quinta-feira, 31 de maio de 2018
Flerte com o abismo
Como assim as pessoas apoiam um movimento, o dos caminhoneiros, mesmo sabendo que sofrerão severos transtornos e prejuízos diretos na vida pessoal e financeira? Em outras palavras, agindo contra os próprios interesses – e sabendo disso.
Supõe-se que alguma coisa mais esteja em jogo, além da irracionalidade em decisões (no comportamento de consumidores, por exemplo) há tanto tempo detectada por teorias econômicas de comportamento. Como eventual contribuição a uma explicação, avanço aqui duas possibilidades inteiramente subjetivas e derivadas da minha biografia pessoal como repórter.
Supõe-se que alguma coisa mais esteja em jogo, além da irracionalidade em decisões (no comportamento de consumidores, por exemplo) há tanto tempo detectada por teorias econômicas de comportamento. Como eventual contribuição a uma explicação, avanço aqui duas possibilidades inteiramente subjetivas e derivadas da minha biografia pessoal como repórter.
Será que as pessoas percebem seus “interesses objetivos e racionais” como analistas percebem ou acham que deveriam perceber? No caso brasileiro dos últimos dias, é patente que não. Em primeiro lugar, salta aos olhos que uma enorme quantidade de pessoas não entenda que dinheiro público é o dinheiro delas, recolhido por meio de impostos e contribuições. Para elas, portanto, se tem alguém gastando mais do que arrecada, esse alguém é “o governo”, essa distante e incompreensível entidade que manda nas nossas vidas sem que a gente entenda muito bem como.
Em segundo lugar, o governo é ocupado por “eles”, políticos e seus nomeados, uma espécie de casta. “Eles” são interessados apenas nos próprios negócios, na própria corrupção e, agora que “nossa” paciência se esgotou e nossa indignação explodiu, precisam ser varridos como lixo. É evidente que “nós” não nos sentimos representados por “eles” – e quando confrontada com o fato de que “eles” estão lá pois foram votados para estarem lá, imensa quantidade de pessoas não gosta do que enxerga no espelho.
Muita gente acha que a revolta que acompanhou as manifestações de caminhoneiros (acompanhadas, em alguns casos, de comportamento criminoso) é uma espécie de mal necessário para que dessa situação crítica renasça um novo País, não importam os danos imediatos causados à economia. É óbvio, na minha percepção, que essa conduta reflete muito mais uma imensa frustração do que um claro sentido de ação, mesmo os caminhoneiros tendo arrancado o que pretendiam (baixar os próprios custos, empurrando a conta para outros).
Não são poucos os que enxergaram, por outro lado, que atender às reivindicações dos caminhoneiros só seria possível tornando ainda mais complicada a solução para contas públicas quebradas. Mas – e aqui deveríamos escrever MAS, em maiúsculas –, foi irresistível para parcela expressiva da população a identificação proporcionada pelo símbolo do trabalhador sacrificado (o caminhoneiro) que levanta o dedo médio em riste contra “eles”, enquanto entrega a Deus o comando na boleia.
Acho perda de tempo decifrar neste momento qual o “recado” que essa revolta está transmitindo para a política – na verdade, a mensagem principal é o ódio e o desprezo em relação à própria política, entendida como um jogo sujo no qual só “eles” ganham, com seu sistema de benefícios próprios, desperdícios, corrupção e a inexplicável administração de preços que leva o combustível que “nós” produzimos a custar bem menos na Bolívia.
Temo ter de dizer que esse flerte com o abismo, registrado nos últimos dias, seja a expressão da desintegração (que não me parece meramente passageira) da capacidade do Estado de impor diretrizes e autoridade. Mas também desse nebuloso estado de espírito segundo o qual a fúria e a frustração que existem na população criam a necessidade de mudança por meio do fracasso social.
Em segundo lugar, o governo é ocupado por “eles”, políticos e seus nomeados, uma espécie de casta. “Eles” são interessados apenas nos próprios negócios, na própria corrupção e, agora que “nossa” paciência se esgotou e nossa indignação explodiu, precisam ser varridos como lixo. É evidente que “nós” não nos sentimos representados por “eles” – e quando confrontada com o fato de que “eles” estão lá pois foram votados para estarem lá, imensa quantidade de pessoas não gosta do que enxerga no espelho.
Muita gente acha que a revolta que acompanhou as manifestações de caminhoneiros (acompanhadas, em alguns casos, de comportamento criminoso) é uma espécie de mal necessário para que dessa situação crítica renasça um novo País, não importam os danos imediatos causados à economia. É óbvio, na minha percepção, que essa conduta reflete muito mais uma imensa frustração do que um claro sentido de ação, mesmo os caminhoneiros tendo arrancado o que pretendiam (baixar os próprios custos, empurrando a conta para outros).
Não são poucos os que enxergaram, por outro lado, que atender às reivindicações dos caminhoneiros só seria possível tornando ainda mais complicada a solução para contas públicas quebradas. Mas – e aqui deveríamos escrever MAS, em maiúsculas –, foi irresistível para parcela expressiva da população a identificação proporcionada pelo símbolo do trabalhador sacrificado (o caminhoneiro) que levanta o dedo médio em riste contra “eles”, enquanto entrega a Deus o comando na boleia.
Acho perda de tempo decifrar neste momento qual o “recado” que essa revolta está transmitindo para a política – na verdade, a mensagem principal é o ódio e o desprezo em relação à própria política, entendida como um jogo sujo no qual só “eles” ganham, com seu sistema de benefícios próprios, desperdícios, corrupção e a inexplicável administração de preços que leva o combustível que “nós” produzimos a custar bem menos na Bolívia.
Temo ter de dizer que esse flerte com o abismo, registrado nos últimos dias, seja a expressão da desintegração (que não me parece meramente passageira) da capacidade do Estado de impor diretrizes e autoridade. Mas também desse nebuloso estado de espírito segundo o qual a fúria e a frustração que existem na população criam a necessidade de mudança por meio do fracasso social.
Um país flerta com a autodrestruição
Aos poucos, a ficha começa a cair para mim: este país quer soluções radicais, quer se fazer em pedaços. Dada à complexidade do problema, esta parece ser a solução mais simples e, assim, a mais satisfatória. É como diz o ditado: ontem estávamos à beira do abismo, hoje já estamos um passo adiante.
Para começar há as notícias falsas, que estão por todos os cantos e que tornam a situação durante a greve dos caminhões ainda mais obscura. Elas servem para promover um clima de confusão geral. E pânico. Podia-se ler que o governo vai bloquear o aplicativo de notícias WhatsApp para estrangular a greve. Ou que vai desligar a eletricidade para acabar com a greve.
Até mesmo conhecidos bem informados me asseguraram que o presidente Michel Temer em pessoa está por trás da greve. Sua intenção seria criar o caos e, assim, justificar um golpe militar para cancelar as eleições de outubro.
Bom, notícias falsas existem em todos os lugares e, pelo jeito, elas decidem eleições e referendos em todo o mundo. Mas certamente não fazem bem para o clima já acirrado no Brasil.
Afinal, sociedades só são bem-sucedidas quando são capazes de reunir na mesma mesa as diferentes posições e chegar a um compromisso em que todos cedem um pouco. Democracia também significa, afinal, deixar que aqueles que pensam diferente tenham seu espaço para existir.
Isso a democracia brasileira ainda não aprendeu. Em vez disso, todos gritam mais alto para silenciar o outro. Chamam isso de "palavras de ordem", embora, é claro, elas apenas fomentem a desordem. Em alguns discursos há um desejo explícito de eliminar o oponente político. O Brasil ainda arrasta consigo seu legado autoritário, e nele quem pensa diferente não têm qualquer espaço. Assim, os campos se opõem com uma virulência nunca vista. Diálogo ninguém mais quer. Em vez disso, todos parecem à procura de tumulto e confronto.
Enquanto isso, o governo do presidente Michel Temer se encaminha para o colapso. Mesmo os partidos que pertenciam à base de Temer rejeitaram nesta terça-feira (29/05) uma ofensiva conjunta promovida pelo governo para acabar com a greve dos caminhoneiros. O governo é fraco e está no fim, dizem políticos antes leais a Temer.
Uma terceira acusação contra Temer, que poderia ser apresentada a qualquer momento pela Procuradoria-Geral, provavelmente não conseguiria ser bloqueada no Congresso pelo presidente. Mas talvez ele caia também pela pressão das ruas. Políticos da oposição já clamam por uma greve geral. Nunca a queda de Temer pareceu tão próxima. Mas ela teria algum sentido agora, apenas quatro meses antes das eleições?
A formação de um governo em curto prazo dificilmente seria possível. A consequência, portanto, seria ainda mais caos nos próximos meses. A economia, já abalada, entraria numa nova recessão, e a confiança dos investidores estrangeiros no Brasil, recém e lentamente reconstruída, seria mais uma vez destruída.
Realizar eleições num clima como esse não traria nada de bom. As forças mediadoras e conciliatórias não seriam ouvidas em meio à gritaria geral. Afinal, ninguém está com paciência para soluções complicadas. As forças radicais, com suas soluções simples, ganhariam. E soluções simples em tempos difíceis não prestam para nada, diz um velho ditado.
Por que o setor elétrico ainda flerta com o autoritarismo?
Ainda em penosa recuperação, a etnia voltou ao noticiário nesta semana, quando a imprensa revelou pressões do ministro de Minas e Energia, Wellington Moreira Franco (MDB-RJ), para passar a linha de transmissão da usina de Tucuruí por dentro do território daqueles índios, sem consultá-los. O truque seria fazer o Ministério da Defesa decretar o linhão (outro projeto polêmico, que há anos não sai porque o governo tem se negado a dialogar com os waimiris) obra de “interesse da política de defesa nacional”, o que dispensaria permissão da tribo. A justificativa é conectar o Estado de Roraima, que tem sofrido com apagões, ao sistema elétrico nacional. Valor da obra: R$ 2 bilhões.
Os generais Médici e Geisel, de onde estiverem, devem estar dando risada: temos aqui, vejam só, um membro do partido que lutou contra a ditadura repetindo um velho argumento utilizado por eles para cometer uma nova arbitrariedade contra as mesmas vítimas do autoritarismo.
O linhão de Tucuruí não é um caso isolado, ao contrário. Até uma vítima da ditadura, a ex-presidente Dilma Rousseff, prestou homenagem aos militares ao empurrar goela abaixo do país, em nome do tal “interesse nacional”, a usina hidrelétrica de Cararaô, um projeto nascido no regime autoritário e rebatizado como Belo Monte.
Desde o segundo governo Lula, quando o Estado recuperou sua capacidade de investimento, todos os presidentes buscaram realizar a distopia verde-oliva de transformar a Amazônia no celeiro elétrico do país. Santo Antônio e Jirau, Teles Pires, São Manoel, Belo Monte – todas as usinas instaladas na região na última década e meia seguiram o mesmo roteiro de desrespeito a povos tradicionais, licenciamento na mão grande e transparência zero sobre custos econômicos e socioambientais. A maré barrageira foi suspensa em 2016, quando a falência do governo permitiu ao Ibama engavetar mais um elefante branco, a usina de São Luiz do Tapajós. Pelo visto, o MDB acha que dá para decretar o fim desse interregno e voltar ao modus operandi que impera no setor há mais de 40 anos.
O fetiche de sucessivos governos com grandes obras de energia na Amazônia talvez encontre sua melhor explicação na Operação Lava Jato. Após a prisão de construtores de barragens em 2014, foi revelado pela PF e pelo Ministério Público que projetos como Belo Monte engordaram os caixas de campanha dos partidos consorciados no governo federal, em especial PMDB e PT. Revelou-se também que a famosa “crise do bagre”, argumento usado pelo então presidente Lula para forçar (contra parecer do Ibama) a aprovação das usinas do Madeira, fora inventada pelo empreiteiro-mor da República, Emílio Odebrecht. Fazer mais uma obra bilionária na Amazônia depois de tudo isso, ainda mais no Estado do senador emedebista Romero Jucá – aquele que queria “estancar a sangria” da Lava Jato – pode levantar a suspeita de que nossos agentes públicos não aprenderam a lição.
O Estado de Roraima, para o qual o atual ministro de Minas e Energia defende a solução autoritária, tem um problema real. Roraima recebe energia elétrica gerada em hidrelétricas da Venezuela, através de um contrato que expira em 2021, ainda sem definição sobre renovação. Entretanto, problemas de manutenção e gestão do sistema elétrico venezuelano resultam em cortes no fornecimento, causando apagões e demandando o acionamento cada vez mais frequente de usinas térmicas a diesel.
Mas a linha de transmissão não é a única proposta do governo para resolver o problema de Roraima. Uma alternativa seria a construção da hidrelétrica do Bem Querer – a maior em licenciamento na Amazônia. Essa usina seria a mais cara e menos eficiente do século 21, construída em um local tão plano que seu lago teria 130 quilômetros de comprimento, mesmo sendo “a fio d’água”, ou seja, sem grande reservatório. Apesar disso, em fevereiro de 2018 o governo federal contratou as empresas para a elaboração do seu estudo de impacto ambiental, tentando transformar em realidade outro sonho gestado no período da ditadura.
A população de Roraima merece energia barata, abundante e limpa. E existem boas alternativas para provê-la. Técnicos do próprio MME já desenham desde 2017 um programa para levar ao Estado a fonte que mais cai de preço nos leilões de energia hoje no Brasil, a solar. Dados compilados pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente indicam uma forte tendência de queda de preços da energia do sol e da eólica frente às hidrelétricas desde 2011. Na última vez que cada uma das três fontes foi leiloada, o valor final do megawatt-hora foi de R$ 158 para hidro, R$ 145 para solar fotovoltaica e R$ 98 para eólica. Os preços das novas renováveis devem continuar caindo à medida que elas incorporam mais tecnologia.
Moreira Franco e o governo Temer fariam bem em explicar a quantas anda esse plano e por que resolveram decretar, em pleno ano eleitoral, que uma linha de transmissão que está no papel há anos de repente virou tema de “segurança nacional”. Os waimiri-atroari e os contribuintes brasileiros querem saber.
Sérgio Guimarães (Instituto Centro de Vida) e Carlos Rittl (Observatório do Clima)
Notícias falsas
Trata-se de questão que tem ganhado a atenção de todo o planeta. Já começam a surgir, aqui e ali, leis reprimindo o ato de divulgar, pela Internet, notícias falsas. Até aí, nada de novo sob o sol! Só me preocupa o fato de que será o Estado – sempre ele, e só ele – a policiar e regular a questão. E assim porque o Estado é, e sempre foi, um péssimo gestor destes assuntos!
Que o diga o povo inglês: em 1672, no Reino Unido, o Rei Carlos II editou um decreto proibindo a veiculação de notícias falsas. Três anos depois, novo decreto lançou na ilegalidade os populares “cafés”, por considerá-los lugares de propagação de fuxicos e inverdades. Somente alguns poucos estabelecimentos foram autorizados a funcionar, após seus proprietários terem comprovado serem súditos leais, e bem assim se comprometido a reportar quem, dentre seus eventuais clientes, neles se manifestasse de forma “inadequada”.
Há poucos anos lançou-se a humanidade em um ciclo de perturbações ainda sem data para terminar por conta das famosas “armas de destruição em massa do Iraque”. Cadê elas? Sequer uma foi encontrada. Eis aí, seguramente, uma das maiores notícias falsas de todos os tempos, seja por seu conteúdo, pela divulgação alcançada ou por suas consequências – não por acaso, foi patrocinada pelo Estado! E ninguém, absolutamente ninguém, foi responsabilizado por ela.
Tenho o hábito de ler jornais de lugares remotos do planeta. Escandalizado, leio reportagens sobre vacinas ocidentais testadas em crianças de países miseráveis da Ásia e África, com consequências terríveis para elas. Pois é: do “lado de cá”, sequer uma linha! Poderia, a propósito, escrever um livro sobre atrocidades surpreendentemente nunca divulgadas de forma maciça.
É diante desta realidade que pergunto: ao fim do cabo, o Estado solucionará ou aumentará o problema?
Pedro Valls Feu Rosa
No buraco, poder político recebe terra por cima
Com a paralisação dos caminhoneiros em declínio, o país começa a voltar à normalidade. E o normal no Brasil, como se sabe, é a anomalia da corrupção. A Polícia Federal voltou às ruas para estourar um balcão de venda de registros de sindicatos que funciona no Ministério do Trabalho. Coisa comandada pelo PTB do ex-presidiário do mensalão Roberto Jefferson. Que rapidamente declarou não ter nada a ver com o ocorrido.
Uma pesquisa do Datafolha revelou que 87% dos brasileiros apoiam a paralisação dos caminhoneiros. Para 56% das pessoas, os caminhões deveriam inclusive continuar parados. Esses dados são reveladores de uma sociedade de saco cheio, capaz de se autoimolar com uma crise de desabastecimento só para sinalizar sua extrema insatisfação com o governo em particular e com os políticos em geral.
Entre os encrencados da nova investida policial está o número 2 da pasta do Trabalho:Leonardo Arantes. É sobrinho do deputado Jovair Arantes, líder do PTB na Câmara. Só não foi preso porque está, veja você, em missão oficial na Inglaterra. A investigação vai longe. Só há uma certeza: Michel Temer manterá o Ministério do Trabalho o domínio do PTB. É por isso que quase 9 em cada dez brasileiros adoraram ver caminhões atravessados nas estradas. O poder político já sabia que estava no buraco. Descobre agora que o brasileiro quer jogar terra em cima.
Uma pesquisa do Datafolha revelou que 87% dos brasileiros apoiam a paralisação dos caminhoneiros. Para 56% das pessoas, os caminhões deveriam inclusive continuar parados. Esses dados são reveladores de uma sociedade de saco cheio, capaz de se autoimolar com uma crise de desabastecimento só para sinalizar sua extrema insatisfação com o governo em particular e com os políticos em geral.
Entre os encrencados da nova investida policial está o número 2 da pasta do Trabalho:Leonardo Arantes. É sobrinho do deputado Jovair Arantes, líder do PTB na Câmara. Só não foi preso porque está, veja você, em missão oficial na Inglaterra. A investigação vai longe. Só há uma certeza: Michel Temer manterá o Ministério do Trabalho o domínio do PTB. É por isso que quase 9 em cada dez brasileiros adoraram ver caminhões atravessados nas estradas. O poder político já sabia que estava no buraco. Descobre agora que o brasileiro quer jogar terra em cima.
Tempos interessantes
— Olha aquela coluna de lava!
— Nossa! Está destruindo as casas...!
— Acabou com as estradas!
— Que magnífico espetáculo da natureza!
De 2013 para cá, o Brasil vive uma sucessão de fatos espetaculares, todos de altíssima voltagem. Morando aqui, porém, fica um pouco mais difícil apreciar o privilégio de viver num momento histórico, e muito mais fácil entender o significado da velha maldição chinesa:
— Que você viva em tempos interessantes!
Deve ser muito reconfortante acompanhar o noticiário brasileiro durante uma hora por dia, e depois voltar para as notícias locais num mundo de tédio. O “Finland Today”, por exemplo, destacava nas manchetes de ontem que a bandeira nacional finlandesa fez cem anos, e que a universidade de Jyväskylä começou um programa piloto com o Kennel Club para que cachorros sirvam de companhia aos estudantes durante as aulas. Já a versão suíça do “The Local” abria com a história de um casal de aposentados que jogou a toalha após quatro anos de desentendimento com a administração do cantão: depois de gastar 27 mil francos com a pintura da casa, Willy e Marie Zysset receberam uma multa de 100 mil francos, porque as autoridades não gostaram da cor escolhida. Os dois se cansaram de discutir com burocratas e resolveram se mudar para Ngoulemakong, na República dos Camarões, onde ela tem família. No “Toronto Sun”, do Canadá, entre um mix variado de esportes, negócios e shows, fica-se sabendo que um jabuti, um lêmure e um macaco foram roubados do zoológico de Ontário.
Já não sabemos mais o que é viver com notícias que conseguimos esquecer ao virar a página. As nossas notícias nos acompanham o dia inteiro, nos assombram, se metem nas nossas conversas ao longo do dia, vão para a cama conosco. Infestam as nossas redes sociais. Estão no escritório, na praia, no almoço com os amigos, no táxi para casa, no jantar com a família. Lemos, vemos, ouvimos, falamos, discutimos — e nem por isso chegamos mais perto de entender o que está acontecendo, ou de alcançar algum consenso.
Greve dos caminhoneiros, por exemplo.
Há uma semana não se fala em outra coisa nesse país, e embora todos os brasileiros tenham subitamente virado especialistas em transporte de carga, ninguém sabe exatamente como aconteceu o que aconteceu, quem estava por trás ou não estava, quem se infiltrou ou deixou de se infiltrar.
A única coisa que ficou clara é que nunca se viu um governo mais despreparado para lidar com uma crise.
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Comecei a temporada a favor dos caminhoneiros, uma das categorias mais sacrificadas de um país rico em categorias sacrificadas. É difícil não se solidarizar com pessoas que correm toda a espécie de riscos para que o país continue funcionando: gente que cumpre jornadas estafantes à base de rebite, que enfrenta estradas em péssimas condições, que não tem a menor segurança no trabalho.
Também é difícil concordar com aumentos diários de combustível — nem tanto pelos aumentos em si, que podem até ter uma sólida justificativa econômica, mas pela insegurança que traz uma maluquice dessas.
E é fácil, muito fácil, fechar com quem peita esse governo incompetente, e dá um berro na cara dozômi.
Aos 20 anos, eu teria corrido para a estrada mais próxima, com o peito em festa e o coração a gargalhar.
Infelizmente deixei de ter 20 anos há muito, muito tempo.
Ainda tenho um lado perverso que gostaria de um país em full stop só para ver no que ia dar; se eu estivesse naquele lugar bem distante lá do primeiro parágrafo, até torceria para isso. O diabo é que, com a minha idade, já não preciso pensar muito para entender que o resultado não seria uma simples freada de arrumação ou uma semaninha de desconforto, mas um caos de longo alcance.
Conservo a minha simpatia pelos caminhoneiros, a respeito de quem li no Facebook, horrorizada, as coisas mais preconceituosas, escritas por pessoas que se pretendem descoladas e progressistas; mas a minha simpatia pelo movimento acabou quando estradas foram fechadas, quando pessoas foram seriamente prejudicadas e animais entraram em sofrimento.
Não dá para concordar com uma greve — ou um locaute, ou o que quer que tenha sido ou ainda seja este movimento — que imponha tanto prejuízo e tormento à população; não dá para concordar com chantagem e com ameaças.
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Do lado positivo, passamos a discutir, enfim, o equívoco que foi o sucateamento da malha ferroviária, e o erro que é manter um país tão dependente de uma única categoria. Se a nossa memória coletiva não se apagar assim que o abastecimento for restabelecido, o transporte de cargas entrou definitivamente na pauta nacional — de onde, aliás, nunca deveria ter saído.
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Lula enchia a boca para falar da “herança maldita” de FHC, mas a verdadeira herança maldita quem recebeu foi Temer — que, para nosso azar, provou mais uma vez que não tem nem moral nem competência para lidar com um abacaxi desse tamanho.
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