quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Pensamento do Dia


Voto útil, casamento de conveniência

À parte de fatos novos sempre possíveis e tão constantes no Brasil, as próximas semanas devem se dar em torno da ansiedade despertada e a realidade que aos poucos se consolida à medida em que são divulgadas as pesquisas eleitorais. A princípio, as pesquisas são meros medidores de opinião. Como se diz, uma fotografia, um instantâneo do momento de um grande filme que é o processo eleitoral. Mas, não é tão simples assim. Dependendo das circunstâncias, as pesquisas não apenas medem como influenciam na formação da opinião dos eleitores e, assim, na movimentação dos candidatos.

Sobretudo, quando há um quadro de incerteza somado aos jogos estratégicos que todo eleitor costuma a fazer e que, no Brasil, dá-se o nome de “voto útil”.

A lógica do “voto útil” é simples: em tese, todo eleitor tem um candidato de preferência; aquele por quem sente maior empatia e que, com tranquilidade, cederia seu apoio. Este seria o que podemos chamar de um voto afirmativo. O eleitor afirma e reafirma sua preferência, sem qualquer mediação, interferência ou questão de segunda ordem. Ele faz a sua melhor escolha; uma espécie de primeiro melhor.


Acontece que no mundo moderno, competitivo e polarizado, nada é assim tão simples e protegido de contaminação. Num ambiente de conflito, o eleitor se dá também ao direito de definir o que, para ele, seria o “pior resultado”, o mau maior. O candidato dentre todos que “mais” rejeita, que descarta decisiva e definitivamente.

O sentimento do que “seria o pior” e a definição de seu nome, nessa condição, é um sentimento e um fenômeno tão forte que consegue se impor à preferência afirmativa, ao candidato que o sujeito entenderia como o melhor. É o “ruim”, portanto, que se impõe, na função de preferências e na lógica da escolha eleitoral ao “bom”. O mal menor em oposição ao bem.

Nestes tempos, o eleitor vota antes de tudo contra e não a favor. Vota-se, principalmente, para derrotar o que se reconhece como “maior perigo”, o mais pernicioso cenário, de acordo com os valores, conceitos e preconceitos do eleitor. E para isto procura-se, no universo de candidaturas, aquela que mais condições reúne para papel insólito: antes de vencer, derrotar o inimigo.

Mesmo que isto signifique abrir mão da escolha afirmativa, do entendido como melhor, em favor daquilo a que não se deixa de ter também restrições. Às vezes, fortes restrições, até. Um caso clássico foi, em 1990 na eleição ao governo paulista: contra Paulo Maluf, os eleitores de esquerda votaram em Luís Antônio Fleury Filho, candidato de Orestes Quércia.

Ainda assim, este foi um caso de segundo turno. Às vezes, essa situação é antecipada e já no primeiro turno, os eleitores se veem forçados a adiantar esse tipo de escolha. Em 1998, por exemplo, Mário Covas derrotou (novamente) Paulo Salim Maluf, na disputa ao governo do estado, não porque os eleitores aprovassem Covas, mas porque, acima de tudo, mais uma vez, rejeitavam Maluf. Covas, assim foi eleito. Ou antes, Maluf foi derrotado.

O “melhor”, portanto, é sempre uma questão relativa. É claro que nem todos pensam assim. Mas, basta que uma parcela do eleitorado raciocine desse modo e desloque sua preferência de modo a mudar o resultado de uma eleição. Este quadro se repete nesta eleição de 2018, no país. Todavia, de um modo ainda mais complexo, nesta, a mais complexa das eleições nacionais.

Ao que se percebe, há grupos de eleitores que definiram, cada um ao seu modo, “o mal maior”. A novidade é que desta vez, não é apenas um mal; mas pelo menos dois. E há três grupos que se movimentam assim, há vinte e tantos dias da eleição.

De um lado, aqueles que não admitem o PT e entendem a vitória do partido como um grande mal para o país. De outro, aqueles que compreendem Jair Bolsonaro como o maior desastre. Haveria ainda um terceiro, que não consegue assimilar nem por hipótese nenhum dos dois personagens governando o Brasil pelos próximos 4 anos, pelo menos.

Voltamos às pesquisas: eles indicam, neste momento, que a maior possibilidade é que Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, do PT, disputem o segundo turno da eleição. Cada um, cuja vitória é considerada, ao seu modo e por público distinto, como maior mal em relação ao outro. É nesse sentido que surgem os apelos pelo voto estratégico, ou pelo “voto útil” — “útil” para derrotar o desafeto.

De um lado, Ciro Gomes, cuja dinâmica política o desfavorece, explora o fato de as pesquisas apontarem que venceria com maior facilidade a Jair Bolsonaro, o “mal maior” definido pelo eleitorado de boa parte do centro e da esquerda. Nesse sentido, tenta desqualificar a candidatura de Haddad, em si, pelos problemas em torno do PT e pelos riscos e dificuldades que Haddad talvez venha a ter para vencer Bolsonaro.

De outro lado, Geraldo Alckmin. Paralisado abaixo dos 10% das preferências, limitado por seus vínculos com o governo Temer, com o Centrão e com os problemas éticos de membros do seu partido, mas com convicção de que seria o candidato com maior facilidade para vencer o PT, mal maior para a maioria dos eleitores de Direita e do Centro. Neste caso, até mesmo Marina Silva, que se descapitaliza a olhos vistos desde a entrada de Haddad no processo, pode surgir como alternativa às dificuldades de Alckmin.

O “voto útil” traz consequências: ao votar contra, o eleitor adere apenas circunstancialmente ao eleito. Não aderiu a ele, apenas o engoliu como “mal menor”; não há cumplicidade, menos ainda apoio. O eleito começa o mandato com legitimidade diante das urnas, mas com um déficit real em relação à maioria do eleitorado que o elegeu, apesar de seus defeitos e em virtude do perigo que significa o outro. O Congresso Nacional, é claro, perceberá isso, sabendo que a tradicional lua-de-mel do presidente com o eleitor durará bem menos, posto que, desta vez, o casamento foi de conveniência.
Carlos Melo 

A desgraça dos números primos

O dia do mês em que este artigo será publicado, 19, é um número primo. Para quem não lembra, números primos são aqueles que só podem ser divididos por eles próprios, ou pelo número 1. Números primos são responsáveis por inúmeros problemas matemáticos e conjecturas até hoje sem solução. Matemáticos ainda não foram capazes de encontrar nenhuma regularidade ou padrão na sequência infinita de números primos existentes. Sobre os mistérios dos números primos, disse o matemático, físico, e astrônomo suíço Leonhard Euler no século 18: “A matemática tentou em vão descobrir alguma ordem na sequência de números primos, e temos motivos para crer que esse é um mistério impenetrável para a mente humana”. Entre todos os números primos há sempre números pares que impedem que se toquem. Entre os primeiros dez números primos está o número 13, imediatamente seguido pelo número 17.


Tínhamos o 45, o 18, o 12. Também tínhamos o 30 e o 15. Todos números afeitos à composição, todos provenientes da multiplicação de pares de outros números que não eles próprios ou o singular dígito 1. Infelizmente, nas eleições brasileiras, já não cabem os arranjos, a conciliação de diversos, a estruturação em conjunto. Em meio à paranoia, às teorias conspiratórias, à confusão, e à desordem, parece claro que os números compostos estão prestes a cair no esquecimento do eleitorado brasileiro. Movimenta-se a população em direção àqueles números que se reduzem apenas a si mesmos ou ao isolamento unitário.

Como seriam os governos de números primos? Parte da resposta está em sua própria definição. Grandes dificuldades na composição com o Congresso, imensos desafios para alcançar a necessária conciliação do eleitorado brasileiro, a possibilidade de que testemunhemos um distanciamento ainda mais profundo entre as pessoas. Números compostos também enfrentariam problemas assim, não sejamos ingênuos. Contudo, as características dos números primos sugerem que suas dificuldades serão maiores.

Tomemos os números em sequência, começando, portanto, com 13. Há um imenso conjunto da sociedade brasileira que está enojada com o 13. Culpam o número por todos os problemas que o Brasil atravessou nos últimos anos, desde a crise de 2015-2016 até a eleição polarizada, a ascensão de militares da reserva, e a falta de opções viáveis para o voto iminente – passando, é claro, pela Lava Jato. Muitos dizem que o 13 é a razão única para apoiar 17, ainda que tal número seja controvertido, ainda que tenha apresentado vices e defensores com algum desprezo pela democracia, ainda que o próprio 17 tenha já manifestado o mesmo desprezo. Para esses, o 13 é o que há de mais vil na política brasileira, aquilo que não dá para cogitar, mesmo que o risco institucional associado ao 17 exista. Um governo de 13, portanto, careceria do apoio de boa parte do setor privado brasileiro, com ecos evidentes no Congresso. Sem apoio, difícil seria a tarefa de dar alguma ordem às contas públicas brasileiras. Mercados em turbulência constante, além de possíveis manifestações de seguidores e apoiadores de 17, alguns mobilizados pela falsa advertência de que se 13 porventura vencesse, as eleições teriam sido manipuladas, tornariam esse governo inviável.

O que passaria com 17? Da mesma forma que existe contingente mobilizado contra 13, as falas inflamadas de 17 e de seus companheiros militares da reserva aglutinou profundo repúdio em outras camadas da população. Camadas que já estavam mobilizadas pelo assassinato de Marielle Franco, pelas declarações do vice, pelos temores de que o viés antidemocrata possa acabar resvalando para o estranho fenômeno das democracias iliberais que testemunhamos mundo afora: na Turquia, na Polônia, na Hungria, nas Filipinas. A diferença apenas é que o sabor seria tropical. O governo de 17, portanto, se assemelharia bastante ao de 13, marcado por alto risco de ingovernabilidade, de turbulências financeiras, e por imensas dificuldades de implantar qualquer agenda de melhorias para o País.

Portanto, a escolha que se coloca diante dos eleitores brasileiros é: caos de esquerda ou caos de direita? Caos de 13 ou caos de 17? Risco institucional ou risco institucional? Eleições entre números primos, afinal, só poderiam mesmo gerar resultados irredutíveis na sua semelhança.

Placebo

A política é uma sucessão de remédios temporários para males permanentes e recorrentes
John Gray

Haddad beijou o anel de Lula e virou um político velho

Quem sonhava que Fernando Haddad iria conduzir a esquerda brasileira a novos tempos e a novos padrões políticos deve estar, no mínimo, constrangido ao assistir o mergulho cego dele rumo ao populismo, ao proselitismo e ao radicalismo. Como pagamento por ter sido sagrado candidato a presidente na vaga de Lula, o moço da ciclovia abandonou o apelido de que tanto se orgulhava reservadamente, o de ser o "mais tucano dos petistas" (por tirar dele a pecha de radical que acompanha alguns petistas), e passou a comungar em público de todos os dogmas do PT.


Em privado, Haddad gostava de celebrar sua amizade com Fernando Henrique Cardoso, com quem costumava ir à Sala São Paulo, e com Geraldo Alckmin, que o livrou de apanhar ainda mais durante a rebelião das ruas em 2013. Naquele tempo, então no cargo de prefeito de São Paulo, Haddad também cultivava, sempre reservadamente, uma distância crítica da presidente Dilma Rousseff. Não são poucos os interlocutores que ouviram dele cobras e lagartos sobre ela e o governo dela. Um deles conta que, na eleição de 2014, Haddad chegou a especular com mais de um aliado que a vitória de Marina Silva poderia ser melhor para o País e para a cidade de São Paulo do que a reeleição de Dilma.

Mas eis que agora nos deparamos com um Haddad diferente daquele que, nos meios acadêmicos e nas pizzarias dos Jardins (bairro nobre de São Paulo), mantinha o tal distanciamento crítico em relação às práticas pouco ortodoxas do PT e se gabava de liderar a nova esquerda brasileira, uma esquerda "imaterial", preocupada não apenas com a luta de classes, mas também com a mobilidade urbana, com a questão de gênero e com o ambientalismo.

Desde que virou candidato a presidente, após ter beijado o anel de Lula, Haddad tem se rebaixado ao que há de pior no petismo: a recusa (patológica) em admitir erros, o populismo descarado, construção de narrativas fantasiosas e a velha tática do nós contra eles. Nessa toada, não hesitou em subverter o que disse Tasso Jereissati (PSDB) ao Estado.

Ao admitir erros do PSDB, o tucano cearense jamais afirmou que o fracasso magnânimo do governo Dilma se deu por conta do PSDB. Haddad deveria era ter se espelhando na autocrítica de Tasso para responder a quem o pergunta sobre os erros de seu partido. Em vez disso, preferiu a desonestidade intelectual de usar a autocrítica e a clareza de Tasso para mascarar as mancadas de Dilma e do PT.

Para a militância petista, isto não tem a menor importância, pelo contrário, os que tinham alguma restrição a Haddad na igreja do PT agora deverão passar a venerá-lo também. Porém, para quem tem o desafio de ampliar apoios num eventual segundo turno, provavelmente contra Jair Bolsonaro (PSL), e diminuir a rejeição do campo antipetista, essa inflexão radical de Haddad pode se mostrar desastrosa. Sem falar no compromisso com a democracia e com outros valores essências, como a verdade e a transparência.

O único traço que, infelizmente, permanece autêntico no Haddad atual é o de um certo autoritarismo, aquele olhar de cima para baixo de quem pensa "eu sei o que é bom para vocês e pronto, acabou". Em entrevista ao "Jornal Nacional" na sexta-feira passada, Haddad afirmou que não foi reeleito porque o povo foi induzido a um erro. Para Haddad, o povo é apenas uma massa de manobra que, ora é induzida ao acerto, quando vota nele e no PT, ora é induzida ao erro, quando não consegue reconhecer suas inegáveis qualidades.

O moço da ciclovia envelheceu 20 anos em menos de uma semana. Virou um político velho, fazendo uma política velha, sem autocrítica e sem transparência, desperdiçando uma grande chance de se contrapor de verdade ao radical Bolsonaro, aquele que nega a história e não admite o contraditório.
Alberto Bombig

Brasil na margem de erro


A violência das paixões

Com base na trilogia de Alexei Tolstoi, escritor do chamado “realismo socialista”, a série O Caminho dos Tormentos, da Netflix, narra a saga de duas irmãs aristocratas, um oficial do Exército russo e um engenheiro que se torna oficial do Exército Vermelho. Com locações e figurinos irretocáveis, a produção russa de 2017 mostra os horrores da guerra civil na Rússia (1917 a 1924), em meio ao ódio de classe, às paixões ideológicas e toda sorte de oportunismo e sectarismo políticos. Da derrocada da autocracia russa à consolidação dos bolcheviques no poder, houve um banho de sangue trágico, que esfacelou famílias e destruiu amizades.

Talvez essa história fosse diferente se uma carnificina ainda maior não tivesse ocorrido: a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), na qual a Rússia se engajou ao lado da Sérvia, da França e da Inglaterra, a chamada Tríplice Entente, contra a Alemanha, Itália e Império Austro-Húngaro, que formavam a Tríplice Aliança. Houve uma estupidez política sem tamanho de toda a elite europeia, encerrada no que a historiadora Barbara Tuchman, em seu livro, chamou de “Torre do Orgulho”. O mundo vivia a euforia da chamada Belle Époque (Bela Época), um período de grande progresso econômico e tecnológico; ao mesmo tempo, a exaustão do colonialismo e fortes tensões políticas e sociais.


O revanchismo latente na França e na Alemanha por causa da região da Alsácia-Lorena, que os franceses haviam perdido para os alemães na Guerra Franco-Prussiana, precisou apenas de um estopim para degenerar em gigantesca carnificina: o assassinato de Francisco Ferdinando, príncipe do império austro-húngaro, enquanto fazia uma visita a Sarajevo, região da Bósnia-Herzegovina, por um jovem terrorista sérvio. Insatisfeito com as atitudes tomadas pelo governo contra o criminoso, o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia em 28 de julho de 1914. Ao fim do conflito, o saldo de mortos chegou a 10 milhões. A Alemanha acabou derrotada e perdeu não somente a Alsácia-Lorena, como todas as suas colônias, no Tratado de Versalhes, e ainda teve que pagar pesadas indenizações de guerra.

Em 1914, a Alemanha era governada pelo poderoso Partido Social-Democrata Alemão, que aprovou os créditos de guerra, o que provocou um tremendo racha na chamada II Internacional, que reunia a esquerda europeia. O Partido Trabalhista britânico e o Partido Socialista francês, ambos marxistas, seguiram o mesmo caminho e aderiram à guerra. O Partido Socialista Operário Russo (bolchevique), sob a liderança do revolucionário russo Vladimir Lênin, um dos personagens secundários da série russa, porém, seguiu outro caminho: defender a paz, fazer uma insurreição com apoio dos soldados insatisfeitos e tomar o poder. Tudo o que ocorreu depois na política foi consequência da 1ª Guerra Mundial, a começar pela radicalização política que levou ao poder Mussolini, na Itália, e Hitler, na Alemanha, os dois grandes países derrotados.

O fascismo foi derrotado na Segunda Guerra Mundial, mas a divisão entre comunistas e social-democratas se manteve na Europa por causa da “guerra fria”. Com a dissolução da União Soviética e o colapso do chamado “socialismo real” no Leste Europeu, essa divisão perdeu completamente o significado histórico. O mesmo processo de globalização e revolução tecnológica que levou à derrota o comunismo europeu, depois levou de roldão o Estado de bem-estar social na Europa ocidental. A grande obra social-democrata do pós-guerra entrou em colapso. O Ocidente passou a viver a hegemonia do pensamento liberal.

Vivemos um período de paz maior do que os anos da Belle Époque (1871-1914), apesar dos conflitos localizados e do terrorismo religioso na Eurásia e na África. A globalização e a revolução tecnológica, porém, com o esgotamento do Estado de bem-estar social, engendraram um agravamento das desigualdades e desequilíbrios regionais, principalmente na relação Norte-Sul. Essa é a raiz da crise humanitária e da emergência de movimentos racistas, xenófobos e fascistas na Europa. E também do fortalecimento de tendências autoritárias em regimes democráticos como respostas a essas contradições, como acontece na Venezuela, no Egito, na Turquia, nas Filipinas, em Israel, na Rússia e até nos Estados Unidos, que reage à expansão da China comunista, um misto de capitalismo de Estado e ditadura.

A crise da democracia representativa e dos partidos políticos tradicionais no Ocidente não se restringe ao fracasso de suas elites políticas. É também uma crise dos valores liberais — igualdade, fraternidade e liberdade — nas sociedades democráticas, contraditória com a exacerbação da liberdade individual. O processo de radicalização política em curso nas eleições brasileiras não está fora desse contexto, muito pelo contrário. Suas raízes ideológicas e políticas, historicamente, estão datadas, vêm lá da 1ª Guerra Mundial: a busca de soluções para os problemas econômicos e sociais do desenvolvimento por uma via “prussiana” ou “jacobina” é uma tentação, como se a tomada do poder fosse a solução para tudo. O mundo mudou, está cada vez mais veloz e integrado. As velhas fórmulas não dão conta da realidade de uma sociedade “líquida”. Mesmo assim, a democracia ainda é a melhor saída para as crises.

Facadas

O eleitor está de saco cheio do poder estabelecido, com raiva da atividade política e dos políticos, mas também está desempregado.
 
Quando será lembrado de que não votará num plebiscito sobre se Lula é ou não injustiçado nem sobre se o establishment político deve ser morto à bala ou faca? 
Carlos Andreazza

Paz de Toffoli significa impunidade de suspeitos

Desde o dia 13 passado, que foi véspera de sexta-feira, a Nação – parte esperançosa, parte ansiosa – perdeu um pouco de seu sono diante das dúvidas que vislumbra no horizonte turvo. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, perdoará e soltará o ex-chefe Lula? Ele porá de joelhos nus sobre caroços de milho agentes, procuradores e juízes federais que devassarem o passado mais turvo do que tal horizonte de figurões honrados com convite para sua festa de subida ao topo? O nome dessa sensação não é só incerteza, mas também insegurança jurídica.


Não me venha de borzeguins ao leito quem achar que aqui incorro em exagero. Quem exagerou foi ele. À véspera de sua posse solene, não esperou ser entronizado para beneficiar o ex-ministro da Fazenda dos governos e do partido a que serviu como advogado, Guido Mantega, alcançando com sua benemerência os marqueteiros criminosos confessos João Santana e Mônica Moura. Encaminhou um processo em que o trio é acusado de corrupção para a Justiça Eleitoral, a forma mais barroca e disfarçada da impunidade dada por sua grei de justiceiros que soltam, em vez de punir. Não adianta buscar no noticiário dos meios de comunicação nem no Google salvador: nenhum desses réus disputa nenhuma eleição. E mais, puxou a orelha do juiz que os processa, Sergio Moro, ídolo número um do populacho por causa da Operação Lava Jato, acusando-o de quebrar a hierarquia por “desprezar” decisão da Segunda Turma do STF, à qual o presidente não pertence mais.

Cármen Lúcia, a substituída, foi para a tal turma, que agora, a depender do decano, Celso de Mello, pode deixar de ser o éden dos réus para assumir o tridente do inferno de quem demanda habeas corpus. Que outra denominação pode ser dada, que não seja insegurança jurídica, ao fato de mera mudança de um dos cinco membros de uma turma alterar de forma radical o ânimo de punir de um colegiado? E que pecado será maior do que esse?

Mais do que a inoportuna reprimenda a Moro na carteirada, que Sua Excelência deu antes de se tornar primus inter pares, ameaça o combate à corrupção, e não apenas a Lava Jato, a possibilidade de, na principal cadeira do plenário, o ex-advogado-geral da União, de Lula, pôr em votação a mudança de uma jurisprudência: a da autorização para prender condenado em segunda instância. Ora, direis, jurisprudências mudam, porque dependem da dinâmica da vida real. Mas, como tem lembrado insistentemente sua colega Rosa Weber, ao lado de quem se sentava quando era apenas um “nobre par”, não devem ser alteradas em prazos curtos. Isso, acrescento, emula as “constituições” periódicas na ditadura militar.

Nos dois últimos anos Toffoli formou ao lado de Gilmar Mendes, que virou a casaca na jurisprudência citada, e de Ricardo Lewandowski, um trio que, para impor suas convicções partidárias ou seus interesses pessoais, distribui habeas corpus a quem tiver renda para pagar advogados que frequentam o STF. Nessa prática aparentemente generosa, mas, de fato, muito duvidosa e pouco judiciosa, seus adeptos, aos quais se reúne sempre com gosto e parolagem o ministro da Primeira Turma Marco Aurélio Mello, tornam despicienda a exigência de insuspeição do julgador. O novo chefão da grei mandou soltar José Dirceu, que foi preso por ter reincidido no delito pelo qual já havia sido condenado e cumpria pena de 30 anos e meio, o dobro do que cabe ao ex-chefão de ambos, Lula: 12 anos e 1 mês.

Ricardo Lewandowski chegou a rasurar o artigo 52 da Constituição, na presidência da sessão do impeachment da petista Dilma Rousseff, em conluio com os senadores Renan Calheiros e Kátia Abreu, hoje vice na chapa de Ciro Gomes, do PDT. E tornou possível a condenada disputar eleição para o Senado em Minas, sem reprovação de nenhum de seus “mui zelosos” guardiões.

Toffoli assumiu o mais poderoso posto do Judiciário em meio à turbulência pública entre os ministros daquela para a qual a denominação de “Corte” lembra a nobreza da época dos Luíses antes da Revolução Francesa. Valeroso combatente do lado de quem exige mudar a jurisprudência da autorização para prisão em segunda instância, soprou fumaças de paz de um cachimbo que já lhe entortou a boca. Quando, movido pelos eflúvios dos “espíritos”, torturou, condenou e executou, sem piedade, a canção Tempo Perdido, sucesso de seu ídolo Renato Russo, citado no discurso conciliador, emitiu, sem querer, sinais de que perderá seu tempo quem imaginar que a pax toffoliana beneficie alguém mais do que os convidados à solenidade e os parceiros da indecorosa carraspana. Será mais prudente imaginar que a palavra defina o sono solto que poderá ter quem hoje teme ser despertado no alvorecer pela campainha acionada por um policial.

O novo presidente do STF não é um campeão do notório saber jurídico, mas deve conhecer o significado óbvio da palavra “novilíngua”, com a qual o escritor britânico George Orwell definiu o dialeto imposto pelo Grande Irmão no celebrado 1984. Pois, em seu discurso do trono, falou em “prudência”, embora sua prática de ministro torne mais correto o uso de “leniência”. Tais conceitos, ao menos nos dicionários disponíveis, não são sinônimos.

Numa amostra de sua alienação da realidade, o jurisconsulto de Marília não hesitou em dar a definição mais estapafúrdia da atual conjuntura. “Não estamos em crise, estamos em transformação”, disse. E nem corou. Ao esbofetear a cara limpa de 24 milhões de brasileiros sem ocupação decente para lhes garantir a sobrevivência, ele não hesitou em também interferir no universo dos antônimos, ao adotar “permanência” como se mudança pudesse ser.

Ao fazer Dilma apta a ser “merendeira de escola”, Lewandowski ocupou o posto de pior presidente da História do STF. Mas Toffoli tem plenas condições de superá-lo.

Gente fora do mapa


Partidos têm maior faturamento da história:: R$ 2,3 bilhões

Os 35 partidos políticos brasileiros já embolsaram somente nos oito primeiros meses de 2018, até agosto, R$2,3 bilhões públicos dos fundos eleitoral e partidário que os políticos inventaram para evitar Policia Federal na porta. A maior parte da tunga bilionária, R$1,7 bilhão, é do fundão eleitoral criado em 2017 com base no custo da eleição de 2014, a mais cara da História: R$5,1 bilhões. Fundo partidário e multas (que retornam aos partidos) aumentam a bolada. 


As doações de pessoas físicas já somam R$194,5 milhões. Magnata das distribuidoras de combustíveis, Rubens Ometto doou R$6 milhões.

Os candidatos já usaram R$191,2 milhões do próprio bolso para fazer campanha. No ranking do TSE, 17 superaram a marca de R$1 milhão.

Candidato a presidente, Henrique Meirelles (MDB) é, com folga, quem mais investiu na própria campanha: R$45 milhões até agora.

O Tribunal Superior Eleitoral mantém a lista atualizada das despesas e o total, a mais de duas semanas da eleição, já é de R$ 3,2 bilhões.

Eterno fedor

Era uma vez, como tradicionalmente se registrava nas histórias de antigamente, um digno nobre do reino que tinha pavor de feder como todo mundo quando se tornasse cadáver. Achava a própria atuação entre seus pares como digna de brilho, merecedora da fragrância dos encômios, que não poderia nunca ser suplantada pela putrefação do esquecimento.

Poderoso, construiu grandioso mausoléu exaltando a Justiça (a própria, que redigira para seus pares), bem protegido de qualquer brecha que exalasse fedor. Assim construído, ali se enterrou o nobre.

Nem se passou semana, que quando por ali passavam visitantes enterrando seus familiares nem tão nobres, nem sequer supremamente justos, torciam o nariz quando perto do mausoléu.

Não fedia o morto, como quisera, fedia, e muito, sua lembrança. Anotaram os cronistas da época que só ali se aspirava a Erva de Urubu.
Luiz Gadelha

De marcha a ré: assim caminha a humanidade

Fiquei apenas sete meses no primeiro governo Lula, como secretária executiva do Ministério do Trabalho. Tempo bastante para constatar a conivência do poder público, naquele governo e em anteriores, com a sonegação de direitos trabalhistas e a dilapidação do erário, por meio da chamada “terceirização de serviços”. Simples assim: figurões da República mandam contratar funcionários, a torto e a direito, das menores às mais altas remunerações. No fim do mês vem a conta: um mero recibo pelo qual tal empresa, sem nada especificar, quer que o órgão mande pagar uma quantia exorbitante. Isso mesmo: não há comprovação de serviço prestado (nada de lista de presença, de indicação de doentes ou afastados, tampouco onde estariam lotados esses funcionários.) À época, no gabinete de um antigo e famoso titular da pasta, fora de Brasília, ainda “prestavam serviços” cerca de 80 (!) pessoas...


Em um julgado no STF, em 2017, pôde-se ter uma ideia da dimensão que o câncer já adquirira: havia mais de 50 mil processos na Justiça em que se postulavam direitos contra prestadoras de serviços que faliram ou sumiram do mapa, dando calote no trabalhador terceirizado no serviço público.

Agora, o STF liberou geral. Terceirização ampla, geral e irrestrita. O que já era tolerado no setor público, e de costas para a moralidade administrativa, vale agora, também, no setor privado. Já que alguém anda deitando e rolando, locupletemo-nos todos, diria o Barão de Itararé.

Nesse “novo mundo” que se anuncia, entre tambores e fanfarras, em que máquinas e trabalhadores se mesclam sem que se saiba mais a fronteira entre o que é capital fixo e o que é capital variável, nada melhor que condenar os que têm de fornecer sua força de trabalho, se quiserem sobreviver e criar suas famílias, sem qualquer garantia, sem qualquer direito, sem nenhum respeito por suas necessidades. E como sua remuneração é aviltada e a aposentadoria se torna uma ficção, como ter quem possa consumir as milhares de geringonças, de obsolescência induzida, sem as quais pensamos não mais poder viver? Por que não voltar logo à escravidão? Porque na escravidão o proprietário do escravo precisa, no mínimo, mantê-lo vivo, se quiser continuar a obter os frutos de sua labuta. Ouvi de uma neta carinhosa, sim, mas já com a cabeça feita, que preciso comprar um carro novo, porque ela já anda no nosso veículo, adquirido em 2008, desde que era pequena. Outro dia, indagou-me: “Você não se cansa deste carro?”. Nossa pretensa lata velha ainda se presta muito bem a sua precípua função de levar a mim e a meu marido para ali e acolá, sem problema algum. Bom, se é assim, melhor seria mesmo trocarmos de empregado a cada momento em que o que nos está servindo começar a inviabilizar nossa vontade de pagar menos e ostentar mais.

Para isso, qualquer forma de precarização viria a calhar: usa-se o trabalhador até que o caldo de laranja que ele nos proporciona se acabe. E depois? Ora, depois, atira-se a mamucha ao lixo.