segunda-feira, 23 de setembro de 2024
Urgências que colocam o país em risco
Entre os grandes problemas atuais, o primeiríssimo da lista é a questão ambiental e climática. A resolução dela é essencial para evitarmos uma destruição enorme de nossas estruturas econômicas e sociais
Países que não enfrentam urgências severas podem pagar um custo muito alto. E não se trata apenas dos efeitos mais imediatos, capazes de matar pessoas, como na pandemia de covid-19, ou gerar recessão e perda de empregos. Algumas questões prementes têm consequências temporais mais longas.
O Brasil tem hoje temas urgentes a enfrentar que podem piorar as condições de curto e de longo prazo. Se a sociedade não se mexer para tirar a classe política do modo tartaruga ou avestruz de ser, teremos uma década muito difícil pela frente, com perdas que afetarão fortemente a qualidade de vida dos cidadãos.
A procrastinação das urgências é uma marca da história brasileira. A abolição da escravatura é o melhor exemplo. O país tinha sido colonizado por um padrão escravocrata que gerara uma sociedade muito desigual, embebida na barbárie. O patriarca da Independência, José Bonifácio, já propusera em 1823 o fim gradual da escravidão, que teria terminado, se sua proposta tivesse sido aceita, na década de 1850.
Mas o fim desse modelo bárbaro só se deu em 1888, quase 40 anos depois do que imaginava o membro mais ilustrado da elite brasileira. E assim o Brasil foi o último país ocidental a sair da lista infame dos que escravizavam pessoas, com efeitos terríveis no curto prazo de então e consequências nefastas até hoje.
A resolução da questão educacional passou por um processo ainda mais longo de procrastinação. Embora a primeira legislação (Lei da Instrução Pública) seja de 1827, o acesso e a permanência das crianças pobres na escola só foi efetivamente garantida depois da Constituição de 1988!
Durante mais de 160 anos, a imensa maioria da população infantil não teve suas oportunidades educacionais garantidas, gerando uma desigualdade profunda. Ou não havia vagas e infraestrutura escolar por perto ou então, e da forma mais relevante depois da Segunda Guerra Mundial, o processo pedagógico fora montado para expulsar os estudantes mais pobres dos níveis mais altos de escolarização, com taxas de repetência e distorção idade-série gigantescas, colocando o Brasil entre os líderes no fracasso escolar pelo mundo.
Ao perder o acesso às oportunidades educacionais, a grande maioria da população tinha menos chance de ascensão social. Por décadas o Brasil reproduziu essa enorme desigualdade em termos de formação escolar, com efeitos para os que viviam aquilo e para seus filhos, netos e bisnetos.
Começamos a mudar esse cenário recentemente, mas ainda há uma longa lista de urgências no campo da educação, como o investimento na primeira infância e a transformação do ensino médio numa alavanca para o desenvolvimento dos jovens.
Apesar desse triste legado, em alguns momentos o Brasil soube lidar satisfatoriamente com as urgências. Assim foi com o trabalho liderado por Oswaldo Cruz no combate à febre amarela, que reduziu drasticamente a doença num curto período de tempo, produziu reformas sanitárias e gerou uma geração brilhante de cientistas, pais fundadores do sanitarismo moderno cujo filho mais dileto é o SUS, um marco civilizatório para o país.
Vargas também soube na década de 1930 criar um novo padrão de desenvolvimento de que o país precisava urgentemente, acima de tudo para tirar a nação do ruralismo arcaico e oligárquico. Contra a República Velha, a ação varguista foi essencial para a industrialização e urbanização do país. Além disso, foram criadas as bases de uma administração pública moderna, mesmo que em apenas algumas parcelas do governo federal, mas que geraram sementes para outras transformações no Estado brasileiro no século XX.
Nem toda a modernização varguista foi perfeita, pois havia incompletudes e fragilidades em seu projeto, como a ausência de um projeto educacional e seu modus operandi autoritário, depois copiado pelos militares no poder. No entanto, para os desafios daquela época, Vargas foi um grande reformador.
No período mais recente, é possível destacar dois eventos em que o sentido de urgência venceu a letargia e produziu transformações positivas. Um foi o Plano Real, que, aprendendo com o fracasso das iniciativas anteriores, gerou uma enorme mudança no padrão inflacionário do país e plantou, ao longo de alguns anos, reformas que têm garantido uma estabilidade econômica inédita na história do Brasil. Ainda há tarefas importantes no front econômico, mas sem esse passo estaríamos tal qual a Argentina de hoje, com um novo populista - no caso, extremista autoritário - tentando corrigir os erros anteriores dos populistas peronistas.
O outro exemplo é o da Constituição de 1988, que propôs um novo modelo civilizatório baseado nos direitos dos cidadãos. Deu-se um sentido de urgência ao combate das desigualdades e à construção da democracia, tarefas postergadas por quase toda a história brasileira.
Desse pacto constitucional emergiram várias reformas durante três décadas, com melhorias evidentes na vida da população. Entretanto, a realidade mudou bastante e novos (e enormes) desafios têm surgido. Só que o ímpeto reformista da redemocratização perdeu o fôlego.
O Brasil precisa recuperar o sentido de urgência frente a alguns temas para não perder o rumo da história. Entre os grandes problemas atuais, quatro se destacam pelo tremendo impacto que podem causar hoje e no futuro da sociedade brasileira. O primeiríssimo da lista é a questão ambiental e climática. A resolução dela é essencial para evitarmos uma destruição enorme de nossas estruturas econômicas e sociais. Não haverá agronegócio sem equacionarmos tal problema, bem como teremos menos águas para consumo humano, uma qualidade do ar insuportável e perda irreparável da fauna e da flora. Em suma, trocaremos a riqueza de nossa diversidade territorial pelo cenário distópico dos desastres sem fim.
Muitos chamariam esse cenário de fantasioso antes de o Brasil se transformar numa grande labareda que se espalhou por grande parte do território nacional. A necessidade de uma autoridade climática é para ontem e sua urgência deve vencer tanto os negacionistas e os que só pensam em manter seu modo arcaico de produzir riqueza, quanto os que acham que o desenvolvimento industrial e energético do século XX tem algum futuro.
A segunda urgência que assombra o Brasil atual é a do crescimento do poder e da influência do crime organizado. Quando as pesquisas constatam que os eleitores das capitais consideram a segurança pública o seu maior problema, candidatos apresentam soluções tópicas para reduzir a sensação de medo da população.
Muitas dessas propostas não estão erradas em si, mas elas contornam a causa maior da violência urbana: são grupos organizados, com franca entrada em setores estatais, que produzem os crimes em larga escala. E para manterem essa força, as facções criminosas têm entrado na política eleitoral, inclusive apoiando candidatos em grandes cidades. Será que estamos próximos de ter um Al Capone governando alguma capital brasileira?
A ação conjugada de todos os entes federativos, o investimento maciço em inteligência policial, a profissionalização de todas as organizações da segurança pública, a transformação do sistema penal e penitenciário para que ele não seja um combustível para termos mais criminosos, entre os pontos principais, são tarefas fundamentais. Mas tais reformas precisam de lideranças e de consensos mobilizadores, sem os quais o crime organizado continuará aumentando seus tentáculos.
O enfrentamento de qualquer urgência depende da melhoria da efetividade das políticas públicas. Está aqui um terceiro ponto que não tem merecido a atenção devida. Pensa-se em geral a reforma administrativa como corte de custos, o que pode ser até um dos objetivos. A tarefa maior, contudo, é melhorar o desempenho do Estado brasileiro. Além do mais, é preciso atuar em temáticas que não estão no topo das prioridades da agenda pública. O crescimento do eleitorado que apoia propostas extremistas e/ou exóticas será tanto maior quanto menos avançarmos na gestão pública.
Entra aqui a urgência das urgências, pois é o pontapé inicial para a mudança: a democracia brasileira tem sido garantida pelas instituições e pelos atores políticos, porém tornou-se fracamente reformista num cenário de grandes desafios.
Boa parte da classe política precisa ser retirada de seu mundo paralelo e ensimesmado, cheio de recursos públicos e formas de proteção frente aos controles social ou institucional, lidando com os problemas efetivos do país pela combinação do modo tartaruga com o comportamento avestruz.
Na verdade, esse é um retrato que capta mais a arena congressual e dos partidos. No caso do Executivo federal, falta uma combinação de inovação, ousadia e poder para lidar com o seu novo lugar no presidencialismo de coalizão. Daí que a mola que poderia alterar essa situação está na organização da sociedade. O problema é que ela está cada vez mais fragmentada e seus grupos organizados têm, em geral, dificuldades hoje de apresentar uma visão mais global que ultrapasse os seus interesse imediatos.
De todo modo, o sentido de urgência precisa ser recuperado para garantir não só um futuro melhor, como evitar a perda das conquistas dos últimos 30 anos. Seria preciso recuperar a conexão entre uma sociedade civil, no sentido que havia na redemocratização, com a classe política. Tarefa muito complexa, mas que já não pode ser mais adiada.
Fernando Abrucio
Países que não enfrentam urgências severas podem pagar um custo muito alto. E não se trata apenas dos efeitos mais imediatos, capazes de matar pessoas, como na pandemia de covid-19, ou gerar recessão e perda de empregos. Algumas questões prementes têm consequências temporais mais longas.
O Brasil tem hoje temas urgentes a enfrentar que podem piorar as condições de curto e de longo prazo. Se a sociedade não se mexer para tirar a classe política do modo tartaruga ou avestruz de ser, teremos uma década muito difícil pela frente, com perdas que afetarão fortemente a qualidade de vida dos cidadãos.
A procrastinação das urgências é uma marca da história brasileira. A abolição da escravatura é o melhor exemplo. O país tinha sido colonizado por um padrão escravocrata que gerara uma sociedade muito desigual, embebida na barbárie. O patriarca da Independência, José Bonifácio, já propusera em 1823 o fim gradual da escravidão, que teria terminado, se sua proposta tivesse sido aceita, na década de 1850.
Mas o fim desse modelo bárbaro só se deu em 1888, quase 40 anos depois do que imaginava o membro mais ilustrado da elite brasileira. E assim o Brasil foi o último país ocidental a sair da lista infame dos que escravizavam pessoas, com efeitos terríveis no curto prazo de então e consequências nefastas até hoje.
A resolução da questão educacional passou por um processo ainda mais longo de procrastinação. Embora a primeira legislação (Lei da Instrução Pública) seja de 1827, o acesso e a permanência das crianças pobres na escola só foi efetivamente garantida depois da Constituição de 1988!
Durante mais de 160 anos, a imensa maioria da população infantil não teve suas oportunidades educacionais garantidas, gerando uma desigualdade profunda. Ou não havia vagas e infraestrutura escolar por perto ou então, e da forma mais relevante depois da Segunda Guerra Mundial, o processo pedagógico fora montado para expulsar os estudantes mais pobres dos níveis mais altos de escolarização, com taxas de repetência e distorção idade-série gigantescas, colocando o Brasil entre os líderes no fracasso escolar pelo mundo.
Ao perder o acesso às oportunidades educacionais, a grande maioria da população tinha menos chance de ascensão social. Por décadas o Brasil reproduziu essa enorme desigualdade em termos de formação escolar, com efeitos para os que viviam aquilo e para seus filhos, netos e bisnetos.
Começamos a mudar esse cenário recentemente, mas ainda há uma longa lista de urgências no campo da educação, como o investimento na primeira infância e a transformação do ensino médio numa alavanca para o desenvolvimento dos jovens.
Apesar desse triste legado, em alguns momentos o Brasil soube lidar satisfatoriamente com as urgências. Assim foi com o trabalho liderado por Oswaldo Cruz no combate à febre amarela, que reduziu drasticamente a doença num curto período de tempo, produziu reformas sanitárias e gerou uma geração brilhante de cientistas, pais fundadores do sanitarismo moderno cujo filho mais dileto é o SUS, um marco civilizatório para o país.
Vargas também soube na década de 1930 criar um novo padrão de desenvolvimento de que o país precisava urgentemente, acima de tudo para tirar a nação do ruralismo arcaico e oligárquico. Contra a República Velha, a ação varguista foi essencial para a industrialização e urbanização do país. Além disso, foram criadas as bases de uma administração pública moderna, mesmo que em apenas algumas parcelas do governo federal, mas que geraram sementes para outras transformações no Estado brasileiro no século XX.
Nem toda a modernização varguista foi perfeita, pois havia incompletudes e fragilidades em seu projeto, como a ausência de um projeto educacional e seu modus operandi autoritário, depois copiado pelos militares no poder. No entanto, para os desafios daquela época, Vargas foi um grande reformador.
No período mais recente, é possível destacar dois eventos em que o sentido de urgência venceu a letargia e produziu transformações positivas. Um foi o Plano Real, que, aprendendo com o fracasso das iniciativas anteriores, gerou uma enorme mudança no padrão inflacionário do país e plantou, ao longo de alguns anos, reformas que têm garantido uma estabilidade econômica inédita na história do Brasil. Ainda há tarefas importantes no front econômico, mas sem esse passo estaríamos tal qual a Argentina de hoje, com um novo populista - no caso, extremista autoritário - tentando corrigir os erros anteriores dos populistas peronistas.
O outro exemplo é o da Constituição de 1988, que propôs um novo modelo civilizatório baseado nos direitos dos cidadãos. Deu-se um sentido de urgência ao combate das desigualdades e à construção da democracia, tarefas postergadas por quase toda a história brasileira.
Desse pacto constitucional emergiram várias reformas durante três décadas, com melhorias evidentes na vida da população. Entretanto, a realidade mudou bastante e novos (e enormes) desafios têm surgido. Só que o ímpeto reformista da redemocratização perdeu o fôlego.
O Brasil precisa recuperar o sentido de urgência frente a alguns temas para não perder o rumo da história. Entre os grandes problemas atuais, quatro se destacam pelo tremendo impacto que podem causar hoje e no futuro da sociedade brasileira. O primeiríssimo da lista é a questão ambiental e climática. A resolução dela é essencial para evitarmos uma destruição enorme de nossas estruturas econômicas e sociais. Não haverá agronegócio sem equacionarmos tal problema, bem como teremos menos águas para consumo humano, uma qualidade do ar insuportável e perda irreparável da fauna e da flora. Em suma, trocaremos a riqueza de nossa diversidade territorial pelo cenário distópico dos desastres sem fim.
Muitos chamariam esse cenário de fantasioso antes de o Brasil se transformar numa grande labareda que se espalhou por grande parte do território nacional. A necessidade de uma autoridade climática é para ontem e sua urgência deve vencer tanto os negacionistas e os que só pensam em manter seu modo arcaico de produzir riqueza, quanto os que acham que o desenvolvimento industrial e energético do século XX tem algum futuro.
A segunda urgência que assombra o Brasil atual é a do crescimento do poder e da influência do crime organizado. Quando as pesquisas constatam que os eleitores das capitais consideram a segurança pública o seu maior problema, candidatos apresentam soluções tópicas para reduzir a sensação de medo da população.
Muitas dessas propostas não estão erradas em si, mas elas contornam a causa maior da violência urbana: são grupos organizados, com franca entrada em setores estatais, que produzem os crimes em larga escala. E para manterem essa força, as facções criminosas têm entrado na política eleitoral, inclusive apoiando candidatos em grandes cidades. Será que estamos próximos de ter um Al Capone governando alguma capital brasileira?
A ação conjugada de todos os entes federativos, o investimento maciço em inteligência policial, a profissionalização de todas as organizações da segurança pública, a transformação do sistema penal e penitenciário para que ele não seja um combustível para termos mais criminosos, entre os pontos principais, são tarefas fundamentais. Mas tais reformas precisam de lideranças e de consensos mobilizadores, sem os quais o crime organizado continuará aumentando seus tentáculos.
O enfrentamento de qualquer urgência depende da melhoria da efetividade das políticas públicas. Está aqui um terceiro ponto que não tem merecido a atenção devida. Pensa-se em geral a reforma administrativa como corte de custos, o que pode ser até um dos objetivos. A tarefa maior, contudo, é melhorar o desempenho do Estado brasileiro. Além do mais, é preciso atuar em temáticas que não estão no topo das prioridades da agenda pública. O crescimento do eleitorado que apoia propostas extremistas e/ou exóticas será tanto maior quanto menos avançarmos na gestão pública.
Entra aqui a urgência das urgências, pois é o pontapé inicial para a mudança: a democracia brasileira tem sido garantida pelas instituições e pelos atores políticos, porém tornou-se fracamente reformista num cenário de grandes desafios.
Boa parte da classe política precisa ser retirada de seu mundo paralelo e ensimesmado, cheio de recursos públicos e formas de proteção frente aos controles social ou institucional, lidando com os problemas efetivos do país pela combinação do modo tartaruga com o comportamento avestruz.
Na verdade, esse é um retrato que capta mais a arena congressual e dos partidos. No caso do Executivo federal, falta uma combinação de inovação, ousadia e poder para lidar com o seu novo lugar no presidencialismo de coalizão. Daí que a mola que poderia alterar essa situação está na organização da sociedade. O problema é que ela está cada vez mais fragmentada e seus grupos organizados têm, em geral, dificuldades hoje de apresentar uma visão mais global que ultrapasse os seus interesse imediatos.
De todo modo, o sentido de urgência precisa ser recuperado para garantir não só um futuro melhor, como evitar a perda das conquistas dos últimos 30 anos. Seria preciso recuperar a conexão entre uma sociedade civil, no sentido que havia na redemocratização, com a classe política. Tarefa muito complexa, mas que já não pode ser mais adiada.
Fernando Abrucio
Brasil, a terra do nunca
O governo Lula liberou mais de R$ 900 milhões – R$ 513 milhões extra-orçamento e outros R$ 400 milhões via BNDES – para combater os incêndios que impactam 60% do país, consumindo parte da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado. Antes tarde do que nunca. O problema é que no Brasil tudo é tardio e, mesmo quando as “emergências” são previamente anunciadas, as ações beiram o nunca. Vale para o fogo e a seca, para chuvas torrenciais. Não existem planos A, B, nem com qualquer letra, só corre-corre e improviso. Nem agora, nem em governo algum.
A urgência governamental induzida pelo ministro do STF, Flávio Dino, que, bancando o chefe-maior do Executivo, primeiro puxou a orelha de Lula e dias depois autorizou gastos extraordinários, em uma coreografia que parece ter sido bem ensaiada, atiçou a República. Sobrevoo do presidente a áreas devastadas, reuniões entre os três poderes e de governadores, decreto e medida provisória. Ao fim e ao cabo, o dinheiro liberado agora só deverá chegar na ponta depois das chuvas. E o arrocho nas punições a ateadores de fogo previsto no decreto assinado por Lula na sexta-feira corre o risco de ter o mesmo destino das leis em vigor, que existem para não serem cumpridas.
Sob Lula, o desmatamento amazônico despencou 63% em 2023, mas as multas, embora tenham crescido mais de 200%, não tiveram um único centavo arrecadado. Dados do Ibama apontam que entre 2019 e 2022 foram aplicadas R$ 50 milhões em multas ambientais só no estado do Amazonas, e todas, absolutamente todas, prescreveram. No Acre, outros R$ 24 milhões em multas jamais foram executados. Isso porque a legislação prevê que infrações ambientais – pasmem – prescrevem em três anos quando não há procedimentos de apuração. Basta um corpo mole da investigação que nada acontece. E, como se vê, não acontece mesmo.
Pior: quem agride o ambiente, desmata e queima, continua recebendo crédito rural, com juros de pai para filho. Levantamento realizado pelo Greenpeace aponta que 2.261 propriedades rurais beneficiadas com empréstimos oficiais estão sob embargo ambiental, sendo o Banco do Brasil o maior financiador, seguido pelos Bancos da Amazônia e do Nordeste – todas instituições públicas.
Há pouco mais de dois anos, o ex Jair Bolsonaro disse que a floresta amazônica não pegava fogo. À época, queria se livrar das críticas pelo desastre ambiental patrocinado pelo seu governo. Estava certo na frase – a floresta úmida não incendeia -, mas sob a sua proteção o desmatamento cresceu 150%, criando corredores secos na mata úmida, tornando-a mais suscetível ao fogo.
Para domesticar e manter o agronegócio no cabresto, Bolsonaro alardeava ter reduzido as “multagens (sic) ambientais em 80%”; não havia aberto concursos para o Ibama e o ICMBio, e tinha revogado, com orgulho, mais de cinco mil normas reguladoras ambientais. Eram as porteiras abertas para a boiada, como defendeu seu ministro do meio-ambiente Ricardo Salles. Previsível, o jeito criminoso de agir nesta e em outras tantas questões já havia ficado claro quando ele demitiu o fiscal do Ibama que o multara anos antes por pesca ilegal.
Com um ex assim, Lula poderia ter nadado de braçada. Mas fraquejou. Atraiu o brilho de Marina Silva, respeitada em todos os fóruns mundiais, mas evitou fortalecê-la internamente. Já nos primeiros tempos de governo, a ministra teve seu poder esvaziado pelo Parlamento e pelo PT, partido do presidente. Lula não atendeu aos apelos do Ibama por mais funcionários, não se mobilizou quanto à redução da fiscalização, não correu atrás de recompor o ICMBio que Bolsonaro desmontou. Apostou – e ainda aposta – na exploração de petróleo na margem equatorial, contra as argumentações técnicas do Ibama. Mais: não deu atenção aos alertas de que a seca viria. E com ela, mais fogo.
Cabe aqui um depoimento pessoal. Em junho, naveguei no belíssimo Rio Negro por quatro dias. Todos eram unânimes em dizer que a seca nos meses seguintes seria ainda mais severa do que em 2023, quando a região já havia sofrido um bocado. As marcas nos troncos das árvores gigantescas nos igarapés já mostravam metros de baixa. Era possível antecipar o inferno e saber que muitas comunidades ribeirinhas ficariam sem comunicação, sem água e comida. No mínimo, daria para evitar o amargor dessas populações, pelo menos estocar alimentos e água potável.
O costume de o país alocar recursos para cobrir “urgências anunciadas” define um presente meia-boca e um futuro sombrio. No Rio Grande do Sul, os recursos emergenciais já se foram e parte significativa da infraestrutura do estado ainda está em frangalhos, com prazos de até dois anos para ser concluída. Muitas das pessoas que perderam tudo continuam sem ver o dia seguinte.
Nas regiões incendiadas do país as providências limitam-se a recursos para apagar o fogo da vez e punir quem atiçar chamas. Ninguém fala no próximo ano, muito menos na obrigatória recuperação das áreas devastadas, o que dificilmente acontecerá. Fazê-lo exigiria planejamento, mão de obra especializada e muito dinheiro, recursos que os orçamentos da União e dos estados nem pensam em prever. Aqui reside o nunca, que, ao contrário do dito popular, quase sempre acompanha o que tarda.
A urgência governamental induzida pelo ministro do STF, Flávio Dino, que, bancando o chefe-maior do Executivo, primeiro puxou a orelha de Lula e dias depois autorizou gastos extraordinários, em uma coreografia que parece ter sido bem ensaiada, atiçou a República. Sobrevoo do presidente a áreas devastadas, reuniões entre os três poderes e de governadores, decreto e medida provisória. Ao fim e ao cabo, o dinheiro liberado agora só deverá chegar na ponta depois das chuvas. E o arrocho nas punições a ateadores de fogo previsto no decreto assinado por Lula na sexta-feira corre o risco de ter o mesmo destino das leis em vigor, que existem para não serem cumpridas.
Sob Lula, o desmatamento amazônico despencou 63% em 2023, mas as multas, embora tenham crescido mais de 200%, não tiveram um único centavo arrecadado. Dados do Ibama apontam que entre 2019 e 2022 foram aplicadas R$ 50 milhões em multas ambientais só no estado do Amazonas, e todas, absolutamente todas, prescreveram. No Acre, outros R$ 24 milhões em multas jamais foram executados. Isso porque a legislação prevê que infrações ambientais – pasmem – prescrevem em três anos quando não há procedimentos de apuração. Basta um corpo mole da investigação que nada acontece. E, como se vê, não acontece mesmo.
Pior: quem agride o ambiente, desmata e queima, continua recebendo crédito rural, com juros de pai para filho. Levantamento realizado pelo Greenpeace aponta que 2.261 propriedades rurais beneficiadas com empréstimos oficiais estão sob embargo ambiental, sendo o Banco do Brasil o maior financiador, seguido pelos Bancos da Amazônia e do Nordeste – todas instituições públicas.
Há pouco mais de dois anos, o ex Jair Bolsonaro disse que a floresta amazônica não pegava fogo. À época, queria se livrar das críticas pelo desastre ambiental patrocinado pelo seu governo. Estava certo na frase – a floresta úmida não incendeia -, mas sob a sua proteção o desmatamento cresceu 150%, criando corredores secos na mata úmida, tornando-a mais suscetível ao fogo.
Para domesticar e manter o agronegócio no cabresto, Bolsonaro alardeava ter reduzido as “multagens (sic) ambientais em 80%”; não havia aberto concursos para o Ibama e o ICMBio, e tinha revogado, com orgulho, mais de cinco mil normas reguladoras ambientais. Eram as porteiras abertas para a boiada, como defendeu seu ministro do meio-ambiente Ricardo Salles. Previsível, o jeito criminoso de agir nesta e em outras tantas questões já havia ficado claro quando ele demitiu o fiscal do Ibama que o multara anos antes por pesca ilegal.
Com um ex assim, Lula poderia ter nadado de braçada. Mas fraquejou. Atraiu o brilho de Marina Silva, respeitada em todos os fóruns mundiais, mas evitou fortalecê-la internamente. Já nos primeiros tempos de governo, a ministra teve seu poder esvaziado pelo Parlamento e pelo PT, partido do presidente. Lula não atendeu aos apelos do Ibama por mais funcionários, não se mobilizou quanto à redução da fiscalização, não correu atrás de recompor o ICMBio que Bolsonaro desmontou. Apostou – e ainda aposta – na exploração de petróleo na margem equatorial, contra as argumentações técnicas do Ibama. Mais: não deu atenção aos alertas de que a seca viria. E com ela, mais fogo.
Cabe aqui um depoimento pessoal. Em junho, naveguei no belíssimo Rio Negro por quatro dias. Todos eram unânimes em dizer que a seca nos meses seguintes seria ainda mais severa do que em 2023, quando a região já havia sofrido um bocado. As marcas nos troncos das árvores gigantescas nos igarapés já mostravam metros de baixa. Era possível antecipar o inferno e saber que muitas comunidades ribeirinhas ficariam sem comunicação, sem água e comida. No mínimo, daria para evitar o amargor dessas populações, pelo menos estocar alimentos e água potável.
O costume de o país alocar recursos para cobrir “urgências anunciadas” define um presente meia-boca e um futuro sombrio. No Rio Grande do Sul, os recursos emergenciais já se foram e parte significativa da infraestrutura do estado ainda está em frangalhos, com prazos de até dois anos para ser concluída. Muitas das pessoas que perderam tudo continuam sem ver o dia seguinte.
Nas regiões incendiadas do país as providências limitam-se a recursos para apagar o fogo da vez e punir quem atiçar chamas. Ninguém fala no próximo ano, muito menos na obrigatória recuperação das áreas devastadas, o que dificilmente acontecerá. Fazê-lo exigiria planejamento, mão de obra especializada e muito dinheiro, recursos que os orçamentos da União e dos estados nem pensam em prever. Aqui reside o nunca, que, ao contrário do dito popular, quase sempre acompanha o que tarda.
A hora e a vez do Estado-bandido
O fato de 61 candidatos em 44 cidades do país portarem tornozeleiras eletrônicas e terem mandados de prisão em aberto é sintoma de uma mutação nas relações sociais em que a criminalidade passa por novas inflexões de natureza moral. O crime, parece, começa a ganhar legitimidade. Não só entre nós: nos EUA, vários estados têm leis que descriminalizam furtos de baixo valor. Em Nova York, o comércio já tranca vitrines.
Lá, tenta-se evitar a superlotação das prisões por ladrões de bens considerados essenciais, aqui o fenômeno pertence à mafialização da vida social. Algo começa a ferir o princípio do Estado liberal, cujo modelo francês é o "État-gendarme", Estado mínimo, restrito às funções de Exército, Justiça e polícia, portanto, de manutenção inflexível do status-quo burguês. A prática sempre velou para que a Justiça visasse com prioridade as classes subalternas.
A fúria contra quem rouba um simples pão é tipificada no clássico "Os Miseráveis", de Victor Hugo, sobre a perseguição implacável de Jean Valjean pelo inspetor Javert. Desdobra-se na consciência em um ânimo punitivo com visão geralmente toldada para os grandes criminosos, porém, muito aguçada para os menores, que afetam em cheio a vida privada.
Em princípio, não existe um "État-bandit", mas autoridades sempre compactuaram com criminosos. Às vezes, em busca de equilíbrio na violência pública, outras, por motivos escusos. Disso é ilustrativa a história da máfia americana, que registra pactos secretos com figuras dos Poderes. Ou a da russa, que ajudou a montar a cleptocracia de Putin, o homem mais rico do mundo, um Don Corleone de quilate global.
A flexibilização da repressão antifurto nos EUA contempla o descompasso entre a macroeconomia e a vida concreta, preços altíssimos. Não é o caso do Brasil, onde em data recente um juiz do Supremo manteve a pena da mulher que havia furtado um tubo de pasta de dente. Admirador de Javert, talvez. Mas aqui se trata mesmo da infiltração do crime em todas as instâncias dos Poderes: ministros suspeitos, bancadas parlamentares cancerígenas. E segurança interna ameaçada por máfias nacionais, como PCC e Comando Vermelho.
O Rio é vitrine do descontrole: massacres, tiroteios diários, drones de guerra. Expropria-se celular, carro, moto (39 por dia) e o bronze da memória da cidade. Roubam-se desde macacos do Jardim Botânico até britadeira de operário em construção na rua.
Mafialização é o fenômeno, que contamina moralmente a cidadania nacional. Não só infiltração no Estado, porém, em estado nascente, anestesia coletiva para absorção psicossocial e banalização do delito. De insensibilidade à violência, até a tomada de cargos públicos por malfeitores. Governabilidade virou álibi para pacto com o crime. A própria linguagem dos políticos lembra o jargão do submundo.
Toda sociabilidade tem caracterizações psíquicas inerentes às regulações morais das instituições. Habituar-se ao crime é anomalia, senão mutação nas formas de associação estabelecidas. Na ausência de uma política antitética à mafialização pode estar sendo gestado um Estado-bandido. Daí o sábio temor de Oscar Niemayer: "Hoje eu vejo, tristemente, que Brasília nunca deveria ter sido projetada em forma de avião, mas sim de camburão".
Lá, tenta-se evitar a superlotação das prisões por ladrões de bens considerados essenciais, aqui o fenômeno pertence à mafialização da vida social. Algo começa a ferir o princípio do Estado liberal, cujo modelo francês é o "État-gendarme", Estado mínimo, restrito às funções de Exército, Justiça e polícia, portanto, de manutenção inflexível do status-quo burguês. A prática sempre velou para que a Justiça visasse com prioridade as classes subalternas.
A fúria contra quem rouba um simples pão é tipificada no clássico "Os Miseráveis", de Victor Hugo, sobre a perseguição implacável de Jean Valjean pelo inspetor Javert. Desdobra-se na consciência em um ânimo punitivo com visão geralmente toldada para os grandes criminosos, porém, muito aguçada para os menores, que afetam em cheio a vida privada.
Em princípio, não existe um "État-bandit", mas autoridades sempre compactuaram com criminosos. Às vezes, em busca de equilíbrio na violência pública, outras, por motivos escusos. Disso é ilustrativa a história da máfia americana, que registra pactos secretos com figuras dos Poderes. Ou a da russa, que ajudou a montar a cleptocracia de Putin, o homem mais rico do mundo, um Don Corleone de quilate global.
A flexibilização da repressão antifurto nos EUA contempla o descompasso entre a macroeconomia e a vida concreta, preços altíssimos. Não é o caso do Brasil, onde em data recente um juiz do Supremo manteve a pena da mulher que havia furtado um tubo de pasta de dente. Admirador de Javert, talvez. Mas aqui se trata mesmo da infiltração do crime em todas as instâncias dos Poderes: ministros suspeitos, bancadas parlamentares cancerígenas. E segurança interna ameaçada por máfias nacionais, como PCC e Comando Vermelho.
O Rio é vitrine do descontrole: massacres, tiroteios diários, drones de guerra. Expropria-se celular, carro, moto (39 por dia) e o bronze da memória da cidade. Roubam-se desde macacos do Jardim Botânico até britadeira de operário em construção na rua.
Mafialização é o fenômeno, que contamina moralmente a cidadania nacional. Não só infiltração no Estado, porém, em estado nascente, anestesia coletiva para absorção psicossocial e banalização do delito. De insensibilidade à violência, até a tomada de cargos públicos por malfeitores. Governabilidade virou álibi para pacto com o crime. A própria linguagem dos políticos lembra o jargão do submundo.
Toda sociabilidade tem caracterizações psíquicas inerentes às regulações morais das instituições. Habituar-se ao crime é anomalia, senão mutação nas formas de associação estabelecidas. Na ausência de uma política antitética à mafialização pode estar sendo gestado um Estado-bandido. Daí o sábio temor de Oscar Niemayer: "Hoje eu vejo, tristemente, que Brasília nunca deveria ter sido projetada em forma de avião, mas sim de camburão".
Brasil prisioneiro de velhos enredos
Na semana em que Brasília foi sufocada pela fumaça das queimadas, um indígena foi morto no Mato Grosso do Sul. Os dois fatos estão ligados pelo fio da História. O Brasil há 524 anos comete os crimes com os quais foi inaugurado: queima a floresta e mata os indígenas. A morte de Neri Kaiowá foi no dia 18, mas a tensão havia aumentado por vários dias. Na semana anterior, o Cardeal Leonardo Steiner e a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha estavam lá, quando uma barreira de viaturas da Polícia Militar cercou os indígenas. Na véspera, três pessoas haviam sido feridas. Uma delas, uma mulher guarani teve seu joelho atingido por arma de fogo.
Em Brasília, um incêndio consumiu quase três mil hectares na Floresta Nacional, uma preciosa e bela unidade de conservação do Cerrado.O fogo que se alastra pelo Brasil é deliberado. Há 85 inquéritos abertos na Polícia Federal, mas pouco se sabe das motivações e dos criminosos. Quem esteve em Brasília sofreu nos olhos, no nariz, no pulmão, na garganta o peso da fumaça dos crimes ambientais que atingiram as reservas. Elas são oásis em pontos estratégicos de uma cidade que precisa desesperadamente de água e árvores.
Os três mil Guarani Kaiowá, da terra indígena Nhanderu Marangatu, vivem uma história que é a cara do Brasil, nos seus piores momentos. A terra já foi demarcada. Foi homologada por um decreto presidencial de 2005, mas o então ministro Nelson Jobim concedeu aos fazendeiros uma liminar, num mandado de segurança, suspendendo os efeitos do decreto, mas não o decreto em si. Vinte anos não bastaram para que o STF decidisse. Recentemente a Fazenda Barra, que se sobrepõe a um pedaço da terra indígena, entrou com uma ação em Ponta Porã e o juiz determinou que a Polícia Militar fizesse a segurança da propriedade. PM fazendo segurança privada. O pior é como essa ordem está sendo cumprida, explica a defensora pública Daniele Osório.
– Antônio João é uma pequena cidade na fronteira do Brasil com o Paraguai, a 400 quilômetros de Campo Grande. Deslocaram na semana passada um efetivo enorme, com ônibus, caminhão, com tropa de choque. Pagando diária para policial, alimentação, hospedagem, gasolina para as viaturas. É muito fora do comum. Eles cercaram a Fazenda Barra e todas as vias de acesso à fazenda. Qual é o problema? As estradas vicinais são onde os indígenas circulam ao andarem entre as aldeias — diz a defensora pública.
A Comissão Arns estava lá, em Antônio João, no dia 13. Na verdade, integrava uma missão, da qual participava também Dom Leonardo Steiner, presidente do Conselho Indigenista Missionário, que estava indo acudir outra crise dos Guarani Kaiowá, na TI Panambi, em Douradina. Tiveram que mudar a rota ao saber daquele primeiro ataque com feridos na TI Nhanderu Marangatu. Viajaram com a proteção de duas viaturas da Força Nacional. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha conta o que viu:
– Estava armado um cenário de guerra. Dom Leonardo trocou a sua vestimenta pelos paramentos de cardeal. E assistimos a indignação e a revolta dos Kaiowá pelo que tinha acontecido na véspera. A mulher que tivera seu joelho destroçado estava, no hospital, sendo operada para a amputação da perna. Havia uma enorme revolta. Quando nós estávamos lá estabeleceu-se uma barragem de viaturas da Polícia Militar na frente, assim, a uns 50 metros das últimas pessoas que estavam ali reunidas. E, quando estávamos saindo da área, estava chegando mais meia dúzia de viaturas da Polícia Militar, e também da polícia científica e de bombeiros para cercar o outro lado. Ou seja, para cercar os indígenas — descreve a antropóloga.
A morte de Neri Kaiowá, 23 anos, pai de um bebê de 11 meses, aconteceu no dia 18, na semana seguinte a esse conflito. Três partidos, PL, Republicanos e Progressistas, entraram com uma ação junto ao ministro Gilmar Mendes alegando que a Força Nacional e a Polícia Federal “não atuam de maneira adequada para garantir a prevenção de crimes”. No caso, eles alegam crime de “esbulho possessório” por parte dos indígenas. E por isso querem que tanto em Mato Grosso do Sul, quanto no Paraná, só possam agir as forças estaduais, a Polícia Militar e a Polícia Civil. A advogada da ação que levou a PM para dentro da Terra Nhanderu Marangatu é filha dos donos da Fazenda Barra. Ela também, por coincidência, trabalha como assessora da Casa Civil do governo do Estado. E assim vai o Brasil. Como ele sempre foi.
Em Brasília, um incêndio consumiu quase três mil hectares na Floresta Nacional, uma preciosa e bela unidade de conservação do Cerrado.O fogo que se alastra pelo Brasil é deliberado. Há 85 inquéritos abertos na Polícia Federal, mas pouco se sabe das motivações e dos criminosos. Quem esteve em Brasília sofreu nos olhos, no nariz, no pulmão, na garganta o peso da fumaça dos crimes ambientais que atingiram as reservas. Elas são oásis em pontos estratégicos de uma cidade que precisa desesperadamente de água e árvores.
Os três mil Guarani Kaiowá, da terra indígena Nhanderu Marangatu, vivem uma história que é a cara do Brasil, nos seus piores momentos. A terra já foi demarcada. Foi homologada por um decreto presidencial de 2005, mas o então ministro Nelson Jobim concedeu aos fazendeiros uma liminar, num mandado de segurança, suspendendo os efeitos do decreto, mas não o decreto em si. Vinte anos não bastaram para que o STF decidisse. Recentemente a Fazenda Barra, que se sobrepõe a um pedaço da terra indígena, entrou com uma ação em Ponta Porã e o juiz determinou que a Polícia Militar fizesse a segurança da propriedade. PM fazendo segurança privada. O pior é como essa ordem está sendo cumprida, explica a defensora pública Daniele Osório.
– Antônio João é uma pequena cidade na fronteira do Brasil com o Paraguai, a 400 quilômetros de Campo Grande. Deslocaram na semana passada um efetivo enorme, com ônibus, caminhão, com tropa de choque. Pagando diária para policial, alimentação, hospedagem, gasolina para as viaturas. É muito fora do comum. Eles cercaram a Fazenda Barra e todas as vias de acesso à fazenda. Qual é o problema? As estradas vicinais são onde os indígenas circulam ao andarem entre as aldeias — diz a defensora pública.
A Comissão Arns estava lá, em Antônio João, no dia 13. Na verdade, integrava uma missão, da qual participava também Dom Leonardo Steiner, presidente do Conselho Indigenista Missionário, que estava indo acudir outra crise dos Guarani Kaiowá, na TI Panambi, em Douradina. Tiveram que mudar a rota ao saber daquele primeiro ataque com feridos na TI Nhanderu Marangatu. Viajaram com a proteção de duas viaturas da Força Nacional. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha conta o que viu:
– Estava armado um cenário de guerra. Dom Leonardo trocou a sua vestimenta pelos paramentos de cardeal. E assistimos a indignação e a revolta dos Kaiowá pelo que tinha acontecido na véspera. A mulher que tivera seu joelho destroçado estava, no hospital, sendo operada para a amputação da perna. Havia uma enorme revolta. Quando nós estávamos lá estabeleceu-se uma barragem de viaturas da Polícia Militar na frente, assim, a uns 50 metros das últimas pessoas que estavam ali reunidas. E, quando estávamos saindo da área, estava chegando mais meia dúzia de viaturas da Polícia Militar, e também da polícia científica e de bombeiros para cercar o outro lado. Ou seja, para cercar os indígenas — descreve a antropóloga.
A morte de Neri Kaiowá, 23 anos, pai de um bebê de 11 meses, aconteceu no dia 18, na semana seguinte a esse conflito. Três partidos, PL, Republicanos e Progressistas, entraram com uma ação junto ao ministro Gilmar Mendes alegando que a Força Nacional e a Polícia Federal “não atuam de maneira adequada para garantir a prevenção de crimes”. No caso, eles alegam crime de “esbulho possessório” por parte dos indígenas. E por isso querem que tanto em Mato Grosso do Sul, quanto no Paraná, só possam agir as forças estaduais, a Polícia Militar e a Polícia Civil. A advogada da ação que levou a PM para dentro da Terra Nhanderu Marangatu é filha dos donos da Fazenda Barra. Ela também, por coincidência, trabalha como assessora da Casa Civil do governo do Estado. E assim vai o Brasil. Como ele sempre foi.
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