sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Tempo de validade expirando

Nesta segunda-feira, em Manaus, o ecologista americano Philip M. Fearnside, 74 anos, foi interpelado por um ativista bolsonarista ao denunciar, numa audiência pública, que o licenciamento ambiental para a pavimentação da rodovia Manaus-Porto Velho (BR-319) viabilizará a grilagem e o desmatamento de uma imensa área intocada da floresta. Segundo o repórter Fabiano Maisonnave, o ativista tumultuou a cena aos gritos de “Como é que pode vir um cara lá dos Estados Unidos dizer o que eu vou fazer na minha casa? Essa casa é nossa! Se a gente quiser derrubar todas as árvores, a gente derruba! É nossa!”.


Philip Fearnside é Prêmio Nobel da Paz em 2007. Reside na Amazônia há 45 anos. Tem mais tempo de Brasil do que o ativista, aos 41, tem de vida. Isso lhe dá uma autoridade sobre a região inalcançável pelo estafermo —aliás, paranaense e cujo currículo se resume a uma candidatura a vereador em 2020 pelo PRTB, partido do vice-presidente Hamilton Mourão, que lhe rendeu 42 votos. Segundo Fearnside, secundado por outros estudiosos, o desmatamento daquela área afetará o fornecimento de vapor d’água e diminuirá as chuvas no Sudeste. O interpelador não citou nenhum estudo. Seu argumento é a xenofobia.

O dito ativista é um exemplo típico de uma, literalmente, fauna de valentões que apoiam Jair Bolsonaro —machões, bombados, atiradores, selvagens da motocicleta e outros espécimes com adesão cada vez mais explícita ao nazismo. Sua xenofobia não surpreende. Vem juntar-se à fobia a tudo o que não pertence ao estreito círculo de convicções que querem impor ao país.

Ameaçar, ofender e agredir em turma é fácil. Se, hoje, se sentem tão à vontade para trovejar seus músculos e arrogância nos sindicatos, empresas, grotas sertanejas e redes sociais é porque seu líder e inspirador está sentado no trono.

Mas eles sabem que são só 15% da população —e que o tempo de validade do chefe está expirando.

O mistério da tevê que ninguém vê

A história de um dos maiores fracassos de comunicação e desperdício de dinheiro público de nossa história recente. Uma farsa permanente, que começa com Lula e vai até Bolsonaro, passando por Dilma e Temer. Às acusações de chapa branca, Lula respondia que a emissora seria plural e democrática, justamente o oposto do que foi desde o início. Totalmente aparelhada pelo PT, criou centenas de empregos e diretorias e chefias, sempre comendo verbas gordas e dando audiências esquálidas, ou traço, zero, para ser mais preciso. É audiência residual, o registro da fração de segundo em que o controle remoto passou pelo canal e saiu. Ou seja: ninguém viu. E é isso que justifica a existência de qualquer televisão, pública ou privada: de que servem as eventuais qualidades dos programas se ninguém os vê. Quem não se comunica se trumbica, já dizia o mestre Chacrinha.

Apresentador Jair Messias no programa dos 1000 dias

Como uma alternativa pública aos canais comerciais, a TV Brasil foi um fracasso anunciado e retumbante, uma máquina de criar empregos e comer dinheiro: de nada valiam as mensagens se ninguém as recebia. Pena que eram pagas com nossos impostos. Imaginem quanto dinheiro a TV Brasil já torrou em 14 anos, dividam pelo número de espectadores que a assistiram, e terão uma das audiências per capita mais caras da história da TV. Se ninguém vê, então serve para quê? Para nada. Melhor seria ter jogado a dinheirama de um drone sobre o Complexo do Alemão ou a favela de Heliópolis.

Ou ter investido essa grana na TV Cultura, de São Paulo, que há décadas já exibia uma programação de qualidade, como uma real alternativa à TV comercial, assistida por uma audiência pequena e qualificada, mas ao alcance de todos, cumprindo sua missão pública e social, sempre com dificuldades financeiras, sem poder captar publicidade, dependendo de verbas públicas e da politicagem. Poderia ter crescido muito.

Mas não, a TV Brasil atravessou os governos Dilma e Temer devorando verbas e produzindo vento.

Uma das primeiras promessas de Bolsonaro eleito, com aquele seu jeitão autoritário e peremptório, foi “vou fechar a EBC e a TV Lula”. Mas não só a aparelhou com bolsonaristas como aumentou suas verbas na ilusão de ter um canal só seu para falar ao seu rebanho e para defender o governo. O problema é que ninguém vê, exatamente como nos tempos do PT.

A quem eles pensam que enganam ? E a que preço ? Qualquer live de Bolsonaro em seu canal do YouTube tem milhões de visualizações, mas quando fala na TV Brasil mal chegam a uns gatos pingados. Para quem tem redes sociais com milhões de seguidores de que serve um canalzinho de TV que ninguém vê? Autoengano, teu nome é TV Brasil. A melhor resposta é “me engana que eu gosto”.

Gostando ou não, a nós resta pagar a conta dessa farsa cara e inútil, enquanto não vem a privatização anunciada para o final de 2022. Se é que vem mesmo, já que foi Bolsonaro que prometeu.

Mil e uma noites no poder

Os 1000 dias do governo Bolsonaro foram comemorados pelo governo sem muita pompa, não houve nenhuma entrega espetacular para marcar a data. Afinal, são 600 mil mortes por covid-19, 14 milhões de desempregados e 35 milhões de brasileiros na miséria. “Nada não está tão ruim que não possa piorar”, disse o presidente Jair Bolsonaro, agourento, durante a efeméride no Palácio do Planalto. Diante de ministros e parlamentares, arrematou: “Alguém acha que eu não queria a gasolina a R$ 4? Ou menos? O dólar R$ 4,50 ou menos? Não é maldade da nossa parte. É uma realidade. E tem um ditado que diz: ‘Nada não está tão ruim que não possa piorar’. Nós não queremos isso.”

Lembrei-me de uma passagem de um clássico da literatura universal, As Mil e Uma Noites (Editora Brasiliense), uma coletânea de histórias de origem persa narradas por sua principal personagem, a princesa árabe Xerazade, esposa do rei Xariar. “Você vai morrer!”, disse o monarca, “você morreria nem se fosse apenas para eu ouvir sua cabeça falar depois de separada do corpo”.

Suspeito de espionar, o médico Dubane fora condenado à morte, porém, antes da execução, desafiou o monarca a ler um livro que faria sua cabeça decapitada falar. O rei caiu na armadilha e começou a ler as páginas do livro, molhando o dedo na própria saliva para separá-las. A cabeça amaldiçoada esperou o veneno fazer efeito e, antes do rei o morrer, declamou:

Eles julgaram a seu modo
E se acumpliciaram nesse trabalho
Dentro em pouco, seu poder parecerá que
nunca existiu
Poderiam ter permanecidos justos e puros
mas abusaram do poder
e o mundo por seu turno os oprimiu
assim como a adversidade e a provação
Ei-los vivendo na miséria. Seu presente
É tão-somente o fruto do seu passado.
Quem censurará o mundo
Por tratá-los assim.


O poema ajuda a entender a derrocada de governos, regimes e até civilizações. Não é o caso ainda do governo Bolsonaro, ao completar 1.000 dias, mas é o seu rumo atual. Na última sexta-feira, o preço médio da gasolina era R$ 6,09, mesmo subsidiada pela Petrobras. Ontem, o dólar estava cotado a R$ 5,37. O Imperador brasileiro Dom Pedro II soube bem o que é isso. Foi o primeiro a traduzir diretamente As Mil e Uma Noites para o português, com rigor raro para a época. Aos 62 anos, pouco antes da Abolição e da Proclamação da República, começou o trabalho. O último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte em Paris, no exílio. Não conseguiu concluir a obra.


Entretanto, ninguém pense que Bolsonaro está jogando a toalha. Apesar das dificuldades eleitorais, não se sente estrategicamente derrotado. O seu discurso de ontem, ao se referir à facada que levou na campanha de 2018, constrói um cenário imaginário no qual a eventual vitória de seu adversário principal nas eleições de 2018, o ex-ministro da Educação Fernando Haddad (PT), faria com que a situação fosse muito pior: “É só imaginar quem estaria no meu lugar. O perfil dessa pessoa, o seu alinhamento com outros países do mundo, em especial aqui na América do Sul. Onde nós estaríamos agora?”, indagou. Obviamente, a comparação é com a Venezuela: “Você já sabe qual o filme do futuro porque você viveu 14 anos passados esse filme. E pode ter certeza, não serão apenas mais 14 anos. Serão no mínimo 50. É isso que queremos para a nossa pátria?”

Bolsonaro administra mal o próprio tempo, o recurso mais escasso de seu mandato. Governa para os seus, olhando sempre para trás. Constrói um cenário político que lembra um pouco a disputa de 1950, na qual Getulio Vargas voltou à Presidência pelo voto. Naquela campanha, o líder da UDN, Carlos Lacerda, que mais tarde seria governador da antiga Guanabara, dizia que Vargas não poderia ser candidato; se fosse candidato, não deveria ganhar; se ganhasse, não deveria tomar posse; se tomasse posse, deveria ser derrubado.

Lacerda foi um opositor implacável, mas sofreu um atentado, na Rua Tonelero, em Copacabana, onde morava, sendo ferido na perna. No episódio, morreu o major Rubens Vaz, seu amigo, que cuidava da sua segurança. O envolvimento de Gregório Fortunato, chefe da segurança pessoal do presidente, no crime, e de Benjamin Vargas, seu irmão, encurralou e levou Vargas ao suicídio, em 24 de agosto de 1954. A analogia serve para mostrar que a atual polarização política não se resolverá na eleição. Deixou de ser eleitoral: é mais profunda e, tudo indica, veio para ficar.

A mais degradante das crises

Geisa Sfanini, 32 anos, moradora de Osasco (SP), teve 90% do corpo queimado porque, sem gás nem dinheiro, usou etanol para cozinhar. Ela morreu na última segunda-feira, deixou órfão um bebê de 8 meses. Duas vezes por semana, Denise da Silva, 51, viúva, cinco filhos, 12 netos, vai de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, até a Glória, na Zona Sul carioca, para garimpar num caminhão fragmentos de carne bovina em pedaços de ossos e pelanca, mostraram Rafael Nascimento de Souza e Gabriel Sabóia em reportagem no Extra. Os restos descartados por supermercados tinham como destino fábricas de ração e sabão, até a fome levar a população ao desespero e o país ao patamar de miséria do século passado. Dezenove milhões de brasileiros, a maioria negros, estão à míngua, enquanto autoridades dormem, e o presidente da República, impopular como nunca, gasta tempo em campanha antecipada à reeleição.


Nada numa sociedade é mais degradante que a fome. O Brasil soma dois Portugais de famintos, mas não tem política social de enfrentamento à insegurança alimentar. Jair Bolsonaro foi a Nova York (EUA) e Boa Vista (RR) dizer que acredita em Deus, respeita a Constituição, defende a família tradicional (em evidente referência homofóbica) e é leal ao povo. Mentiu à quarta potência. Qualquer líder que conjugue fé, respeito às leis, defesa dos lares e lealdade à população agiria pela vida, não em prol da morte. Em ano e meio de pandemia, o chefe do Executivo pregou desobediência ao protocolo de proteção contra a Covid-19, recomendou medicamentos ineficazes, não visitou um hospital, jamais se ocupou da urgência alimentar. Age diuturnamente ora para proteger parentes e aliados investigados por um leque de crimes, ora por mais uma temporada no Planalto.

Nesta semana, o coletivo Movimentos, de jovens moradores de favelas, apresentou resultados de uma pesquisa sobre os impactos da pandemia na Maré, no Complexo do Alemão e na Cidade de Deus. Metade dos entrevistados precisou de ajuda para sobreviver à temporada; um terço recolheu ou fez doações. O Estado despreza, a sociedade civil acolhe. A Coalizão Negra por Direitos vai estender a campanha Tem Gente Com Fome, que em seis meses arrecadou R$ 18,9 milhões, distribuiu cestas básicas a mais de 100 mil famílias, alimentou meio milhão de brasileiros. Nesta semana, por iniciativa da subprocuradora aposentada Deborah Duprat, um Tribunal Popular da Fome acusou e julgou o governo por violação ao direito humano à alimentação e nutrição adequadas.

A pedido da Ação da Cidadania, a OAB Nacional ajuizou no STF ação para obrigar o governo Bolsonaro a implementar políticas públicas de combate à fome, em aliança com estados e municípios. A ONG, fundada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, morto em 1997, atua desde os anos 1990 em campanhas contra a miséria. Em 2007, chegou a suspender por uma década a doação de alimentos, em decorrência da política social, Bolsa Família à frente, que tirou o Brasil do Mapa da Fome da ONU. A mobilização foi retomada em 2017, com o agravamento da crise social após a recessão aguda do período 2014-2016. No ano passado, com a pandemia, a demanda foi inédita.

— Desde março de 2020, arrecadamos R$ 150 milhões, suficientes para distribuir 30 mil toneladas de alimentos ou 150 milhões de pratos de comida a 12 milhões de brasileiros — informou Kiko Afonso, diretor executivo da entidade.

Na ADPF 885, a OAB aponta violação de direitos constitucionais pelo governo no enfrentamento à fome. Solicita ao STF retomada e ampliação do auxílio emergencial de R$ 600, reativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e das demais instâncias de participação social extintas, recomposição orçamentária, aplicação de R$ 1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos, formação de estoques públicos de alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para aplacar escassez de oferta e disparada dos preços. O relator, ministro Dias Toffoli, deu dez dias para o governo se pronunciar.

Enquanto isso, o presidente age para desmontar política social consolidada, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, avaliza gambiarras fiscais com objetivo eleitoral. A Medida Provisória do Auxílio Brasil, que rebatizará o Bolsa Família, alerta o economista Francisco Menezes, da ActionAid, não traz dotação orçamentária, número de beneficiários nem valor do repasse, e insiste na inscrição por aplicativo de smartphone, em detrimento do sistema de assistência social capaz de alcançar os mais vulneráveis. A Petrobras, que lucrou R$ 42,9 bilhões no segundo trimestre e pagará R$ 31,6 bilhões em dividendos a acionistas, União incluída, separou R$ 300 milhões para subsidiar gás de cozinha para famílias pobres. De Band-Aid para aplacar hemorragias, vive o governo brasileiro.

Pensamento do Dia

 


A reinvenção do futuro

“Roma, lá fora, é uma cidade muito triste. Noite após noite, o país dorme desolado com a contagem, ainda às centenas, dos mortos, as cenas de terror se repetem nos hospitais”. O comentário é parte de um texto da escritora brasileira, Juliana Monteiro, radicada com sua família na capital italiana. Ela escrevia e descrevia o auge do primeiro confinamento vivido pela Itália, país que foi o primeiro epicentro da pandemia da covid-19 na Europa. “Que triste tantos italianos enterrando seus avós, aqui, onde são tão amados”, constatou, ainda nos primeiros meses de 2020.

O que a escritora de uma sensibilidade ímpar presenciava de seu balcão não era apenas uma impressão da dor que atravessava um continente. Mais de um ano depois daquele primeiro lockdown, dados confirmam o que ela sentia: a pandemia gerou a maior queda de expectativa de vida desde a Segunda Guerra Mundial.

A pesquisa, realizada pela Leverhulme Centre for Demographic Science, de Oxford, analisou dados de mortalidade em 29 países, incluindo Europa, EUA e Chile. Desse total, 27 deles registraram uma queda na expectativa de vida em 2020, numa escala que borrou o progresso objetivo durante anos na questão da mortalidade.

O que esses números revelam, no fundo, é uma enorme transformação na sociedade. Jamais, em épocas de paz, as mortes atingiram tais dimensões em economias ricas. A fome no mundo continua a matar mais que a covid-19. Mas, cinicamente, europeus consideravam essa outra pandemia como um problema distante e que, portanto, não merecia manchetes. E nem uma solução.


O que a pandemia revelou é que nada é inevitável, nem o futuro. Se as mortes atingiram níveis desconhecidos nesses países, algo parecido ocorreu com a taxa de natalidade. Os mais otimistas acreditavam que haveria um aumento de nascimentos nove meses depois do primeiro lockdown. Mas os números revelaram exatamente o oposto. Uma pesquisa na França e Alemanha em meados do ano passado indicou que 50% dos casais adiariam gravidezes.

Nos EUA, os números de queda começaram a aparecer de forma importante a partir de dezembro de 2020, nove meses depois da eclosão da crise. Segundo o CDC, a queda foi de 8% nos nascimentos no último mês do ano passado, uma tendência mantida em janeiro e fevereiro. Na Itália, a queda foi ainda maior, de 21%, contra 20% de redução na Espanha para o mês de dezembro. Já a França teve dezembro e janeiro com índices de natalidade mais baixos em 20 anos.

Não apenas a vida foi suspensa. Alianças foram desfeitas e a quantidade de casamentos que chegaram ao final explodiu. Só no Reino Unido entre julho e outubro de 2020, o escritório de advocacia Stewarts registrou um aumento de 122% em reuniões com indivíduos iniciando consultas sobre possíveis divórcios.

Agora, com as vacinas para uma classe privilegiada, os planos podem voltar a ser feitos. Tanto na Europa como nos EUA, os primeiros sinais literalmente de vida também começam a aparecer, com a volta de casais em busca de filhos. Ou pelo menos voltando a falar sobre o assunto. O Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica na Alemanha constata, por exemplo, que a busca no Google por termos relativos à gravidez deu um salto nas últimas semanas.

Mas para milhões de famílias mais pobres ou em luto, o futuro terá de ser reinventado. Mesmo na rica Europa, a era pós-pandemia também aponta que ninguém sairá ileso. Nas clínicas e hospitais, a onda de pacientes de covid-19 começa a ser substituída por outra: a de pessoas com sinais de depressão, stress e casos psiquiátricos.

Perguntas existenciais também ecoam pelas estruturas do poder nos corredores das grandes capitais. Como, apesar de toda nossa tecnologia e peso econômico, permitimos que tantos mortos se acumulassem? E o que garante a soberania: respiradores ou helicópteros militares de última geração? Até que ponto podemos comemorar um dia da independência e aplaudir um desfile militar enquanto nosso sistema de saúde não atende sua própria população?

O futuro também exigirá lidar com um prejuízo de 13 trilhões de dólares deixado pela pandemia. Mas de quem cobrar quando a obscenidade da desigualdade foi escancarada?

Nas entidades internacionais, os cálculos confirmam que a crise sanitária abalou 30 anos de progresso no índice de desenvolvimento humanos e que o planeta contará, ao final do ano, com um exército de 318 milhões de novos miseráveis.

Quem tinha oxigênio conseguiu evitar um colapso social. A UE, por exemplo, destinou 2,3 trilhões de euros em medidas de apoio para garantir a liquidez das economias. Isso impediu uma onda de falências e, de fato, os números de empresas fechadas foi o menor desde 1999. De acordo com a UE, sem esse dinheiro, 25% de todas as empresas do bloco teriam fechado suas portas ao final de 2020, após exaurir seus caixas.

Mas essa aparente estabilidade pode não durar. No mercado, o temor é de que “empresas zombis” – que de fato não tinham mais atividade – comecem a fechar. “Muitas insolvências foram adiadas, e não impedidas”, alertou a francesa Coface SA, uma empresa de seguro de crédito.

A tendência de austeridade deve marcar também outros setores. Das 1.600 discotecas existentes na França, 100 nunca voltarão a abrir suas portas, com milhares de postos de trabalho fechados. E milhares de beijos que talvez nunca ocorram.

Se há uma lição que a pandemia deixa ao mundo é de que o modelo está esgotado, inclusive moralmente. Ou como explicar que, em plena pandemia, bilionários façam viagens pornográficas ao espaço? Há algo de podre quando países ricos começam a pensar em jogar fora 100 milhões de vacinas que vencerão em dezembro, enquanto os pobres não sabem nem sequer quando vão receber a primeira dose.

Numa catástrofe ética, o planeta recupera sua lógica colonial mais crua. Desta vez com vacinas. Fábricas de imunizantes na África passaram meses sendo obrigadas a fornecer doses para os países ricos, enquanto a população do continente implorava por doses.

Mais de seis meses após o início da vacinação, economias ricas tinham obtido 61 vezes mais doses que os países mais pobres. Neste mês, 300 milhões de vacinas estarão sentadas em depósitos na Europa e EUA, sem saber como serão usadas.

Alguns deixarão explícita a indignação diante dessa realidade. Outros guardarão segredos impublicáveis sobre a crise que definiu uma geração. Um grupo ainda lutará para impedir a ruptura de um status quo que os garante fortunas e privilégios.

Mas, para todos, a era do mundo infinito acabou de vez. O futuro que muitos imaginavam que existia se provou insustentável, insuficiente e intolerável.

A história irá nos olhar sem compaixão. Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu – ou optou por ignorar – o que pode ter sido o último sinal de alerta antes de uma crise climática e social de proporções inéditas.

Nosso único presente é a reinvenção do futuro. Retornar ao passado é suicida. Num planeta mais quente, mais improvável, mais hostil e mais desigual, reimaginar o que será da sociedade e da coexistência não é uma opção. Mas um ato de sobrevivência.

Culpados por nascença

Imagine esta situação: uma criança incomodada, e talvez manhosa, desconfortável num espaço que não lhe pertence. A criança quer a mãe. A criança quer o seu afago, seu colo, sua referência maior no mundo. O que o mundo faz? Uma parte bem representativa deste mundo coloca a criança incomodada e sozinha num elevador. A criança tem 5 anos. Não lê e não escreve ainda. Mal alcança os primeiros botões do elevador. Ela está sozinha. Ela busca a mãe. O elevador para, a criança sai. Ela quer a mãe, ela quer seu lugar no mundo. A criança vê um buraco. O buraco mostra a mãe que ela tanto quer, lá em baixo. A criança cai do buraco. O buraco é fundo, acabou seu mundo...

Nove andares: esse é o tamanho do buraco. A criança morre, sozinha, aos 5 anos, querendo a mãe. Alguém imagina o medo dessa criança? Alguém imagina a dor dessa mãe?

Essa é a história da morte do menino Miguel. No dia 2 de junho de 2020, sua mãe, a doméstica Mirtes Renata, foi trabalhar na casa da patroa – primeira-dama da cidade de Tamandaré, Pernambuco. Mirtes não tinha com quem deixar o filho, pois o Brasil estava em pleno isolamento social em meio à luta contra a covid-19, e levou o filho para o trabalho. Mirtes saiu para passear com o cachorro da patroa, que enquanto isso fazia as unhas. A patroa não quis lidar com o descontentamento de um menino de 5 anos, filho da empregada. A patroa deixou o menino sozinho, e o menino morreu.

Um detalhe que faz toda a diferença: o menino que morreu e sua mãe são negros. Tudo muito triste, tudo desesperador, mas que ganhou contornos de fatalidade.



A história da morte do menino Miguel revela uma série de camadas do racismo que organiza a sociedade brasileira. A mãe, negra e pobre e que não tem onde deixar o filho, mas que também não pode faltar ao trabalho, mesmo numa pandemia. Uma trabalhadora cuja carteira de trabalho indica uma ocupação bem diferente daquela que ela executa diariamente na casa dos patrões, figuras públicas e políticas da região. A patroa que não quer aquele menino negro e pobre lhe incomodando. A mesma patroa que não vê problema algum em deixar um menino de 5 anos sozinho num elevador - afinal, ele não é apenas um menino, ele é um menino negro.

A patroa, Sari Corte Real, foi presa em flagrante por homicídio culposo, quando não se tem a intenção de matar. Conforme as leis nacionais, ela pôde pagar uma fiança de R$ 20 mil e responder ao processo em liberdade. A atuação rápida da polícia parece um alento em meio à dor. A Justiça, que se diz cega, parece estar atuando. Só que nessa história o racismo ultrapassou até mesmo a morte do menino Miguel e a dor de sua mãe. Sim, no Brasil o racismo pode matar quem já morreu.

A principal linha assumida pela defesa da patroa se concentra em culpabilizar o menino Miguel Otávio de Santana. Isso mesmo. Pouco mais de um ano depois, os advogados de defesa estão argumentando que uma criança de apenas 5 anos, que foi abandonada por um adulto, seja responsabilizada pela sua queda de um prédio de nove andares e pela morte decorrente dessa queda. E sabe por que os advogados de defesa tem a pachorra de desenvolver essa linha de raciocínio? Porque Miguel era um menino negro. E, no Brasil, meninos e meninas negros não são tão crianças quanto meninos e meninas brancos.

Quando lida assim, de supetão, a constatação de que existem infâncias e infâncias pode parecer desmedida. Um exagero de quem enxerga racismo em tudo – algo de que fui acusada recentemente numa dessas discussões de redes sociais. Sim, infelizmente eu enxergo racismo em tudo. E tanto a realidade quanto a história brasileiras me dão razão. Seria capaz de apostar que os advogados de defesa traçariam outro caminho caso Miguel fosse um menino branco. Na realidade, é bem possível que a própria Sari jamais deixasse um menino branco de 5 anos sozinho em um elevador.

Mas o menino era negro. O menino era pobre. O menino era o filho da empregada. O menino teve culpa.

O encadeamento dessas condições teve um desfecho funesto no caso de Miguel. A correlação entre ser negro e ser pobre parece suavizar ou diminuir o "ser criança", como se a infância fosse um lugar interditado para crianças negras e pobres, que têm que nascer sabendo por onde e com quem andar, quando e se podem brincar, cientes dos perigos do mundo, da culpa que carregam por serem quem são. Uma correlação que tem uma longa e violenta história no Brasil.

Nesta semana, foram comemorados no dia 28 de setembro os 150 anos da Lei do Ventre Livre. Promulgada em 1871, essa foi uma das mais importantes leis abolicionistas do Brasil. Uma lei que não só estabelecia o fim gradual para a escravidão, como também reconhecia que os escravizados tinham direito ao pecúlio, que a alforria era um direito, e que a partir de então haveria um fundo de emancipação para acelerar o processo de abolição da escravidão no país.

Todavia, essa mesma lei estava calcada em uma premissa: as crianças, que a partir de então eram filhas de ventres negros e livres, não eram assim, tão crianças. Elas eram filhas de mulheres negras e escravizadas. O nascimento continuava sendo uma espécie de mácula, que permitia que os proprietários das escravizadas pudessem escolher se a liberdade do recém-nascido seria paga por dinheiro ou pelo trabalho dessa criança, até que ela completasse os 21 anos. Essas crianças ainda eram vistas como propriedades, como bens, e por isso não tinham os mesmos direitos, não ocupavam o mesmo lugar das brancas. Essas crianças negras continuavam nascendo culpadas.

O que tornou possível que a vida dessas crianças fosse experimentada sob o signo da liberdade foram as ações de mães negras (por vezes escravizadas) que criaram diferentes estratégias, redes de afeto e de apoio, lutando incessantemente para que seus filhos não fossem culpados. Mulheres que, como Mirtes, queriam justiça, mesmo quando já não podiam embalar seus filhos.
Ynaê Lopes dos Santos

A CPI, a impunidade e o nazismo

Ou eles são muito burros ou realmente acham que nós somos burros e eles têm razão e, pior, vão ficar impunes. É impressionante o que assistimos principalmente nas sessões da CPI. Além dos senadores de sempre, os bolsonaristas que repetem a mesma lenga- lenga, temos os depoentes que chegam com menos ou mais arrogância à bancada como se estivessem fazendo um enorme favor ao país e àquelas pessoas ali sentadas à frente. Alguns perdem a arrogância e saem até com o rabo entre as pernas, mas outros usam e abusam do direito que o STF que eles querem destruir concedeu ou então transformam a bancada numa arena de circo para que eles possam exercer seus papéis de animais não domesticados, mas servis ao senhor deles. Triste espetáculo.

O que vimos na sessão do Sr. Luciano Hang foi patético. Acho que foi bom, que serviu à CPI para mostrar quem são as pessoas que fazem parte da entourage do presidente. Foi bom aquele figurino papagaiado e aquela empáfia de botequim. Os senadores precisam só aprender a não cair em tantas provocações. Até entendo que pode ser difícil, mas seria mais eficaz. No dia seguinte ao Hang vai o Fakhoury, figura conhecida do gabinete do ódio, financiador dos sites de fake news, negacionista, homofóbico e que se diz cristão e de família. Eles são todos assim.


Apesar das respostas imediatas e um tanto quanto ingênuas dos senadores às colocações do depoente, também acho que funcionam. Os senadores e senadoras falam de amor, que um cristão como ele precisa falar de amor. Sim, aí está a ingenuidade em achar que eles estão preocupados com isso, mas é verdade. Não se vê o sentimento amor em nenhuma atitude que parta desse governo. Como não acredito em deus e sim no amor entre as pessoas isso me toca de perto. Sem amor, resta o conceito, no caso autoritário e ameaçador de deus, para manter a ordem unida. Esse deus que eles pregam é um deus estranho, um deus que serve aos interesses de quem prega justamente o contrário do que eles pregam.

Acho que por detrás desta história e de outras está o capitalismo, o bom e velho capitalismo na sua forma mais nefasta, o neoliberalismo. Não dá para dissociar este conceito econômico do autoritarismo político. Um precisa do outro para se manter de pé, porque sozinho, cai. Mas o capitalismo é como esse governo, não tem religião e nem sabe o que é o conceito de deus. No fim do dia eles se juntam para brindar à sobrevivência de seus valores.

Tem um documentário atualmente na Netflix chamado "O Homem Mais Perigoso da Europa" que mostra a trajetória do criminoso nazista Otto Skorzeny durante e depois da segunda guerra. Skorzeny fugiu para a Espanha e lá, obra do capitalismo, trabalhou como engenheiro e empreendedor, na construção das bases americanas no país. Todos amigos, franquistas, americanos e nazistas. Passa-se um pano e vamos em frente.

Depois disso, pasmem, na crise entre Israel e Egito, segundo o documentário, Skorzeny foi secretamente contatado pelo Mossad, serviço secreto de Israel, para agir contra os egÍpcios e conseguiu. Skorzeny tinha uma fama enorme porque tinha sido o homem encarregado por Hitler, de quem compartilhava a amizade, para resgatar o outro ditador fascista Benito Mussolini que estava mantido como prisioneiro num hotel nas montanhas. Mesmo com os aliados bombardeando o país Skorzeny chefiou um comando nazista e levou Mussolini para os braços do patrão maior na Alemanha.

E assim funcionava o mundo. Durante a guerra a Alemanha teve o aval da justiça do país para se manter. Depois da guerra o capitalismo unificou todas as diferenças responsável pela morte de milhões de pessoas sem se sensibilizar com isso e construiu mais bases para a solidificação dos seus princípios. No pós- guerra eram os aliados de um lado e os soviéticos de outro. Era um pega pra capar e os nazista, é claro, preferiram ficar do lado de cá. E se deram bem. Skorzeny morreu em 1975 na Espanha reafirmando sua ideologia nazista.

Essas mesmas pessoas que hoje estão no poder aqui no Brasil e aquelas que os apoiaram para chegar lá, como fizeram os alemães para eleger Hitler. Sim, ele foi eleito. Aqui também os votos brancos e nulos se juntaram aos votos bolsonaristas com medo do PT porque realmente a esquerda e o PT querem o oposto disso tudo. Mas, essa parcela da população que fechou os olhos hoje os arregala diante das barbaridades que ajudou a construir.

Repito, não sou cristão nem agnóstico. Sou ateu e só acredito na contingência cósmica e no feito mágico que nós conseguimos ao criar o amor para sobreviver.

Mas não podemos deixar de olhar pra trás e entender a História. Estão todos lá, os mocinhos e os bandidos e ainda há tempo para os bandidos irem presos e os mocinhos se abraçarem e festejarem no fim.