quinta-feira, 1 de maio de 2025

Pensamento do Dia

 


Morte de jovem negro pela polícia revolta Alemanha

Moro ao lado de um parque em Berlim que é ponto de encontro de centenas de jovens e adolescentes. Eles são, em sua maioria, brancos e, de vez em quando, perdem os limites (como é comum entre os jovens), quebram garrafas, brigam e por aí vai.

Há algumas semanas, carros de polícia e ambulâncias ocuparam a entrada do parque. Fui ver o que acontecia e encontrei policiais e bombeiros pedindo, com paciência, para que os jovens embriagados fossem para casa. Depois, minha enteada de 18 anos me contou que alguns "idiotas metidos a gangsters" (palavras dela) tinham usado uma faca para praticar pequenos furtos. Alguns foram presos. Mas o clima continuou relaxado no local e as risadas seguiram.

Lembrei desse clima amistoso entre policiais e jovens (que considero o certo, e acho que deveria valer para todos) quando li as notícias sobre a morte de Lorenz A. O jovem de 21 anos foi morto pela polícia em Oldenburg, no noroeste da Alemanha, com quatro tiros disparados pelas costas por um policial de 27 anos. Muitos (e eu me incluo) associam sua morte ao racismo.

O caso aconteceu no domingo de Páscoa, 20 de abril, e causa justa revolta, choque. O assassinato motivou manifestações em todo o país. Os fatos que ocorreram naquela madrugada ainda têm versões que diferem em detalhes importantes.


O que se sabe por enquanto: o garoto foi barrado em uma boate no centro de Oldenburg. Em seguida, teria discutido com os seguranças, usado spray de pimenta contra eles e fugido. A polícia foi chamada. O Ministério Público da cidade disse que ele teria usado uma faca para ameaçar quem se aproximava. Ele teria abordado os policiais de "forma ameaçadora" e borrifado spray de pimenta contra os agentes. Mas, de acordo com reportagem do site da revista Der Spiegel, a faca não apareceria nas mãos de Lorenz em vídeos que são analisados pela polícia. Ela teria sido encontrada em seu bolso.

A investigação ainda não foi concluída. Imagens de câmeras estão sendo analisadas pela polícia e testemunhas estão sendo ouvidas. O policial que cometeu os disparos foi suspenso e será investigado por homicídio.

Nada justifica a morte de Lorenz. Ele usar uma faca para ameaçar policiais, por exemplo, não dá aos agentes o direito de o matarem.

Mas, é óbvio, temos que perguntar: Lorenz teria sido assassinado se fosse um jovem branco? Acho que não (e não estou sozinha nessa). Um policial alemão atiraria em um jovem "arruaceiro" na balada se ele fosse loiro de olho azul? Acho difícil.

Mesmo que o policial não tenha sido "conscientemente racista", é muito possível que ele tenha visto um jovem negro como "mais ameaçador" do que veria um jovem branco. É assim que acontece. Na Alemanha e no Brasil, onde o racismo é estrutural.

Em todo o país, manifestantes associam a morte de Lorenz ao racismo. No último fim de semana, cerca de 10 mil pessoas se reuniram em Oldenburg para pedir justiça por Lorenz. Outras manifestações foram registradas em várias cidades. Aqui, o fato de um jovem ter sido morto pela polícia é um grande escândalo, e não algo banal. Pelo menos isso.

No local de sua morte, flores, velas e cartazes foram colocados, como em um memorial. Nos jornais, há fotos dos amigos de Lorenz chorando abraçados. Eles esperam que o policial seja punido. É o mínimo.

Na Alemanha, mortes desse tipo pela polícia são raras. O índice de letalidade policial é baixo. Em 2023, nove pessoas foram mortas pela polícia, de acordo com a Faculdade Alemã de Polícia. Ainda não há números oficiais de 2024 e 2025. De acordo com a imprensa alemã, ao todo, 141 pessoas foram mortas pela polícia no país desde 2015.

Parece pouco, ainda mais quando comparamos com países como o Brasil, onde, de acordo com dados da Rede de Observatórios da Segurança, ao menos 4.025 pessoas foram alvo da letalidade policial em 2023. Destas, 87,8% das vítimas eram negras. O que acontece no Brasil é uma situação de guerra. Mas, em comum com a Alemanha, o racismo não pode ser tolerado.

Precisamos de falar de liberdade

A liberdade não tem cheiro, nem cor, nem ocupa espaço. Mas é ela que nos dá caminho e chão, que nos dá largueza e segurança. A liberdade é frágil, difícil, instável. Mas é também o ar que nos enche o peito, que nos faz funcionar. O problema da liberdade é que, quando existe, não se vê. Quando a conquistamos, parece de pedra, natural como o céu e o sol. Não percebemos quando começa a desabar, porque ela nunca acaba num só dia. Vai desaparecendo devagarinho, debaixo de muros e sombras, de mordaças e interdições pequenas, esvaindo-se aos poucos, sem que demos por isso. Todos os dias nos custa mais a respirar, mas os pulmões habituam-se à rarefação e, mesmo que tudo seja mais lento e pesado, não nos apercebemos logo do que está a acontecer.

A liberdade vai escasseando. E quase ninguém dá por isso. O espaço está mais estreito, mas nós vamo-nos encolhendo e achamos que continuamos a caber. Pior: convencem-nos de que a liberdade é um problema. A liberdade é tão elástica que pode ser usada pelos seus próprios inimigos. E eles não têm problemas nenhuns em usá-la para nos privarem dela.

Quando ouvirem alguém dizer que “agora já não se pode dizer nada”, saibam que é um inimigo da liberdade que o diz. Porque esse tempo antes deste “agora” era o momento em que muito poucos tinham toda a liberdade de esmagar todos os outros debaixo da repressão e da censura. O que antes se podia dizer, continua a ser dito, porque a liberdade também é isso. A diferença – e é isso que eles não suportam – é que agora o que dizem podem ser desdito, contraditado, questionado. Podem dizer tudo o que quiserem, deixaram foi de poder calar os outros.


A liberdade não funciona no vazio. Ela precisa de estruturas, feitas de leis que protejam os mais fracos, de uma igualdade material que a sustente. Não há liberdade a sério quando se tem a barriga vazia e se está à mercê de quem tem tudo e faz as regras.

Não se é livre sozinho. A liberdade constrói-se em comum, numa sociedade em que os direitos são respeitados e os mais fracos protegidos. Não há liberdade a sério quando é cada um por si e ganha o mais forte.

Os libertários são inimigos da liberdade. São os que a querem só para eles, sem limites, nem freios, porque se acham mais fortes do que todos os outros e querem usar essa posição de domínio para crescer esmagando os que ficarem por baixo.

Precisamos de falar de liberdade. Precisamos de nos lembrar do que é não a ter, precisamos de ver como ela está a desaparecer, deixando-nos as mãos mais atadas e as bocas caladas. Precisamos de saber que a liberdade não é só festa, é luta. E que não basta andar com um cravo na lapela e descer a avenida, se no dia a seguir nos calamos e encolhemos e fechamos os olhos às injustiças e deixamos que os novos donos da liberdade a vendam como flexibilidade, precariedade e competição pura.

O 25 de Abril é o dia da liberdade porque foi a revolução que nos trouxe “a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Precisamos de voltar a cantar essa canção do Sérgio Godinho, porque está tudo lá. Não para celebrar o passado, mas para construir o futuro.

O 25 de Abril já aconteceu, mas ainda está a acontecer, se tivermos a força de nos agarrarmos a essa liberdade. O 25 de Abril é um dia que ainda não veio, que é preciso construir todos os dias. Porque a democracia e a liberdade nunca acabam de se fazer, a não ser quando morrem.

Aos que acham que está tudo feito, aos que se agarram ao passado, aos que acreditam que antes é que era bom ou que a revolução é só uma coisa ultrapassada, aos que fingem que não aconteceu nada, aos que sentem saudades do que foi ou do que podia ter sido, aos que chegaram agora e não sabem nada porque vêm com a ignorância de quem não precisou de aprender tudo da maneira mais difícil, aos que acham graça aos desfiles e usam cravos como adereços de moda vazios, aos que fazem comércio e aos que fazem escárnio. A todos esses precisamos de falar de liberdade, da liberdade a sério, construída em luta e festa, feita com todos e para todos, mesmo para os que não gostam dela, para que até esses possam dizer o que querem e que não lhes falte a saúde, a educação e a habitação quando o azar lhes bater à porta e descobrirem que, afinal, a liberdade não é um substantivo individual, mas só é plena quando se escreve no coletivo.

A face oculta do ‘tecnosolucionismo’ no mundo do trabalho

19 de fevereiro de 2024, segunda-feira. Cajamar, região metropolitana de São Paulo. Centro de Distribuição do Mercado Livre. Foi neste lugar e nesta data que, minutos após receber a notícia de que estava demitido, Luiz Felipe Dominicalli morreu por suicídio. Segundo os colegas, Luiz tinha o sonho de ser efetivado na empresa, até aquele momento ele trabalhava para uma terceirizada.

07 de abril de 2025, segunda-feira. Cajamar, região metropolitana de São Paulo. Centro de Distribuição do Mercado Livre. Foi neste lugar e nesta data que o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, disse o seguinte: “eu conheço muita fábrica de automóveis, eu conheço muita empresa da construção civil, eu conheço muita loja do comércio, muito shopping, eu conheço muito restaurante, eu conheço muitas fábricas em outro país, mas eu nunca tinha entrado em nada parecido com o que eu vi hoje aqui. Nunca vi!”.

Certamente, a declaração entusiasmada de Lula tem a ver com a percepção de que, como nunca antes na história (não apenas deste país), o mundo do trabalho é profundamente caracterizado pela centralidade tecnológica. É assim que o Mercado Livre se define: “somos uma empresa de tecnologia”, está escrito em seu próprio site, com “a entrega mais rápida do Brasil”. Naquele centro de distribuição, trabalhadores humanos e robôs dividem o mesmo espaço. Agilidade, ganho de tempo e aumento da produtividade são mencionados nos discursos dos representantes da empresa como resultados desta transformação que encantou Lula.


E o Mercado Livre não é um caso isolado. Como dito, o mundo do trabalho é, mais do que nunca, um mundo tecnológico. Esses mesmos ideais de velocidade, otimização do tempo e produtivismo pautam o trabalho mediado por plataformas digitais. O iFood, que também se apresenta como “uma empresa brasileira de tecnologia”, menciona em seu site que está desenvolvendo “modelos de inteligência artificial para fazer uma entrega cada vez mais personalizada, eficiente e confiável”.

Mas esta preponderância das tecnologias tem significado condições melhores de vida para os trabalhadores e trabalhadoras?

Tomemos o exemplo do iFood. Todos os entregadores que atuam para esta empresa estão submetidos a um indicador de classificação – o score, baseado em cinco critérios: pedidos entregues, pedidos coletados, avaliações, pontualidade e comparecimento. A explicação da empresa sobre o item pontualidade é simbólica desta lógica de aceleração: “se você entrega 10 pedidos e atrasa 60 minutos em apenas um deles, sua média é de 6 minutos de atraso por pedido”.

E se acontecer algo com o trabalhador no caminho de uma entrega? Bem, o iFood tem – como a própria empresa chama – “dicas de ouro para você manter seu score sempre alto”. Por si, a ideia de “manter o score sempre alto” já é reveladora da lógica de produzir sempre, trabalhar sempre. Mas o quadro é ainda mais perverso quando percebemos que as tais “dicas de ouro” são, na verdade, um atestado de “se vire” da empresa para os trabalhadores. Vejamos algumas:

– “Mantenha a bateria do celular acima de 15%, assim você evita deixar de fazer uma coleta ou uma entrega por falta de bateria no celular”;

– “Mantenha seu veículo com a manutenção em dia e com combustível suficiente para evitar problemas durante a rota”;

– “Confira o tempo indicado no app para deslocamento até a loja e até o cliente, e procure ser pontual”;

– “Cuide bem do pedido, evitando que ele caia ou fique virado na bag”.

– “Evite desvios de rota e cancelamentos de pedidos”.

As dicas de ouro do iFood ilustram com precisão a ideia de cidadania sacrificial, da pesquisadora Wendy Brown. Ao discutir este conceito, Rafael Grohmann, professor da Universidade de Toronto, diz que, deste modo, “os trabalhadores são obrigados a fazer a gestão das próprias sobrevivências com toda a sorte de vulnerabilidades, tendo de escutar que isso é um ‘privilégio’”.

O que aconteceu com Yuri de Souza, em 2022, também é emblemático disto. Onze dias após morrer fazendo entrega pelo iFood, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, Yuri teve a sua conta desativada por “má conduta”. Dito de outra forma, o próprio Yuri foi responsabilizado por sua morte.


O que as empresas “de tecnologia” optam em não dizer é como esse tipo de “dicas de ouro” e as cobranças por agilidade e produtivismo têm provocado, direta e indiretamente, adoecimentos psíquicos e emocionais em trabalhadores e trabalhadoras, alguns resultando em morte.

Como escrito por Gabriel Teles, em texto no The Intercept, “a estética da instantaneidade — do rastreamento em tempo real, da entrega no mesmo dia, da vitrine virtual permanentemente abastecida — exige uma infraestrutura oculta. Essa infraestrutura não é feita apenas de inteligência artificial, robôs e softwares. É feita, sobretudo, de braços, pernas e espinhas tensionadas: trabalhadores e trabalhadoras que movem, embalam, separam e etiquetam, dia e noite, em jornadas marcadas pela vigilância e pela aceleração”.

Em entrevista a uma reportagem do Uol, Nicollas Gabriel, que trabalhou como terceirizado no mesmo local que Luiz Felipe, relatou que tem dificuldades para mexer três dedos das mãos, consequência, de acordo com o médico que o atendeu, dos movimentos repetitivos que fazia – apertar o gatilho das máquinas que leem os códigos dos produtos. “Se você falasse que já estava correndo, líderes diziam que dava para correr mais. Fui demitido por me recusar a subir escadas para colocar embalagens no alto.”, contou Nicollas, que tinha a meta de 2.000 produtos por dia, trabalhando das 14h às 22h, na escala 6×1.

Tanto em empresas como o Mercado Livre quanto no caso de trabalhadores de entregas, a exemplo do iFood, ou de motoristas por aplicativos, como a Uber, sintomas de exaustão física, problemas cardiovasculares e respiratórios, como consequências do excessivo tempo de trabalho sentado, da exposição constante à poluição urbana e da ausência de direitos trabalhistas, são comumente citados.

No caso dessas duas modalidades de trabalho – motoristas por aplicativo e entregadores – tem crescido, ano após ano, o número de ações judiciais que reivindicam o reconhecimento de vínculo empregatício com empresas como iFood e Uber: de 659 processos em 2019 para 9,6 mil em 2023. A maioria das solicitações, porém, tem sido rejeitada pela Justiça do Trabalho. Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal tem sinalizado a necessidade de uma regulamentação legislativa. A esse respeito, está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar (PLC) 12/2024, que estabelece direitos mínimos para motoristas por aplicativo (como salário mínimo mensal, jornada máxima de trabalho diário, contribuição previdenciária, licença-maternidade para motoristas mulheres e representação sindical específica, dentre outros). Vale enfatizar que a proposta não contempla trabalhadores e trabalhadoras dos serviços de entrega, visto que empresas como iFood, Rappi e Mercado Livre não participaram do acordo que resultou na proposta do PLC.

Vale lembrar, aliás, que algumas das principais empresas que atuam nestes setores, como Uber, Rappi e 99, obtiveram nota zero em todos os critérios de avaliação de condições de trabalho em plataformas digitais, de acordo com relatório do projeto Fairwork. O iFood obteve nota 2 (o máximo era 10). Os pesquisadores do projeto também chamam a atenção para a constante presença de representantes dessas empresas no Congresso Nacional, o que dificulta a aprovação de propostas legislativas que avancem na concretização dos direitos trabalhistas, a exemplo do PLC 12/2024.

Para complexificar a relação entre tecnologias e mundo do trabalho, este cenário é dependente da propagação diuturna daquilo que Byung-Chul Han qualifica como “sujeito de desempenho”. Ser proativo, ser mais rápido, adiantar tarefas são fatores que têm levado a aumentos significativos de depressão, transtornos de personalidade, síndromes de ansiedade, hiperatividade e burnout em trabalhadores e trabalhadoras.

“As metas abusivas me davam ansiedade. Quando saí de lá, achei que nunca mais conseguiria trabalho. Se mesmo ultrapassando as metas eu não fui aprovado, o que mais poderia fazer?”, foi o questionamento feito por Matheus Alves, ex-funcionário do Mercado Livre, que trabalhava na mesma equipe de Luiz Felipe.

Como agravante, para que funcionem como sujeitos de desempenho, os trabalhadores necessitam de um estado permanente de positividade nas relações de trabalho. Lembra do Luiz Felipe? Em nota após a sua morte, o Mercado Livre o tratou por “colaborador” e não “trabalhador”. Já Yuri, o iFood tratou por “parceiro”. Sabe o nome da sede principal do Mercado Livre no Brasil? Melicidade! Segundo a empresa, “é uma combinação do apelido MeLi com a palavra cidade, remetendo também à Felicidade”.

O panorama é ainda mais desafiador, dado o avanço de tecnologias de Inteligência Artificial em diferentes setores da vida social e nas dinâmicas laborais. Uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou que 37% dos postos de trabalho no Brasil estão expostos à inteligência artificial generativa. Considerando os países da América Latina e do Caribe, o percentual do Brasil é inferior apenas ao da Costa Rica. São trabalhadores e trabalhadoras que podem, portanto, passar por mudanças cruciais nas formas de trabalho. Substituição por robôs, resultando em aumento do desemprego, e submissão a lógicas ainda mais perversas de produtividade estão entre os possíveis efeitos.

Outro aspecto relevante nesta questão tem a ver com o que a professora Fernanda Bruno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nomeou de “economia psíquica dos algoritmos”. Em seus estudos, Fernanda alerta para o fato dos dados psíquicos e emocionais, a exemplo dos sentimentos de angústia e ansiedade, como narrado acima por Matheus Alves, terem se convertido em ativos valiosos para o modelo de negócio das plataformas digitais.

Num mundo do trabalho cada vez mais conformado pela prevalência das tecnologias digitais, a felicidade referida pelo Mercado Livre não chega às famílias dos trabalhadores e trabalhadoras. Ao contrário, o que chegam são adoecimentos psíquicos e emocionais. Assim, o ‘tecnosolucionismo’ – com toda a ideologia que o sustenta e acompanha – revela-se uma falácia, uma estratégia que serve para reforçar a exploração da classe trabalhadora e ocultar as perversidades que seguem vitimando mulheres e homens do nosso país. É por isto que, nos tempos em que vivemos, o debate sobre trabalho é também um debate sobre tecnologias.

A única guerra pela qual vale lutar

Como na velha marchinha, o Rio já amanheceu cantando. Quem sabe ensaiando para a grande festa de sábado, quando os banhistas da noite testarão seu inglês ao entoar, com a ilusão de sábios, que preferem morrer com um sorriso nos lábios.

Nos velhos anos dos 1930, enquanto o mundo se desentendia no comércio e flertava com a Segunda Guerra, Carmem Miranda ecoava os versos de Braguinha. A cidade amanhecia em flor, e os namorados iriam à rua em bandos, pois a primavera era a estação do amor.

Agora não há primavera. No outono do Hemisfério Sul, estão no Rio ministros de Relações Exteriores de mais de 11 países para debater a situação de um mundo instável.

Também já chegaram à cidade 30 mil participantes de um grande encontro de tecnologia, juntamente com os fãs da americana Lady Gaga, que canta no sábado para uma multidão de centenas de milhares de pessoas em Copacabana.

O mundo mudou, mas continua parecido. No Web Summit, fala-se de inteligência artificial. No antigo Palácio do Itamaraty, os chanceleres do Brics alertam para os riscos de uma grande guerra comercial. Como aquela que precedeu a dos campos de batalha.

Os inocentes de Copacabana (como os antigos do Leblon) tudo ignoram. Mas se preparam para o coro da praia, quando ouvirem os primeiros acordes do último grande sucesso da artista americana.

A canção, que ela gravou com Bruno Mars, fala de duas pessoas que não querem se despedir, mesmo que tudo vá pelos ares.

“Se o mundo estivesse acabando, eu gostaria de estar a seu lado”, entoará em inglês a grande plateia. “Se a festa tivesse terminado e nosso tempo na Terra também, eu gostaria de te abraçar só por um momento e morrer com um sorriso”.

A noite deve terminar bem. Os fãs voltarão para casa vivos, com seus sorrisos nos rostos. A turma da tecnologia, que invade a cidade pelo terceiro ano consecutivo, também vai embora satisfeita, com ideias para novos negócios.

Mas quem imagina como voltarão a seus países os ministros que precisarão tomar seus aviões antes de a festa sequer começar? Eles sabem que precisam escolher bem as palavras da declaração final prévia ao encontro de seus chefes, em julho.

Também no Rio, no inverno tropical, os líderes dos países que integram o Brics – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã – expressarão, em voz amplificada, os consensos esboçados no encontro desta semana.

Eles não deverão poupar os ouvidos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, autor da guerra comercial que já contamina as relações políticas entre seu país e o resto do mundo. Ou, especialmente, as relações entre os Estados Unidos e um importante fundador do Brics – a China.

Por outro lado, o que dirão os integrantes do grupo se até julho não tiver sido encontrada uma solução pacífica para a guerra que, há três anos, envolve outro fundador – a Rússia – e a Ucrânia?

São questões ainda muito delicadas, com potencial de intoxicar as relações internacionais no futuro próximo. China, Rússia e os países do Sul Global que integram o Brics vão precisar acertar o tom das notas pelas quais vão se expressar.

O pragmatismo recomenda prudência. Os resultados podem ser modestos. Não está nas mãos apenas dos representantes dos países do Brics evitar guerras comerciais ou reais. E a inteligência artificial em debate no Riocentro ainda não foi capaz de desenhar soluções para o planeta.

Além disso, por enquanto estamos apenas nos ensaios. Os ministros buscam as palavras certas, os tecnólogos trocam informações e os milhares de fãs que vão a Copacabana ainda aprendem as letras das canções.

Como em tudo, porém, pode sempre restar um pequeno espaço para a poesia.

Dos três grupos que se encontram nessa esquina tropical, pelo menos o que vai se espalhar pelas areias da praia no sábado pode compartilhar sua muito humana canção. “O nosso amor”, os fãs poderão cantar, “é a única guerra pela qual vale lutar”.

'A guerra me mudou'

Até 2022, Konstantin Goncharov trabalhou como jornalista na Deutsche Welle. Com o início da invasão russa, alistou-se como soldado no exército ucraniano, como muitos outros compatriotas. Este é seu testemunho pessoal após três anos de guerra em seu país.

Konstantin Goncharov

Nem sanções internacionais nem ameaças políticas conseguiram deter a agressão militar da Rússia. Vladimir Putin também não foi desacelerado por suas próprias perdas. Pelo contrário, cada derrota o obriga a buscar novas estratégias em vez de abandonar a guerra.

Por quase três anos, vi o exército russo mudar, o campo de batalha evoluir e nossas forças se adaptarem como um organismo vivo em um ambiente hostil. O exército ucraniano aprendeu não apenas a sobreviver, mas a transformar a guerra em vantagem com tecnologia avançada. Entretanto, nenhuma tecnologia pode substituir o mais importante nesta guerra: o soldado de infantaria que se apega à sua terra natal apesar do cansaço, da dor e do medo.

A primeira batalha na linha de frente é inesquecível: o chão treme, explosões rasgam o ar, casas queimam e bombas assobiam enquanto gritos podem ser ouvidos à distância. Esse foi meu primeiro contato com a brutalidade do conflito. Lembro-me das primeiras explosões de fogo, do cheiro de pólvora e de prédios em chamas impregnando cada respiração, de um gosto amargo e sulfuroso na boca, como se dezenas de fogos de artifício estivessem explodindo ao mesmo tempo. Mas não há comemoração aqui, apenas a dura realidade da guerra.

Meu serviço começou em uma brigada aerotransportada que libertou Kherson e Mykolaiv e lutou em Donetsk e Zaporizhia. Lutamos por cada posição, cada rua, cada ruína em cidades devastadas pelos bombardeios.

Depois de me ferir e passar meses em reabilitação, fui transferido para uma unidade de reconhecimento eletrônico. Minhas armas passaram de rifles para informações. Analisamos sinais de rádio para rastrear movimentos inimigos, drones e sistemas de guerra eletrônica.

O conflito mudou e os drones se tornaram um fator decisivo. No início, eram uma improvisação desesperada para compensar a falta de munição, mas hoje são armas precisas e letais. Trincheiras, abrigos, veículos blindados: tudo é um alvo em uma corrida entre operadores de drones para detectar, alcançar e destruir o inimigo primeiro.

Com o surgimento dos drones, a necessidade de neutralizá-los também cresceu. A guerra eletrônica está avançando em um ritmo surpreendente, nos forçando a mudar frequências e melhorar algoritmos diariamente. Não há espaço para complacência; Exige esforço constante de programadores e engenheiros.

Mas nenhum avanço tecnológico pode restaurar a energia daqueles que estão na linha de frente há anos. Após três anos de guerra, a rotação de tropas se tornou uma questão crítica. Soldados exaustos, esperando por substituição por semanas ou meses, perdem reflexos e moral. A falta de sono turva a mente, o corpo enfraquece com fome e sede. Você não pensa mais, apenas reage, você avança por instinto.

Muitos passaram meses ou anos sem retornar a uma vida normal. Mesmo um breve descanso permitirá que você recupere suas forças, mas o valor de cada unidade em condições de combate é incalculável. A maioria das linhas de frente está em uma postura defensiva, tornando impossível retirar tropas para descansar sem criar brechas que o inimigo exploraria imediatamente.

Paradoxalmente, nas cidades relativamente seguras do interior, a guerra é sentida de forma diferente: noites sem dormir devido às sirenes de ataque aéreo, uma sensação constante de antecipação de uma tragédia inevitável. Na frente, porém, tudo é claro: há uma missão, uma ordem, um inimigo. A única coisa que importa é ser eficaz, porque disso dependem não apenas a nossa sobrevivência, mas também as nossas chances de vitória.

A guerra me mudou. O que antes era abstrato se tornou uma rotina brutal, onde até os pequenos prazeres ganham um novo significado: uma xícara de chá quente, um momento de silêncio sem explosões. É realmente gratificante ver nossos drones frustrando ataques inimigos.

Claro que sonho em voltar para casa, para uma vida de paz. Quero deixar para trás as trincheiras congeladas, as rações de emergência e o cansaço constante. Mas estamos exaustos e não podemos desistir. Lutamos não apenas por nós mesmos, mas por aqueles que caíram e por aqueles que nos esperam em casa.

Não acredito em paz rápida. Não há espaço para concessões quando o agressor continua avançando e conquistando território. A Rússia não recuará sozinha; Somente a resistência organizada pode detê-lo. Enquanto a infantaria, os drones, a tecnologia e um espírito inquebrável trabalharem juntos, o inimigo não terá chance de avançar mais.

Cada atraso na ajuda internacional dá tempo à Rússia para se fortalecer. Isso é óbvio para qualquer um na linha de frente. Mas nossa luta continuará, independentemente das dúvidas políticas ou da indiferença de alguns líderes mundiais. Mesmo que haja aqueles que tentem nos culpar pela guerra, nossa resistência não enfraquecerá. Não estamos apenas defendendo nosso território: estamos defendendo nossa identidade e nosso direito a um futuro.