segunda-feira, 14 de julho de 2025
Tempos sombrios
Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança
Hannah Arendt
‘As pessoas não sabem mais o que é real'
Quando discursou após receber o Prêmio Nobel da Paz, em 2021, a jornalista filipina Maria Ressa fez uma pergunta: “o que você está disposto a sacrificar em nome da verdade”. Perseguida em seu país, e ainda sob risco de ser presa, Ressa é uma das vozes mais relevantes em defesa da liberdade de expressão, que não hesita em apontar as big techs como a maior ameaça às democracias — como fez em seu livro mais recente, “Como enfrentar um ditador”, lançado pela Companhia das Letras.
Em entrevista ao GLOBO, na semana em que foi homenageada no Prêmio Faz Diferença, Maria Ressa defendeu a regulamentação das redes sociais, expressou sua preocupação com a expansão do uso da inteligência artificial e reiterou o papel do jornalismo como um pilar de nossa sociedade, mesmo em meio aos ataques vindos de todos os lados.
Em seu livro “Como enfrentar um ditador”, você fez uma comparação a uma antiga forma de execução chinesa, a “morte por mil cortes”, e a ação de autocratas que fazem ataques pontuais à democracia, que só são percebidos quando todo o sistema está corroído. Neste cenário, as redes sociais são uma ferramenta a mais para os “cortes” antidemocráticos?
A forma como as redes sociais são moldadas maximizam o lucro, e eles o mantêm rolando a tela com mentiras. Tudo ficou ainda pior depois que Elon Musk comprou o Twitter e o transformou no X. As mentiras hoje se espalham seis vezes mais rápido do que em 2018, e são impulsionadas por medo, ódio e raiva. Elas hackeiam nossa biologia. E essas emoções mudam a forma como vemos o mundo, como agimos e como votamos. As redes sociais tiveram um efeito imediato no mundo na década passada. Em março, o instituto V-Dem, da Suécia, disse que 72% do mundo têm regimes autoritários, um patamar similar ao de 1978. E isso me preocupa: as redes sociais tiraram nossa capacidade de avaliação sem que tenhamos percebido? Afinal, nós estamos elegendo esses líderes não liberais, o mundo está mudado. Então quando citei a “morte por mil cortes” era o que sentia nas Filipinas quando [Rodrigo] Duterte assumiu, ele começou a remover pequenas coisas, como barrar a imprensa no palácio presidencial, dizer que ia banir os jornalistas de outros eventos. Eram pequenos cortes, e você nem liga, mas quando percebe, seu corpo já está sangrando tanto que você está morrendo. Foi o que aconteceu com as democracias ao redor do mundo.
Hoje o grande assunto no meio de tecnologia é a IA, mas rapidamente percebemos como elas podem ser usadas de maneira nociva. Estamos preparados para lidar com ela?
O primeiro nível de contato entre a IA e a humanidade é nas redes sociais. Elas roubam nossos dados, fazem um clone nosso. O Facebook diz que estão usando esse conhecimento para criar um modelo seu, mas podemos trocar essa palavra por “clone”. Relatórios de consumidores apontaram, há cerca de um ano e meio, que as empresas estavam usando cerca de 2,3 mil diferentes conjuntos de big data. Se você é americano, sua privacidade de dados é um mito. Quando a inteligência artificial chega, ela pega nossos clones e se torna o banco de dados principal que é usado para micro segmentação, que é um antigo modelo de publicidade. Ela vende seu ponto mais fraco para uma empresa ou país. Mas o que percebemos é que países e pessoas que buscam o poder usam isso para manipular as pessoas nas plataformas. Nos EUA, por exemplo, nas eleições de 2016, a Comissão de Inteligência do Senado revelou que 126 milhões de americanos foram expostos à propaganda russa. Mulheres, também em 2016, sofreram dez vezes mais ataques do que homens. Isso são as redes sociais.
Uma faceta nociva da IA, os deep fakes, está senda usada para propagar desinformação e minar reputações. Isso é mais um argumento em prol de uma regulamentação mais estrita para o setor de tecnologia?
Com esse tipo de IA, eu tenho um “deep fake” meu vendendo uma criptomoeda. Jamais disse aquilo, mas soa como se fosse eu. Em outro caso, há um vídeo e um áudio meu no qual digo às pessoas com diabetes para que joguem fora a insulina. Jamais disse isso, mas algumas pessoas podem acreditar. Nós não estamos preparados para IA, e por isso deveria haver leis, uma vez que, com a IA generativa, as pessoas não sabem mais o que é real ou não. Por exemplo, um deep fake meu dizendo para as pessoas jogarem fora sua insulina. É uma questão de segurança, não de liberdade de expressão. No mundo real, se você é jornalista e publica uma mentira, enfrentamos questões legais. Por que as big techs não? Por que permitimos que o mundo seja virado de cabeça para baixo para que elas tenham mais lucros?
Dmitry Muratov (jornalista russo e vencedor do Nobel da Paz em 2021) e eu lançamos, em 2021, um plano de ação de 10 pontos, assinado por outros 300 vencedores do Nobel e grupos da sociedade civil, que foca em três pontos. O primeiro é o fim da vigilância por lucro. Os seres humanos precisam de privacidade de informação, e se você quer meus dados, precisa me pagar. A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem lugar no mundo virtual. O segundo é o fim do viés codificado. Se você é uma mulher ou pessoa LGBT+, negro ou membro de uma minoria étnica, você será marginalizado online. Esse é o código que está em nossos telefones. E, finalmente, o jornalismo como antídoto para a tirania. O Comitê Norueguês do Nobel disse que, sem o jornalismo, sem liberdade de expressão, a democracia morre. O jornalismo precisa não apenas sobreviver, mas sim desafiar o poder. Nosso dever sempre foi dizer a verdade ao poder.
Na carta em que anunciou tarifas de 50% ao Brasil, o presidente dos EUA, Donald Trump, citou medidas tomadas contra as big techs aqui no Brasil, em uma demonstração de que o chefe da maior economia do mundo está do lado delas. Foi um sinal, esse mais enfático, de que a batalha pela regulamentação será difícil?
O maior problema nos EUA é que discursos violentos foram postos no mesmo patamar da liberdade de expressão, algo que o lobby das big techs pressionou para que fosse assim. Mas não é uma questão de liberdade de expressão, mas sim de segurança. Quando você cria um software hoje, está criando um mundo. Estamos neste momento em um prédio que segue leis para seguir operando. Há uma lei. Uma torradeira nos EUA tem mais regulamentações de segurança do que as big techs têm em seus softwares. A primeira coisa que penso é nos perigos às crianças. O ex-cirurgião-geral dos EUA, que deixou o cargo após a posse de Trump. divulgou dois relatórios, sendo que um deles fala da “epidemia da solidão”, como a tecnologia está nos isolando. Há mais casos de depressão, de jovens tirando as próprias vidas, de distúrbios alimentares. O mundo se move com base em nossas conexões, nossas conexões sociais, e empresas como o Facebook roubaram isso. Se olharmos para o que nos é ofertado nos telefones pelas empresas de tecnologia, veremos que tudo nos encoraja a sermos nossas piores versões. Se você mentir, conseguirá mais alcance e incitará medo, ódio e raiva. Não somos assim. A bondade das pessoas está lá, mas é mais difícil lidar com pessoas mais jovens que ainda estão tentando formar seus valores. Por isso, a segurança em primeiro lugar. Engenheiros civis têm códigos de obras e seguem padrões éticos — os engenheiros de software deveriam estar sujeitos aos mesmos padrões.
Neste contexto, a decisão da Justiça da Romênia de anular a eleição presidencial do ano passado, após alegações de manipulação através das redes sociais, foi um passo positivo?
Absolutamente. Pensemos nas Filipinas, em maio de 2016 Rodrigo Duterte foi eleito presidente, e ele foi eleito pelas redes sociais, o primeiro. Um mês depois houve o Brexit, e também há dados que mostram a manipulação do voto. Ainda em 2016, a primeira vitória de Trump, sobre a qual o Senado dos EUA mostrou, em 2018, os indícios de informações contra americanos. Mas nenhum país teve a coragem de cancelar uma eleição, citando interferência eleitoral, antes da Romênia em dezembro de 2024. Se não tivessem feito isso, teriam eleito um homem sem partido, que fez campanha no TikTok e com amplas evidências de interferência do Kremlin. Essa foi fácil de notar, mas outras, como a morte por mil cortes de nossa independência, de nossa capacidade de escolher, são mais difíceis. Se estamos sendo manipulados, a democracia funciona. Ou essa é a razão pela qual o mundo está caminhando em direção à autocracia e ao fascismo.
Ainda sobre Trump, como você avalia o uso em excesso de ordens executivas, de certa forma quebrando a normalidade democrática? Soa similar ao que você já viu nas Filipinas?
Os pesos e contrapesos da democracia americana foram jogados fora. E isso é um problema porque os EUA eram o farol da democracia. O que acontece por lá é familiar para os brasileiros e também para os filipinos. Digo que nossos países foram do inferno para o purgatório. Foram seis meses para Duterte abalar instituições democráticas, tomando todas as decisões através do Poder Executivo. Ferdinand Marcos, nosso primeiro ditador e que ficou no poder por 21 anos, declarou lei marcial por ordem executiva. Trump também usa ordens executivas. Por isso questionamos como a democracia americano se parecerá, se ela sobreviverá, e o que causará ao mundo. Estamos passando por isso agora. O presidente Lula respondeu a Trump de maneira forte, mas parece que estamos vivendo em um mundo invertido, similar ao que acontece nas redes sociais. Ações estão sendo tomadas com impunidade, de uma forma que jamais aconteceria na antiga ordem. Já disse algumas vezes que a nossa maior batalha hoje é provar que um sistema internacional baseado em ordens ainda existe. Mas temos [Vladimir] Putin [,presidente da Rússia] e [Benjamin ] Netanyahu [, premier de Israel], todas as guerras na África, e CEOs das big techs agindo de forma impune, pegando nossos dados, raspando tudo a ponto de termos um tráfego que não podemos bloquear. Eles não são pessoas reais. Estão apenas raspando o que nós criamos. Isso é impunidade. A impunidade precisa acabar se o Estado de Direito existir, mas aqui está o maior problema deles. Como você pode ter um Estado de Direito se não tiver fatos? Sem fatos, não temos verdades. Sem verdade, não temos confiança. Sem isso, não temos uma realidade compartilhada.
Em relatório em maio, a ONG Repórteres Sem Fronteiras destacou o ambiente nocivo enfrentado pelo jornalismo no mundo, com problemas financeiros, perseguição judicial e criminal e a morte de dezenas de profissionais. Como enfrentar este cenário justamente no momento em que o jornalismo se mostra tão necessário?
Há quase 20 anos o número de jornalistas mortos e presos só aumenta. Ao mesmo tempo, a qualidade da democracia diminuiu. Em dezembro de 2021, eu disse em meu discurso na cerimônia do Nobel que estávamos sobre os escombros do que já foi o mundo. O mundo mudou de forma significativa, em parte por causa da globalização, em parte porque são problemas com os quais já teríamos que lidar. Mas o fósforo que fez tudo pegar fogo foi a tecnologia, que não tem regras claras. Isso me lembrou dos tempos em que o trabalho era novo, as fábricas eram novas e foram necessárias leis para proteger o trabalho das mulheres e de menores. A questão agora é se teremos tempo, e nós estamos diante de um precipício, e muito depende do que cada pessoa em uma democracia fará. Jornalistas têm um papel, e jamais enfrentamos tantos ataques como agora. Nosso modelo de negócios está ameaçado, muitos perderam seus empregos. Há instituições que seguem intactas, o que significa que precisam trabalhar para não serem ainda mais corroídas pela tecnologia. A parte interessante é que temos também a chance de criar. Precisamos fazer perguntas: onde estamos? Como o jornalismo evoluirá? Como será a tecnologia para distribuir o jornalismo? Como escapar do capitalismo vigilante? Como exigir nossos direitos, não apenas para nós, jornalistas, mas também para as pessoas que servimos?
Em entrevista ao GLOBO, na semana em que foi homenageada no Prêmio Faz Diferença, Maria Ressa defendeu a regulamentação das redes sociais, expressou sua preocupação com a expansão do uso da inteligência artificial e reiterou o papel do jornalismo como um pilar de nossa sociedade, mesmo em meio aos ataques vindos de todos os lados.
Em seu livro “Como enfrentar um ditador”, você fez uma comparação a uma antiga forma de execução chinesa, a “morte por mil cortes”, e a ação de autocratas que fazem ataques pontuais à democracia, que só são percebidos quando todo o sistema está corroído. Neste cenário, as redes sociais são uma ferramenta a mais para os “cortes” antidemocráticos?
A forma como as redes sociais são moldadas maximizam o lucro, e eles o mantêm rolando a tela com mentiras. Tudo ficou ainda pior depois que Elon Musk comprou o Twitter e o transformou no X. As mentiras hoje se espalham seis vezes mais rápido do que em 2018, e são impulsionadas por medo, ódio e raiva. Elas hackeiam nossa biologia. E essas emoções mudam a forma como vemos o mundo, como agimos e como votamos. As redes sociais tiveram um efeito imediato no mundo na década passada. Em março, o instituto V-Dem, da Suécia, disse que 72% do mundo têm regimes autoritários, um patamar similar ao de 1978. E isso me preocupa: as redes sociais tiraram nossa capacidade de avaliação sem que tenhamos percebido? Afinal, nós estamos elegendo esses líderes não liberais, o mundo está mudado. Então quando citei a “morte por mil cortes” era o que sentia nas Filipinas quando [Rodrigo] Duterte assumiu, ele começou a remover pequenas coisas, como barrar a imprensa no palácio presidencial, dizer que ia banir os jornalistas de outros eventos. Eram pequenos cortes, e você nem liga, mas quando percebe, seu corpo já está sangrando tanto que você está morrendo. Foi o que aconteceu com as democracias ao redor do mundo.
Hoje o grande assunto no meio de tecnologia é a IA, mas rapidamente percebemos como elas podem ser usadas de maneira nociva. Estamos preparados para lidar com ela?
O primeiro nível de contato entre a IA e a humanidade é nas redes sociais. Elas roubam nossos dados, fazem um clone nosso. O Facebook diz que estão usando esse conhecimento para criar um modelo seu, mas podemos trocar essa palavra por “clone”. Relatórios de consumidores apontaram, há cerca de um ano e meio, que as empresas estavam usando cerca de 2,3 mil diferentes conjuntos de big data. Se você é americano, sua privacidade de dados é um mito. Quando a inteligência artificial chega, ela pega nossos clones e se torna o banco de dados principal que é usado para micro segmentação, que é um antigo modelo de publicidade. Ela vende seu ponto mais fraco para uma empresa ou país. Mas o que percebemos é que países e pessoas que buscam o poder usam isso para manipular as pessoas nas plataformas. Nos EUA, por exemplo, nas eleições de 2016, a Comissão de Inteligência do Senado revelou que 126 milhões de americanos foram expostos à propaganda russa. Mulheres, também em 2016, sofreram dez vezes mais ataques do que homens. Isso são as redes sociais.
Uma faceta nociva da IA, os deep fakes, está senda usada para propagar desinformação e minar reputações. Isso é mais um argumento em prol de uma regulamentação mais estrita para o setor de tecnologia?
Com esse tipo de IA, eu tenho um “deep fake” meu vendendo uma criptomoeda. Jamais disse aquilo, mas soa como se fosse eu. Em outro caso, há um vídeo e um áudio meu no qual digo às pessoas com diabetes para que joguem fora a insulina. Jamais disse isso, mas algumas pessoas podem acreditar. Nós não estamos preparados para IA, e por isso deveria haver leis, uma vez que, com a IA generativa, as pessoas não sabem mais o que é real ou não. Por exemplo, um deep fake meu dizendo para as pessoas jogarem fora sua insulina. É uma questão de segurança, não de liberdade de expressão. No mundo real, se você é jornalista e publica uma mentira, enfrentamos questões legais. Por que as big techs não? Por que permitimos que o mundo seja virado de cabeça para baixo para que elas tenham mais lucros?
Dmitry Muratov (jornalista russo e vencedor do Nobel da Paz em 2021) e eu lançamos, em 2021, um plano de ação de 10 pontos, assinado por outros 300 vencedores do Nobel e grupos da sociedade civil, que foca em três pontos. O primeiro é o fim da vigilância por lucro. Os seres humanos precisam de privacidade de informação, e se você quer meus dados, precisa me pagar. A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem lugar no mundo virtual. O segundo é o fim do viés codificado. Se você é uma mulher ou pessoa LGBT+, negro ou membro de uma minoria étnica, você será marginalizado online. Esse é o código que está em nossos telefones. E, finalmente, o jornalismo como antídoto para a tirania. O Comitê Norueguês do Nobel disse que, sem o jornalismo, sem liberdade de expressão, a democracia morre. O jornalismo precisa não apenas sobreviver, mas sim desafiar o poder. Nosso dever sempre foi dizer a verdade ao poder.
Na carta em que anunciou tarifas de 50% ao Brasil, o presidente dos EUA, Donald Trump, citou medidas tomadas contra as big techs aqui no Brasil, em uma demonstração de que o chefe da maior economia do mundo está do lado delas. Foi um sinal, esse mais enfático, de que a batalha pela regulamentação será difícil?
O maior problema nos EUA é que discursos violentos foram postos no mesmo patamar da liberdade de expressão, algo que o lobby das big techs pressionou para que fosse assim. Mas não é uma questão de liberdade de expressão, mas sim de segurança. Quando você cria um software hoje, está criando um mundo. Estamos neste momento em um prédio que segue leis para seguir operando. Há uma lei. Uma torradeira nos EUA tem mais regulamentações de segurança do que as big techs têm em seus softwares. A primeira coisa que penso é nos perigos às crianças. O ex-cirurgião-geral dos EUA, que deixou o cargo após a posse de Trump. divulgou dois relatórios, sendo que um deles fala da “epidemia da solidão”, como a tecnologia está nos isolando. Há mais casos de depressão, de jovens tirando as próprias vidas, de distúrbios alimentares. O mundo se move com base em nossas conexões, nossas conexões sociais, e empresas como o Facebook roubaram isso. Se olharmos para o que nos é ofertado nos telefones pelas empresas de tecnologia, veremos que tudo nos encoraja a sermos nossas piores versões. Se você mentir, conseguirá mais alcance e incitará medo, ódio e raiva. Não somos assim. A bondade das pessoas está lá, mas é mais difícil lidar com pessoas mais jovens que ainda estão tentando formar seus valores. Por isso, a segurança em primeiro lugar. Engenheiros civis têm códigos de obras e seguem padrões éticos — os engenheiros de software deveriam estar sujeitos aos mesmos padrões.
Neste contexto, a decisão da Justiça da Romênia de anular a eleição presidencial do ano passado, após alegações de manipulação através das redes sociais, foi um passo positivo?
Absolutamente. Pensemos nas Filipinas, em maio de 2016 Rodrigo Duterte foi eleito presidente, e ele foi eleito pelas redes sociais, o primeiro. Um mês depois houve o Brexit, e também há dados que mostram a manipulação do voto. Ainda em 2016, a primeira vitória de Trump, sobre a qual o Senado dos EUA mostrou, em 2018, os indícios de informações contra americanos. Mas nenhum país teve a coragem de cancelar uma eleição, citando interferência eleitoral, antes da Romênia em dezembro de 2024. Se não tivessem feito isso, teriam eleito um homem sem partido, que fez campanha no TikTok e com amplas evidências de interferência do Kremlin. Essa foi fácil de notar, mas outras, como a morte por mil cortes de nossa independência, de nossa capacidade de escolher, são mais difíceis. Se estamos sendo manipulados, a democracia funciona. Ou essa é a razão pela qual o mundo está caminhando em direção à autocracia e ao fascismo.
Ainda sobre Trump, como você avalia o uso em excesso de ordens executivas, de certa forma quebrando a normalidade democrática? Soa similar ao que você já viu nas Filipinas?
Os pesos e contrapesos da democracia americana foram jogados fora. E isso é um problema porque os EUA eram o farol da democracia. O que acontece por lá é familiar para os brasileiros e também para os filipinos. Digo que nossos países foram do inferno para o purgatório. Foram seis meses para Duterte abalar instituições democráticas, tomando todas as decisões através do Poder Executivo. Ferdinand Marcos, nosso primeiro ditador e que ficou no poder por 21 anos, declarou lei marcial por ordem executiva. Trump também usa ordens executivas. Por isso questionamos como a democracia americano se parecerá, se ela sobreviverá, e o que causará ao mundo. Estamos passando por isso agora. O presidente Lula respondeu a Trump de maneira forte, mas parece que estamos vivendo em um mundo invertido, similar ao que acontece nas redes sociais. Ações estão sendo tomadas com impunidade, de uma forma que jamais aconteceria na antiga ordem. Já disse algumas vezes que a nossa maior batalha hoje é provar que um sistema internacional baseado em ordens ainda existe. Mas temos [Vladimir] Putin [,presidente da Rússia] e [Benjamin ] Netanyahu [, premier de Israel], todas as guerras na África, e CEOs das big techs agindo de forma impune, pegando nossos dados, raspando tudo a ponto de termos um tráfego que não podemos bloquear. Eles não são pessoas reais. Estão apenas raspando o que nós criamos. Isso é impunidade. A impunidade precisa acabar se o Estado de Direito existir, mas aqui está o maior problema deles. Como você pode ter um Estado de Direito se não tiver fatos? Sem fatos, não temos verdades. Sem verdade, não temos confiança. Sem isso, não temos uma realidade compartilhada.
Em relatório em maio, a ONG Repórteres Sem Fronteiras destacou o ambiente nocivo enfrentado pelo jornalismo no mundo, com problemas financeiros, perseguição judicial e criminal e a morte de dezenas de profissionais. Como enfrentar este cenário justamente no momento em que o jornalismo se mostra tão necessário?
Há quase 20 anos o número de jornalistas mortos e presos só aumenta. Ao mesmo tempo, a qualidade da democracia diminuiu. Em dezembro de 2021, eu disse em meu discurso na cerimônia do Nobel que estávamos sobre os escombros do que já foi o mundo. O mundo mudou de forma significativa, em parte por causa da globalização, em parte porque são problemas com os quais já teríamos que lidar. Mas o fósforo que fez tudo pegar fogo foi a tecnologia, que não tem regras claras. Isso me lembrou dos tempos em que o trabalho era novo, as fábricas eram novas e foram necessárias leis para proteger o trabalho das mulheres e de menores. A questão agora é se teremos tempo, e nós estamos diante de um precipício, e muito depende do que cada pessoa em uma democracia fará. Jornalistas têm um papel, e jamais enfrentamos tantos ataques como agora. Nosso modelo de negócios está ameaçado, muitos perderam seus empregos. Há instituições que seguem intactas, o que significa que precisam trabalhar para não serem ainda mais corroídas pela tecnologia. A parte interessante é que temos também a chance de criar. Precisamos fazer perguntas: onde estamos? Como o jornalismo evoluirá? Como será a tecnologia para distribuir o jornalismo? Como escapar do capitalismo vigilante? Como exigir nossos direitos, não apenas para nós, jornalistas, mas também para as pessoas que servimos?
Palavras não bastam diante da tragédia em Gaza
Benjamin Netanyahu retornou como queria de sua terceira visita a Donald Trump: de mãos vazias, sem cessar-fogo nem precisar interromper o esmagamento do que resta de vida possível em Gaza. Como mimo de consolação ao anfitrião, entregou-lhe apenas uma estapafúrdia indicação ao Nobel da Paz, honraria que Trump persegue há anos com cobiça obsessiva. É torcer para Trump não conseguir comprar a honraria num futuro distópico, quando integridade pessoal e valores universais tiverem se tornado sucata.
Por ora, prosseguem sem trégua as duas guerras que o presidente americano prometera encerrar em 24 horas. Se alteração houve nestes sete primeiros meses da era Trump 2, foi para pior, tanto na Ucrânia quanto, sobretudo, no inferno a céu aberto de Gaza.
Dias atrás coube a mais de 170 entidades humanitárias globais finalmente levantar a voz. Entre elas, por ironia, várias laureadas com um autêntico Nobel da Paz, além de um balaio de organizações humanitárias do próprio Estado de Israel, como a Combatentes pela Paz, a Yesh Din, e a Médicos por Direitos Humanos – Israel.
— Hoje — diz o manifesto — os palestinos em Gaza enfrentam uma escolha impossível: morrer de fome ou arriscar ser morto a tiros.
O texto refere-se ao amadorismo selvagem do sistema de distribuição de comida imposto por Israel e Estados Unidos ao castigado enclave, em substituição ao trabalho desempenhado há décadas por entidades internacionais conhecedoras daquela terra e do povo ali confinado.
— É preciso rejeitar a falsa opção entre uma distribuição de comida sob controle militar, mortal, e uma negação total de ajuda — diz a denúncia.
Também faz um chamamento à comunidade internacional para pôr fim ao “cerco sufocante” e à “violação de princípios humanitários” impostos a Gaza.
São palavras em tom edificante, mas são apenas palavras. É baixo o custo individual de apontar para a caçada humana que ocorre à luz do dia em pleno século XXI. Indignar-se, no caso, costuma ser fácil e barato — inclusive neste espaço. Difícil é migrar do conforto da indignação para o patamar mais exigente de correr riscos físicos ou materiais, pessoais ou afetivos, profissionais ou morais em defesa do que aprendemos o que é ser humano.
Enquanto isso, o lado perverso dessa equação dispensa palavras e segue planejando o impensável. Entre outubro de 2024 e maio deste ano, a empresa americana Boston Consulting Group (BCG) participou da elaboração do malfadado projeto “Aurora”, codinome do sistema de distribuição de comida que já resultou em mais de 500 mortos e 4 mil feridos, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza. Diante das cenas de horror terminal em condições degradantes a que os palestinos foram submetidos na busca do que comer, o próprio BCG desligou-se da empreitada.
Mas isso não é tudo. Segundo revelações exclusivas do Financial Times, o grupo também havia elaborado modelos financeiros para o pós-guerra em Gaza, com uma estimativa de custos para a transferência de centenas de milhares de palestinos do enclave. Um dos modelos apresentados ao governo Netanyahu estimou em mais de meio milhão o número de civis que deixariam Gaza, ao custo de US$ 9 mil por cabeça, ou US$ 5 bilhões no total. Outro modelo de “realocação voluntária” inclui um “kit partida” de US$ 5 mil, além de quatro meses de aluguel subsidiado e um ano de ajuda alimentar. Pela estimativa apresentada nesse cenário, 25% da população aceitaria abandonar seu chão, e dois terços desses expatriados jamais retornariam a Gaza.
É espantoso que o governo de um povo tão enraizado em sua história, sobrevivência e apego à terra como o de Israel seja tão míope em relação ao enraizamento de outro povo, o palestino, a sua história e capacidade de sobreviver. Uma coluna só pode ser quebrada se já estiver curvada, diz o ditado.
Voltemos às palavras, no caso nada fáceis, do médico irlandês Michael Ryan, que foi cirurgião de traumatologia por décadas e hoje atua como diretor executivo do Programa de Emergências da Organização Mundial da Saúde. Expressou sua frustração com vozeirão carregado, dirigindo-se a repórteres na sede da OMS em Genebra:
— Estamos a quebrar os corpos e as mentes das crianças de Gaza. É horrendo. Como médico e como quem vê mais de mil crianças mutiladas e milhões de crianças com lesões graves de que jamais se recuperarão, estou com raiva de mim por não fazer o bastante, estou com raiva de vocês e do mundo. Isso tudo é uma abominação.
Por ora, prosseguem sem trégua as duas guerras que o presidente americano prometera encerrar em 24 horas. Se alteração houve nestes sete primeiros meses da era Trump 2, foi para pior, tanto na Ucrânia quanto, sobretudo, no inferno a céu aberto de Gaza.
Dias atrás coube a mais de 170 entidades humanitárias globais finalmente levantar a voz. Entre elas, por ironia, várias laureadas com um autêntico Nobel da Paz, além de um balaio de organizações humanitárias do próprio Estado de Israel, como a Combatentes pela Paz, a Yesh Din, e a Médicos por Direitos Humanos – Israel.
— Hoje — diz o manifesto — os palestinos em Gaza enfrentam uma escolha impossível: morrer de fome ou arriscar ser morto a tiros.
O texto refere-se ao amadorismo selvagem do sistema de distribuição de comida imposto por Israel e Estados Unidos ao castigado enclave, em substituição ao trabalho desempenhado há décadas por entidades internacionais conhecedoras daquela terra e do povo ali confinado.
— É preciso rejeitar a falsa opção entre uma distribuição de comida sob controle militar, mortal, e uma negação total de ajuda — diz a denúncia.
Também faz um chamamento à comunidade internacional para pôr fim ao “cerco sufocante” e à “violação de princípios humanitários” impostos a Gaza.
São palavras em tom edificante, mas são apenas palavras. É baixo o custo individual de apontar para a caçada humana que ocorre à luz do dia em pleno século XXI. Indignar-se, no caso, costuma ser fácil e barato — inclusive neste espaço. Difícil é migrar do conforto da indignação para o patamar mais exigente de correr riscos físicos ou materiais, pessoais ou afetivos, profissionais ou morais em defesa do que aprendemos o que é ser humano.
Enquanto isso, o lado perverso dessa equação dispensa palavras e segue planejando o impensável. Entre outubro de 2024 e maio deste ano, a empresa americana Boston Consulting Group (BCG) participou da elaboração do malfadado projeto “Aurora”, codinome do sistema de distribuição de comida que já resultou em mais de 500 mortos e 4 mil feridos, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza. Diante das cenas de horror terminal em condições degradantes a que os palestinos foram submetidos na busca do que comer, o próprio BCG desligou-se da empreitada.
Mas isso não é tudo. Segundo revelações exclusivas do Financial Times, o grupo também havia elaborado modelos financeiros para o pós-guerra em Gaza, com uma estimativa de custos para a transferência de centenas de milhares de palestinos do enclave. Um dos modelos apresentados ao governo Netanyahu estimou em mais de meio milhão o número de civis que deixariam Gaza, ao custo de US$ 9 mil por cabeça, ou US$ 5 bilhões no total. Outro modelo de “realocação voluntária” inclui um “kit partida” de US$ 5 mil, além de quatro meses de aluguel subsidiado e um ano de ajuda alimentar. Pela estimativa apresentada nesse cenário, 25% da população aceitaria abandonar seu chão, e dois terços desses expatriados jamais retornariam a Gaza.
É espantoso que o governo de um povo tão enraizado em sua história, sobrevivência e apego à terra como o de Israel seja tão míope em relação ao enraizamento de outro povo, o palestino, a sua história e capacidade de sobreviver. Uma coluna só pode ser quebrada se já estiver curvada, diz o ditado.
Voltemos às palavras, no caso nada fáceis, do médico irlandês Michael Ryan, que foi cirurgião de traumatologia por décadas e hoje atua como diretor executivo do Programa de Emergências da Organização Mundial da Saúde. Expressou sua frustração com vozeirão carregado, dirigindo-se a repórteres na sede da OMS em Genebra:
— Estamos a quebrar os corpos e as mentes das crianças de Gaza. É horrendo. Como médico e como quem vê mais de mil crianças mutiladas e milhões de crianças com lesões graves de que jamais se recuperarão, estou com raiva de mim por não fazer o bastante, estou com raiva de vocês e do mundo. Isso tudo é uma abominação.
Imagem justa e veríssima do Congresso
Muito já se escreveu sobre humor, mas nada sobre seu poder antecipatório. Quando Freud diz que se trata de "um dom precioso e raro" (em "O Chiste e suas Relações com o Inconsciente"), adianta que pode ser também álibi para uma verdade que não podia ser expressa. No psiquismo, o inconsciente abre caminho pelo riso, sem o sofrimento dos sintomas, para uma realidade recalcada. Mas antecipar é virtude desconhecida ou deixada de lado.
Oportuno, assim, evocar Justo Veríssimo, personagem do saudoso Chico Anysio nos anos 90, prefiguração hilária de um deputado que abominava desprovidos da sorte, trabalhadores, o povo em geral. "Eu quero que o pobre se exploda!", seu bordão. A criação televisiva ia ao encontro de uma ácida denominação, recorrente na coluna de Stanislaw Ponte Preta (pseudônimo de Sérgio Porto), década de 60: "Depufede".
Isso existia ainda em grau concebível de indecência quando Lula em 1993 resumiu sua experiência parlamentar numa frase lapidar sobre a composição do Congresso: "Uma maioria de 300 picaretas cuidando apenas de seus próprios interesses. E não caíram de paraquedas, foram eleitos". Havia, portanto, bases político-sociais para que o humorismo antecipasse o choque de hoje ante um Congresso, necessário à República, mas por inteiro alienado da representação popular. Representação definida apenas pelo conceito numérico da votação é uma falácia, avessa à real delegação de classe social.
Focado na centralização presidencial, o eleitorado é letárgico frente ao Legislativo. Mas agora o chorume moral do "depufede" chega às narinas populares. E assim surge a Frente Povo sem Medo, que prega a taxação dos bilionários, junto com a redução dos salários de deputados e senadores. Cada Justo Veríssimo embolsa por mês um total de R$ 341.297 (R$ 47.700 de salário, R$ 94.300 de verba de gabinete, R$ 53.400 de auxílio paletó, R$ 5 mil de combustível, R$ 22 mil de auxílio moradia, R$ 59 mil de passagens aéreas, R$ 17.997 de auxílio saúde, R$ 12.100 de auxílio educação, R$ 16.400 de auxílio restaurante, R$ 13.400 de auxílio cultural). Para o eleitor pobre, um salário mínimo de R$ 1.518. Logo, que se exploda.
Mas a questão não se contém nesse mensalão obsceno. A derrama das emendas é tanto rombo orçamentário descontrolado quanto sintoma de surda conspiração contra a governabilidade executiva. Decorre das circunstâncias eleitorais, que seriam em princípio pretexto de reorganização da ordem do Estado. Eleições parlamentares, entretanto, passaram a favorecer a desorganização da ordem liberal, a saber, obstrução da participação democrática a partir da ideia de representação. Assim como os partidos (exceto talvez os pequenos) não espelham fração de classe nenhuma, a eleição de deputados e senadores não constitui forma de democracia direta pelo voto. É autonomia patrimonialista da atividade política.
Deste modo, o poder de legislar, moldado cada vez mais pelo princípio do vazio social, abre-se ao pleno dos interesses pessoais. Emendas sem transparência são mecanismos de reeleição e manutenção de feudos regionais, assim como instrumentos de chantagem contra um Executivo acuado. Nada menos que uma modulação do golpismo permanente, modernizado em 2016. Para Justo Veríssimo se atualizar, só lhe faltam um punhal verde e amarelo nos porões, boné de Trump nos palanques e pitadas de inglês para conspirar lá fora contra o país dos pobres.
Oportuno, assim, evocar Justo Veríssimo, personagem do saudoso Chico Anysio nos anos 90, prefiguração hilária de um deputado que abominava desprovidos da sorte, trabalhadores, o povo em geral. "Eu quero que o pobre se exploda!", seu bordão. A criação televisiva ia ao encontro de uma ácida denominação, recorrente na coluna de Stanislaw Ponte Preta (pseudônimo de Sérgio Porto), década de 60: "Depufede".
Isso existia ainda em grau concebível de indecência quando Lula em 1993 resumiu sua experiência parlamentar numa frase lapidar sobre a composição do Congresso: "Uma maioria de 300 picaretas cuidando apenas de seus próprios interesses. E não caíram de paraquedas, foram eleitos". Havia, portanto, bases político-sociais para que o humorismo antecipasse o choque de hoje ante um Congresso, necessário à República, mas por inteiro alienado da representação popular. Representação definida apenas pelo conceito numérico da votação é uma falácia, avessa à real delegação de classe social.
Focado na centralização presidencial, o eleitorado é letárgico frente ao Legislativo. Mas agora o chorume moral do "depufede" chega às narinas populares. E assim surge a Frente Povo sem Medo, que prega a taxação dos bilionários, junto com a redução dos salários de deputados e senadores. Cada Justo Veríssimo embolsa por mês um total de R$ 341.297 (R$ 47.700 de salário, R$ 94.300 de verba de gabinete, R$ 53.400 de auxílio paletó, R$ 5 mil de combustível, R$ 22 mil de auxílio moradia, R$ 59 mil de passagens aéreas, R$ 17.997 de auxílio saúde, R$ 12.100 de auxílio educação, R$ 16.400 de auxílio restaurante, R$ 13.400 de auxílio cultural). Para o eleitor pobre, um salário mínimo de R$ 1.518. Logo, que se exploda.
Mas a questão não se contém nesse mensalão obsceno. A derrama das emendas é tanto rombo orçamentário descontrolado quanto sintoma de surda conspiração contra a governabilidade executiva. Decorre das circunstâncias eleitorais, que seriam em princípio pretexto de reorganização da ordem do Estado. Eleições parlamentares, entretanto, passaram a favorecer a desorganização da ordem liberal, a saber, obstrução da participação democrática a partir da ideia de representação. Assim como os partidos (exceto talvez os pequenos) não espelham fração de classe nenhuma, a eleição de deputados e senadores não constitui forma de democracia direta pelo voto. É autonomia patrimonialista da atividade política.
Deste modo, o poder de legislar, moldado cada vez mais pelo princípio do vazio social, abre-se ao pleno dos interesses pessoais. Emendas sem transparência são mecanismos de reeleição e manutenção de feudos regionais, assim como instrumentos de chantagem contra um Executivo acuado. Nada menos que uma modulação do golpismo permanente, modernizado em 2016. Para Justo Veríssimo se atualizar, só lhe faltam um punhal verde e amarelo nos porões, boné de Trump nos palanques e pitadas de inglês para conspirar lá fora contra o país dos pobres.
Nostalgia do futuro
Podemos ousar sentir nostalgia, saudades do futuro? Ansiar por resgatar no futuro o passado depredado pelo insano progresso? Buscar um futuro ancestral, tal qual o anunciado por Ailton Krenak?
Para incentivar mudanças de comportamento, o Sistema Nacional de Trânsito lançou em 2025 a campanha “Desacelere. Seu bem maior é a vida.”
O Rio Saracura corre debaixo do asfalto da Avenida 9 de Julho em São Paulo e é afluente do Rio Anhangabaú, igualmente canalizado. Enquanto governador, Ademar de Barros construiu uma passagem no Vale do Anhangabaú sob a Avenida São João, conhecida como “buraco do Ademar”. Os bueiros, ao invés de darem vazão às águas das chuvas, davam vazão ao rio, que inundava a passagem subterrânea, rebatizada “banheira do Ademar”. Hoje, São Paulo inteira é uma banheira; os quintais foram todos cimentados, porque terra virou sinônimo de sujeira.
A imagem abaixo, de autoria de Jose Fujocka, resgata o Rio Saracura. Impossível?
Nasci no início dos anos 1950, antes da indústria automobilística se instalar no país. Morava no Bom Retiro, na Rua João Kopke, 108; nas imediações da várzea formada pela confluência dos rios Tamanduateí e Tietê. A poucas quadras do Jardim da Luz, a rua ainda não era asfaltada. Na época das águas, em janeiro, os rios transbordavam e a molecada da região, por algum trocado, atravessava os pedestres de barco de um lado para o outro da rua.
Nos anos cinquenta, São Paulo era toda recortada por trilhos de bondes elétricos. O cobrador andava pelo bonde, segurando as notas, separadas por valor, dobradas de comprido entre os dedos, 1, 2, 5, 10… cruzeiros, formando um leque. Nos bondes abertos, os adolescentes, andando alguns passos atrás do cobrador, conseguiam evitar pagar a passagem. O bonde da Casa Verde, que partia do Largo São Bento, passava pela comercial Rua José Paulino. De noite, na área residencial do Bom Retiro, a criançada brincava no meio da rua, enquanto seus pais arrastavam as cadeiras e ficavam conversando com os vizinhos na calçada.
Em 1954, a Cidade de São Paulo comemorava seu IV Centenário com os lemas “São Paulo não pode parar” e “A cidade que mais cresce no mundo”. Foi então que, em 1956, veio o Plano de Metas, a construção de Brasília, a indústria automobilística e a televisão, que fizeram com que os adultos recolhessem suas cadeiras da calçada e seus filhos do meio da rua.
No início, as pessoas ainda não estavam familiarizadas com os automóveis. Nas escolas, os guardas de trânsito passavam uniformizados pelas salas de aula para ensinar a meninada a atravessar a rua, vermelho, amarelo, verde, “pare, olhe, viva!” E foi uma febre, os automóveis começaram a encher e encher as ruas até conseguirem congestionar toda a cidade.
O Minhocão foi construído durante a ditadura militar, mergulhando a região central da cidade de São Paulo em sombras distópicas dignas de figurarem no clássico Blade Runner. Com o fim da ditadura, o nome do elevado foi alterado de Costa e Silva para João Goulart. Há projetos para transformar definitivamente o elevado em parque público. A prefeitura está pretendendo abrigar automóveis para deslocar “o lixo humano” que habita debaixo do Minhocão. Melhor seria removê-lo de vez e restaurar os jardins que foram removidos para dar lugar ao “progresso”.
Hoje me pergunto, para que tantos automóveis assim? Veja o que você ganha sendo um feliz proprietário de um veículo automotor: Ter que comprar um carro, de preferência um que possa fazer o seu vizinho ficar boquiaberto, de queixo caído.
Arranjar um estacionamento, de preferência coberto.
Licenciar o carro e pagar IPVA anualmente.
Pagar seguro do automóvel, pelo menos contra terceiros.
Encher o tanque regularmente (recomenda-se procurar um posto que forneça combustível não adulterado).
Limpar e lavar o carro.
Trocar o óleo e fazer a manutenção regular do veículo.
Lidar com problemas mecânicos, câmbio, correias, superaquecimento,
Encarar malcriação de outros motoristas e até de pedestres.
Aproveitar para descarregar a sua raiva do patrão, de seu cunhado e daquele vizinho mal-educado.
Estar sujeito a fechadas, acidentes, consertos, funilaria e pintura do automóvel.
Receber multas devidas e indevidas, que você pode recorrer, mas serão indeferidas.
Aturar vendedores, pedintes e flanelinhas nos semáforos.
Ter que lidar com guardadores compulsórios, às vezes agressivos, ameaças e danificação do veículo.
Correr risco de furto do automóvel, roubo e assalto.
Poluir o ambiente etc. etc.
Na universidade, nos empenhamos para entender a violência no trânsito, decompondo a ordinária taxa de mortalidade por acidentes em dois indicadores, veículos por habitante e óbitos por veículo. Os resultados da nossa pesquisa mostraram que, tanto no Brasil, como no exterior, os poucos automóveis que transitam em regiões com frotas reduzidas também saem matando a esmo, até em maior número. A interação entre veículos automotores e pedestres revela-se um aprendizado que, naturalmente, leva tempo; mas também pode ser induzido por políticas públicas.
De qualquer forma, não seria melhor usar o transporte público e poder contar com os serviços profissionais dos “motoristas particulares”, conversar com os outros passageiros ou simplesmente espairecer despreocupadamente? Se quiser, você também pode ficar ouvindo as conversas descartáveis entre passageiros avulsos e as histórias que rolam entre conhecidos, sair um pouco da solidão reservada aos motoristas sem passageiros e da convivência regular com os seus familiares. Preste atenção e recarregue-se emocionalmente com as expressões e comentários autênticos das crianças. Há motoristas de ônibus que conhecem os hábitos de seus costumazes clientes e chegam a chamar a sua atenção quando, distraídos, no ponto, correm o risco de perder a viagem.
Por fim, vale lembrar que tanto o incremento como a gratuidade no transporte público podem e deveriam ser financiados, via impostos, pelos felizes proprietários dos veículos automotores privados, que, de quebra, vão ficar muito agradecidos em ver o trânsito descongestionado. Passe livre, sem catracas!
Porém, melhor que transporte público é andar de bicicleta; e melhor que andar de bicicleta só mesmo andar a pé, apreciar o entorno, fazer o caminho passo a passo, descobrir uma vila que você nunca tinha notado antes… E você ainda vai ganhar tempo (e dinheiro), porque não vai mais precisar frequentar aquelas academias de ginástica em que as pessoas pedalam e andam em esteiras sem sair do lugar.
Paris, a Cidade Luz, agora é verde. As vagas para estacionamento foram removidas e, desde 2020, foram criados 84 quilômetros de ciclovias. Automóveis são hoje usados dentro da capital em apenas 4,3% dos deslocamentos, ficando atrás das bicicletas (11,2%), transporte público (30%) e, oui, oh là là, jornadas a pé (53,5%)!
Para incentivar mudanças de comportamento, o Sistema Nacional de Trânsito lançou em 2025 a campanha “Desacelere. Seu bem maior é a vida.”
O Rio Saracura corre debaixo do asfalto da Avenida 9 de Julho em São Paulo e é afluente do Rio Anhangabaú, igualmente canalizado. Enquanto governador, Ademar de Barros construiu uma passagem no Vale do Anhangabaú sob a Avenida São João, conhecida como “buraco do Ademar”. Os bueiros, ao invés de darem vazão às águas das chuvas, davam vazão ao rio, que inundava a passagem subterrânea, rebatizada “banheira do Ademar”. Hoje, São Paulo inteira é uma banheira; os quintais foram todos cimentados, porque terra virou sinônimo de sujeira.
A imagem abaixo, de autoria de Jose Fujocka, resgata o Rio Saracura. Impossível?
Na Coreia do Sul, o Rio Cheonggyecheon, que havia sido coberto por uma avenida de 16 metros de largura, corre hoje a céu aberto.
Nasci no início dos anos 1950, antes da indústria automobilística se instalar no país. Morava no Bom Retiro, na Rua João Kopke, 108; nas imediações da várzea formada pela confluência dos rios Tamanduateí e Tietê. A poucas quadras do Jardim da Luz, a rua ainda não era asfaltada. Na época das águas, em janeiro, os rios transbordavam e a molecada da região, por algum trocado, atravessava os pedestres de barco de um lado para o outro da rua.
Nos anos cinquenta, São Paulo era toda recortada por trilhos de bondes elétricos. O cobrador andava pelo bonde, segurando as notas, separadas por valor, dobradas de comprido entre os dedos, 1, 2, 5, 10… cruzeiros, formando um leque. Nos bondes abertos, os adolescentes, andando alguns passos atrás do cobrador, conseguiam evitar pagar a passagem. O bonde da Casa Verde, que partia do Largo São Bento, passava pela comercial Rua José Paulino. De noite, na área residencial do Bom Retiro, a criançada brincava no meio da rua, enquanto seus pais arrastavam as cadeiras e ficavam conversando com os vizinhos na calçada.
Em 1954, a Cidade de São Paulo comemorava seu IV Centenário com os lemas “São Paulo não pode parar” e “A cidade que mais cresce no mundo”. Foi então que, em 1956, veio o Plano de Metas, a construção de Brasília, a indústria automobilística e a televisão, que fizeram com que os adultos recolhessem suas cadeiras da calçada e seus filhos do meio da rua.
No início, as pessoas ainda não estavam familiarizadas com os automóveis. Nas escolas, os guardas de trânsito passavam uniformizados pelas salas de aula para ensinar a meninada a atravessar a rua, vermelho, amarelo, verde, “pare, olhe, viva!” E foi uma febre, os automóveis começaram a encher e encher as ruas até conseguirem congestionar toda a cidade.
O Minhocão foi construído durante a ditadura militar, mergulhando a região central da cidade de São Paulo em sombras distópicas dignas de figurarem no clássico Blade Runner. Com o fim da ditadura, o nome do elevado foi alterado de Costa e Silva para João Goulart. Há projetos para transformar definitivamente o elevado em parque público. A prefeitura está pretendendo abrigar automóveis para deslocar “o lixo humano” que habita debaixo do Minhocão. Melhor seria removê-lo de vez e restaurar os jardins que foram removidos para dar lugar ao “progresso”.
Hoje me pergunto, para que tantos automóveis assim? Veja o que você ganha sendo um feliz proprietário de um veículo automotor: Ter que comprar um carro, de preferência um que possa fazer o seu vizinho ficar boquiaberto, de queixo caído.
Arranjar um estacionamento, de preferência coberto.
Licenciar o carro e pagar IPVA anualmente.
Pagar seguro do automóvel, pelo menos contra terceiros.
Encher o tanque regularmente (recomenda-se procurar um posto que forneça combustível não adulterado).
Limpar e lavar o carro.
Trocar o óleo e fazer a manutenção regular do veículo.
Lidar com problemas mecânicos, câmbio, correias, superaquecimento,
vazamentos, escapamento, pane elétrica, bateria, pneus etc.
Enfrentar trânsito pesado.
Encarar malcriação de outros motoristas e até de pedestres.
Aproveitar para descarregar a sua raiva do patrão, de seu cunhado e daquele vizinho mal-educado.
Estar sujeito a fechadas, acidentes, consertos, funilaria e pintura do automóvel.
Receber multas devidas e indevidas, que você pode recorrer, mas serão indeferidas.
Aturar vendedores, pedintes e flanelinhas nos semáforos.
Ter que lidar com guardadores compulsórios, às vezes agressivos, ameaças e danificação do veículo.
Correr risco de furto do automóvel, roubo e assalto.
Poluir o ambiente etc. etc.
Na universidade, nos empenhamos para entender a violência no trânsito, decompondo a ordinária taxa de mortalidade por acidentes em dois indicadores, veículos por habitante e óbitos por veículo. Os resultados da nossa pesquisa mostraram que, tanto no Brasil, como no exterior, os poucos automóveis que transitam em regiões com frotas reduzidas também saem matando a esmo, até em maior número. A interação entre veículos automotores e pedestres revela-se um aprendizado que, naturalmente, leva tempo; mas também pode ser induzido por políticas públicas.
De qualquer forma, não seria melhor usar o transporte público e poder contar com os serviços profissionais dos “motoristas particulares”, conversar com os outros passageiros ou simplesmente espairecer despreocupadamente? Se quiser, você também pode ficar ouvindo as conversas descartáveis entre passageiros avulsos e as histórias que rolam entre conhecidos, sair um pouco da solidão reservada aos motoristas sem passageiros e da convivência regular com os seus familiares. Preste atenção e recarregue-se emocionalmente com as expressões e comentários autênticos das crianças. Há motoristas de ônibus que conhecem os hábitos de seus costumazes clientes e chegam a chamar a sua atenção quando, distraídos, no ponto, correm o risco de perder a viagem.
Por fim, vale lembrar que tanto o incremento como a gratuidade no transporte público podem e deveriam ser financiados, via impostos, pelos felizes proprietários dos veículos automotores privados, que, de quebra, vão ficar muito agradecidos em ver o trânsito descongestionado. Passe livre, sem catracas!
Porém, melhor que transporte público é andar de bicicleta; e melhor que andar de bicicleta só mesmo andar a pé, apreciar o entorno, fazer o caminho passo a passo, descobrir uma vila que você nunca tinha notado antes… E você ainda vai ganhar tempo (e dinheiro), porque não vai mais precisar frequentar aquelas academias de ginástica em que as pessoas pedalam e andam em esteiras sem sair do lugar.
Paris, a Cidade Luz, agora é verde. As vagas para estacionamento foram removidas e, desde 2020, foram criados 84 quilômetros de ciclovias. Automóveis são hoje usados dentro da capital em apenas 4,3% dos deslocamentos, ficando atrás das bicicletas (11,2%), transporte público (30%) e, oui, oh là là, jornadas a pé (53,5%)!
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