sábado, 5 de novembro de 2016

Mentiras revoltantes

O crime nos rodeia. Está em todos os pontos cardeais e o assédio é tão vasto e profundo que às vezes o confundimos com um abraço. E aí tudo se torna ainda mais terrível, pois somos envolvidos pelo engano.

Na Alemanha dos anos 1940, nos chuveiros dos campos de extermínio nazistas, o odor adocicado do gás Zyklon-B transmitia agradável sensação nos segundos iniciais do banho coletivo dos prisioneiros. Mulheres, homens e crianças respiravam fundo e enchiam o pulmão em busca do “ar puro” vindo dos chuveiros. Menos de um minuto depois se retorciam e morriam asfixiados.

O engano é o elemento mais perturbador do crime. Ou é a arma fundamental e única, sem a qual o criminoso não seria capaz de consumar seu ato. Sem o engano o crime seria quase um jogo em campo aberto, como o dos gladiadores no Coliseu de Roma – brutal e desigual, mas sem um perdedor já condenado de antemão.

Um mix de cultura pop e boas ideias em 50 ilustrações:

Sem a mentira prévia, porém, o engano não teria o poder que tem. Num país e numa sociedade, como a nossa, em que o crime faz parte do cotidiano em diferentes áreas a mentira se tornou corriqueira, com o risco de passar a algo “natural” em todos os níveis. Isso já ocorre com o que os políticos dizem num dia e, nas semanas seguintes, se desdizem nos atos concretos.

A exacerbação da sociedade de consumo cria tolas necessidades que aceitamos piamente, sem duvidar, pois a mentira veste roupagem séria, como se fosse imprescindível.

Mas isso também tem seu lado positivo e, ao longo dos séculos, significou a marcha da humanidade em direção ao futuro. Hoje ninguém viveria como nos anos 1800, que foi o “século das luzes”. Menos ainda como em 1500, quando por aqui chegou Pedro Álvares Cabral. Algumas grandes mentiras, porém, ferem tão profundamente que nos produzem um choque que anestesia nossa capacidade de indignação.

E assim, nós – os modernos – estamos sem bússola em meio ao mar aberto e tempestuoso, numa das caravelas de Pedro Álvares Cabral, sem sabermos nos guiar pelas constelações, como ele sabia...

Os partidos políticos esquecem as diferenças e, unidos, transformam-se em gazua para abrir os cofres dourados do poder, em todos os níveis – federal, estadual e municipal. Os escândalos na Petrobrás (e outros) mostram as entranhas do monstro no conluio entre grandes empresas privadas e diferentes partidos.

A política deixou de ser prestação de serviço e virou profissão. E profissão rendosa, sem especialização, ocupada por gente dedicada a aparentar o que não é. As instituições da República se refestelam na inútil (ou pouco útil) burocracia que, em vez de facilitar, dificulta a iniciativa individual. A televisão e o rádio (até a nova música) tornam-se vetores do mau gosto, da ignorância e da violência e entram às nossas casas como ladrão solerte. As chamadas “redes sociais” seguem caminho idêntico, ou pior, transformando em cloaca a maravilha tecnológica da internet.

Neste caos em que o único apelo é consumir, os shopping centers são as novas catedrais. E como se o porre de consumo fosse o valor da vida, qualquer grupo de pessoas abre uma nova “igreja” como se abrisse um bar. Logo se atribuem títulos religiosos (“pastor”, “missionário” ou “bispo”) e vendem “milagres”, usando o genuíno sentimento religioso do povo em proveito próprio. E o que seria igreja vira corporação mercantil, nova espécie de S. A. destinada ao lucro.

Neste ambiente de igrejas sem teologia, partidos sem doutrina nem ideologia e grandes empresas sem escrúpulos, abre-se o caminho para o descontrole pessoal e social. Mata-se para roubar o tênis “de marca”, ou se estupra “para ver como é”, na violência brutalizada pela droga, sob o comando do narcotráfico.

Não cabe aqui um retrospecto do horror. Que cada qual examine ao redor e conclua!

É impossível, porém, esquecer a tragédia que completa agora um ano e marca nosso escárnio perante a vida: o rompimento das barragens de resíduos de minérios da Samarco no interior de Mariana, em Minas Gerais. Ali está o retrato de corpo inteiro da desídia geral, da tresloucada ânsia de lucro a qualquer custo aliada à impostura governamental.

Nem o livro do Apocalipse de São João descreveu o horror terrorífico da destruição quanto a realidade daquele 5 de novembro de 2015. Como se não bastasse o que as profundas crateras da mineração destroem, a lama ácida apropriou-se de tudo.

Destruiu o povoado de Bento Rodrigues, invadiu terras cultivadas e bosques, subiu ao topo das árvores, matou pássaros, exterminou flora e fauna. Ocupou córregos, riachos e rios. Transformou em depósito de metais pesados o imenso Rio Doce, poluído talvez por muitos séculos – a areia das praias e a terra dos barrancos misturando-se ao chumbo, mercúrio e outras pestilências.

Impermeabilizado pela lama pegajosa, o leito do rio hoje é marrom, tal qual suas águas, que chegam mortas ao oceano, onde a lama ocupa praias, se decanta no leito marítimo e toma todas as direções. Ao norte, foi vista na Paraíba. Ao sul, no Estado do Rio de Janeiro.

Há um ano duas “barragens” se romperam, mas outras cinco lá estão e podem multiplicar a tragédia. Houve “obras novas de contenção”, mas persiste a causa originária do horror: os métodos de exploração são ainda quase tão primitivos quanto nos anos do Brasil colônia, mesmo sofisticados na aparência das máquinas e dos mastodônticos caminhões transportadores.

As minas são concessão do Estado e os órgãos governamentais impuseram à Samarco multas de bilhões (que nunca serão pagas), como se isso recuperasse a natureza assassinada. Mas nada se impôs para modificar as formas de mineração e aperfeiçoá-las para que deixem de ser simples maldição lucrativa a céu aberto.

A mentira e a desídia não são apenas visíveis e gritantes, mas – sim – revoltantes.

E quem nos salva de Ana Júlia?

As ocupações começaram em São Paulo, no ano passado, contra a organização por ciclos proposta pelo governo; depois foram para o Rio de Janeiro, contra o sistema de avaliação do ensino, o Saerj. Em Goiás elas eram contra a parceria com as organizações sociais. Agora são contra a PEC 241 e a reforma do ensino médio, e se concentram no Paraná. O motivo vai mudando, mas o ambiente em que elas acontecem é sempre o mesmo: a rede pública. Na rede privada ninguém parece disposto a perder uma aula de matemática.

Nossos revolucionários de colégio público apresentam-se como um movimento de resistência. Ninguém expressou melhor essa imagem do que a estudante Ana Júlia Ribeiro na tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná. Com a voz embargada, ela garante que o movimento é apartidário e que a preocupação é com as futuras gerações. É possível que seja verdade. Com mais de 1 milhão de views, no YouTube, quem diria que não?

De minha parte, vou na contramão. É quase sempre o que acontece quando os astros do politicamente correto se alinham. Me dá um mal-estar. A sensação de que essa mistura de ideologia e violência termina sempre do mesmo jeito. Na cena que vi nesta segunda-feira (31) em Brasília: os políticos em festa e a turma da periferia de Curitiba sem aula. Foi o que eu ouvi de um pai de aluno com ar de cachorro molhado, sem 10% do charme de Ana Júlia, perguntando para ninguém: “E quando eles vão recuperar os dias parados?”.

Minha interpretação é a seguinte: esta onda de ocupações de escolas é um exemplo do que o biólogo americano Garrett Hardin chamou de “tragédia dos comuns”. É o mesmo fenômeno que leva à poluição dos oceanos e ao desmatamento da Amazônia. Alguém vai lá e toma conta do espaço público, jogando lixo ou cortando árvores para fazer madeira e deixa a conta para todo mundo pagar.

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Nas escolas públicas funciona mais ou menos do mesmo jeito. A turma tem uma ideia na cabeça: o combate à reforma do ensino médio, mas poderia ser o MBL a favor da privatização das escolas ou ainda todos contra o bruxo Voldemord, de Harry Potter. Não importa. O pessoal vai lá e ocupa um espaço público. Promove sua agenda, aparece no jornal, faz capa de revista. O prejuízo fica para todo mundo pagar. Prejuízo nos dias parados, na escola quebrada, na guerra que pode levar, em um situação extrema, à morte de um adolescente.

Quando a estudante Ana Júlia acusou os deputados de terem as “mãos sujas de sangue” pela morte do estudante Lucas era exatamente isso que ela estava fazendo. O movimento que ela representa criou o contexto no qual o adolescente perdeu sua vida. O “custo” de sua atitude, porém, é socializado para os deputados, para o “estado”, para todo mundo que der na telha da Ana Júlia.

Lucas Mota era um garoto tímido e boa-praça. Filho único da Monique, feita viúva muito jovem e dona de uma loja no Bairro Santa Felicidade, em Curitiba. Lucas não cometeu erro nenhum. Foi vítima de um “contexto”. Seu colega foi na cozinha da escola e pegou uma faca. A sala dos professores havia se transformado em alojamento da ocupação. Alguém podia se perguntar como uma coisa dessas pode acontecer em uma escola? Também me pergunto, ainda que seja inútil. Todo mundo sabe a resposta. É nossa tolerância ao delito e ao truque retórico que o justifica. A morte do Lucas é uma tragédia sem volta para Monique. Mas é apenas um “acidente” para a turma das ocupações. Um pequeno custo encaramos numa boa e logo esquecemos, enquanto Ana Júlia vira heroína no Facebook.

A pergunta relevante é por que diabos nossa sociedade tolera que escolas públicas sejam ocupadas por ativistas adolescentes e virem um campo de guerra? Por que aceitamos que a lógica banal da tragédia dos comuns se instale em nossos colégios e substitua o espaço regulado do dissenso democrático?

Não acho que a resposta seja fácil. Alguns dirão que é preciso ocupar escolas exatamente porque não há uma verdadeira democracia, no Brasil. Intuo que, para essas pessoas, uma verdadeira democracia seria aquela em que nem sequer seria cogitada uma proposta como a PEC 241. É possível. A democracia nunca é perfeita para quem já sabe das coisas.

Minha resposta vai por outro caminho. Intuo que, lá no fundo, nossa elite pensante tolera isto pela mesmíssima razão que o faz com a tragédia de nosso ensino público: a conta vai para os filhos dos outros. É inútil, mas gosto de me perguntar o que aconteceria se ocupações como estas, por qualquer razão que seja, ocorressem no colégio Bandeirantes, em São Paulo, ou no colégio São Bento, no Rio de Janeiro. A turma bacana perdendo aula, chupando “bala” de LSD na sala dos professores, pegando faca na cozinha do colégio.

Ok, é ridículo pensar nessas coisas. Escola privada tem dono, os pais pagam a conta, ficam em cima, e não demoraria meia hora para a polícia acabar com a bagunça. Não tem conta nem custo nenhum a ser socializado. Não tem essa da Ana Júlia perguntando “de quem é a escola?”, como se não soubesse que ela é de todos e não de quem é favor ou contra a PEC 241.

No fundo vem daí o mal-estar. Ao menos o meu mal-estar. A sensação do truque. Do país malandro que, parece, trata o “direito à ideologia” como um valor mais importante do que o direito à educação. Em que um debate democrático no Congresso seja aceito como justificativa para transformar espaços públicos em terra de ninguém. Que acha bacana quando um grupo de adolescentes entra numa escola e simplesmente interrompe na marra o ano letivo. Tudo de um jeito seletivo. Com a conta indo para os mais pobres, que não têm como se proteger da Ana Júlia e seu desejo de salvar o país da PEC 241.

A lei para quase todos

Busto incrível 1:1 The Joker (Coringa) da Sideshow Collectibles | SuperVault:
Foro privilegiado, ou foro por prerrogativa de função? Cláusula de barreira ou cláusula de performance? As palavras, principalmente em política, costumam expressar posições bem definidas.

O que chamamos foro privilegiado nem sempre foi visto assim. No passado era pior. As pessoas tinham direitos a partir de sua origem, de sua classe social, algo que as acompanhava até à morte. Nesse sentido, ao limitar o foro especial ao exercício de uma função, houve um avanço indiscutível. Perdido o cargo, retorna-se ao destino comum.

Deputados e senadores só podem ser processados pelo Supremo Tribunal. Em princípio, não é uma coisa boa se você fez algo errado. Os juízes do Supremo são mais competentes e, portanto, mais capazes de desarmar todas as tramas da defesa. Além disso, ao ser condenado pelo Supremo, não há para onde correr, não há chances de recursos a uma instância superior, como na vida aqui embaixo, onde os condenados se veem às voltas com juízes de primeira instância.

Por que os parlamentares se apegam tanto ao foro especial? Por que desqualificam os outros juízes, considerados por Renan Calheiros juizecos de primeira instância? Por que preferem o que deveriam temer?

A resposta está no tempo, isso que nem sempre sabemos definir, mas sabemos muito bem o que é. Os processos no Supremo levam anos para ser julgados, o tempo corre a favor dos acusados.

Segundo os últimos números, cerca de 224 parlamentares são objeto de investigação ou ações no Supremo. De 1988 para cá, 500 foram investigados e apenas 16, condenados.

Os números atuais são um recorde. Alguns parlamentares respondem a mais de um processo. Há os recordistas, como o senador Lindberg Farias (PT-RJ)ou o ex-deputado Paulo Cesar Quartiero, hoje vice governador (de Roraima), com 13 inquéritos cada um.

Nada tenho pessoalmente contra Quartiero. Desenvolvi mesmo uma visão crítica sobre a delimitação da área indígena Raposa-Serra do Sol. Mas andei por lá em algumas ocasiões, inclusive num momento em que Quartiero destruiu suas instalações de beneficiamento do arroz que produzia, revoltado com a perda de suas terras.

Como fiz algumas fotos, a Justiça me chamou para depor. Fui lá, no dia e hora e marcados, e contei o que vi. E disse que tinha as fotos. Por precaução salvei algumas e as mantive na mesa do computador.

Nunca mais fui chamado. De vez em quando, olhava as fotos e pensava comigo mesmo: vou mantê-las aí, pode ser que se interessem, que queiram ao voltar ao tema. Com o tempo retirei-as da minha vista. Nunca mais soube de nada a respeito desse assunto e, na verdade, perdi o interesse.

Claro que quero voltar a Uiramutã e pernoitar numa pensão de R$ 20 por noite, rever todas as belezas daquela região de Roraima, na fronteira com a Venezuela e a Guiana. Mas o destino da Raposa-Serra do Sol, tão discutido no passado, não é mais pauta de reportagem. Teria de fazer uma grande ginástica narrativa para que as pessoas se interessassem pelo que, de fato, aconteceu depois da delimitação da área indígena.

Tudo o que é sólido se desmancha no ar. A frase de Marx, adaptada por Marshall Berman para o continente americano, tem plena validade para o Brasil. Estou falando de um dos 500 casos que, por coincidência, se entrelaçaram com a minha trajetória pessoal.

Um dos inquéritos mais antigos de Renan Calheiros é o que envolvia sua amante mantida por empreiteira. O caso revelou uma riqueza pessoal insuspeitada e também se dissolveu no ar. Todas as etapas foram cumpridas no tempo. Acabou em pizza, o que em termos amorosos quer dizer: em poses para uma revista masculina.

A passagem do foro privilegiado para o comum não significa necessariamente uma solução perfeita para o problema. Lembro-me de que o deputado Bonifácio de Andrada muitas vezes enfatizou, em conversas sobre o tema, como é perigoso ser perseguido por um juiz no interior, sobretudo no momento eleitoral, em que as paixões políticas se acendem.

Atualmente, fala-se numa espécie de Corte dedicada exclusivamente aos parlamentares e outros detentores de foro especial. Não me parece a melhor saída. No entanto, a pior de todas é continuar empurrando com a barriga, enquanto os processos dormem no Supremo.

Aquele célebre momento em que Dilma nomeou Lula para protegê-lo de Sergio Moro deveria ser um ponto de inflexão. Na verdade, o mensageiro acabou ofuscando nossa memória da mensagem. Quem não se lembra do Bessias? Depois que Dilma caiu, todos queriam saber do Bessias, por onde andava, se estava recebendo seu salário, que futuro teria o Bessias num país sem Dilma na Presidência... Se, de repente, começarmos a chamá-lo de Messias, sua mensagem pode ter um significado mais amplo. Seu tropeço anunciaria um novo tempo, sem truques e artimanhas.

Ex-governantes sofrem crueldades, assim como repórteres investigativos. Uma delas é a dispersão de processos, o que os obriga a correr de um lado para o outro, tornando-os escravos de uma defesa de Sísifo: mal se explica aqui e já é preciso sair correndo para se explicar a alguns quilômetros de distância.

Com todas essas pedras no caminho, é preciso buscar uma saída. Dizem que uma das conquistas da Lava Jato foi demonstrar que a lei vale para todos. Mas vale mesmo?

A cadeia de Curitiba está cheia de gente sem mandato. Quem tem mandato tem polícia particular, com sofisticadas malas para desmontar grampos, assessorar bandidos no Maranhão. E ministros no Supremo para, com a rapidez de um relâmpago, livrá-lo das complicações. Mexam com os jagunços de terno preto e gravata e não faltará uma sumidade jurídica para nos esfregar a Constituição na cara.

A lei vale para todos? Felizmente, ainda não estão prendendo quem responde a essa frase com uma gargalhada.

Fernando Gabeira

Paisagem brasileira

Beira de rio, José Rosário

Por escolas boas, sem partido e sem religião

Escolas, públicas e privadas, deveriam ensinar. O alfabeto primeiro. Depois português, matemática, história, geografia e ciências. Artes e cidadania. Pelos índices alcançados por nossos adolescentes, nem o básico se consegue no Brasil. A educação é tão indigente, as instalações são tão precárias, o bullying é tão violento e o nível dos professores mal remunerados é tão baixo que o debate é desviado para a doutrinação política, religiosa e de gênero.

Não me interessa se aluno pode usar saia, se aluna pode usar shortinho, se tem uniforme ou não. Não gostaria de matricular filhos em escolas que cultivassem uma doutrina – política ou religiosa –, fosse ela qual fosse. A maioria absoluta das famílias brasileiras deseja que o filho não perca aulas, que os professores não faltem, que o ensino prepare para um mercado competitivo. E que as escolas sejam centros de reflexão, e não de formação de soldadinhos de esquerda ou de direita ou de padres e freiras. Sou, como a maioria, contra a imposição de uma ideologia ou de uma fé. A diversidade continua a ser o melhor caminho.

A escola escolhida por meus pais estava longe de ser a ideal – mas os professores eram excelentes. Cursei o antigo primário numa escola militar em Copacabana em que menina também usava gravata e onde os alunos cantavam hinos no início do recreio. Obedecia-se à sineta para voltar à sala de aula. Tive aula de catecismo, com direito a missal – o livrinho católico com ritos e orações. Meninas tinham aula de prendas domésticas, só elas. Enquanto os meninos faziam futebol. Adulta, eu me tornei antimilitarista, agnóstica e uma nulidade em culinária e costura. Deploro a interferência de partidos e igrejas nas escolas. Deploro a discriminação a meninas – e a meninos.

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Hoje, vejo os pais no maior dilema ao escolher a escola. Se é longe, não quero. Se tem santo no nome, não quero. Se tem professor comunista ou militar, não quero. Se é rígida demais, não quero. Se é liberal demais, não quero. Drogas, aborto e transexualidade? Não quero esse debate em sala de aula. Ah, quero uma escola bilíngue para meu filho não precisar ficar no Brasil.

A massa dos pais não tem direito a dilema existencial, político ou religioso. As mães – sempre elas – ficam em filas imensas para tentar matricular suas crianças em qualquer escola pública. Que seja perto de casa ou, no interior do Brasil, a quilômetros de asfalto, mata, terra batida, córregos, rios. Que tenha giz, quadro-negro e ao menos um professor dedicado. Que sirva merenda escolar. Que tenha banheiro e papel higiênico. Que tenha teto e chão. Mãe briga e chora por não ter onde alojar filhos em idade escolar.

No Brasil privilegiado, os pais nunca pensam em matricular seus filhos em escolas públicas. E o motivo é simples. Acham o ensino pior e antiquado, acham as instalações hor-ro-ro-sas e não querem que seus pimpolhos percam o ano letivo por greves de professores e funcionários ou por ocupações de colegas. O Brasil mais culto é um Brasil dividido. Uma minoria vibra com as ocupações de escolas públicas contra a PEC disso e daquilo. Uma parte se entusiasma e se emociona com a jovem Ana Júlia, aos 16 anos mais articulada que 90% de nossos congressistas. Uma outra parte não dá like no discurso de Ana Júlia a favor das ocupações e só deseja que seus filhos passem no Enem. Ninguém quer o adiamento das provas.

Movimentos estudantis por melhor ensino são legítimos em qualquer lugar do mundo. No Brasil ou na França – país em que quase todo ano alguma escola ou universidade é ocupada por estudantes em protesto –, os governos sempre reagem mal, a polícia abusa na repressão, a falta de diálogo é a tônica do processo, os exageros acontecem de lado a lado. Em Curitiba, o adolescente Lucas Mota, de 16 anos, morreu com uma facada desfechada pelo colega numa escola ocupada. Ana Júlia acusou os deputados de ter “as mãos sujas de sangue”. Precisa voltar a estudar lógica.

O maior desafio do Brasil transcende o combate à desigualdade. Resvala na falta de valores, que deveriam ser passados também pelas famílias. Nossa regra é o desvio de função. Escolas deveriam ensinar. Alunos deveriam estudar. Deputados e senadores não deveriam enforcar dias úteis nem roubar. Vereadores não deveriam aprovar sua própria aposentadoria especial. Prefeitos e seus aliados não deveriam rezar o pai-nosso e transformar Deus em correligionário, como fez o pastor Marcelo Crivella, de mãos dadas com tucanos, no Rio de Janeiro. Hospitais deveriam ter leitos, medicamentos, tomógrafos e ser centros de cura, não centros de humilhação e doença, interditados pela vigilância sanitária. Policiais deveriam garantir a segurança, e não sair matando jovens inocentes. O desvio de função nos deixa sem teto e sem chão.

Nosso churrasco tem de ser parte da solução do problema climático

Agora é para valer. O Acordo de Paris contra as mudanças climáticas entrou em vigor nesta sexta-feira e suas provisões passaram a ter valor de lei doméstica em todos os países que o ratificaram, entre eles o Brasil. Limitar o aquecimento da Terra deixa, neste momento, de ser uma intenção e passa a ser obrigação de todos.

Isto é que é tempo!!!:
A partir desta segunda-feira, diplomatas e ministros de 196 nações se reúnem em Marrakech, Marrocos, para encaminhar a regulamentação dessa nova lei internacional. O encontro acontece sob três bons auspícios. O primeiro foi a virada política que permitiu que o acordo do clima passasse a vigorar quatro anos antes do prazo oficial. O segundo foi o acordo, fechado em outubro no Canadá, para limitar o crescimento das emissões da aviação civil internacional a partir de 2020. O terceiro foi a emenda ao Protocolo de Montreal produzida também em outubro, em Ruanda, para reduzir as emissões dos supergases de efeito estufa HFCs.

Esse conjunto de novidades é uma sinalização de que a política enfim tenta ajustar o passo com o mundo real. E, no mundo real, 2016 já bateu antecipadamente o terceiro recorde seguido de ano mais quente da história, furacões e ressacas matam e causam prejuízos mundo afora e mais uma seca ameaça os brasileiros com desabastecimento de água e energia.

O Brasil chega a Marrakesh emitindo sinais que contrastam com esse cenário internacional favorável. Dados recém-divulgados pelo SEEG (Sistema de Estimativa de Emissão de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima) mostram que as emissões brasileiras em 2015 subiram 3,5% enquanto o PIB despencava 3,8%. O principal vilão foi o desmatamento na Amazônia, que aumentou em 24% no ano passado e deve voltar a subir neste ano – possivelmente na esteira do sinal ruim que o governo passa ao adiar sucessivas vezes os prazos do Cadastro Ambiental Rural.

Os dados do SEEG consolidam o cenário que apelidamos de “estagflação climática”, no qual o país fica mais pobre e polui mais ao mesmo tempo. Mas, mais do que isso, eles sugerem que as políticas climáticas nacionais não fizeram nem cócegas na economia real. As emissões brasileiras pararam de cair em 2010, justamente quando essas políticas começaram a ser adotadas. E, no que depender do Congresso, elas continuarão sem cair: nosso Parlamento acaba de aprovar um programa de incentivo à construção de usinas termelétricas a carvão mineral a partir de 2023.

Se o Brasil estiver falando sério sobre cumprir o acordo do clima, terá de produzir uma rápida inflexão dessa curva. Para isso, precisará de um plano efetivo para implementar a sua NDC, o compromisso de reduzir a poluição climática em 37% até 2025 em relação ao 2005.

O primeiro passo é abandonar a retórica do “berço esplêndido”. Esta consiste em deitar-se sobre os louros da redução da taxa de desmatamento entre 2005 e 2010 e ganhar tempo enquanto isso para explorar e queimar combustíveis fósseis – enquanto se sustenta no velho discurso de que “nossa matriz é mais limpa que a dos outros” – e manter uma pecuária com padrões de eficiência do século 18.

Tal atitude deixa a economia do país nas mãos dos setores mais atrasados enquanto deixa de incentivar a inovação tecnológica. Corremos o risco de micar com “ativos” como o pré-sal. Países para os quais apontamos o dedo hoje poderão nos vender tecnologia limpa amanhã ou embargar nossas commodities depois de amanhã, já que nossa meta oficial é a conivência com o desmatamento ilegal até 2030.

A estratégia no pós-Paris deveria ser a inversa: aproveitar a vantagem dada pela desaceleração do desmatamento no passado para acelerar a descarbonização, evitando que a concorrência nos ultrapasse.

Isso envolve zerar todo o desmatamento, criando uma economia de base florestal; direcionar todo o crédito agropecuário para atividades eficientes e de baixa emissão, tornando nosso churrasco parte da solução e não do problema; eletrificar os transportes urbanos, baseados numa matriz elétrica 100% limpa. Estudo após estudo têm mostrado que nosso PIB aumenta quando nossa ambição climática cresce.

A diplomacia brasileira leva a Marrakesh algumas boas ideias sobre como fazer o Acordo de Paris funcionar na prática no âmbito internacional. Mas a melhor coisa que o Brasil pode fazer pelo clima e por si mesmo é botá-lo para funcionar de verdade. Dentro de casa.

André Ferretti

Minas Gerais. Vocação: destruição

Desde quando os paulistas romperam a Mantiqueira e a Serra do Espinhaço, nos fins do século 17, mamelucos que mal falavam o português, com seus pés rachados e barbas hirsutas, abrindo picadas, derrubando a mata para plantar milho e criar porcos, matando muitos bugres e submetendo outros tantos ao trabalho servil, as Minas iniciaram sua história de devastação da natureza exuberante de rios e morros, florestas, animais e altivos índios.

O caminho da destruição começa com a descoberta do ouro no Ribeirão do Carmo, no Rio Casca, no Vale do Rio das Velhas e no Rio Tripuí, de onde surgirão Mariana, São João del-Rei, Sabará e a Vila Rica do Ouro Preto. Depois, adentrando-se no Mato Dentro, passando pela Serra da Piedade, pelo cume de Itabira, até o Sêrro para, finalmente, chegar aos diamantes de Tijuco.

No processo que se estende por quase um século, desvia-se a correnteza das águas, abandona-se uma área pela outra, deixando um mar de cascalho revirado. E os esbulhadores não se contentam com os leitos dos rios, abrindo clareiras nas matas ciliares, escavações profundas, chamadas de “catas”. Daí vêm as “grupiaras”, mineração morro acima. E, com elas, as queimadas que devastaram os mananciais e puseram em risco bichos e as madeiras de lei. A terra seca e sem proteção perde a fertilidade com as chuvas e racham, criando capoeiras e boqueirões. Muda a paisagem e assentam-se as cidades, com suas igrejinhas no alto do morro e suas casas com varandões e sobrados com porões onde porcos e escravos dividiam o espaço imundo.

A água tornava-se fundamental quando a exploração do ouro chega ao alto dos morros. Acumulada em grandes reservatórios, trazia a lama para o pé da montanha até os “mundéus”, reservatórios enormes nos quais a lama era decantada e separava-se, com a ajuda das bateias, o ouro tão procurado.

Reservatórios gigantescos, lama morro abaixo, povoados se espalhando pelo entorno. Crônica de um futuro conhecido.

O ouro trouxe os tropeiros do Sul e do Nordeste. O caminho novo que se abriu, em direção ao porto do Rio, levou ouro e trouxe escravos. O reino, risonho, manda funcionários, soldados, padres. E farta-se com o quinto – toneladas! Enquanto havia abundância, pagava-se sem muito reclamar. Com o declínio das minas, a metrópole impõe restrições à manufatura – as primeiras metalurgias já se instalavam na região – e ameaça com cobranças à força dos impostos devidos. Era a derrama. O povo das Minas, crescido no isolamento das montanhas, com seu ar circunspecto e desconfiado, começa a discordar daquilo tudo. Os filhos dos mais abastados, estudados em Coimbra, trazem de lá ideias de igualdade e emancipação. Juntam-se os fazendeiros, altos funcionários, uns tantos idealistas, como o alferes conhecido pela alcunha de Tiradentes, pensam em romper com aquelas proibições e, principalmente, aquele arrocho tributário. O movimento fracassa e a grande mineração dá seus últimos suspiros pelos fins do século 18.

Mas Minas mantém sua vocação de extração de metais, reservatórios de lama e destruição de rios e matas. Há um ano, o desastre-crime de Mariana lembrou isso ao país e ao mundo.

Daniel Medeiros

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Diante do nariz

 Não vale a pena multiplicar os exemplos. O ponto em questão é que todos nós somos capazes de acreditar em coisas que sabemos serem falsas e depois, quando se torna claro que estávamos errados , somos capazes de torcer descaradamente os factos para tentar mostrar que tínhamos razão. Do ponto de vista intelectual, é possível prolongar este processo indefinidamente: o seu único obstáculo é que mais tarde ou mais cedo uma crença falsa esbarra de frente com a sólida realidade, normalmente num campo de batalha.

Quando consideramos toda a esquizofrenia que prevalece nas sociedades democráticas , as mentiras que é preciso dizer para captar votos, o silêncio a propósito dos assuntos, as distorções da imprensa, é tentador acreditar que nos estados totalitários há menos impostura, maior capacidade para encarar os factos. Ali, pelo menos, a classe dirigente não está dependente do favor popular e pode dizer a verdade de forma crua e brutal. Goering pôde dizer " Quereis canhões ou manteiga?", ao passo que os seus homólogos democráticos tiveram de embrulhar a mesma ideia em centenas de palavras hipócritas.

Na verdade, porém, a fuga à realidade é muito idêntica em toda a parte e tem consequências muito similares. Ao povo russo foi inculcada durante anos a ideia de que vivia melhor que qualquer outro e os cartazes de propaganda mostravam as famílias russas diante de mesas cheias de comida e o proletariado dos outros países ocidentais eram tão superiores às dos russos que evitar qualquer contacto entre os cidadãos soviéticos e os estrangeiros se tornou um princípio político de base. Depois, como resultado da guerra , milhões de russos comuns entraram na Europa; e quando regressaram a casa, a anterior fuga á realidade será forçosamente expiada com toda a sorte de atritos. Se os alemães e os japoneses perderam a guerra, foi em grande parte porque os seus dirigentes foram incapazes de encarar factos que eram evidentes para qualquer olhar imparcial.

Ver o que está diante do nosso nariz exige uma luta constante. Algo que nos ajuda nesse sentido é manter um diário, ou pelo menos manter algum tipo de registo das nossas opiniões sobre acontecimentos importantes . Caso contrário, quando alguma ideia particularmente absurda é destruída pelos acontecimentos , podemos simplesmente esquecer que acreditamos nela. Os prognósticos políticos costumam estar errados, mas mesmo quando fazemos um que bate certo, descobrir por que acertamos pode ser um exercício muito esclarecedor . Em geral, só acertamos quando os nossos desejos ou os nossos medos coincidem com a realidade. Reconhecer este facto não nos livra, é claro, dos nossos sentimentos subjetivos, mas permite que em certa medida os isolemos da nossa razão e façamos prognósticos isentos, segundo as regras da aritmética. na sua vida pessoal, a maior parte das pessoas é bastante realista. quando estamos a fazer o nosso orçamento semanal, dois mais dois dá sempre quatro. A política, em contrapartida, é uma espécie de mundo subatômico ou não-euclidiano, onde é muito fácil que a parte seja maior do que o todo ou que dois objetos estejam em dois sítios simultaneamente . daí as contradições e incongruências que registei acima, todas elas derivadas , em última análise, duma secreta convicção de que as nossas ideias políticas , ao contrário do nosso orçamento semanal, nunca serão postas à prova pela sólida realidade."

George Orwell, "Diante do Nariz"

PT articula atos pró-Lula e esquece seus presos

Num instante em que os investigadores da Lava Jato avaliam que Lula precisa de interrogatórios, o PT e seus aliados providenciam mais solidariedade. Lançarão na quinta-feira da semana que vem uma campanha “em defesa da democracia, do estado de direito e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.”

O movimento ignora companheiros que eram festejados em eventos partidários como “guerreiros do povo brasileiro” e hoje estão presos em Curitiba. Entre eles os condenados José Dirceu e João Vaccari. Ou Antonio Palocci, enviado pelo juiz Sérgio Moro ao banco dos réus nesta quinta-feira.


Para Lula, um manifesto com passagens assim: “Na democracia, o Brasil conheceu um período de estabilidade institucional e de avanços econômicos e sociais, tornando-se um país melhor e menos desigual. Mas essa grande conquista coletiva encontra-se ameaçada por sucessivos ataques aos direitos e garantias, sob pretexto de combater a corrupção.” Para os demais, nenhuma palavra.

A chance de os rapapés dirigidos a Lula surtirem algum efeito jurídico é nula. A hipótese de o esquecimento dos demais encrencados produzir mágoas é total. O petismo ainda não se deu conta mas o histórico de delações da Lava Jato revela que o pior tipo de solidão é a companhia dos advogados na carceragem de Curitiba.

Pós-graduado em prisão, Dirceu ainda desfruta da companhia do próprio ego. Mas Vaccari emite sinais de depressão. E Palocci é visto pelos correligionários como uma alma frágil. Receia-se que não resista a uma rotina em que o sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura sem doce.

O partido vai à escola


Alunos indígenas de Educação infantil "protestam" contra a PEC 241, em Pernambuco, e ainda aprendem o bordão do PT: “O povo unido/jamais será vencido”

Je suis Bukawu

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No dia sete de janeiro de 2015 terroristas armados invadiram a sede do jornal francês "Charlie Hebdo" e mataram 12 pessoas. Quatro dias depois, cerca de 3,7 milhões de pessoas, dentre elas mais de 40 líderes mundiais, foram às ruas em solidariedade às vítimas, entoando a frase "Je suis Charlie" - eu sou Charlie, em francês.

Aos 22 de março de 2016 outras 34 pessoas foram assassinadas em função de atos terroristas levados a efeito na capital da Bélgica, Bruxelas. Uma vez mais, de forma louvável, agitou-se a consciência mundial, manifestada nas ruas por multidões que entoavam o brado "Je suis Bruxelles".

Pouco depois, no dia 12 de junho de 2016, outro terrorista invadiu uma discoteca na cidade de Orlando, nos Estados Unidos, e ali abateu a tiros 50 seres humanos. Este repulsivo ato igualmente mereceu, e de forma diversa não poderia ser, pronto repúdio - até mesmo as cores da famosa Torre Eiffel, em Paris, foram alteradas em solidariedade às vítimas, enquanto o povo nas ruas exclamava "Je suis Orlando".

Chegamos ao dia 14 de julho de 2016, data na qual 85 pessoas foram massacradas por um terrorista na cidade francesa de Nice. Retornam às ruas as multidões e seus líderes, entoando, desta feita, o brado "Je suis Nice".

Incorporado está, pois, este grito - o do "je suis" - à rotina a cada dia mais conflituosa da humanidade. Eu só ainda não entendi bem o motivo de ele somente ser aplicado às vítimas de países ricos. Será que os miseráveis não merecem a nossa solidariedade?

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Crianças nas minas de Bukawu
Dia desses, por exemplo, pensava no povo lá de Bukavu, um dos centros de mineração do Congo. Trata-se de um país flagelado por uma guerra sem fim, travada em torno da exploração do coltan, um minério raro sem o qual não teríamos a maioria dos aparelhos eletrônicos modernos.

Nos últimos 15 anos esta guerra já ceifou cinco milhões de vida e contribuiu para o estupro de 300 mil mulheres. Uma investigação identificou 157 empresas ocidentais envolvidas com a exploração deste mineral - e calculou-se o custo de um telefone celular produzido com coltan extraído daquele
país: a vida de duas crianças.
Pedro Valls Feu Rosa

Aí não dá, Lewamdowsky! Falta decoro! Falta pudor!

Se alguém me perguntar o que mais me irrita na vida pública brasileira além da roubalheira, da incompetência, da desídia — essas coisas que irritam toda gente —, a minha resposta será esta: a falta de decoro. As autoridades brasileiras, com raras exceções, estão perdendo qualquer senso de solenidade — muito especialmente a solenidade do cargo que ocupam. É um dos aspectos que admiro no presidente Michel Temer: encarna o que me parece ser a correta neutralidade do estado. “Ah, ninguém é neutro etc. e tal…” Eu sei. Mas deixemos isso para ser decodificado por analistas, cientistas sociais, críticos profissionais, jornalistas… Que a autoridade se esforce!

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Infelizmente, não é o que temos visto. O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo, comportou-se muito mal nesta quinta na abertura, em Porto Seguro, do 6º Encontro Nacional de Juízes Estaduais, que é realizado a cada três anos pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros). Ah, sim: com direito a show de Ivete Sangalo e Diogo Nogueira. Tá certo… Não faria muito sentido um encontro de magistrados, sei lá, na periferia de Salvador, de São Paulo ou do Rio, onde estão os que têm fome de Justiça, certo? Pareceu demagógico? Só estou evidenciando como é fácil fazer demagogia, outra das práticas corriqueiras no Brasil que me causam asco.

Pois bem! Lá estava o ministro do Supremo, certo? Um dos 11 varões e varoas de Plutarco da República. O único discurso que lhe cabe é o institucional. A única coisa aceitável é falar dos consensos que nos unem. Até os dissensos devem ser guardados para a Corte. A única tarefa de quem presidiu o Supremo até outro dia era falar em favor do povo brasileiro.

Mas não foi isso o que fez Lewandowski. A voz que se ouviu era a de um militante sindical, e do tipo que carrega no sotaque cutista. Disse ele, diante da categoria que compõe a elite salarial do Brasil, sobre a reivindicação dos magistrados por aumento de vencimentos: “Não há vergonha nenhuma nisso, porque os juízes, no fundo, são trabalhadores como outros quaisquer e têm seus vencimentos corroídos pela inflação (…). Condomínio aumenta, IPTU aumenta, a escola aumenta, a gasolina aumenta, o supermercado aumenta, e o salário do juiz não aumenta? E reivindicar é feio? É antissocial isso? Absolutamente, não”.

Foi aplaudido com entusiasmo. Ele tinha mais a declarar:
“Para que possamos prestar um serviço digno, é preciso que tenhamos condições de trabalho dignas e vencimentos condizentes com o valor do serviço que prestamos para a sociedade brasileira”.

Não quero parecer amargo, mas, se o brasileiro pobre fosse convidado a dizer quanto vale, na média, o serviço da Justiça, as palavras poderiam não ser as mais doces.

Notem: é claro que acho que juízes têm o direito de reivindicar reajuste de salário e que defendo que tenham vencimentos dignos. E eles têm! Mas disso devem cuidar as múltiplas associações de magistrados. As há mais no Brasil que queijos na França. É de um ridículo ímpar que um ministro do Supremo vá falar como líder de corporação.

Mais: é claro que ele sabe o peso dessas palavras num momento em que se discute a MP 241. Parece que Lewandowski está expressando uma opinião política, não? Ele sabe que também o Judiciário vai ter de lidar com algo que lhe era estranho: teto de gastos. Um ministro do Supremo tem a obrigação moral de falar para pacificar a nação e as contendas, não para exacerbá-las. Um ministro do Supremo não pode ter grupo. Nem lado.

Que os senhores da AMB e os presentes se manifestassem nesses termos, vá lá. Que o homem que compõe a cúpula de um Poder, que ele próprio presidiu até outro dia, resolva discursar como sindicalista, bem, aí não dá.

Falta decoro.

Falta pudor.