quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O grande mudo quebra o silêncio

Ao contrário do seu antecessor, o general Eduardo Villas Bôas, que gostava de falar e que pelo menos uma vez pressionou o Supremo Tribunal Federal para que negasse habeas corpus pedido por Lula, o general Edson Leal Pujol pôs uma trava na língua desde janeiro passado quando assumiu o comando do Exército.

Em julho, baixou uma norma para frear o ativismo político de soldados e oficiais nas redes sociais. Vinculou suas manifestações ao que está “fielmente prescrito no Estatuto dos Militares e no Regulamento Disciplinar do Exército”. E para dar o bom exemplo, fechou suas contas no Twitter e no Facebook.

Quando o presidente francês Emmanuel Macron criticou o governo brasileiro por causa das queimadas na Amazônia, e Villas Bôas, agora como assessor do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República, falou em “ameaça de guerra”, Pujol tirou por menos. Disse à saída de uma visita ao Congresso:

– A França é um país de tradição de liberdade e de democracia. Certamente não há motivos para nós nos sentirmos ameaçados.


Pois bem: às vésperas de mais um aniversário da Proclamação da República, o mudo voltou a falar. Numa curta ordem do dia com apenas sete parágrafos, valeu-se três vezes da palavra “profissão” ou “profissionalismo” para caracterizar e exaltar a missão do Exército.

[…] foi com o advento da República que o Exército atingiu sua maioridade institucional, assim entendida como a afirmação de seu profissionalismo, requisito indispensável para manter-se à altura da estatura político-estratégica da Nação.

[…] Com efeito, a juventude militar não aristocrática formada na Praia Vermelha após a Guerra do Paraguai, adepta da meritocracia e empolgada pelo cientificismo positivista, via na monarquia um anacronismo a retardar a modernização do Brasil e, consequentemente, a profissionalização do Exército.

[…] Mediante a assimilação de atributos, tais como organização, articulação, planejamento estratégico, doutrina, ensino, instrução, treinamento, serviço militar, política de pessoal e liderança, essenciais ao profissionalismo de uma força armada, o Exército se consolidaria como genuína instituição republicana, síntese da nacionalidade.

E concluiu:

Transcorridos 130 anos de experiência republicana, os integrantes do Exército de hoje encontram-se empenhados em um processo de transformação com vistas à obtenção de novas capacidades para o cumprimento de renovadas missões. Mas mantém o compromisso legado pelas gerações passadas, calcado no culto à liberdade e à democracia e no amor à Pátria, o que confere ao Exército os mais altos índices de credibilidade junto à Nação brasileira.

Supremo guardião das finanças

O ministro Dias Toffoli deveria ser o maior guardião da legalidade e da segurança jurídica no Brasil. Infelizmente, a opção parece ser sempre pelo autoritarismo e pelo abuso 
Alessandro Vieira (senador, Cidadania), autor da CPI da Lava Toga revelando que Toffoli requisitou dados de movimentações financeiras de 600 mil cidadãos e empresas, no âmbito do processo em que ele suspendeu todas as investigações baseadas em relatórios do antigo Coaf e da Receita Federal

No canto da foto

Quando apareceu a sigla Brics, em 2006, pensava-se na redistribuição do poder global para além das potências como Estados Unidos e o bloco europeu. Avaliava-se o novo peso e importância dos “mercados emergentes” ali representados, mas dentro da ordem vigente. De fato, a redistribuição de poder ocorreu e está avançando, mas não pelo que os Brics fizeram como “bloco” de atuação, e não da forma benigna como se imaginava.

É interessante notar que a ênfase recente nos encontros dos líderes do Brics tem sido na cooperação tecnológica e comercial entre eles mesmos, e menos nas fascinantes questões geopolíticas. Nem poderia ser diferente: no retrato dos cinco reunidos em Brasília estão três países (China, Índia e Rússia) centrais na luta atual pela redistribuição de poder global, cada vez mais conflituosa, e dois (África do Sul e Brasil) que jogam na periferia.

Cada um por si, China e Rússia são as grandes forças revisionistas que contribuíram decisivamente para liquidar a “paz profunda” internacional do período de 25 anos que começou em 1989 com a queda do Muro de Berlin e terminou em 2014 com a anexação da Crimeia por Moscou. As posturas agressivas dos “revisionistas”, com forte conteúdo nacionalista, sugerem uma continuidade entre o mundo da Guerra Fria (de 1946 a 1989) e o mundo que ressurge depois desses 25 anos de “paz profunda”, período já batizado de “pós-Guerra Fria”.


Assim como no mundo da Guerra Fria, no atual predomina a acirrada competição entre as principais potências por aumentar sua segurança. No período que se inicia em 2014 as potências voltam a conduzir as relações entre si sob a perspectiva de eventual conflito armado. Ou seja, após um período de pouca competição por segurança as relações internacionais se parecem de novo com o que sempre aconteceu.

Os “revisionistas” enxergam os Estados Unidos como bem menos formidável, sobretudo depois da grave crise financeira de 2008. Na Europa e na Ásia (e, recentemente, no Oriente Médio), Rússia e China foram testando os limites e a solidez das alianças até aqui conduzidas pelos americanos, cada vez mais desafiados abertamente (de certa maneira, Trump os ajudou). Não que a relação entre China e Rússia seja tranquila – ou entre Índia e China –, mas eles convergem na contestação de dois pilares da ordem americana dos últimos 70 anos: um conjunto de regras internacionais e a defesa da democracia como valor universal.

É nesse mundo multipolar muito mais perigoso, instável e imprevisível que África do Sul e Brasil têm de encontrar como fincar o pé. A África do Sul enfrenta competição da China por influência na sua própria área de atuação mais próxima. Além dessa, divide com o Brasil outra característica: o grau da crise doméstica, que parece fazer com que esses dois gigantes do Hemisfério Sul olhem apenas para dentro de si mesmos.

No caso do Brasil, a perda de importância e liderança regional registrada sobretudo a partir do segundo mandato de Dilma – agravando a estapafúrdia ideia do confronto “Norte-Sul” – ficou clara em todos os episódios recentes de turbulência e confusão entre os vizinhos, sobre os quais a antiga influência brasileira praticamente deixou de existir. Putin parece ter mais peso sobre o que acontece na Venezuela do que o Brasil.

Na foto do jogo do qual participam os integrantes do Brics o Brasil aparece no cantinho. Não é palco, parte ou tem atuação decisiva em qualquer dos principais conflitos que estão redistribuindo o poder global. Frases de efeito em redes sociais ou “alinhamento automático” que o próprio governo sugere em relação a Washington não são pilares de política externa. O Brasil não só corre atrás da liderança perdida: diante da velocidade das mudanças lá fora, parece ainda perdido na busca de seu papel.

A política caolha do Brasil

As democracias contemporâneas enfrentam uma situação paradoxal. De um lado, para garantir o bem-estar da sociedade, elas precisam lidar com vários direitos legítimos e tentar compatibilizá-los. É uma tarefa muito difícil, sem um fim ou uma conciliação completa, mas que é inescapável, se se quer construir uma sociedade justa e equilibrada. Só que, por outro lado, há cada vez mais cidadãos e atores políticos que procuram um caminho único para resolver os dilemas coletivos. Centra-se o foco apenas num aspecto em detrimentos dos demais. Assim, em vez de se basear em múltiplos olhares, esse modelo mental opta pelo modo caolho de se fazer política.

O modo caolho constrói diagnósticos e prognósticos unilaterais, apostando que um aspecto é mais importante e determina os demais. É um jogo da economia versus a política, ou dos políticos contra os tecnocratas, da vitória do mercado sobre o Estado, ou de um governo que prescinde da lógica mercadológica. A essa lista, o bolsonarismo incluiu mais uma dicotomia estéril: a dos direitos em contraposição aos deveres. Neste caso, num país tão desigual como o nosso, temo que apenas mais “deveres” aos que têm menos vai significar mais “direitos” aos que têm mais.

A complexidade das sociedades atuais deveria afastar políticos e gestores governamentais de soluções de tipo caolho. Embora não haja uma causa única para os levantes e crises que têm assolado vários países, pode-se perceber que a população quer desfrutar de múltiplos objetivos. Ela deseja estabilidade econômica, melhor saúde e educação, uma velhice digna, mais segurança, mobilidade urbana, redução de burocracias que atrapalham a vida pessoal ou dos negócios, proteção ao meio ambiente etc.

Responder a tantas demandas, não cansarei de repetir aqui, não é simples; contudo, se políticos e gestores públicos procurarem ver o mundo por mais de uma lente e não forem caolhos, pelo menos haverá maior capacidade de evitar ou reduzir os efeitos de crises sociais. Os governos fracassam quando concentram sua visão em somente um aspecto ou lógica de organizar a vida social


O Brasil apresenta exemplos recentes do modo caolho de se pensar a política. As três PECs enviadas recentemente pelo ministro Paulo Guedes está recheada de excessos de economicismos. Pegue-se o caso da proposta de colocar no texto constitucional um adendo à definição dos direitos sociais dos brasileiros. Junto com os direitos à saúde, educação, alimentação, moradia, transporte, entre os principais, quer se acrescentar que tais temas devam se sujeitar “ao direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”.

Num país com várias histórias de descalabro fiscal, ter um modelo de finanças públicas sadio é sempre um avanço. Para isso existem reformas como a da Previdência, a tributária, a administrativa e tudo que possa, ao mesmo tempo, garantir as bases fiscais do Estado e o fornecimento de bons serviços públicos. Todavia, começa-se a se desconfiar dessa sugestão de reforma constitucional quando se vê que, ao lado dela, propõe-se juntar os percentuais de gastos obrigatórios de saúde e educação num mesmo montante.

No fundo, está se tentando inverter a lógica proposta pela Constituição de 1988, com um nítido desequilíbrio em favor dos meios contra os fins. Claro que o Brasil precisa melhorar a eficiência e a efetividade das políticas de saúde e educação, mas, para tanto, é preciso que elas sejam prioridades efetivas, porque as próximas gerações, como as anteriores dos extratos mais pobres, dependem de oportunidades criadas pelos governos para poderem ter alguma chance no mercado.

O temor aqui é que, em nome da crítica aos erros dos últimos 30 anos (e eles ocorreram), voltemos ao mundo pré-redemocratização, quando praticamente não havia atenção primária à saúde e mais de um terço das crianças de 7 a 14 anos estavam fora da escola.

A forma caolha da equipe econômica enxergar o Brasil começa quando Paulo Guedes diz que vai acabar com a modelo social democrata para colocar um paradigma completamente oposto, de perfil liberal, no lugar. O Estado brasileiro tem problemas, precisa ser reformado, mas houve muitos avanços no país. Quando se quer afirmar um liberalismo puro como única saída, o país pode perder as conquistas e aprendizados em troca por algo incerto, o qual, na melhor das hipóteses, poderá resolver alguns erros, mas que, ao jogar a criança fora junto com a água do banho, poderá levar a retrocessos sociais.

Ter um olhar múltiplo é compatibilizar melhor esses objetivos fiscais e sociais, e evidentemente o pacotão Guedes, mesmo propondo algumas coisas corretas, está desbalanceado. Afinal, se é para garantir direitos intergeracionais, expressão que dá um tom mais nobre ao pensamento econômico, porque não colocar numa reforma tão ampla do Estado que qualquer nova política pública econômica ou de infraestrutura deve garantir o direito intergeracional de meus netos poderem ter um meio ambiente protegido e a cultura ancestral dos povos indígenas resguardada?

Pode parecer provocação diversionista essa questão, mas quando o ministro Guedes diz que vai modernizar nosso país, deveria contar ao seu chefe maior que a economia brasileira vai fracassar no futuro se não se ancorar também em preocupações ambientais e de direitos humanos. Isso é o que os principais centros econômicos de pesquisa do mundo estão dizendo. Se não tivermos direitos intergeracionais mais amplos, o modelo bolsonarista de reforma do Estado é atrasado no tempo.

Esse economicismo fora de época aparece ainda na proposta de redução dos municípios com até cinco mil habitantes e arrecadação própria menor que 10% da receita total. Quase um quarto das cidades brasileiras estão nesta situação. É bem verdade que houve um crescimento enorme do contingente de governos municipais pós-1988, fenômeno que diminuiu de intensidade após a aprovação da Emenda Constitucional nº 15, de 1996. Só que o governo só olha a dimensão financeira do problema, que é importante obviamente, sem analisar outras duas esferas essenciais: o efeito na produção de cidadania e na qualidade da prestação de serviços públicos.

Juntar mais de mil municípios com seus vizinhos poderá significar que em muitos deles haverá a redução da possibilidade de participação política dos seus cidadãos. Seria muito mais interessante limitar o pagamento de vereadores em micromunicípios do que extingui-los, pois junto com a morte dessas cidades decretada por Bolsonaro vai para o túmulo o que se conseguiu, mesmo que seja pouco, de democracia em tais localidades historicamente marcadas pelo mandonismo local.

Se o objetivo é melhorar a qualidade dos políticas locais e, ao mesmo tempo, aumentar a eficiência, a solução já existe, sem contraindicações políticas ou administrativas: os governos federal e estaduais deveriam incentivar a cooperação intermunicipal em larga escala, disseminando as experiências bem-sucedidas de consórcios de saúde e de desenvolvimento econômico, bem como os arranjos de desenvolvimento da educação. Isso não precisa de reforma constitucional e junta o útil (o aspecto financeiro) ao agradável e essencial (a prestação de bons serviços públicos). Para tanto, basta deixar de lado o modo caolho do economicismo.

O governo Bolsonaro erra ao traduzir federalismo como descentralização, quando ele é mais do que isso, pois sua essência, sobretudo em países desiguais, está nas relações intergovernamentais. Neste sentido, o maior problema dos governos locais está em sua baixa capacidade estatal de produzir políticas públicas. Acabei de ajudar a organizar, pela Editora da FGV, um livro sobre esse tema nos países ibero-americanos e, a partir dos dados empíricos, posso dizer que sem melhorar as capacidades estatais subnacionais brasileiras, poderemos ter, com a reforma Guedes, municípios saneados com serviços públicos precários e sem efetividade. Aqui, a cooperação com os governos federal e estaduais, assim como dimensões regionais do federalismo, são peças-chave para garantir boas prefeituras e a cidadania no Brasil.

A dificuldade de se abandonar o modo caolho tem como base a busca de identidade grupal e partidária como algo mais importante do que a construção de consensos. Isso gera algo mais do que polarização.

Esse comportamento resulta em um ambiente político nocivo e políticas públicas piores. É bom lembrar que se Fernando Henrique e Lula, durante 16 anos, tiveram mais sucesso do que seus sucessores, uma das principais razões disso está no fato de que procuraram construir coalizões de ideias e interesses maiores do que seu grupo original. De lá para cá, o sectarismo tem vencido, com resultados nefastos.

É preciso dizer que o país só se reconstruirá se superar o modo caolho de se fazer política, adotando um modelo mais incrementalista, plural e negociador de se pensar o país. Bolsonaro, Lula, Dória, Ciro, Huck, quem quer que seja nosso líder maior, só conseguirá governar melhor se conversar com os demais atores e construir uma governança com múltiplos olhares.
Fernando Abrucio

Relaxe


Novo partido é opção lamentável e desnecessária

Jair Bolsonaro decidiu criar um novo partido. Divulgou-se um manifesto. Anota que a Aliança pelo Brasil, nome da nova legenda, "é o sonho e a inspiração de pessoas leais ao presidente Jair Bolsonaro de unir o país com aliados em ideais e intenções patrióticas". O documento afirma também que o partido tem como objetivo "o resgate de um país massacrado pela corrupção e pela degradação moral contra as boas práticas e os bons costumes".

Simultaneamente, discute-se a hipótese de entregar a presidência do partido ao senador Flávio Bolsonaro. Ele leva para a nova legenda o rastro pegajoso do processo em que é tratado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro como suspeito de peculato e lavagem de dinheiro. Junto com Flávio vai aos quadros da nova legenda a assombração do PM Fabrício Queiroz e seus vínculos com a milícia carioca.

Quer dizer: não deve ser levada a sério a parte do manifesto que fala em resgatar "um país massacrado pela corrupção e pela degradação moral". Restou o trecho que menciona "o sonho e a inspiração de pessoas leais ao presidente Jair Bolsonaro". Trata-se, portanto, de uma iniciativa personalista. O nome mais adequato para a legenda seria PC —não de Partido Comunista, mas de Partido do Capitão.

A aposta é lamentável e desnecessária. É lamentável porque já existem 32 partidos no Brasil. Eles têm em comum o fato de que são execrados pela sociedade. Se Bolsonaro for bem sucedido haverá 33 legendas no caldeirão. A iniciativa é desnecessária porque o capitão aposta que terá o mesmo êxito que obteve em 2018. Isso só vai acontecer se houver no Brasil desemprego baixo e geladeira cheia. Nessa hipótese, Bolsonaro se reelegeria por qualquer partido. Mas não será perdendo tempo com a criação de uma legenda hipoteticamente nova que Bolsonaro atingirá a prosperidade.

Cascavel arrependida

Você (deputado “príncipe” Luiz Philippe de Orleans e Bragança) deveria ter sido meu vice, e não esse Mourão aí. Eu casei, casei errado. E agora não tem mais como voltar atrás
Jair Bolsonaro

A onda de ataques que opõe indígenas a caçadores ilegais no território com mais povos isolados do país

A escalada de ataques à base de Proteção Etnoambiental Ituí-Itacoaí da Fundação Nacional do Índio (Funai), na Terra Indígena Vale do Javari, no oeste do Amazonas, está colocando em xeque o trabalho de proteção da área com o maior número de etnias em isolamento voluntário do país.

Desde setembro, quatro ataques foram registrados ao posto de controle, segundo funcionários do órgão, que é responsável por monitorar e fiscalizar os territórios indígenas. Em um ano, entre novembro de 2018 e este mês, foram oito ataques contra a base — o maior número desde a demarcação, em 1998.

Apenas no primeiro fim de semana deste mês, a base foi atacada duas vezes. As agressões são atribuídas a pescadores e caçadores ilegais, no momento em que saíam da terra indígena após terem entrado sem autorização, segundo funcionários da Funai que acompanham as investigações.

Servidores e colaboradores das quatro bases da Funai instaladas na segunda maior terra indígena do país afirmam que vão paralisar as operações de controle e fiscalização da entrada e saída do território. Eles pedem que o governo federal envie forças de segurança, como disseram à BBC News Brasil pessoas ligadas às Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE).

Guarita da base flutuante de fiscalização da Funai no rio Ituí-Itacoaí
Sem essas operações, o acesso à terra indígena fica aberto para qualquer pessoa — caçadores, pescadores, garimpeiros e madeireiros terão menos dificuldades para entrar no território.

Os indígenas temem ainda que ataques ainda mais violentos possam ocorrer e, por isso, se articulam para assumirem eles mesmos a defesa dos postos.

O governo federal, por sua vez, depois de colocar em dúvida a veracidade dos ataques, não respondeu até o momento à solicitação dos funcionários da Funai por segurança.

Documentos da Funai e relatos de pessoas ligadas à FPE obtidos pela BBC News Brasil mostram que o clima entre os servidores é de revolta em relação à falta de proteção, e de receio de que em algum momento uma bala atinja um funcionário. Por meio de documentos internos enviados à presidência do órgão, os servidores vêm pedindo segurança desde o final do ano passado, quando começaram os ataques à base Ituí-Itacoaí.

Essa base é visada por ser a porta de entrada mais próxima para o Vale do Javari, área procurada pelos caçadores ilegais por causa da riqueza dessa região, pouco estudada e bem preservada.

Servidores e colaboradores relatam que não há condições para prosseguir com o trabalho de campo. Com o corte de verbas promovido neste ano na Funai, o apoio logístico vem sendo comprometido, com servidores excedendo o tempo de serviço em campo por falta de transporte. Nas circulares internas, eles pedem à direção do órgão que consiga agentes da polícia, Exército ou Força Nacional de maneira permanente.

Na noite da última quinta-feira (07/11), a juíza federal Jaíza Maria Pinto acatou ação do Ministério Público Federal contra a União e a Funai e ordenou que o governo "preste imediato apoio operacional às entradas em campo de suas próprias equipes da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari". Também determinou que o órgão deve "alocar recursos materiais e orçamentários para garantir o apoio das atividades por no mínimo seis meses".

A decisão da juíza não estipula prazos e nem penalidades caso a ordem não seja cumprida. A PF e o Ministério da Justiça, que coordena a Força Nacional, não responderam às solicitações da reportagem para comentar a decisão.

A ordem judicial não alterou a postura de servidores e colaboradores das frentes de proteção. Apesar de a decisão judicial ser bem-vinda, os funcionários têm dúvidas se ela fará com que as forças de segurança atuem permanentemente no Vale do Javari.

A situação de insegurança ainda preocupa, uma vez que não houve sinalização às bases, por parte da direção da Funai, sobre o tema. Com isso, os planos de paralisação estão mantidos.

Para além dos ataques, a sensação de confronto se intensifica na região. No mês passado, um pescador foi baleado próximo de uma das aldeias do povo Korubo. O revide veio duas semanas depois, quando dois adolescentes dessa etnia foram atacados por pescadores.
Ataques a tiros

Na madrugada de primeiro de novembro, oito homens em um canoão (canoa de 12 metros usada pelos pescadores e caçadores) dispararam na base quando um colaborador indígena apontou o holofote para a embarcação, procedimento usado para iniciar a averiguação.

Dois dias depois, outros três homens usaram o mesmo modus operandi: atirar contra a base ao menor sinal de reação. Ninguém ficou ferido.

Em outubro, o presidente substituto da Funai Alcir Teixeira esteve na região e tratou os relatos de ataques feitos pelos funcionários — que se acumulam desde o final do ano passado — como suposições. Os casos estão sendo apurados pela Polícia Federal de Tabatinga, na tríplice fronteira com Colômbia e Peru.

Questionada sobre o andamento dos trabalhos, a PF não respondeu às perguntas. A presidência da Funai, que em agosto soltou memorando interno vetando os funcionários de falarem com a imprensa, também não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem ao longo da semana passada.

O Ministério Público afirma que entrou com o pedido na Justiça por se tratar de uma questão que "vem se alongando e crescendo". No pedido acatado pela Justiça, o MP diz que a segurança dos povos indígenas de recente contato e isolados do Vale do Javari está em risco e "com alto potencial de ocorrência de genocídio".
As suspeitas

As investigações apontam que os ataques partem de pescadores e caçadores ilegais de Atalaia do Norte (AM) financiados sobretudo por grupos de contrabandistas de animais de Tabatinga (AM) e Benjamin Constant (AM), as duas maiores cidades da região, a 1.100 quilômetros de Manaus. Os animais são vendidos para compradores brasileiros, peruanos e colombianos.

Atalaia do Norte, com 15 mil habitantes e terceiro menor IDH do Brasil, é o município mais próximo da confluência entre rios Ituí e Itacoaí, na entrada do Vale do Javari. A junção dos dois rios foi a primeira a receber uma base de proteção por sua localização estratégica, ainda em 1996, no processo de estabelecimento de contato com o povo Korubo.

Não é de hoje que se trata de uma região conflagrada. Em 2000, um grupo de cerca de 300 pescadores autodenominados de Movimento dos Sem Rio, de Atalaia do Norte e Benjamin Constant, atacou a base do Ituí-Itacoaí e a sede da Funai em Atalaia do Norte com coquetéis molotov.

Houve confronto e troca tiros com servidores do órgão indigenista e fiscais do Ibama, conforme noticiou na época o jornal amazonense A Crítica . A homologação da Terra Indígena em 2001 culminou em um processo que retirou, mediante indenização, a população não indígena do Vale do Javari — pessoas que chegaram à região no começo do século 20, na esteira do primeiro ciclo da borracha.

Uma parte delas se estabeleceu em Atalaia do Norte depois da homologação e, a partir daí, o confronto entre indígenas e não indígenas, antes frequentes, tornaram-se esporádicos. No fim do ano passado, as disputas voltaram a ocorrer.

Liderança tradicional do Vale do Javari e que participou do processo de demarcação, Clóvis Marubo afirma que as atividades ilegais no território aumentaram, após o início do governo de Jair Bolsonaro. Segundo ele, cortes de servidores e o contingenciamento de recursos têm "empoderado os invasores", o que preocupa os indígenas da região.

Divulgada na última quarta-feira, uma carta aberta dos servidores das onze FPEs vai no mesmo sentido.

Há poucos servidores nas quatro bases do Javari (nos rios Ituí-Itacoaí, Jandiatuba, Quixito e Curuçá) e, segundo colaboradores, falta insumos para a manutenção do controle do acesso ao território onde vivem os povos Marubo, Matís, Mayoruna, Kanamari, Kulina e os de recente contato Tyohom Djapá e Korubo.

Há ainda outros dez subgrupos isolados confirmados e mais quatro em estudo, neste território do tamanho de Portugal. "O enfraquecimento dessas bases e a falta de respostas do governo está muito preocupante. Sempre houve invasões, mas agora estão crescendo e rapidamente por causa da falta de fiscalização. O território nunca esteve tão descoberto e isso pode levar a um conflito maior. Uma vez que os indígenas se certifiquem que o Estado não está protegendo o território, eles vão cuidar da própria segurança", diz Marubo.
Confrontos

Entre servidores e colaboradores da frente de proteção fala-se em uma "tragédia anunciada". Sinais de confrontos se acumulam, como quando, em meados de outubro, o pescador foi baleado e deu entrada no hospital de Atalaia do Norte. A versão corrente no povoado é que ele foi ferido quando pescava perto de uma das aldeias do povo Korubo. Duas semanas depois, houve o ataque aos dois adolescentes Korubos, atacados por pescadores enquanto pescavam em uma lagoa.

A primeira das quatro aldeias Korubo está a 30 minutos de barco da base do Ituí-Itacoaí. Na avaliação de Conrado Otávio, coordenador do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) que trabalha no Vale do Javari desde 2004, há risco iminente para essas populações. "Você vai somando os pontos e percebe que esses povos estão desprotegidos. Nunca houve esse despudor de agressão e intimidação a servidores e indígenas, isso de atirar diretamente contra eles. Dada a vulnerabilidade dos povos indígenas, sobretudo dos isolados, os riscos são muitos grandes", diz Otávio.

Pirarucu, tracajá, queixada e anta são os animais mais procurados pelos pescadores e caçadores. Enquanto um tracajá é vendido por pelo menos R$ 100, um pirarucu ainda jovem não é vendido por menos de R$ 1 mil na região. Pela extensão e dificuldade de navegação nos rios do Vale do Javari, cada expedição, que costuma contar com entre 6 e 8 homens, precisa toda a capacidade de carga da canoa para ser lucrativa.

Já a Associação dos Pescadores de Atalaia do Norte afirma tentar organizar os pescadores que praticam o manejo legal - algumas famílias ribeirinhas - nos lagos em volta da Terra Indígena. No entanto, esses lugares já foram muito explorados e não são suficientes para a demanda externa, sobretudo peruana e colombiana. Por isso, segundo colaboradores das FPE, parte dos ribeirinhos que saíram do território indígena na época da demarcação, ficaram sem o sustento e passaram a recorrer a atividades ilegais. A associação tenta conter a entrada de pescadores e caçadores de outras regiões, mas sem sucesso.

Investigações apontam que o assassinato do colaborador da Funai Maxciel dos Santos Pereira, no início de setembro, tem relação com essa economia ilegal. Maxciel passeava com a família na principal avenida de Tabatinga quando foi baleado. Meses antes, ele havia organizado uma operação que apreendeu grande quantidade de pesca e caça ilegal. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal.

Outro fator que aumenta a pressão no Vale do Javari é o fato de que muitos dos pescadores e caçadores viviam na terra indígena antes da demarcação. "Eles sabem onde está a fartura e é justamente próximo das nossas aldeias, porque não fazemos uso comercial da selva. Mas tem sido tanta a caça e a pesca que já está afetando a nossa comida", afirma Varney Thoda Kanamari, vice-coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Kanamari espera que o governo reforce as bases de proteção no Javari para coibir os invasores. Caso os servidores e colaboradores da Funai mantenham o plano de paralisar as atividades na semana que vem, ele afirma que Kanamari, Matsés, Matís e Mayoruna estão se organizando para criar um grupo que ocupe esses lugares.

"Espero que não chegue a esse ponto, mas, se acontecer, nós vamos lá, como voluntários mesmo e sem receber nada para fazer uma barreira de proteção. Vamos gerir nós mesmos essa situação, porque, se não, vão entrar muito mais invasores", diz.

Partidos sem sentido

O Brasil tem 32 organizações para fins comerciais, chamadas partidos políticos. Ou 31 ½, se considerarmos que o presidente Jair Bolsonaro está abandonando o PSL, pelo qual se elegeu, levando 20, digamos, correligionários, com os quais ameaça fundar um novo partido. Como Bolsonaro se diz um cortador de gastos, essa decisão é dúbia. Partidos vivem do dinheiro público. Não seria mais econômico aderir a um dos outros 31 com cujo “programa” se identificasse? Mas, como não fará isso, a única explicação é que, para Bolsonaro, todos os partidos brasileiros são umas porcarias.


E devem ser mesmo, considerando-se que, em sua apagada carreira de 29 anos na Câmara dos Deputados, ele passou por oito deles —pouco mais de três anos em cada um. Ou não gostou de nenhum ou nenhum gostou dele. Talvez Bolsonaro simplesmente não goste de partidos políticos e acredite que, com ele à frente de um Executivo forte, para que partidos, para que política? Combina com seu asco pela democracia —a mesma que lhe serve para fazer sua inconstitucional pregação liberticida.

Lula, por sua vez, nunca saiu do PT, partido que fundou e comanda há 40 anos. Mas isso também não quer dizer muito porque, até hoje, ele não quis formar um só membro capaz de, um dia, sucedê-lo, conduzir suas bandeiras ou apenas ser seu reserva. A prova é que, durante sua temporada em Curitiba, o PT quase se extinguiu, por falta de programa, de lideranças e dos velhos dinheiros escusos. E, agora, o último mote que lhe restava, o “Lula livre”, perdeu a razão de ser.

O novo partido de Bolsonaro não passará de uma marca de fantasia dele próprio, a existir apenas enquanto o chefe achar conveniente. Quanto ao PT, pode-se marcar até a data de sua extinção: o dia seguinte ao do desaparecimento de Lula.

O fato é que Bolsonaro e Lula não precisam mais de partidos. Só precisam —e desesperadamente— um do outro.
Ruy Castro

A cultura humilhada e relegada ao Ministério do Turismo

No turbilhão de notícias políticas que agitam o Brasil, passou despercebida a grave decisão do presidente Jair Bolsonaro de relegar a cultura ao Ministério de Turismo. Assim que este Governo nasceu, percebeu-se imediatamente que a rica cultura brasileira seria a gata borralheira que não interessava a ninguém.

O primeiro Governo já nasceu com a cultura sem a categoria de ministério. Primeiro, foi abandonada no Ministério da Cidadania. Ali tampouco parece ter interessado, e agora Bolsonaro acaba de aprisioná-la no Ministério do Turismo. Será que a cultura mete tanto medo, ou é um caso de desprezo por algo que se considera inútil?

Quando comecei aqui como correspondente deste jornal, da sede em Madri me pediam apenas temas culturais. A política lhes interessava menos. Meu primeiro artigo, dos milhares que já escrevi sobre este país, foi sobre um novo disco de Chico Buarque que acabava de sair. O Brasil interessava à Espanha, no início dos anos 2000, principalmente por seu despertar cultural.


A pergunta que deve ser feita é por que existe esse medo da cultura. Talvez porque ela, em todos os seus aspectos, do artístico ao literário, seja um poderoso instrumento de libertação. A cultura nos conscientiza da riqueza de dar vida a algo novo e inesperado. É sempre uma explosão de vitalidade no nível pessoal e coletivo. Os países mais cultos são também os mais livres e com melhor qualidade de vida.

A cultura não pode ser vista como algo que se refere apenas a uma elite. A cultura é música, é arquitetura, é poesia, é tudo o que o ser humano é capaz de expressar de mais positivo. É o fruto de tudo que nasce. A cultura nos torna não só mais livres, como também mais pacíficos, mais acolhedores do novo, mais abertos ao diálogo e mais afastados da violência. A cultura traz sempre os gérmens de uma revolução latente para ampliar os horizontes da vida. Assusta os intolerantes porque cria novos espaços de felicidade, de prazer do espírito e até da carne.

A cultura cria democracia, abre as asas do pensamento positivo. Assim a enxergava o grande poeta brasileiro Ferreira Gullar, quando afirmava: “Não quero ter razão, quero ser feliz”. A incultura, a vulgaridade e a intolerância se refletem na linguagem. Com a força e sutileza da poesia de Gullar, contrasta, por exemplo, a linguagem dos exacerbados do bolsonarismo: “O Jair [Bolsonaro] tinha que dar uma porrada nesse filho da puta”, afirma Fabrício Queiroz em uma gravação, referindo-se ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A incultura degrada até a linguagem, uma das maiores invenções do ser humano. E é a falta dela que arrasta para a violência que nasce verbal e acaba em morte.

O conceito de cultura vai além da arte e de sua fruição, ela sempre foi associada à civilização e ao progresso. O contrário da cultura é a barbárie, a degradação dos melhores valores da humanidade. A etimologia da palavra cultura, do latim, evoca o cultivo da terra. É a que cria os frutos, e por isso sempre esteve relacionada com a vida, com tudo o que surge de novo, não com a morte. A cultura amedronta quem aposta na violência e na morte, no lado negativo das coisas e não na criação. Isso influencia hoje os regimes políticos autoritários, negativos, de confronto, nos quais diálogo é sacrificado no altar das intolerâncias. Todos os autoritarismos da história desprezaram a cultura porque lhes dava medo. Ela é incompatível, em todos os seus aspectos, com quem aposta em políticas de morte. Todos os nazismos e fascismos acabaram queimando livros, amordaçando a expressão e o pensamento e humilhando a cultura.

Um dos sintomas de que no Brasil, e não só aqui, está nascendo a incultura da morte em vez da vida, da intolerância em vez do diálogo, é esse desprezo pela cultura que chegou ao cúmulo de sujar com insultos vulgares a maior atriz deste país, a nonagenária Fernanda Montenegro. Todo isso porque, além de uma grande artista, sempre foi uma defensora das liberdades.

Sim, nada reflete melhor do que a afirmação do poeta Gullar, a quem a incultura da intolerância forçou ao exílio, que sempre é preferível ter felicidade a querer ter razão a qualquer custo. Um governo que despreza e até combate a força vital da cultura, cedo ou tarde está fadado ao fracasso, já que tentar matar essa força criativa é como querer eliminar a própria vida. Ou, como dizia o outro grande poeta brasileiro, Manuel de Barros, “é como querer carregar água em uma peneira”. Podem erguer muros de intolerância. Será inútil. Já vi plantas nascerem entre as rachaduras do cimento.

Os cultivadores de morte se esquecem de que nem as grades da prisão nem as torturas nem os exílios forçados serão capazes de matar esse instinto de vida e felicidade que caracteriza aos humanos. Foi no exílio na Argentina que Gullar escreveu seus melhores versos em Poema Sujo. Queiram ou não, todos os governos castradores e perseguidores da cultura acabarão derrotados pela força vital do instinto de vida daqueles que se recusam a ser escravos.