquieta seria inviável sem nossa colaboração, ainda que involuntária: a política é produto da luta social, à qual renunciamos, deixando de desempenhar o papel fundamental de vanguarda. Mas, se não nos faltar ânimo, sobrarão condições objetivas de enfrentar o desafio, com a retomada da luta ideológica.
O trumpismo, com sua agressividade tóxica, nos oferece a oportunidade de discutir o interesse nacional, de falar em nação e em nacionalismo, retomar a defesa de nossas riquezas naturais, voltar a falar em imperialismo — pois ele, em lento declínio, arreganha os dentes — e denunciar seu papel corrosivo. É a oportunidade de encontro da sociedade com o país, o despertar da consciência de pertencimento a um projeto comum.
Seremos, afinal, uma nação, e, em torno desse sentimento, poderemos construir uma nova maioria nacional, progressista, apta a enfrentar o maior dos desafios da nacionalidade: a desigualdade e a injustiça social estampadas na segunda maior concentração de renda do mundo.
***
Aviso aos navegantes — Há mouros na costa.
Tem gente com fome 1 — É difícil, e talvez inútil, tentar identificar o que há de mais horrendo e repugnante em um genocídio. Mas o lento assassinato de civis desarmados pela desnutrição forçada choca especialmente. Assim, gravaram-se na memória da humanidade as imagens de corpos esqueléticos dos prisioneiros de Auschwitz — uns ainda vivos, outros jogados em pilhas de cadáveres, como se nem humanos fossem. O horror se repete com o genocídio, em curso, dos palestinos de Gaza, que, além dos bombardeios covardes (assistidos por uma “comunidade internacional” inerte e desmoralizada), enfrentam agora a escassez de remédios, água e alimentos imposta pelo Estado de Israel. E repetidas vezes são atacados pelos terroristas de Tel Aviv quando se aglomeram na busca desesperada de ajuda humanitária! Relembremos Primo Levi: “Destinados a uma morte quase certa, resta-nos uma única opção, que devemos defender a qualquer custo, justamente porque é a última: a de não permitir que nos façam virar um ‘nada’.”
Tem gente com fome 2 — Nesse cenário de horror, deveria ser dada atenção especial ao relatório SOFI 2025, lançado no último 28/07 durante a abertura do UN Food Systems Summit +4, na Etiópia. O documento destaca que, embora o número de pessoas com fome no mundo tenha se estabilizado após o pico da pandemia, ele continua em patamar preocupante: mais de 730 milhões de pessoas estavam em situação de fome crônica em 2024, com Ásia e África concentrando cerca de 90% desse total. Quanto ao Brasil, um ansiado anúncio positivo: o país foi oficialmente retirado do Mapa da Fome da ONU, menos de três anos após haver retornado ao ranking, na longa noite bolsonarista.
Tem gente com fome 3 — Evidentemente, os dados dignos de festejo não podem nos fazer esquecer que a desnutrição ainda afeta milhões de brasileiros, e que o país tem diante de si o desafio de melhorar a qualidade da alimentação do seu povo, hoje repleta de ultraprocessados. Mas essa vitória já mostra um caminho a ser perseguido e aprofundado: a combinação de políticas de incentivo à geração de emprego e renda, manutenção de benefícios como o Bolsa Família e o BPC, e apoio à agricultura familiar. Além do repúdio ao fascismo. O necessário sentido de urgência é dado pelo verso do poeta, multiartista e militante comunista pernambucano Solano Trindade, que adverte: “tem gente com fome”.
Dissuasão e resiliência
A arrogância de Trump ao tentar intervir na política e na Justiça do Brasil não surpreende quem lembra da história. Um pouco antes do golpe de 1964, e depois dele, John Kennedy, Lyndon Johnson e Richard Nixon foram decisivos para a implantação dos anos de chumbo no Brasil, nos quais ocorreram cassações de parlamentares, fechamento do Congresso, manipulação do Judiciário, tortura e prisões. Desde então, nossa dependência diminuiu, mas chegamos a 2025 assustados diante da postura trumpista. O fato: não criamos poder de dissuasão para evitar ameaças, nem resiliência para enfrentar um presidente que ignore nossa força.
Para garantir a resiliência teria sido necessário criar um mercado interno dinâmico, capaz de absorver a produção que os EUA barram com tarifas ou bloqueios. Não o fizemos porque nos negamos a implantar um sistema nacional de educação com qualidade e equidade, capaz de aumentar a produtividade, elevar e distribuir a renda nacional, promover competitividade e inovação, além de dar coesão política nos momentos necessários. Com 10 milhões de analfabetos, apenas 50% dos jovens concluindo o ensino médio — e, destes, no máximo a metade com a qualidade necessária —, ficamos sem a necessária resistência e com a soberania enfraquecida.
Para reduzir a dependência teria sido compulsório diversificar a pauta de exportações, tanto no perfil dos produtos quanto na abrangência dos mercados. Nossa industrialização avançou, mas as exportações seguem ainda concentradas em commodities primárias, minerais ou agrícolas. Nos livramos da forte dependência que o México tem em relação aos EUA, mas 12% das exportações vão para o mercado americano e 28% para o chinês. Quando a África tiver sua própria produção de soja, a China dispensará a demanda por soja brasileira, como outros países fizeram no passado com a borracha, o algodão e o açúcar.
A fragilidade de nossa defesa militar também limita a capacidade de calma diante de ameaças externas, tanto pela fraqueza do armamento quanto pela falta de compromisso patriótico e democrático na formação de nossos soldados. Em 1964, em plena Guerra Fria, oficiais de alta patente diziam: “O que for bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Em 2025, Bolsonaro e seus aliados prestam continência à bandeira americana e fazem lobby em Washington contra o Brasil. Sem democracia, nossas Forças Armadas não terão o apoio interno necessário para defender a soberania; sem armas, não terão poder. A dissuasão exige forças preparadas para enfrentar ameaças externas e proteger portos, aeroportos, sistemas de comunicação e integridade territorial. As ameaças de Trump à soberania brasileira põem em risco a cantada cultura pacifista. Não demora e surgirá alguma indecente proposta de reformar a Constituição para revogar o artigo comemorado por todos os humanistas ao proibir definitivamente o uso de armas nucleares pelo Brasil.
Se desejamos dissuadir futuros presidentes americanos e garantir resiliência para enfrentá-los, precisamos ser uma nação democrática e educada, entendendo o mundo e com o necessário conhecimento de ciência e tecnologia, além da economia diversificada, insista-se, e um sistema de defesa preparado. O atual confronto, preocupante, pode ser uma janela de oportunidade para mudanças.
Para garantir a resiliência teria sido necessário criar um mercado interno dinâmico, capaz de absorver a produção que os EUA barram com tarifas ou bloqueios. Não o fizemos porque nos negamos a implantar um sistema nacional de educação com qualidade e equidade, capaz de aumentar a produtividade, elevar e distribuir a renda nacional, promover competitividade e inovação, além de dar coesão política nos momentos necessários. Com 10 milhões de analfabetos, apenas 50% dos jovens concluindo o ensino médio — e, destes, no máximo a metade com a qualidade necessária —, ficamos sem a necessária resistência e com a soberania enfraquecida.
Para reduzir a dependência teria sido compulsório diversificar a pauta de exportações, tanto no perfil dos produtos quanto na abrangência dos mercados. Nossa industrialização avançou, mas as exportações seguem ainda concentradas em commodities primárias, minerais ou agrícolas. Nos livramos da forte dependência que o México tem em relação aos EUA, mas 12% das exportações vão para o mercado americano e 28% para o chinês. Quando a África tiver sua própria produção de soja, a China dispensará a demanda por soja brasileira, como outros países fizeram no passado com a borracha, o algodão e o açúcar.
A fragilidade de nossa defesa militar também limita a capacidade de calma diante de ameaças externas, tanto pela fraqueza do armamento quanto pela falta de compromisso patriótico e democrático na formação de nossos soldados. Em 1964, em plena Guerra Fria, oficiais de alta patente diziam: “O que for bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Em 2025, Bolsonaro e seus aliados prestam continência à bandeira americana e fazem lobby em Washington contra o Brasil. Sem democracia, nossas Forças Armadas não terão o apoio interno necessário para defender a soberania; sem armas, não terão poder. A dissuasão exige forças preparadas para enfrentar ameaças externas e proteger portos, aeroportos, sistemas de comunicação e integridade territorial. As ameaças de Trump à soberania brasileira põem em risco a cantada cultura pacifista. Não demora e surgirá alguma indecente proposta de reformar a Constituição para revogar o artigo comemorado por todos os humanistas ao proibir definitivamente o uso de armas nucleares pelo Brasil.
Se desejamos dissuadir futuros presidentes americanos e garantir resiliência para enfrentá-los, precisamos ser uma nação democrática e educada, entendendo o mundo e com o necessário conhecimento de ciência e tecnologia, além da economia diversificada, insista-se, e um sistema de defesa preparado. O atual confronto, preocupante, pode ser uma janela de oportunidade para mudanças.
Não acredite nos pessimistas do MAGA sobre comércio
Enquanto um mundo horrorizado assiste à derrocada de uma ordem econômica que lhe trouxe estabilidade e prosperidade por décadas, a pergunta que ouço em cada país é a mesma: por que os EUA, a nação que floresceu tão poderosamente sob este sistema, o está destruindo?
Quando explico que muitos americanos – incluindo o presidente – acreditam que os EUA foram vítimas deste sistema de livre-comércio, a resposta é perplexidade. “Como eles podem não ver o que é óbvio: que eles são os grandes vencedores?”, disse um alto funcionário estrangeiro.
O presidente Trump e o movimento trumpista moldaram essa narrativa com grande sucesso. Mesmo aqueles que se opõem a Trump tendem a admitir que, embora os americanos mais ricos e as maiores empresas tenham tido sucesso nas últimas décadas, a maioria da população viu sua renda estagnar, empregos serem transferidos para o exterior e os padrões de vida declinarem.
Mas nada disso conta a história certa. Mudanças massivas nas políticas públicas que estão transformando o mundo estão sendo feitas com base em uma série de suposições que são anedotas, exageros e mentiras.
O número básico a ter em mente é a “renda mediana”. A “renda média” ( média aritmética de todas as rendas somadas e divididas pelo número de pessoas) é menos reveladora porque as rendas de Elon Musk, Bill Gates e Jeff Bezos elevam essa média. A “renda mediana” é a renda do americano no meio da distribuição de renda: metade do país ganha mais, metade ganha menos.
A medida da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a renda familiar mediana disponível nos EUA era maior do que em todas as economias industriais avançadas, exceto uma, em 2021 – maior do que Suíça, Alemanha, Reino Unido e Japão. A exceção é o pequeno Luxemburgo. De fato, a renda familiar mediana disponível nos EUA é cerca do dobro da do Japão.
E, como Noah Smith aponta Os americanos raramente se mudam de lugares onde a economia entrou em colapso em um excelente ensaio, a renda mediana dos EUA não está estagnada, como nos diz a sabedoria popular; ela tem crescido rapidamente ao longo das décadas. Smith observa que a renda pessoal mediana real aumentou 50% desde a década de 1970. Os salários por hora, ajustados pela inflação, aumentaram desde a década de 1990. E os salários por hora do terço mais pobre dos americanos aumentaram ainda mais: cerca de 40%.
Sem dúvida, houve rupturas nas últimas décadas. Essa é a natureza do capitalismo. David Autor e outros descreveram um “choque chinês”, no qual cerca de 2 milhões de empregos foram perdidos, entre 1999 e 2011, como resultado da ascensão da China na indústria manufatureira.
O secretário do Tesouro, Scott Bessent, recentemente inflou esse número para 3,7 milhões. Um ensaio para o centro de estudos conservador American Enterprise Institute contesta esse número e lança dúvidas até mesmo sobre os números mais baixos da pesquisa de Autor.
Mas o ponto principal é que a rotatividade no mercado de trabalho americano é enorme. Hoje em dia, em média, cerca de 30 milhões de trabalhadores do setor privado perdem seus empregos anualmente, e um número semelhante ganha empregos a cada ano. Durante os anos do choque chinês, os EUA ganharam mais de 2 milhões de empregos no total. E esses não eram empregos de baixa remuneração em fastfood.
Veja Flint, em Michigan, e Greensboro, na Carolina do Norte – frequentemente vistas como cidades clássicas devastadas pela perda da indústria. Nas últimas duas décadas e meia, o crescimento real dos salários dos mais pobres aumentou mais de 40% em Flint e mais de 26% em Greensboro.
Isso não é brincadeira. Em 2018, a Brookings Institution analisou 185 condados industriais urbanos que tinham muitos empregos no setor, em 1970, e descobriu que 115 haviam conseguido fazer a transição da indústria, melhorando o bem-estar dos moradores. Apenas 14 dessas comunidades industriais ainda poderiam ser definidas como “vulneráveis”. Lembre-se de que o desemprego nos EUA está próximo do menor nível em 50 anos há mais de três anos.
Em uma economia tão grande e diversa como a dos EUA, sempre haverá lugares em dificuldades. Parte do que torna esse problema mais urgente é que os americanos agora raramente se mudam de lugares onde a economia entrou em colapso em busca de melhores perspectivas.
Como Yoni Appelbaum observa em seu livro Stuck, os americanos costumavam ter alta mobilidade, sempre em busca de melhores oportunidades. Mas, nas últimas décadas, eles permaneceram no mesmo lugar, na esperança de que melhores perspectivas econômicas chegassem até eles.
Appelbaum observa uma estatística impressionante sobre a corrida presidencial de 2016: “Entre os eleitores brancos que se mudaram a mais de duas horas de sua cidade natal, Hillary Clinton teve uma sólida vantagem de 6 pontos porcentuais. Aqueles que moravam a menos de duas horas de carro, no entanto, apoiaram Trump por 9 pontos. E aqueles que nunca haviam saído de sua cidade natal o apoiaram por impressionantes 26 pontos.”
Esses números pintam um quadro diferente da natureza da turbulência política nos EUA. Mudanças e rupturas – causadas pelo capitalismo, pela globalização, pela tecnologia ou, crucialmente, por uma cultura em transformação – produziram enorme ansiedade entre muitos. Há aqueles que consideram essas ansiedades insuportáveis e desejam que o mundo volte a ser o que era antes. Mas – com ou sem tarifas – isso não acontecerá.
Quando explico que muitos americanos – incluindo o presidente – acreditam que os EUA foram vítimas deste sistema de livre-comércio, a resposta é perplexidade. “Como eles podem não ver o que é óbvio: que eles são os grandes vencedores?”, disse um alto funcionário estrangeiro.
O presidente Trump e o movimento trumpista moldaram essa narrativa com grande sucesso. Mesmo aqueles que se opõem a Trump tendem a admitir que, embora os americanos mais ricos e as maiores empresas tenham tido sucesso nas últimas décadas, a maioria da população viu sua renda estagnar, empregos serem transferidos para o exterior e os padrões de vida declinarem.
Mas nada disso conta a história certa. Mudanças massivas nas políticas públicas que estão transformando o mundo estão sendo feitas com base em uma série de suposições que são anedotas, exageros e mentiras.
O número básico a ter em mente é a “renda mediana”. A “renda média” ( média aritmética de todas as rendas somadas e divididas pelo número de pessoas) é menos reveladora porque as rendas de Elon Musk, Bill Gates e Jeff Bezos elevam essa média. A “renda mediana” é a renda do americano no meio da distribuição de renda: metade do país ganha mais, metade ganha menos.
A medida da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a renda familiar mediana disponível nos EUA era maior do que em todas as economias industriais avançadas, exceto uma, em 2021 – maior do que Suíça, Alemanha, Reino Unido e Japão. A exceção é o pequeno Luxemburgo. De fato, a renda familiar mediana disponível nos EUA é cerca do dobro da do Japão.
E, como Noah Smith aponta Os americanos raramente se mudam de lugares onde a economia entrou em colapso em um excelente ensaio, a renda mediana dos EUA não está estagnada, como nos diz a sabedoria popular; ela tem crescido rapidamente ao longo das décadas. Smith observa que a renda pessoal mediana real aumentou 50% desde a década de 1970. Os salários por hora, ajustados pela inflação, aumentaram desde a década de 1990. E os salários por hora do terço mais pobre dos americanos aumentaram ainda mais: cerca de 40%.
Sem dúvida, houve rupturas nas últimas décadas. Essa é a natureza do capitalismo. David Autor e outros descreveram um “choque chinês”, no qual cerca de 2 milhões de empregos foram perdidos, entre 1999 e 2011, como resultado da ascensão da China na indústria manufatureira.
O secretário do Tesouro, Scott Bessent, recentemente inflou esse número para 3,7 milhões. Um ensaio para o centro de estudos conservador American Enterprise Institute contesta esse número e lança dúvidas até mesmo sobre os números mais baixos da pesquisa de Autor.
Mas o ponto principal é que a rotatividade no mercado de trabalho americano é enorme. Hoje em dia, em média, cerca de 30 milhões de trabalhadores do setor privado perdem seus empregos anualmente, e um número semelhante ganha empregos a cada ano. Durante os anos do choque chinês, os EUA ganharam mais de 2 milhões de empregos no total. E esses não eram empregos de baixa remuneração em fastfood.
Veja Flint, em Michigan, e Greensboro, na Carolina do Norte – frequentemente vistas como cidades clássicas devastadas pela perda da indústria. Nas últimas duas décadas e meia, o crescimento real dos salários dos mais pobres aumentou mais de 40% em Flint e mais de 26% em Greensboro.
Isso não é brincadeira. Em 2018, a Brookings Institution analisou 185 condados industriais urbanos que tinham muitos empregos no setor, em 1970, e descobriu que 115 haviam conseguido fazer a transição da indústria, melhorando o bem-estar dos moradores. Apenas 14 dessas comunidades industriais ainda poderiam ser definidas como “vulneráveis”. Lembre-se de que o desemprego nos EUA está próximo do menor nível em 50 anos há mais de três anos.
Em uma economia tão grande e diversa como a dos EUA, sempre haverá lugares em dificuldades. Parte do que torna esse problema mais urgente é que os americanos agora raramente se mudam de lugares onde a economia entrou em colapso em busca de melhores perspectivas.
Como Yoni Appelbaum observa em seu livro Stuck, os americanos costumavam ter alta mobilidade, sempre em busca de melhores oportunidades. Mas, nas últimas décadas, eles permaneceram no mesmo lugar, na esperança de que melhores perspectivas econômicas chegassem até eles.
Appelbaum observa uma estatística impressionante sobre a corrida presidencial de 2016: “Entre os eleitores brancos que se mudaram a mais de duas horas de sua cidade natal, Hillary Clinton teve uma sólida vantagem de 6 pontos porcentuais. Aqueles que moravam a menos de duas horas de carro, no entanto, apoiaram Trump por 9 pontos. E aqueles que nunca haviam saído de sua cidade natal o apoiaram por impressionantes 26 pontos.”
Esses números pintam um quadro diferente da natureza da turbulência política nos EUA. Mudanças e rupturas – causadas pelo capitalismo, pela globalização, pela tecnologia ou, crucialmente, por uma cultura em transformação – produziram enorme ansiedade entre muitos. Há aqueles que consideram essas ansiedades insuportáveis e desejam que o mundo volte a ser o que era antes. Mas – com ou sem tarifas – isso não acontecerá.
Agenda armamentista da extrema-direita ameaça a segurança global
Uma proposta legislativa apresentada recentemente em Portugal pelo partido de extrema-direita Chega deu início a um debate que é crucial sobre o futuro da segurança pública no país. A iniciativa tem como objetivo alterar radicalmente as regras de uso de armas de fogo pelas forças de segurança, propondo a eliminação do seu caráter de “excepcionalidade” e, em certas circunstâncias, tornando o seu uso não apenas permitido, mas quase obrigatório. A justificativa, embalada numa retórica de restauração da autoridade e combate a uma suposta “cultura de hesitação” que fragilizaria a atuação das forças de segurança, ecoa um manual político que transcende as fronteiras portuguesas. Longe de ser uma solução isolada para um problema local, a proposta do Chega é, na verdade, a manifestação portuguesa de uma estratégia global, promovida por políticos de extrema-direita em diversos países como o Brasil, os Estados Unidos e a Itália. Esta agenda partilhada se fundamenta em dois pilares: o empoderamento letal das forças policiais como forma de “melhorar a segurança pública” e a proliferação de armas entre a população civil como um suposto direito à autodefesa.
Contudo, uma análise rigorosa e desapaixonada dos dados empíricos disponíveis revela uma contradição fundamental, que podemos designar como o “Paradoxo da Letalidade”. As políticas vendidas sob a promessa de mais segurança, na prática, acabam por gerar mais violência e morte.
Para compreender a gravidade da proposta do Chega, é preciso dissecar os seus detalhes. O projeto de lei não se limita a dar mais liberdade aos agentes para usarem as suas armas; ele busca redefinir a própria filosofia do uso da força. Ao propor a “eliminação da excecionalidade” no recurso a armas de fogo contra pessoas, o partido pretende normalizar o que hoje é, e deve ser, um último recurso.
A proposta vai mais longe, ao estipular um conjunto de circunstâncias em que o uso da arma se tornaria obrigatório. Um exemplo particularmente alarmante é a situação em que um agente enfrenta um grupo de três ou mais agressores. Esta cláusula ignora a complexidade das situações de confronto, removendo o discernimento do agente e substituindo-o por uma regra automática que pode escalar desnecessariamente um conflito, inclusive com desfecho fatal que poderia ter sido evitado. Adicionalmente, o projeto propõe a dispensa da advertência prévia sempre que esta possa colocar o agente em risco, mais uma vez diminuindo as barreiras para o uso da força letal.
A narrativa que sustenta estas medidas é a de que a polícia portuguesa estaria paralisada por uma “cultura de hesitação”, o que encorajaria a criminalidade e a desordem social. O objetivo declarado é “recuperar a autoridade das forças de segurança”. Esta retórica, no entanto, não se baseia numa análise das necessidades reais da segurança em Portugal, mas sim na importação de um guião ideológico que vê na força bruta a principal ferramenta de governação.
A proposta do Chega não é um fenómeno isolado. Ela espelha, com notável fidelidade, as políticas e discursos de seus homólogos internacionais. Nos Estados Unidos, país onde a atuação das forças de segurança é reconhecida como sendo extremamente violenta e com vários casos de uso excessivo de armas de fogo por policiais, o Partido Republicano tem consistentemente trabalhado para desmantelar as regulamentações sobre uso de armas. Sob a bandeira da Segunda Emenda, governadores como Ron DeSantis na Flórida aprovaram leis de “porte sem permissão” (permitless carry), que eliminam a necessidade de licença e treino para portar armas ocultas em público. A nível federal, senadores republicanos usam manobras regimentais para bloquear qualquer tentativa de controlo de armas, garantindo que a política nacional seja refém de uma minoria pró-armas. Simultaneamente, a administração Trump propõe mudar a lei para permitir que pessoas com antecedentes criminais possam adquirir armas de fogo. A ideologia subjacente é a da liberdade individual absoluta, onde o direito de portar uma arma é visto como uma defesa não só contra criminosos, mas contra uma potencial tirania do Estado, que paradoxalmente existiria através do uso de força policial, com uso de armas de fogo. No Brasil, o Partido Liberal (PL) de Jair Bolsonaro e os seus aliados têm travado batalhas legislativas com o objetivo de conceder uma ampliação das “excludentes de ilicitudes” para uso de armas de fogo por forças de segurança, e também para reverter o Estatuto do Desarmamento. As propostas incluem a possibilidade de uso de força letal por forças policiais em situações de “risco iminente de conflito armado”, sem especificar o que seria enquadrado como tal, a redução da idade mínima para a compra de armas para 18 anos, a expansão do porte para novas categorias profissionais e a contestação de decretos presidenciais mais restritivos, sob o argumento de que ferem a “liberdade individual e a legítima defesa”. Na Itália, a Lega, liderada por Matteo Salvini, promove a flexibilização das leis de armas sob a bandeira da “tradição” e da “cultura”. Uma proposta de lei apresentada pelo partido busca duplicar a potência permitida para armas de “livre venda” (que não exigem licença de porte), facilitando o acesso a armas mais letais para defesa pessoal. Paralelamente, a Lega foi a grande impulsionadora de uma reforma da lei da “legítima defesa”, que visa proteger legalmente os cidadãos que usam armas contra invasores, incentivando, na prática, o armamento residencial. Ao mesmo tempo o governo de Giorgia Meloni aprovou decreto, com apoio da Lega, que prevê uma ajuda de 10 mil euros para integrantes de forças policiais que forem processados por atos de violência cometidos no exercício das suas funções. A convergência é clara: em todos estes casos, a resposta para a percepção de insegurança não é o investimento em políticas de prevenção, inteligência ou coesão social, mas sim a delegação da força letal, seja para o Estado (polícia) ou para o indivíduo (cidadão armado).
A premissa central da proposta do Chega, de que uma polícia mais agressiva e letal gera mais segurança, é frontalmente desmentida pelas evidências empíricas. Estudos rigorosos sobre a atuação policial em contextos de alta violência demonstram que não há uma correlação entre o aumento da letalidade policial e a redução dos índices de criminalidade.
Um estudo aprofundado sobre a polícia do Rio de Janeiro, por exemplo, concluiu que não só não havia uma associação negativa, como em alguns casos encontrou-se uma correlação positiva: um aumento nas mortes causadas pela polícia estava associado a um aumento subsequente nos homicídios e roubos na mesma área. A violência policial, em vez de dissuadir o crime, acaba por alimentar ciclos de retaliação e desordem, minando a segurança da comunidade. O estudo revelou, no entanto, que a letalidade estava correlacionada com maiores “resultados operacionais”, como a apreensão de drogas e armas, sugerindo que a polícia pode ser incentivada a adotar táticas de confronto para gerar estatísticas de “sucesso”, mesmo que tenha como consequência uma piora do quadro de segurança pública.
A ligação entre o discurso político e a prática policial é direta. Especialistas em segurança pública afirmam que a retórica de líderes que apoiam o uso da força tem um impacto mensurável na letalidade policial. Um exemplo recente em São Paulo, Brasil, ilustra este ponto: sob um governo de “linha dura”, as mortes causadas pela polícia aumentaram 60,2% de 2023 para 2024, revertendo uma tendência de queda que tinha sido alcançada com a implementação de câmaras corporais nos uniformes dos agentes. Esta experiência prova que existem alternativas eficazes e que a aposta na letalidade é uma escolha política, não uma necessidade técnica. Uma polícia mais violenta também corrói a confiança da comunidade, um ativo essencial para a prevenção e investigação de crimes, e agrava as disparidades raciais, uma vez que a violência estatal recai desproporcionalmente sobre minorias.
O segundo pilar da agenda da extrema-direita, o armamento da população civil, também falha redondamente quando confrontado com os dados. A ideia de que um “cidadão de bem” armado dissuade o crime é um mito perigoso.
Um estudo econométrico realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública estabeleceu uma relação causal direta: a cada 1% de aumento na circulação de armas de fogo, a taxa de homicídios sobe 1,1%. Os investigadores calcularam que a política de flexibilização no Brasil impediu que o país salvasse 6.379 vidas entre 2019 e 2021. O mesmo estudo descobriu que não há qualquer evidência de que mais armas reduzam os crimes contra o património. Pior ainda, a maior disponibilidade de armas está associada a um aumento de 1,2% nos latrocínios (roubo seguido de morte), pois as armas legais acabam por alimentar o mercado ilegal, tornando os confrontos mais letais.
Nos Estados Unidos, uma reanálise das leis que facilitaram o porte de armas concluiu que, dez anos após a sua implementação, estas levaram a um aumento de 13% a 15% nos crimes violentos. A promessa de segurança revelou-se uma miragem estatística.
Além disso, a narrativa do “cidadão de bem” ignora duas realidades trágicas: a violência doméstica e o suicídio. A arma comprada para proteção contra um estranho torna-se, com frequência, o instrumento de violência dentro de casa. No Brasil, um estudo revelou que 35% das mulheres vítimas de agressão não letal por arma de fogo já tinham registado queixas anteriores de violência, na maioria dos casos contra o seu parceiro ou ex-parceiro. A presença de uma arma transforma um histórico de abuso num potencial feminicídio.
O caso da Suíça, frequentemente citado pelos defensores das armas, é um poderoso alerta. Apesar de uma forte cultura de responsabilidade, o país tem uma das mais altas taxas de suicídio por arma de fogo do mundo. Em 2022, de 220 mortes por armas de fogo, 200 foram suicídios. A disponibilidade de um método altamente letal em casa transforma uma crise impulsiva e potencialmente temporária numa fatalidade irreversível.
A proposta do Chega para armar mais e com menos restrições as forças de segurança não é uma solução inovadora para os desafios de Portugal. É a importação de um modelo político falhado, cujas consequências desastrosas estão exaustivamente documentadas em todo o mundo. A evidência empírica é esmagadora: mais armas e mais poder de fogo nas mãos da polícia e dos civis não criam sociedades mais seguras. Pelo contrário, criam sociedades mais letais, onde os conflitos escalam mais rapidamente para a morte, a violência doméstica se torna mais perigosa e o desespero individual encontra um fim mais definitivo.
O caminho para uma segurança pública robusta e duradoura não passa pela força bruta, mas pela inteligência, pela prevenção e pelo fortalecimento das instituições democráticas. Passa por políticas baseadas em dados, como as que levaram à redução da letalidade policial em São Paulo, e por um controlo rigoroso de armas, como o que foi implementado com sucesso na Austrália e na Nova Zelândia, que, após massacres, baniram armas de assalto e viram as suas taxas de violência armada diminuir drasticamente.
Portugal tem a oportunidade de aprender com os erros e acertos de outros países. Rejeitar a proposta do Chega não é apenas uma decisão sobre uma lei específica; é uma escolha sobre o tipo de sociedade que se quer construir. Uma sociedade que aposta na prevenção em vez da repressão, na coesão em vez do medo, e na evidência em vez da ideologia. A segurança dos portugueses depende de rejeitar o perigoso e falacioso paradoxo da letalidade.
Contudo, uma análise rigorosa e desapaixonada dos dados empíricos disponíveis revela uma contradição fundamental, que podemos designar como o “Paradoxo da Letalidade”. As políticas vendidas sob a promessa de mais segurança, na prática, acabam por gerar mais violência e morte.
Para compreender a gravidade da proposta do Chega, é preciso dissecar os seus detalhes. O projeto de lei não se limita a dar mais liberdade aos agentes para usarem as suas armas; ele busca redefinir a própria filosofia do uso da força. Ao propor a “eliminação da excecionalidade” no recurso a armas de fogo contra pessoas, o partido pretende normalizar o que hoje é, e deve ser, um último recurso.
A proposta vai mais longe, ao estipular um conjunto de circunstâncias em que o uso da arma se tornaria obrigatório. Um exemplo particularmente alarmante é a situação em que um agente enfrenta um grupo de três ou mais agressores. Esta cláusula ignora a complexidade das situações de confronto, removendo o discernimento do agente e substituindo-o por uma regra automática que pode escalar desnecessariamente um conflito, inclusive com desfecho fatal que poderia ter sido evitado. Adicionalmente, o projeto propõe a dispensa da advertência prévia sempre que esta possa colocar o agente em risco, mais uma vez diminuindo as barreiras para o uso da força letal.
A narrativa que sustenta estas medidas é a de que a polícia portuguesa estaria paralisada por uma “cultura de hesitação”, o que encorajaria a criminalidade e a desordem social. O objetivo declarado é “recuperar a autoridade das forças de segurança”. Esta retórica, no entanto, não se baseia numa análise das necessidades reais da segurança em Portugal, mas sim na importação de um guião ideológico que vê na força bruta a principal ferramenta de governação.
A proposta do Chega não é um fenómeno isolado. Ela espelha, com notável fidelidade, as políticas e discursos de seus homólogos internacionais. Nos Estados Unidos, país onde a atuação das forças de segurança é reconhecida como sendo extremamente violenta e com vários casos de uso excessivo de armas de fogo por policiais, o Partido Republicano tem consistentemente trabalhado para desmantelar as regulamentações sobre uso de armas. Sob a bandeira da Segunda Emenda, governadores como Ron DeSantis na Flórida aprovaram leis de “porte sem permissão” (permitless carry), que eliminam a necessidade de licença e treino para portar armas ocultas em público. A nível federal, senadores republicanos usam manobras regimentais para bloquear qualquer tentativa de controlo de armas, garantindo que a política nacional seja refém de uma minoria pró-armas. Simultaneamente, a administração Trump propõe mudar a lei para permitir que pessoas com antecedentes criminais possam adquirir armas de fogo. A ideologia subjacente é a da liberdade individual absoluta, onde o direito de portar uma arma é visto como uma defesa não só contra criminosos, mas contra uma potencial tirania do Estado, que paradoxalmente existiria através do uso de força policial, com uso de armas de fogo. No Brasil, o Partido Liberal (PL) de Jair Bolsonaro e os seus aliados têm travado batalhas legislativas com o objetivo de conceder uma ampliação das “excludentes de ilicitudes” para uso de armas de fogo por forças de segurança, e também para reverter o Estatuto do Desarmamento. As propostas incluem a possibilidade de uso de força letal por forças policiais em situações de “risco iminente de conflito armado”, sem especificar o que seria enquadrado como tal, a redução da idade mínima para a compra de armas para 18 anos, a expansão do porte para novas categorias profissionais e a contestação de decretos presidenciais mais restritivos, sob o argumento de que ferem a “liberdade individual e a legítima defesa”. Na Itália, a Lega, liderada por Matteo Salvini, promove a flexibilização das leis de armas sob a bandeira da “tradição” e da “cultura”. Uma proposta de lei apresentada pelo partido busca duplicar a potência permitida para armas de “livre venda” (que não exigem licença de porte), facilitando o acesso a armas mais letais para defesa pessoal. Paralelamente, a Lega foi a grande impulsionadora de uma reforma da lei da “legítima defesa”, que visa proteger legalmente os cidadãos que usam armas contra invasores, incentivando, na prática, o armamento residencial. Ao mesmo tempo o governo de Giorgia Meloni aprovou decreto, com apoio da Lega, que prevê uma ajuda de 10 mil euros para integrantes de forças policiais que forem processados por atos de violência cometidos no exercício das suas funções. A convergência é clara: em todos estes casos, a resposta para a percepção de insegurança não é o investimento em políticas de prevenção, inteligência ou coesão social, mas sim a delegação da força letal, seja para o Estado (polícia) ou para o indivíduo (cidadão armado).
A premissa central da proposta do Chega, de que uma polícia mais agressiva e letal gera mais segurança, é frontalmente desmentida pelas evidências empíricas. Estudos rigorosos sobre a atuação policial em contextos de alta violência demonstram que não há uma correlação entre o aumento da letalidade policial e a redução dos índices de criminalidade.
Um estudo aprofundado sobre a polícia do Rio de Janeiro, por exemplo, concluiu que não só não havia uma associação negativa, como em alguns casos encontrou-se uma correlação positiva: um aumento nas mortes causadas pela polícia estava associado a um aumento subsequente nos homicídios e roubos na mesma área. A violência policial, em vez de dissuadir o crime, acaba por alimentar ciclos de retaliação e desordem, minando a segurança da comunidade. O estudo revelou, no entanto, que a letalidade estava correlacionada com maiores “resultados operacionais”, como a apreensão de drogas e armas, sugerindo que a polícia pode ser incentivada a adotar táticas de confronto para gerar estatísticas de “sucesso”, mesmo que tenha como consequência uma piora do quadro de segurança pública.
A ligação entre o discurso político e a prática policial é direta. Especialistas em segurança pública afirmam que a retórica de líderes que apoiam o uso da força tem um impacto mensurável na letalidade policial. Um exemplo recente em São Paulo, Brasil, ilustra este ponto: sob um governo de “linha dura”, as mortes causadas pela polícia aumentaram 60,2% de 2023 para 2024, revertendo uma tendência de queda que tinha sido alcançada com a implementação de câmaras corporais nos uniformes dos agentes. Esta experiência prova que existem alternativas eficazes e que a aposta na letalidade é uma escolha política, não uma necessidade técnica. Uma polícia mais violenta também corrói a confiança da comunidade, um ativo essencial para a prevenção e investigação de crimes, e agrava as disparidades raciais, uma vez que a violência estatal recai desproporcionalmente sobre minorias.
O segundo pilar da agenda da extrema-direita, o armamento da população civil, também falha redondamente quando confrontado com os dados. A ideia de que um “cidadão de bem” armado dissuade o crime é um mito perigoso.
Um estudo econométrico realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública estabeleceu uma relação causal direta: a cada 1% de aumento na circulação de armas de fogo, a taxa de homicídios sobe 1,1%. Os investigadores calcularam que a política de flexibilização no Brasil impediu que o país salvasse 6.379 vidas entre 2019 e 2021. O mesmo estudo descobriu que não há qualquer evidência de que mais armas reduzam os crimes contra o património. Pior ainda, a maior disponibilidade de armas está associada a um aumento de 1,2% nos latrocínios (roubo seguido de morte), pois as armas legais acabam por alimentar o mercado ilegal, tornando os confrontos mais letais.
Nos Estados Unidos, uma reanálise das leis que facilitaram o porte de armas concluiu que, dez anos após a sua implementação, estas levaram a um aumento de 13% a 15% nos crimes violentos. A promessa de segurança revelou-se uma miragem estatística.
Além disso, a narrativa do “cidadão de bem” ignora duas realidades trágicas: a violência doméstica e o suicídio. A arma comprada para proteção contra um estranho torna-se, com frequência, o instrumento de violência dentro de casa. No Brasil, um estudo revelou que 35% das mulheres vítimas de agressão não letal por arma de fogo já tinham registado queixas anteriores de violência, na maioria dos casos contra o seu parceiro ou ex-parceiro. A presença de uma arma transforma um histórico de abuso num potencial feminicídio.
O caso da Suíça, frequentemente citado pelos defensores das armas, é um poderoso alerta. Apesar de uma forte cultura de responsabilidade, o país tem uma das mais altas taxas de suicídio por arma de fogo do mundo. Em 2022, de 220 mortes por armas de fogo, 200 foram suicídios. A disponibilidade de um método altamente letal em casa transforma uma crise impulsiva e potencialmente temporária numa fatalidade irreversível.
A proposta do Chega para armar mais e com menos restrições as forças de segurança não é uma solução inovadora para os desafios de Portugal. É a importação de um modelo político falhado, cujas consequências desastrosas estão exaustivamente documentadas em todo o mundo. A evidência empírica é esmagadora: mais armas e mais poder de fogo nas mãos da polícia e dos civis não criam sociedades mais seguras. Pelo contrário, criam sociedades mais letais, onde os conflitos escalam mais rapidamente para a morte, a violência doméstica se torna mais perigosa e o desespero individual encontra um fim mais definitivo.
O caminho para uma segurança pública robusta e duradoura não passa pela força bruta, mas pela inteligência, pela prevenção e pelo fortalecimento das instituições democráticas. Passa por políticas baseadas em dados, como as que levaram à redução da letalidade policial em São Paulo, e por um controlo rigoroso de armas, como o que foi implementado com sucesso na Austrália e na Nova Zelândia, que, após massacres, baniram armas de assalto e viram as suas taxas de violência armada diminuir drasticamente.
Portugal tem a oportunidade de aprender com os erros e acertos de outros países. Rejeitar a proposta do Chega não é apenas uma decisão sobre uma lei específica; é uma escolha sobre o tipo de sociedade que se quer construir. Uma sociedade que aposta na prevenção em vez da repressão, na coesão em vez do medo, e na evidência em vez da ideologia. A segurança dos portugueses depende de rejeitar o perigoso e falacioso paradoxo da letalidade.
Lula peitou Trump, e acertou em cheio – por enquanto
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva apostou alto – e saiu-se surpreendentemente bem até agora. Embora os Estados Unidos tenham taxado as exportações brasileiras em 50%, o maior valor na comparação global, a Casa Branca poupou quase metade dos bens, sujeitos à tarifa mínima de 10% imposta em abril.
Sendo assim, a estratégia de Lula pode ter valido a pena. Diferentemente da maioria dos chefes de governo ao redor do mundo, o ex-sindicalista não reagiu às ameaças tarifárias de Trump com bajulação, concessões unilaterais ou subserviência precipitada, e sim com críticas claras. Chamou as ameaças de Trump de "chantagem inaceitável" e declarou: "Não é um gringo que vai dar ordem a este presidente da República."
Porém, mal houve espaço para negociações. Trump havia combinado sua ameaça de tarifa recorde com exigências políticas: o Brasil deveria suspender imediatamente o processo judicial ao qual o ex-presidente Jair Bolsonaro responde por envolvimento em uma tentativa de golpe de Estado. Mas o governo brasileiro não podia e nem queria atender a essa demanda.
Foi por isso que Trump reagiu na semana passada com duas medidas mais duras. A primeira foi o sancionamento do ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do processo na Corte contra Bolsonaro e enquadrado na Lei Magnitsky – instrumento dos EUA geralmente reservado a ditadores e seus cúmplices. Ao mesmo tempo, Trump anunciou a imposição do tarifaço recorde, embora com uma extensa lista de isenções.
Por causa do tarifaço americano, economistas esperam que o Brasil deixará de crescer, no máximo, 0,4%. No fim das contas, a economia brasileira é extremamente fechada e a conjuntura não depende tanto do comércio exterior, como é o caso da Alemanha ou do México, por exemplo.
Ainda assim, tenho minhas dúvidas. Acho que o Brasil e os EUA estão só no início de um confronto, e que ele seguirá escalando. Desde a semana passada, a espiral de medidas se acentuou. Depois que Bolsonaro foi posto em prisão domiciliar, o Departamento de Estado americano agora ameaça com mais sanções. E o ministro Moraes não parece se deixar intimidar pelas ameaças de Trump, de modo que novas retaliações podem estar a caminho. É provável que Bolsonaro seja condenado nos próximos meses. Por isso, Trump continuará de olho no Brasil – pelo menos até as eleições de 2026.
Há temas conflituosos de sobra além de Bolsonaro: a cooperação econômica crescente do Brasil com a China; o papel de Lula no Brics, bloco que reúne adversários dos EUA como Rússia, China e Irã; as importações de diesel e fertilizante da Rússia; a atuação do judiciário brasileiro contra empresas americanas de tecnologia, como o X, para citar alguns exemplos.
Os cenários para novas escaladas são sombrios. Trump poderia usar a Lei Magnitsky para, sob o pretexto de repelir uma ameaça à nação, sancionar outros políticos, juízes e membros do governo brasileiro. Também poderia vetar a emissão de vistos a brasileiros, ou anular vistos existentes.
Até agora o Brasil sempre esperou passar despercebido por Trump, ser visto como insignificante demais em comparação aos parceiros comerciais ou concorrentes de peso dos EUA, como a Europa, a China ou o Japão. Mas essa esperança se desfez no ar. Mais uma vez, o Brasil se vê subitamente no olho do furacão.
Sendo assim, a estratégia de Lula pode ter valido a pena. Diferentemente da maioria dos chefes de governo ao redor do mundo, o ex-sindicalista não reagiu às ameaças tarifárias de Trump com bajulação, concessões unilaterais ou subserviência precipitada, e sim com críticas claras. Chamou as ameaças de Trump de "chantagem inaceitável" e declarou: "Não é um gringo que vai dar ordem a este presidente da República."
Porém, mal houve espaço para negociações. Trump havia combinado sua ameaça de tarifa recorde com exigências políticas: o Brasil deveria suspender imediatamente o processo judicial ao qual o ex-presidente Jair Bolsonaro responde por envolvimento em uma tentativa de golpe de Estado. Mas o governo brasileiro não podia e nem queria atender a essa demanda.
Foi por isso que Trump reagiu na semana passada com duas medidas mais duras. A primeira foi o sancionamento do ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do processo na Corte contra Bolsonaro e enquadrado na Lei Magnitsky – instrumento dos EUA geralmente reservado a ditadores e seus cúmplices. Ao mesmo tempo, Trump anunciou a imposição do tarifaço recorde, embora com uma extensa lista de isenções.
Por causa do tarifaço americano, economistas esperam que o Brasil deixará de crescer, no máximo, 0,4%. No fim das contas, a economia brasileira é extremamente fechada e a conjuntura não depende tanto do comércio exterior, como é o caso da Alemanha ou do México, por exemplo.
Ainda assim, tenho minhas dúvidas. Acho que o Brasil e os EUA estão só no início de um confronto, e que ele seguirá escalando. Desde a semana passada, a espiral de medidas se acentuou. Depois que Bolsonaro foi posto em prisão domiciliar, o Departamento de Estado americano agora ameaça com mais sanções. E o ministro Moraes não parece se deixar intimidar pelas ameaças de Trump, de modo que novas retaliações podem estar a caminho. É provável que Bolsonaro seja condenado nos próximos meses. Por isso, Trump continuará de olho no Brasil – pelo menos até as eleições de 2026.
Há temas conflituosos de sobra além de Bolsonaro: a cooperação econômica crescente do Brasil com a China; o papel de Lula no Brics, bloco que reúne adversários dos EUA como Rússia, China e Irã; as importações de diesel e fertilizante da Rússia; a atuação do judiciário brasileiro contra empresas americanas de tecnologia, como o X, para citar alguns exemplos.
Os cenários para novas escaladas são sombrios. Trump poderia usar a Lei Magnitsky para, sob o pretexto de repelir uma ameaça à nação, sancionar outros políticos, juízes e membros do governo brasileiro. Também poderia vetar a emissão de vistos a brasileiros, ou anular vistos existentes.
Até agora o Brasil sempre esperou passar despercebido por Trump, ser visto como insignificante demais em comparação aos parceiros comerciais ou concorrentes de peso dos EUA, como a Europa, a China ou o Japão. Mas essa esperança se desfez no ar. Mais uma vez, o Brasil se vê subitamente no olho do furacão.
As intermitências da morte
Gaza, Nagasaki, periferias do Brasil. Quem dera a morte cansasse e, como a personagem do livro de José Saramago que dá título a esse texto, simplesmente abandonasse seu propósito. O dia amanhece e nenhum tiro atravessa um corpo palestino, nenhuma arma da polícia assassina um corpo preto, a memória nuclear japonesa se dissipa. No livro, a imortalidade é uma crise. Hospitais lotados, funerárias falidas, a igreja perdida sem paraíso. Então vale a pergunta: se ninguém morre, só resta transformar a vida?
O genocídio na Palestina dilacera, acumula mais de 60 mil mortos em um território de escombros. O chão que os pés pisam cultiva a memória de um povo, traduz parte de sua identidade. Esse laço foi trucidado pelo sionismo. Em mais um ato de crueldade que a história não perdoará, o exército israelense fuzila aqueles que tentam se aproximar da comida. ‘Eu morreria por um pacote de farinha para meus filhos’, disse um homem em Gaza.
O Washington Post fez um longo obituário infantil, do total de vidas ceifadas pela extrema-direita de Israel, quinze mil são crianças. Uma delas era Ayloul Quad, de sete anos. Era “a criança mais bonita que já vi na minha vida, por dentro e por fora”, disse sua tia Hiba Muqdad. “Nós caminhávamos pela rua e ela se recusava a comprar qualquer coisa, sabendo que outras crianças na rua não tinham o que comer.”, diz um trecho da reportagem. Mas no processo de desumanização do outro no Ocidente, Ayloul não é uma criança. Talvez você tenha um filho ou filha, sobrinha ou sobrinho. Não pense no sofrimento deles em Gaza.
“Oitenta anos se passaram, mas nada mudou”, disse Terumi Tanaka, um sobrevivente da bomba atômica em Nagasaki. A explosão. Depois, o silêncio carbonizado. O horror rasgou tudo a 4.000 °C. Sobreviventes se arrastaram pelos destroços como zumbis de urânio. “Havia centenas de pessoas sofrendo em agonia, sem poder receber qualquer tipo de atendimento médico”, recordou Tanaka.
Ainda me impressiono com a impessoalidade das bombas. “Fat Man” e “Little Boy” parecem ter nascido por geração espontânea. Quando lembrados, Harry Truman, então presidente dos EUA, e a equipe de Oppenheimer são meros passageiros das circunstâncias. Tudo leva a crer que não havia escolha, mesmo com a guerra em seu epílogo. Ficam entre esquecidos ou perdoados. A história é contada pelos vencedores e ainda rende Oscars. O filme sobre os sobreviventes de Hiroshima será estrelado por DiCaprio?
No final de julho, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou os dados do Anuário de Segurança. Os feminicídios bateram recorde. Os assassinatos de crianças e adolescentes aumentaram em 2024 e 19% deles envolveram policiais. Comemora-se a queda nas mortes violentas, que recuaram 5,4%. São 44.125 vidas perdidas em uma guerra civil que o país teima ignorar, porque o maior número dos mortos são negros e negros são como os palestinos, que são como os zumbis da bomba.
São jovens a maioria deles, a maioria deles negros, alvejados ao deixar o trabalho, ao sair do baile, ao fazer compras em um supermercado, ao andar de carro ou simplesmente caminhar em seu bairro. Mas também em confrontos com o tráfico. Esses jovens não podem viver? Há que lembrar o alerta, que já virou clichê insistente, de Darcy Ribeiro. Era preciso construir mais escolas para que não se construíssem mais presídios no futuro. Virou post amarelado.
Há muito em comum nestes três desastres. Todos seriam evitáveis. A Segunda Guerra se aproximava do fim; Israel poderia sufocar o Hamas com inteligência – sem falar no cessar-fogo que deveria ser decretado há meses; a polícia teria que tratar os pobres como cidadãos e não como ameaças. O Brasil deveria carregar menos armas.
60 mil, 44 mil, 200 mil. Números e mais números que ocultam crianças, pais, mães, tias, tios, sobrinhos. Minha ideia inicial era fazer associações com o livro de Saramago, mas o texto do português, com suas frases sem fim e diálogos contínuos, tem uma saborosa ironia, fazem da filosofia a amiga do riso. Foi impossível acercá-lo. Na obra, em certo momento, a morte volta e seus escolhidos começam a receber cartas, avisando a chegada do inevitável. Em Gaza, essas cartas cortam o ar a todo instante; em Nagasaki, caíram do céu; no Brasil, dobram qualquer esquina periférica. A morte não cessa, a vida sangra e grita sobrevivências.
O genocídio na Palestina dilacera, acumula mais de 60 mil mortos em um território de escombros. O chão que os pés pisam cultiva a memória de um povo, traduz parte de sua identidade. Esse laço foi trucidado pelo sionismo. Em mais um ato de crueldade que a história não perdoará, o exército israelense fuzila aqueles que tentam se aproximar da comida. ‘Eu morreria por um pacote de farinha para meus filhos’, disse um homem em Gaza.
O Washington Post fez um longo obituário infantil, do total de vidas ceifadas pela extrema-direita de Israel, quinze mil são crianças. Uma delas era Ayloul Quad, de sete anos. Era “a criança mais bonita que já vi na minha vida, por dentro e por fora”, disse sua tia Hiba Muqdad. “Nós caminhávamos pela rua e ela se recusava a comprar qualquer coisa, sabendo que outras crianças na rua não tinham o que comer.”, diz um trecho da reportagem. Mas no processo de desumanização do outro no Ocidente, Ayloul não é uma criança. Talvez você tenha um filho ou filha, sobrinha ou sobrinho. Não pense no sofrimento deles em Gaza.
“Oitenta anos se passaram, mas nada mudou”, disse Terumi Tanaka, um sobrevivente da bomba atômica em Nagasaki. A explosão. Depois, o silêncio carbonizado. O horror rasgou tudo a 4.000 °C. Sobreviventes se arrastaram pelos destroços como zumbis de urânio. “Havia centenas de pessoas sofrendo em agonia, sem poder receber qualquer tipo de atendimento médico”, recordou Tanaka.
Ainda me impressiono com a impessoalidade das bombas. “Fat Man” e “Little Boy” parecem ter nascido por geração espontânea. Quando lembrados, Harry Truman, então presidente dos EUA, e a equipe de Oppenheimer são meros passageiros das circunstâncias. Tudo leva a crer que não havia escolha, mesmo com a guerra em seu epílogo. Ficam entre esquecidos ou perdoados. A história é contada pelos vencedores e ainda rende Oscars. O filme sobre os sobreviventes de Hiroshima será estrelado por DiCaprio?
No final de julho, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou os dados do Anuário de Segurança. Os feminicídios bateram recorde. Os assassinatos de crianças e adolescentes aumentaram em 2024 e 19% deles envolveram policiais. Comemora-se a queda nas mortes violentas, que recuaram 5,4%. São 44.125 vidas perdidas em uma guerra civil que o país teima ignorar, porque o maior número dos mortos são negros e negros são como os palestinos, que são como os zumbis da bomba.
São jovens a maioria deles, a maioria deles negros, alvejados ao deixar o trabalho, ao sair do baile, ao fazer compras em um supermercado, ao andar de carro ou simplesmente caminhar em seu bairro. Mas também em confrontos com o tráfico. Esses jovens não podem viver? Há que lembrar o alerta, que já virou clichê insistente, de Darcy Ribeiro. Era preciso construir mais escolas para que não se construíssem mais presídios no futuro. Virou post amarelado.
Há muito em comum nestes três desastres. Todos seriam evitáveis. A Segunda Guerra se aproximava do fim; Israel poderia sufocar o Hamas com inteligência – sem falar no cessar-fogo que deveria ser decretado há meses; a polícia teria que tratar os pobres como cidadãos e não como ameaças. O Brasil deveria carregar menos armas.
60 mil, 44 mil, 200 mil. Números e mais números que ocultam crianças, pais, mães, tias, tios, sobrinhos. Minha ideia inicial era fazer associações com o livro de Saramago, mas o texto do português, com suas frases sem fim e diálogos contínuos, tem uma saborosa ironia, fazem da filosofia a amiga do riso. Foi impossível acercá-lo. Na obra, em certo momento, a morte volta e seus escolhidos começam a receber cartas, avisando a chegada do inevitável. Em Gaza, essas cartas cortam o ar a todo instante; em Nagasaki, caíram do céu; no Brasil, dobram qualquer esquina periférica. A morte não cessa, a vida sangra e grita sobrevivências.
Assinar:
Comentários (Atom)




