quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Pensamento do Dia

 


IA e meio ambiente em Elias Canetti

Quando chega o recesso de meio de ano das atividades didáticas, sou atraído para leituras que, preferencialmente, afastem-se do pensar profissional diário que aguçam meu gosto pela tentativa de posicionar a engenharia na vida do planeta, não como mera realizadora de obras, mas como agente colaborador na sua preservação.

Fico folheando os jornais e olhando estantes de livrarias, hábitos considerados antiquados, em busca de possíveis leituras agradáveis. Sigo conselhos de amigos, desde que não indiquem livros de autoajuda, e gosto de ouvi-los comentando e debatendo as ideias.

Nessa lida encontrei A consciência das palavras, coleção de escritos de Elias Canetti (1905-1994), romancista e ensaísta búlgaro-britânico, Prêmio Nobel de Literatura em 1981.

Fui atraído pelo título, pois uma de minhas preocupações é sobre a influência da inteligência artificial (IA) na produção intelectual contemporânea. Não tenho dúvidas sobre a boa ajuda que esses métodos podem dar na produção de textos, aulas e planos de trabalho.

Entretanto, acredito nisso como atividade auxiliar e colaborativa, uma vez que as palavras e ideias que provêm da atividade consciente carregam criatividade e sensibilidade, atributos aparentemente subjetivos, talvez não atingíveis in silico.

A obra, datada de 1974, traz no preâmbulo a ideia da interpenetração entre o público e o privado, com algumas consequências sociais preocupantes. Hoje, 50 anos depois, vivenciamos a proliferação de redes sociais, dotadas de algoritmos, com grande risco à integridade e à privacidade dos indivíduos.

Os benefícios do grande desenvolvimento tecnológico e computacional são inegáveis. O lado ruim, como adverte Canetti, é a conquista rápida desses meios por inimigos do planeta com propagação de boatos e de ideias deletérias de grande alcance.

Ao longo do livro, Canetti apresenta uma sequência de ensaios sobre importantes figuras da história, entre elas Kafka, Confúcio, Tolstói e Büchner, começando pelo escritor austríaco Hermann Broch (1886-1951), considerado um dos principais modernistas de todos os tempos.

Canetti identifica em Broch o que denomina memória respiratória, enaltecendo que a vida diária é feita de uma mistura de respirações em um ar que é nosso último bem comum, que cabe a todos indistintamente.

Essa reflexão parece fundamental para a sociedade, convidando-a a uma importante discussão sobre os problemas ambientais que nos cercam. Até o momento, não havia me dado conta do fato de que quem polui invade e prejudica um bem público, isto é, aquilo que pertence a todos.

Em capítulo seguinte, o dramaturgo Karl Kraus (1874-1936), considerado satirista e panfletário, é evocado. Fundador e único redator da revista Die Fackel (A Tocha), Kraus era crítico ferrenho da moral burguesa da época.

Canetti descreve uma palestra de Kraus realizada em Viena, em 1924, ressaltando o espírito arrebatador do orador, levando a audiência ao êxtase por meio de uma impiedosa perseguição aos desafetos expressa nos discursos.

Considerado como o mago furioso, ao combinar literalidade e indignação, Kraus criava importante sinergia entre suas emoções e as da plateia. Fico imaginando como os algoritmos e redes sociais de hoje criaram e multiplicaram esse estilo de oratória, para o bem e para o mal.

Passando por uma análise bastante aguda e interessante da obra de Franz Kafka (1883-1924), chego ao capítulo sobre Confúcio (552 a.C.-489 a.C.) e aprendo que hesitação e reflexão precedem e acompanham boas respostas a questões relevantes, divergindo da busca por rapidez e de terceirização de raciocínio para as máquinas.

Para Confúcio, a felicidade sem fim está na busca pelo conhecimento, não admitindo o ser humano como ferramenta, ressaltando a memória dos mortos para a consolidação de caminhos para o entendimento da natureza.

Em capítulo seguinte, Canetti apresenta aspectos da vida privada do autor de Guerra e paz, o consagrado escritor russo Leon Tolstói (1828-1910). Ressaltando que Tolstói jamais despreza um pensamento, uma experiência ou uma observação. Canetti relata ser ele proprietário de terras que, contra a vontade da família, divide-as para evitar conflitos e desejos que eventualmente pudessem causar.

Segue-se uma descrição dos diários do médico japonês Michihiko Hachiya (1903-1980), sobrevivente do bombardeio atômico de Hiroshima em agosto de 1945, publicados como Diário de Hiroshima, em 1955.

Canetti escreve que não há nesse diário qualquer traço falso ou de vaidade e sim uma busca de explicar aquilo que, naquele momento, era inexplicável. Em meio aos mortos e feridos, Michihiko procura coletar peça por peça do ocorrido, transformando hipóteses em teorias a serem comprovadas.

Vou parar minha viagem por aqui. Pensando se nós, profissionais das áreas tecnológicas, estamos preocupados com a qualidade das palavras e dos pensamentos provenientes dos programas de IA e dos grupos hegemônicos que a manipulam.

Além disso, se o ar respirável vai continuar a ser atacado e se a indústria da guerra continuará desprezando a vida, indiscriminadamente.

Campanha em Gaza está transformando Israel em um Estado pária

Deixarei para os historiadores o debate sobre se Israel está cometendo genocídio na Faixa de Gaza. Mas o que me parece absolutamente claro agora é que este governo israelense está cometendo suicídio, homicídio e fratricídio.

Está destruindo a posição de Israel no mundo, está matando civis em Gaza aparentemente sem qualquer consideração pela vida humana inocente e está dilacerando a sociedade israelense e o judaísmo global — entre aqueles judeus que ainda querem apoiar Israel a qualquer custo e aqueles que já não conseguem tolerar, explicar ou justificar o rumo para o qual este governo está levando o Estado judeu e agora querem se distanciar dele.


Fiquei impressionado com este parágrafo da reportagem do The New York Times publicada sobre os ataques israelenses a um hospital no sul de Gaza, que mataram pelo menos 20 pessoas, segundo o Ministério da Saúde de Gaza — entre elas cinco jornalistas que trabalhavam para veículos internacionais, além de médicos e várias outras pessoas: "O Exército israelense disse que realizou um ataque na área do Hospital Nasser, sem informar qual era o alvo. A declaração afirmou que o exército lamentava ‘qualquer dano a pessoas não envolvidas’, acrescentando que o chefe do Estado-Maior havia ordenado uma investigação imediata."

Obviamente, percebendo que muitos ao redor do mundo ficaram horrorizados com essa explicação —afinal, quantas vezes já ouvimos isso? — o gabinete do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu emitiu uma rara nota, dizendo que "Israel lamenta profundamente o trágico acidente".

A verdade, no entanto, é que o que Netanyahu chamou de "trágico acidente" é o subproduto inevitável de sua política de prolongar a guerra em Gaza para se manter no poder, evitar seus julgamentos criminais e impedir qualquer comissão de inquérito israelense sobre sua profunda responsabilidade no fracasso em evitar o ataque surpresa do Hamas em 7 de outubro de 2023.

Para permanecer no cargo, Netanyahu precisa do apoio de ministros da extrema-direita, como Bezalel Smotrich, que promove esforços para cobrir a Cisjordânia de assentamentos judeus a fim de impedir o surgimento de um Estado palestino. Smotrich também incentiva a expulsão de palestinos da Cisjordânia e de Gaza, para abrir caminho à anexação por Israel.

Mas eis o problema: Israel já devastou o Hamas como força militar e matou praticamente todos os principais comandantes que planejaram o ataque de 7 de outubro. Agora, para justificar a continuidade da guerra, é preciso perseguir comandantes de nível inferior, que vivem e se escondem entre civis.

Uma coisa é um país em guerra justificar danos colaterais ao perseguir os principais líderes inimigos. Outra, muito mais sinistra, é matar e ferir dezenas de civis para tentar eliminar, digamos, o "adjunto do adjunto" de um comandante.

Também é de uma crueldade sinistra usar o Exército para deslocar centenas de milhares de civis palestinos de uma parte de Gaza para outra —sob o pretexto de evacuá-los das zonas de combate — e depois demolir deliberadamente as casas que eles deixaram para trás, sem qualquer razão militar real, mas com o claro objetivo de tornar a vida tão miserável que eles acabem deixando a região de vez. E é vergonhoso interromper e retomar a ajuda humanitária com a esperança de que as pessoas passem fome a ponto de abandonar o território.

Mas, como disse, isso não é apenas homicídio em estado puro; é também suicídio e fratricídio. Israel está a caminho de se transformar em um Estado pária —a tal ponto que israelenses poderão pensar duas vezes antes de falar hebraico ao viajar para o exterior.

O governo israelense diz que isso é injusto. Argumenta que o mundo parece ter esquecido que o Hamas assassinou cerca de 1.200 pessoas; sequestrou aproximadamente 250, incluindo mulheres, crianças e idosos; e ainda mantém alguns vivos em condições desumanas em túneis e outros locais em Gaza. A liderança do Hamas poderia ter encerrado todo esse sofrimento se aceitasse deixar Gaza e libertar os reféns. Ao perpetuar a guerra, o Hamas também cometeu seus próprios crimes hediondos —o assassinato de reféns israelenses e o sacrifício de milhares de palestinos em nome de seus delírios.

Tudo isso é verdade — e relevante.

Então, por que o mundo está se voltando apenas contra Israel agora? Porque se cobra de Israel um padrão mais alto do que do Hamas, porque o próprio Israel sempre se cobrou um padrão mais alto.

E porque hoje o mundo consegue distinguir entre uma guerra travada pela sobrevivência do Estado judeu e uma guerra travada pela sobrevivência política de seu primeiro-ministro. E, finalmente, porque o mundo já não consegue mais ignorar, como fez por meses, a perda de vidas civis palestinas em Gaza como subproduto inevitável de uma guerra em que — acreditava-se — Israel buscava expulsar o Hamas de Gaza e substituí-lo por uma força de paz árabe em parceria com a Autoridade Palestina. A AP reconheceu Israel e poderia, se reformada, ser parceira em uma solução de dois Estados.

Mas, como Netanyahu deixou agora claro que não permitirá que Gaza seja governada nem pelo Hamas nem pela AP, a guerra cada vez mais se parece com o que realmente é: um esforço para estender a ocupação de Israel da Cisjordânia a Gaza. Assim, para muitos ao redor do mundo, parece que civis palestinos estão sendo mortos diariamente não como consequência inevitável de uma guerra justa pela sobrevivência de Israel e pela tentativa de criar um parceiro palestino melhor em Gaza, mas sim para garantir que Israel não tenha nenhum parceiro palestino em Gaza.

É de se espantar que Israel esteja perdendo tantos amigos no mundo —assim como potenciais parceiros regionais, como a Arábia Saudita— para quem isso está ficando cada vez mais evidente?

Quanto ao fratricídio, se a guerra continuar neste rumo, ela vai dilacerar muitas sinagogas ao redor do mundo durante as festas judaicas deste ano —entre aqueles que sentem necessidade de apoiar Israel a qualquer custo e aqueles que já não suportam mais o comportamento deste governo em Gaza, sobretudo quando veem centenas de milhares de israelenses saindo às ruas contra seu próprio governo.

Também vai dividir o Partido Democrata nos EUA, entre aqueles que têm medo de desafiar o influente lobby israelense —com receio de perder financiamento de campanha para seus adversários republicanos — e aqueles que já não aguentam mais.

Infelizmente, se isto é suicídio geopolítico, como acredito, tornou-se um suicídio assistido. Há uma pessoa que poderia acabar com tudo isso agora, e essa pessoa é o presidente Donald Trump. Espero estar errado, mas temo que, assim como Trump foi ludibriado por Vladimir Putin a desistir de um cessar-fogo na Ucrânia em troca da ilusão de uma paz total, ele tenha sido ludibriado por Netanyahu a desistir de um cessar-fogo em Gaza em prol da fantasia de Bibi de uma "vitória total."

Não acredite no que vê. Pode ser IA

Nano Banana começou a circular pelas redes faz duas semanas. Não era óbvio encontrá-lo. Primeiro foi no site LMArena, que permite a usuários escrever um mesmo comando simultâneo para duas inteligências artificiais que geram imagens. É para comparar o que uma e a outra constroem. Aleatoriamente, por vezes um dos resultados vinha dessa IA nova com nome engraçadinho. E os resultados chocavam: um modelo muito melhor que qualquer outro que existe por aí. Na semana passada, o criador desse Nano Banana enfim apareceu. É o Google. E, nesse campo, das imagens, tem um novo campeão na praça. Não é só isso. O Gemini 2.5 Flash Image, nome oficial do bicho, muda todas as regras do jogo.


O Midjourney constrói imagens muito realistas e, ao mesmo tempo, com um quê de cinematográficas. Não faz nem meio ano que o GPT trouxe a capacidade de criar imagens com texto no meio. O que a nova IA do Google traz é diferente. Ela permite a edição de qualquer fotografia. Tire uma foto da sua sala, pegue a imagem do sofá no site da loja, suba ambas. Aí é só escrever: ponha esse sofá embaixo da janela. Você verá sua casa com o móvel novo. Quer satisfazer uma fantasia do seu filho? Pega aquela foto dele jogando bola na escola e escreve lá: ponha este menino no Maracanã. Exatamente o mesmo menino, naquela mesma foto, só que o pátio do colégio virou o Estádio Jornalista Mário Filho. Se não basta, peça nova mudança. Vista ele com o uniforme do Flamengo. Agora ponha a torcida soltando fogos. Encaixe um goleiro apavorado. A imaginação é o limite. Edições sutis também são do jogo. Se na última apresentação da sua banda tinha pouco público, ponha mais gente. Quer ser iluminado por luzes que só Mick Jagger costuma ter, de novo, é só pedir.

Pois é assim, pedindo, que com Nano Banana vai-se muito longe. Afinal, ele também cruzou uma linha que as IAs responsáveis não haviam cruzado. Quer aparecer dando um beijo na atriz famosa? Sobe uma foto sua e uma dela, pede. O modelo faz. Deseja aquele político com roupa de palhaço? Tasque a foto. Peça. Não se sentindo satisfeito com o nariz, é só pedir para deixá-lo mais redondo, mais vermelho e mais reluzente.

Até aqui, os modelos não nos deixavam criar imagens com fotografias de gente. Nem de anônimos, tampouco de conhecidos. Era um tanto para evitar a criação de cenas falsas, mas também por dificuldades da própria IA. O Grok, da xAI de Elon Musk, deixa inventar cenas com gente famosa, mas não do colega ou da vizinha. Ainda assim, não eram realistas a ponto de enganar. Serviam mesmo para criar piadas de redes sociais. Alguns dos modelos abertos também não tinham limites, mas exigiam conhecimento técnico. O Google decidiu dar esse passo, cruzar essa linha. Isso quer dizer que posso enfim ter minha foto com o Zico. Posso, até, escolher se é com o Zico de hoje ou com aquele, campeão do mundo. Mas quer dizer, também, que qualquer um, qualquer um mesmo, pode construir agora a imagem de Lula ou Bolsonaro batendo uma carteira na rua. Ou qualquer outro fazendo qualquer coisa. Os limites parecem ser apenas dois: nudez não pode, violência extrema também não.

Nano Banana, não bastasse, é incrivelmente rápido, mais que a maioria dos concorrentes. Seu truque é que ele aprendeu a isolar partes de uma imagem. Se você deseja apenas realçar a maquiagem de uma moça, ou mexer na cor de seu cabelo, é só ali que ele vai mexer. O resto fica intocado.

Talvez a imposição de um limite que proibisse usar a imagem de pessoas verdadeiras fosse artificial. Afinal, modelos livres, que podemos instalar em nossos computadores pessoais, acabariam por permitir algo assim. Desse jeito, falsários seriam apenas os mal-intencionados com algum conhecimento técnico. Não quem quer a fantasia do beijo com a atriz ou do filho no Maraca. Talvez. Pois é.

Mas, por via das dúvidas, lembre que no ano que vem tem campanha eleitoral. Não acredite muito no que vê. Nem no que é bom, nem no que é ruim. Então no que acreditar? Nós, jornalistas, nos faremos a mesma pergunta o ano inteiro.

Processo contra Bolsonaro pode melhorar imagem do Brasil

É surpreendente como o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro é acompanhado com atenção no exterior. Amigos meus na Alemanha que pouco se interessam pelo Brasil me escrevem para dizer que admiram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva por ele desafiar o presidente dos EUA, Donald Trump, em vez de adotar uma postura submissa, como os líderes europeus.

O mesmo vale para o julgamento de Bolsonaro. Veículos de imprensa como a revista britânica The Economist dedicam várias páginas para explicar e detalhar o processo. A capa para as Américas da atual edição do semanário, O que o Brasil pode ensinar aos EUA, já diz tudo.

O jornal americano The Washington Post vê no julgamento de Bolsonaro e seus cúmplices até mesmo um ponto de virada histórico para o Brasil. Segundo o diário, é a primeira vez que os participantes de um golpe de Estado vão a julgamento no país. Além disso, acrescenta, a Justiça brasileira não se deixa intimidar por Trump e seus aliados das big techs.

É surpreendente como o Brasil soma pontos com democratas de todo o mundo por ter levado a julgamento um presidente que, como mostra a investigação, tentou se manter no poder por meio de uma revolta após ter perdido a eleição nas urnas.


Uma explicação para isso pode ser o fato de que, nos EUA, o maior modelo de democracia no mundo, isso não ocorreu. Ao contrário: lá há um presidente no poder (Trump) que tentou algo semelhante a Bolsonaro. Ambos tentaram mobilizar seus apoiadores para ameaçar a ordem constitucional e assim continuar no poder mesmo depois de perderem uma eleição.

Quem poderia imaginar que o Brasil um dia seria um modelo para os Estados Unidos devido ao respeito aos princípios democráticos?

Acho que isso é um enorme ganho de imagem para o Brasil que pode ter efeitos positivos duradouros. O que o Brasil está acumulando é soft power.

Soft power se baseia em poder de atração e de persuasão por meio da cultura, de valores ou da diplomacia, em oposição ao hard power, por meio do qual os países impõem seus interesses com violência ou coerção militar ou econômica.

Por décadas o Brasil foi a nação do soft power. Pessoas em todo o mundo amavam o Brasil por causa da cultura, da música, do estilo de vida, do futebol, da descontração e da natureza, e não por causa de sua reduzida força econômica ou militar.

Em 2010, isso começou a ir água abaixo. A corrupção nos governos do PT exposta pela Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff, a miséria econômica, as queimadas na Amazônia e depois Bolsonaro com sua política cínica e desumana, mas aprovada pela metade dos brasileiros.

Será que agora haverá uma reviravolta positiva – lá onde ninguém esperava? Num mundo onde a democracia perde força e influência, o Brasil segue exatamente o caminho oposto e fortalece sua democracia?

O efeito positivo desse novo soft power pode ser visto no dossiê da Economist, uma revista liberal que costuma ser cética e não otimista. Só que, diante das surpreendentes qualidades democráticas do Brasil, os jornalistas da revista estão convencidos de que a condenação de Bolsonaro terá efeitos políticos positivos.

A polarização da sociedade poderia diminuir, e o centro político seria fortalecido. Assim, mesmo os grandes desafios, como as reformas necessárias do Supremo Tribunal Federal, do Congresso e da economia e suas inúmeras subvenções, não seriam mais um problema.

Será que é o novo soft power brasileiro que deixa até mesmo a Economist tão otimista?

A crise geoeconômica e o risco de um novo caos

À medida que o farsesco, mercurial e imperial presidente Donald Trump e seu caricato e rústico seguidor Dudu Bananinha vão ocupando as manchetes dos jornais e tevês, menor tem sido o espaço da mídia para fazer análises serenas, objetivas e aprofundadas dos problemas estruturais nos campos da geoeconomia e da geopolítica.

As chantagens de Trump com base na diplomacia do porrete e as ameaças com base em palavrões feitas por Bananinha podem ter até algum interesse para leitores e telespectadores. Contudo, esse é um interesse passageiro, que tende a dar lugar a outros interesses não menos passageiros, limitando assim um conhecimento mais rigoroso e analítico da realidade atual pelos leitores e espectadores.


Essa realidade é marcada pela perda progressiva da hegemonia política e econômica americana e pela ascensão da China, seguida pela Índia e por outros países asiáticos. Também é afetada pelas mentiras de Trump, como sua afirmação de que os esforços de institucionalização do Brics (que sequer carta constitutiva ainda têm) “prejudicariam o dólar”. E implica em impasses para a continuidade do sistema de organizações multilaterais surgido após a Segunda Guerra Mundial, com criação do FMI, do Banco Mundial e da OMC, sob liderança dos Estados Unidos. Um desses impasses, por exemplo, foi a desorganização das redes mundiais de suprimento e tensões nas cadeias globais de valor durante a pandemia.

A partir daí, vários problemas foram surgindo durante a segunda metade da década de 2020, multiplicando tensões no âmbito de uma economia até então cada vez mais globalizada e que restringia a autonomia nacional no campo da política. No plano político-institucional, um desses problemas foi a queda do número de regimes democráticos liberais de 42 para 34 num total de 60 países, segundo relatório do Variety of Democracy de 2022. O relatório de 2025 foi ainda mais sombrio. Ao analisar 179 países, ele apontou que o número de autocracias chegou a 91, enquanto o número de democracias caiu para 88.

No plano econômico, destacam-se os efeitos causados pela desregulação sem responsabilização do capitalismo neoliberal, pela subsequente redução do tamanho das máquinas governamentais e pelo desmonte de alguns importantes mecanismos de controle sobre o processo decisório do Executivo. Já no plano social, a concentração de renda e o desprezo à desigualdade pelas forças de mercado cresceram significativamente. Na mesma linha, a exclusão e o empobrecimento decorrentes de políticas neoliberais corromperam a noção de direitos sociais mínimos, ao mesmo tempo em que também expandiram o alcance de um autoritarismo dissimulado que inviabilizou progressivamente as resistências das diferentes instâncias do sistema judicial, tornando mais difícil assim o controle do Estado.

Por fim, no plano político eclodiram vários problemas interconectados. Nesse sentido, merecem destaque (i) o impacto da pandemia sobre as cadeias globais de valor e, por consequência, sobre o multilateralismo político; (ii) a indiferença à tragédia e às minorias por governos de extrema direita; (iii) a disseminação da desinformação por políticos que mentem em torno das verdades que tentam esconder; (iv) a difusão de narrativas mentirosas por parte das big techs e das redes sociais; (v) a subsequente crise dos partidos social-democratas e a ascensão de agremiações de extrema direita e de movimentos populistas fascistas; e, por fim, (vi) a ação corrosiva de maiorias parlamentares ocasionais, abrindo caminho para um autoritarismo progressivo ao desmontar franquias democráticas por meio de projetos de lei ordinária votados às pressas e sem precisar alterar a Constituição.

Todas essas mudanças foram muito além de aumentar incertezas no mercado financeiro, deflagrar períodos de intensa volatilidade econômica e abrir caminho para governos voluntariosos, erráticos e truculentos, como o de Trump nos Estados Unidos, entre 2017 e 2021, e o de Bolsonaro no Brasil, entre 2019 e 2022. Acima de tudo, essas mudanças comprometem a ordem global que vigorou entre o final do século 20 e as duas primeiras décadas do século 21. No entanto, como ainda não há alternativas minimamente delineadas à vista, o que se pode esperar de uma reconfiguração global: o advento de um sistema multipolar ou um sistema multilateral redefinido?

Os resultados dessas mudanças foram – e continuam sendo – a desconfiança, a insegurança, a imprevisibilidade e a vulnerabilidade. Esse é o motivo pelo qual o recente uso deturpado da Lei Magnitsky causou incerteza nos mercados. Em vigor desde 2012, originariamente essa lei foi aprovada pelo Congresso americano com o objetivo de negar entrada nos Estados Unidos a indivíduos estrangeiros envolvidos com organizações terroristas, quadrilhas mafiosas, corrupção e violação de direitos humanos, e também de puni-los por meio de sanções como bloqueio de bens e fechamento de contas em qualquer banco que opere no território americano.

Contudo, desde que voltou à Casa Branca, Trump passou a aplicá-la de modo político e ideológico, com o objetivo de promover afrontas individuais, fragilizar instituições democráticas de outro país e inviabilizar transações feitas nos Estados Unidos por agências e filiais de instituições financeiras brasileiras que operam nesse país. Reforçando as iniciativas presidenciais, que atingem até mesmo magistrados de países que vivem há tempos em plena normalidade democrática, o Departamento de Estado divulgou recentemente nas redes sociais que “nenhum tribunal estrangeiro pode(ria) anular sanções impostas pelos Estados Unidos”.

Numa economia que está operacionalmente interligada pelo chamado Sistema Swift – uma rede mundial de comunicação entre instituições financeiras – e em que normas jurídicas de alcance extraterritorial cada vez mais se multiplicam, a ideia de que o direito de um país termina na fronteira nacional se tornou singela demais. Como a insegurança jurídica no sistema de pagamentos internacionais afeta a formalização de contratos, operações de câmbio, financiamentos, fluxos de capital e governança, foi justamente por isso que os bancos brasileiros registraram perda de R$ 41,9 bilhões em valor de mercado na segunda quinzena de agosto, um dia após um ministro do Supremo Tribunal Federal ter declarado “a impossibilidade de aplicação de ordens jurídicas estrangeiras sem trâmite específico no Brasil”.

Contudo, esse é só um dos lados da moeda – lado esse que também envolveu uma divulgação massiva nas redes sociais, por grupos bolsonaristas, de fake news destinadas a estimular uma corrida bancária no País. O outro lado é que, por causa da discussão sobre quem tem a última palavra com relação ao alcance da Lei Magnitsky no caso brasileiro, se o Supremo Tribunal Federal ou o Office of Foreign Assets Control, o aumento da insegurança e da imprevisibilidade poderá multiplicar a insegurança jurídica no País, abrindo caminho para mais impasses constitucionais e para mais tensões diplomáticas.

O maior risco dessa insegurança e da imprevisibilidade está em seu efeito cascata – e esse não é um risco só brasileiro. Ele pode, a um só tempo, minar sistemas políticos institucionalizados; enfraquecer democracias consolidadas; corroer estruturas administrativas hierarquizadas; e criar novos constrangimentos para o Supremo durante as sessões finais do julgamento de Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023.

Como afirmou o historiador israelense Yuval Harari, em sua recente passagem pelo Brasil, com a explosão de incertezas no decorrer da década de 2020 ficou claro que tão cedo não haverá uma nova ordem mundial, mas apenas “um novo caos”. Neste momento em que começa a etapa final do julgamento de Bolsonaro, é sobre isso que os meios de comunicação devem concentrar sua atenção, em vez de perder tempo com as falas ameaçadoras do mercurial presidente Trump e as bobagens ditas pelo filho bananinha do ex-presidente.

Anistia para golpistas é a consagração da impunidade

No primeiro dia do julgamento dos golpistas de dezembro de 2022 e de 8 de janeiro de 2023, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tirou a máscara e pôs o boné da anistia para Bolsonaro, seu ex-colega de farda. Para quem já pôs o boné de Donald Trump quando ele se reelegeu, nada demais. Para quem diz não acreditar na Justiça por tudo o que tem visto, é natural.

Tarcísio entende que a pacificação do país só será possível se Bolsonaro e os demais golpistas forem anistiados, e isso depende do Congresso onde a direita detém a maioria dos votos. É o contrário do que pensa Alexandre de Moraes, e com certeza 8 dos seus 11 pares. Os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça, nomeados por Bolsonaro, talvez pensem diferente.

“A História nos ensina que a impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação. Pois o caminho aparentemente mais fácil que é o da impunidade, que é o da omissão, deixa cicatrizes traumáticas na sociedade”, disse Moraes na abertura do julgamento. Paulo Gonet, Procurador-Geral da República, foi direto ao ponto:

“Quando o presidente da República e o ministro da Defesa se reúnem com comandantes militares, sob sua direção política e hierárquica, para consultá-los sobre a execução final do golpe, o golpe, ele mesmo, já está em curso de realização”.

Golpe, se consumado, não é apreciado pela Justiça. O que começou em 31 de março de 1964 e foi concluído com êxito em 1º de abril ditou suas próprias leis nos 21 anos seguintes. Sob pretexto de salvar o Brasil do comunismo, suprimiu a democracia, torturou e matou. Tentativa de golpe de Estado, essa, sim, deve ser apreciada pela Justiça para que não prevaleça a impunidade.

No país da jabuticaba, o nosso, a anistia, na maioria das vezes, foi usada para perdoar os criminosos, e não necessariamente para beneficiar suas vítimas. A anistia de 1979, que libertou presos políticos e permitiu a volta dos exilados, foi concebida antes de tudo para evitar a punição mais tarde dos autores de “crimes de sangue” – tortura, assassinatos e desaparecimentos.

Não sei se Tarcísio, engenheiro militar por formação, é um estudioso de História, e se gosta de ler livros. Bolsonaro não gosta, como ele mesmo já confessou. Na mesa de cabeceira de sua cama no Palácio da Alvorada, repousava, intocável, o livro de memórias do coronel torturador Brilhante Ulstra. Ele invocou o coronel ao votar a favor do impeachment de Dilma.

Foi uma das cenas mais repugnantes jamais vista, nem mesmo no período da ditadura militar. Se o Congresso tivesse punido Bolsonaro à época, ele talvez tivesse aprendido alguma coisa com isso. Se não, sua carreira política não teria sido tão longa, culminando com a eleição para presidente, a derrota para Lula e a tentativa de golpe. Ou melhor: as tentativas, porque foram várias.

Se não for pedir muito, Tarcísio deveria debruçar-se sobre a trajetória de Bolsonaro para não a repetir – seja por admiração irrefletida, engano ou ignorância.
Ricardo Noblat