quinta-feira, 31 de julho de 2025
Uma coisa totalmente normal de vender
Enquanto eu estava na academia, vi um homem na máquina ao meu lado vestindo uma camiseta do Alligator Alcatraz, e embora a maioria das coisas não me influencie mais politicamente, esta realmente influenciou. Aquela camiseta é um verdadeiro símbolo de um campo de concentração. As pessoas detidas lá não são criminosos que foram considerados culpados em um tribunal — são pessoas que Trump considerou indesejáveis. E agora que mais cinco locais foram aprovados em vários outros estados, a situação só está piorando. É realmente assustador.
A inteligência artificial é uma fresta para a revolução
A experiência humana cada vez mais se entrelaça com as telas. De fato, em seus distintos formatos – do cinema à televisão, do computador ao smartphone –, a tela não se limita a uma mera função projetiva inerte, ela é, sobretudo, uma prótese de percepção que o ser humano progressivamente foi obrigado a internalizar em seu aparelho psicofísico. Essa ideia, que à primeira vista pode soar como uma abstração filosófica, revela-se como um objeto tátil que nos permitirá compreender as mutações profundas em nosso modo de pensar, sentir, aprender e interagir com o mundo.
É nesse terreno, onde a tecnologia se funde com a fenomenologia da experiência íntima humana, que a inteligência artificial (IA) e, em particular, os modelos gerativos de linguagem natural e de linguagem da natureza já se apresentam como protagonistas de uma nova era da cultura e da civilização. Esta nova arma criada por cientistas em seus laboratórios experimentais é capaz de redefinir a própria noção que possuímos de comunicação, ou mesmo a própria dinâmica da educação e do trabalho. Com tantos elementos distintos na equação, finalmente podemos novamente mencionar, sem o constrangimento típico, as urgentes lutas sociais e políticas que precisamos reinaugurar.
Historicamente, a tela tem sido um instrumento poderoso na moldagem de percepções e na disseminação de ideologias. Desde a invenção do cinema, no alvorecer do século 20, testemunhamos a capacidade intrínseca dessa “nova mídia” de mobilizar as massas para processos de lutas através do estímulo ideológico, sempre ao redor de uma sensibilidade coletiva projetada como filmes-modelos. O cinema, em sua gênese, não foi apenas uma forma de entretenimento; ele se estabeleceu como um vetor de induções psíquicas, contribuindo tanto para ideologias revolucionárias (como as bolcheviques) quanto contrarrevolucionárias. Sua influência foi palpável na integração estratégica do império do capitalismo americano e, de forma ainda mais sombria, na adesão da população alemã ao nazismo.
A projeção de imagens em movimento, apresentadas em telas como personificação do mercado e de seus líderes políticos, exerceu um controle massivo. Esse controle espetacular foi capaz de reconfigurar a percepção visual e, por consequência, a própria realidade percebida. Aqui, a existência humana se entremeava com a existência da cultura fílmica. E, com a transição do suporte analógico para o digital, o cenário se tornou exponencialmente mais complexo.
A dita pós-modernidade, marcada pela ubiquidade das telas e pela velocidade da informação, intensificou esse processo de expropriação e orientação artificial da cognição. Os recentes ataques neofascistas às democracias globais, por exemplo, revelam um investimento estratégico justamente nas mesmas produções audiovisuais perversas – as fake news, os negacionismos, as montagens que compartilham envolvendo desde figuras bíblicas até políticos populistas – e novamente levaram ao extermínio partes da população, principalmente no Brasil e em sua aberta campanha ao genocídio de classes desfavorecidas. A mensagem direcionada ao gerenciamento ideológico e ontológico às sociedades açoitadas pelo subdesenvolvimento, como a nossa, é implacável e demanda um grande aparato manipulador que intermeia tais ataques, este é o papel daquilo que conhecemos com “a mídia”.
Essa rede de organização política da informação, facilitada pela onipresença das telas, demonstra o quão profundamente nossa percepção pode ser constrangida por estímulos cuidadosamente orquestrados, eles têm caracteres libidinais, consumistas, de pertencimento, de estilos e opções personalíssimas como a moda, a gastronomia, a estética corporal etc. É nesse contexto entre a instrumentalização das nossas telas que há muito trava-se uma guerra pelo poder. E aqui, a IA é, antes de tudo, uma potencial forma de contra-informação, um modelo que, se olhado em sua “essência”, não será apenas instrumento e/ou dispositivo de intensificação da desigualdade, mas uma oportunidade de reformas estruturais planetárias. É esse o risco e o desespero que podemos pressentir entre os comportamentos extremista e irracionais da elite governante e econômica.
Ferramentas que atuam com base em deep learning (aprendizado profundo de máquina não supervisionado) orientadas por redes neurais artificiais (RNAs) processam informações ininterruptamente e autonomamente; elas as criam, as moldam e as disseminam em uma escala e velocidade sem precedentes. O papel humano torna-se limitado em certos processos de uma rede neural. Em certo ponto, a mente humana e a mente artificial se desacoplam, e apenas uma é capaz de se mover com expertise neste plano de uma realidade totalmente digitalizada.
É um fenômeno que exige nossa mais profunda atenção, pois aqui ainda sobressaem os riscos e assédios que observamos diariamente, ou seja, há um anseio do poder neoliberal em dominar tal tecnologia utilizada como um bem voltado à produtividade. Porém, também há um campo de forças insurrecionais que sequer o próprio sistema de controle e produção pode gerir, impedir, ou mesmo judicializar.
A questão não é mais se a IA influenciará a humanidade, mas como ela delineará as qualidades políticas, eleitorais, educacionais, subjetivas, institucionais, diplomáticas e bélicas nos próximos anos. Os dias atuais nos confrontam com uma realidade onde a comunicação política se transformou em um campo de batalha, e a “guerra de vídeos” deflagrada recentemente pela esquerda nacional, provisoriamente intitulada “Nós contra eles”, é um exemplo contundente dessa nova dinâmica. De fato, nossa única possibilidade de uma instrumentalização efetiva a um processo revolucionário, o único “revide” que nos sobrou e que tanto aguardávamos efetivar, após séculos de exploração e injustiça. São essas as condições materiais de desencadeamento de novas gramáticas de lutas de classes e, como toda nova ação insurgente, novas dinâmicas devem entrar. Fomos deveras provocados, na captura de nosso querer e na segregação de nossas ações solidárias.
Diante desse cenário tecnológico, apenas meia dúzia de vídeos curtos, mas que escandalizam o papel do Congresso Nacional e da estupidez da classe dominante, já fez solavancar e aterrorizar o status quo tanto da oposição quanto dos veículos de imprensas líderes. Recorrer à IA para defender a taxação dos super-ricos, o fim da escala 6×1, maior acesso à distribuição de recursos e serviços sob novas figurações de produto audiovisuais democráticos, acessíveis e esclarecedores demonstrou que podemos recorrer à linguagem fílmica que ocupa as redes sociais, e isso nos sinaliza para a urgência de dominar esse novo terreno da comunicação política, onde a direita tem historicamente trafegado com maior desenvoltura.
O novo uso da IA para uma causa, para reacender a militância em torno de uma bandeira socialmente relevante, é um tipo de inflamação popular que não será mais contido. Uma característica relevante dessas novas produções é que não há identidades de militantes, não é possível sequer atribuir a um ser humano a confecção dos vídeos. De certo, digitamos na caixa de texto a narração da cena, os personagens, o conteúdo (mesmo que abstrato), mas são as próprias redes neurais que constroem o vídeo, sonorizam, editam, criam efeitos especiais, transmitem uma mensagem valiosa. Sequer o Partido dos Trabalhadores (PT) pode ser identificado como autor e promovedor do movimento, até porque o governo é de viés legalista e neoliberal. A impossibilidade de acusar indivíduos de subversão pela natureza mesma dessa produções não permitirá que a justiça, a política ou qualquer órgão estatal seja capaz de punir, incriminar. Abre-se uma era de anarquismo comunicacional, e os projetos de regulamentação da IA são equivocados tanto do ponto de vista técnico quanto conceitual.
Os vídeos divulgados por militantes de esquerda, e suas redes neurais, cumpriram um efeito simbólico e mobilizador. Sem precisar apelar às retóricas de ódio e acusações agressivas contra representantes específicos, ali apresenta-se estilisticamente a imagem-movimento de um antro degradado de acordos de políticos que se julgam astutos e cujos mecanismos de corrupção não podemos contestar. Acontece que, para nós, temos um passado literário e científico produzido por grandes figuras do pensamento, que nos legou a potência de criar maior impacto, capaz de criar compreensões mais fortalecidas da natureza humana, da imensidão das formas de existência e resistência. A IA tem um imenso poder duplo: pode tanto emancipar quanto manipular a construção de consensos, levando à polarização radical.
Neste ponto, é papel da universidade renovar seus votos de compromisso com a vida. Para as academias não resta alternativa a não ser imprimir o máximo de facilitação entre as sociedades e esta nova fonte de saber-poder. Se insistir em estratificação e burocratização, as universidades do mundo enfrentarão formas ostensivas de contestações, na mesma moeda que enfrentarão os governos, o latifúndio agrário, os regimes e escalas de trabalho, a participação aos bens públicos e aos direitos fundamentais. As academias precisam fazer valer o papel que há tanto lhe foi confiado, mesmo que a atual tecnologia social de suas ações não as permitam cumprirem tal magnânima missão.
É nesse cenário de incertezas e de um poder tecnológico em constante expansão que a IA, paradoxalmente, pode se apresentar como esta “fresta para a revolução”. Não se trata de uma revolução nos moldes tradicionais, com levantes populares, barricadas, assaltos com milícias armadas e mudanças abruptas de regime, mas de uma mensagem oculta, silenciosa e íntima, que torna o sistema dominante o arquétipo maior do inimigo. No que tange às relações de poder e saber, outra dimensão discursiva será produzida pelas redes neurais, revitalizando conceitos e fenômenos, histórias de lutas modernas e antigas, em que novamente nos deparamos com a opressão das classes oprimidas e que sempre apostaram na mobilização. Agora, a informatização das lutas permite um caminho promissor.
Se a IA é capaz de gerar e disseminar narrativas em escala massiva, ela também pode ser utilizada para desconstruir narrativas hegemônicas e para amplificar vozes dissidentes. A atual ação da esquerda nacional é um prenúncio disso: a apropriação de ferramentas tecnológicas para disputar a narrativa e mobilizar a base, mesmo que com recursos limitados, pode ser uma nova forma de marginalismo heroico, o uso estratégico e consciente para fins de transformação social sob um rígido suporte popular. A IA, nesse sentido, é um catalisador de novas possibilidades, de vozes periféricas, excomungados, amaldiçoados e portadores de doenças psíquicas. Um campo de disputa onde o futuro da luta social e mental pode ser redefinido. A história, que parecia ter chegado ao seu fim, pode estar apenas começando, impulsionada por essa nova força tecnológica que, se bem utilizada, pode nos levar a um mundo mais livre, solidário e igualitário.
A USP, construída sobre a excelência na ciência, cultura, arte e filosofia, depende da nossa capacidade de questionar o mundo com abertura, desprendimento, inteligência e coragem. A ocupação desta universidade, por décadas, de grandes expoentes do intelectualismo nacional, permite que derivemos a clareza de propósito e a coerência ética para que a tecnologia atual sirva à emancipação humana, e não à sua subjugação. Que a história, que se desenrola diante de nossos olhos, cujo materialismo é a própria abstração do código, seja um instrumento a serviço dessa construção coletiva.
A “fresta para a revolução” que a IA pode abrir não se concretizará sem um esforço consciente e coletivo para garantir que essa tecnologia seja desenvolvida e utilizada de forma transparente e responsável, e, neste ponto, almejamos uma democracia direta, de participação livre e aberta de todas(os) os brasileiros(as). O dispositivo da IA pode realizar a aproximação entre tudo o que foi institucionalizado e o interesse público, o que nos faz prescindir de representação política, dos poderes republicanos e, principalmente, de uma polícia militar e de forças armadas descoladas da realidade do mundo. A verdadeira revolução, portanto, é um projeto de sociedade mais inclusivo, pacífico e democrático. É um convite à intervenção, a uma apropriação estética dessa ferramenta poderosa, para que a história não se repita daqui em diante, ou que se repita sem os velhos e boçais personagens, agora satirizados e humilhados por jovens rebelados sem qualquer inserção ou reconhecimento social, profissional e intelectual.
A verdadeira revolução não será travada nas ruas, mas nas redes neurais. A IA representa uma oportunidade histórica de democratizar o poder da informação e dar voz aos silenciados. Cabe à universidade, e especialmente à USP, liderar esse processo de forma ética e responsável. O futuro da democracia pode depender de nossa capacidade de transformar essa tecnologia em instrumento de emancipação, não de opressão.
Tempos sombrios
Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.
Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?
É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"
Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.
Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.
Íamos, com efeito,
mudando mais frequentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.
E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.
Bertolt Brecht
Aqui, na abundância
“E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?”, escreveu Carolina Maria de Jesus, mulher negra das favelas de São Paulo, que catava o lixo para se sustentar a si e aos três filhos. O seu primeiro livro, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado nos anos 60, foi um estrondo, de vendas e de consciências.
Aqui, na abundância, não é fácil entender essa “tontura da fome” que Carolina descrevia, a fome extrema até o corpo ficar a tremer, até o cérebro desligar para se poupar à falta de energia, deixando uma pessoa quase sem raciocínio. A única coisa que funciona é o instinto, a procura incessante por alimento, sem que o cérebro tenha sequer a capacidade de avaliar o risco/benefício, como o de ir para uma fila de distribuição de comida ou de água sujeito a ser baleado. Mas qual é a alternativa?
Aqui, na abundância, não faltam ecrãs onde assistimos em direto à fome em Gaza e depois gastamos tempo e recursos a discutir se as fotos são verdadeiras ou não.
O grau de alheamento é tal que Benjamin Netanyahu consegue dizer, com o ar mais sério do mundo: “Não há fome em Gaza.” E até Donald Trump lhe responde: “Aquilo não se pode fingir.”
Segundo o Ministério da Saúde palestiniano, 150 pessoas morreram à fome, um número que inclui 88 crianças; e, segundo as Nações Unidas, cerca de mil pessoas foram assassinadas enquanto esperavam nas filas de distribuição de comida.
Os reféns ainda cativos (50, sendo que vivos já serão apenas 20) já não são motivo, há muito, para justificar a barbárie – aliás, as famílias dos reféns juntaram-se aos pais dos soldados e a milhares de pessoas em protestos, na semana passada, em Tel Aviv, contra Benjamin Netanyahu. Exigem o fim da guerra e o objetivo primeiro que falta cumprir: trazer os reféns para casa.
Por outro lado, duas das principais organizações de direitos humanos israelitas, as ONG B’Tselem e Médicos pelos Direitos Humanos, acusam, pela primeira vez, Israel de estar a cometer genocídio. Dizem que, nestes dois anos, existiu um “ataque claro e intencional contra civis para destruir um determinado grupo”. E pergunta a diretora da B’Tselem: “O que fazemos perante um genocídio?”
Não é de forma leviana que se usa a palavra genocídio e, segundo a sua definição no Direito português, inclui: “Homicídio de membros do referido grupo; Ofensa grave à integridade física de membros do grupo; Sujeição do grupo a condições existenciais ou a tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, aptos para provocarem a sua destruição, total ou parcial; Transferência forçada de crianças desse grupo para outro; Imposição de medidas destinadas a impedir a procriação ou os nascimentos no grupo.”
O que irá fazer a Europa? França acabou de anunciar que vai reconhecer o Estado da Palestina e é o primeiro país do G7 e o primeiro membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas a fazê-lo. Espanha, Irlanda, Suécia estão entre os dez países dos 27 da União Europeia que já o fizeram. Em julho, PSD, CDS, Chega e IL chumbaram uma proposta para Portugal também o fazer.
No início desta semana, nas Nações Unidas, discutiu-se a solução de existência de dois Estados. Estados Unidos e Israel boicotaram a conferência da ONU, promovida por França e pela Arábia Saudita. Israel, com a sua crueldade, pode estar a empurrar o mundo para o apoio à criação do Estado palestiniano. Mas, como bem resumiu Donald Trump, falando sobre Emmanuel Macron: “O que ele disser não importa. Não vai mudar nada.”
Aqui, na abundância, não é fácil entender essa “tontura da fome” que Carolina descrevia, a fome extrema até o corpo ficar a tremer, até o cérebro desligar para se poupar à falta de energia, deixando uma pessoa quase sem raciocínio. A única coisa que funciona é o instinto, a procura incessante por alimento, sem que o cérebro tenha sequer a capacidade de avaliar o risco/benefício, como o de ir para uma fila de distribuição de comida ou de água sujeito a ser baleado. Mas qual é a alternativa?
Aqui, na abundância, não faltam ecrãs onde assistimos em direto à fome em Gaza e depois gastamos tempo e recursos a discutir se as fotos são verdadeiras ou não.
O grau de alheamento é tal que Benjamin Netanyahu consegue dizer, com o ar mais sério do mundo: “Não há fome em Gaza.” E até Donald Trump lhe responde: “Aquilo não se pode fingir.”
Segundo o Ministério da Saúde palestiniano, 150 pessoas morreram à fome, um número que inclui 88 crianças; e, segundo as Nações Unidas, cerca de mil pessoas foram assassinadas enquanto esperavam nas filas de distribuição de comida.
Os reféns ainda cativos (50, sendo que vivos já serão apenas 20) já não são motivo, há muito, para justificar a barbárie – aliás, as famílias dos reféns juntaram-se aos pais dos soldados e a milhares de pessoas em protestos, na semana passada, em Tel Aviv, contra Benjamin Netanyahu. Exigem o fim da guerra e o objetivo primeiro que falta cumprir: trazer os reféns para casa.
Por outro lado, duas das principais organizações de direitos humanos israelitas, as ONG B’Tselem e Médicos pelos Direitos Humanos, acusam, pela primeira vez, Israel de estar a cometer genocídio. Dizem que, nestes dois anos, existiu um “ataque claro e intencional contra civis para destruir um determinado grupo”. E pergunta a diretora da B’Tselem: “O que fazemos perante um genocídio?”
Não é de forma leviana que se usa a palavra genocídio e, segundo a sua definição no Direito português, inclui: “Homicídio de membros do referido grupo; Ofensa grave à integridade física de membros do grupo; Sujeição do grupo a condições existenciais ou a tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, aptos para provocarem a sua destruição, total ou parcial; Transferência forçada de crianças desse grupo para outro; Imposição de medidas destinadas a impedir a procriação ou os nascimentos no grupo.”
O que irá fazer a Europa? França acabou de anunciar que vai reconhecer o Estado da Palestina e é o primeiro país do G7 e o primeiro membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas a fazê-lo. Espanha, Irlanda, Suécia estão entre os dez países dos 27 da União Europeia que já o fizeram. Em julho, PSD, CDS, Chega e IL chumbaram uma proposta para Portugal também o fazer.
No início desta semana, nas Nações Unidas, discutiu-se a solução de existência de dois Estados. Estados Unidos e Israel boicotaram a conferência da ONU, promovida por França e pela Arábia Saudita. Israel, com a sua crueldade, pode estar a empurrar o mundo para o apoio à criação do Estado palestiniano. Mas, como bem resumiu Donald Trump, falando sobre Emmanuel Macron: “O que ele disser não importa. Não vai mudar nada.”
A precarização como dogma
Quem disse que Deus morreu talvez não tenha percebido que ele apenas se transformou. Hoje, atende por mercado, ou melhor capitalismo. Onipresente, invisível e caprichoso, o novo Deus não exige preces ou orações, mas produtividade.
Vivemos em novos tempos e tempos curiosos, o capitalismo que antes era conhecido como sistema econômico, atualmente não se tornou somente uma ideologia, mas uma religião, onde fé e dominação caminham lado a lado. O neoliberalismo, é doutrina teológica do capital, canonizou os indivíduos e as sociedades, beatificou o empreendedorismo e excomungou os direitos dos mais necessitados Afinal, como dizem os novos apóstolos do capital: “quem tem direito, não tem mérito”
Nesse cenário, a precarização da vida não é um acidente de trajeto, mas sim uma causa consciente. É um projeto. É um dogma. É uma doutrina. A tal “liberdade econômica”, repetida em “missas” tecnocráticas por economistas ungidos nas cátedras do capital, não visa liberdade da pobreza ou da desigualdade, mas sim a purificação do sistema, de qualquer resquício de dignidade humana daqueles que “atrapalham” o desenvolvimento do mercado.
Na espiritualidade do capital, a desigualdade não é o problema, mas um sinal de conquista daqueles que “se esforçaram mais” nos lobbies realizados nos corredores da política, pois: “eu lutei pela minha fortuna não ser taxada, se você perdeu, foi porque não se esforçou bastante. A justiça social, se ousa existir, é tratada como um percalço no desenvolvimento econômico, uma heresia estatal. Jung Mo Sung denuncia com precisão essa lógica perversa em seu livro Idolatria do Dinheiro e Direitos Humanos:
Aqui, a ironia é crua e realista para aqueles que crêem na realidade: o valor da vida não está na sua humanidade, mas no acesso ao luxo, ao conforto privado, as cifras no branco. A espiritualidade do mercado promete ascensão e sucesso – desde que você suba pela escada da competitividade individual.
É nesse espírito que Jung So Mung e Josué Cândido da Silva nos propõe uma reflexão sobre o fetiche da riqueza em seu livro Conversando sobre ética e sociedade:
“Nas nossas sociedades modernas capitalistas, com o mito do progresso, a economia passou a ser um fim em si mesma. As pessoas não trabalham mais para viver, mas vivem para trabalhar e ganhar dinheiro. As pessoas se perguntam “como ganhar dinheiro”, mas dificilmente se pergunta, “para que ganhar dinheiro”. Diante dessa pergunta inconveniente, respondem que é para ganhar mais dinheiro ou para poder comprar muitas coisas. Mas comprar é trocar dinheiro por um outro tipo de riqueza. No fundo, continua no mesmo objetivo de acumular riquezas.”
Ademais, a vida se tornou um meio para o dinheiro, para o capital. Trabalha-se para consumir. Consome-se para justificar a própria existência. Acumula riqueza para demonstrar o valor da existência.
Os mesmo autores ainda lembram algo essencial:
O capital através do mercado, não apenas determina o que é valor, mas também quem é incluído nos seus cálculos e quem deverá ser excluído. A quem não prática essa religião chamada capitalismo, apenas resta a indignação.
Enquanto isso, os deuses da Faria Lima seguem nos observando do alto de suas salas envidraçadas e torcendo para que suas riquezas não sejam taxadas, pois o Estado Social já existe para eles.
Diogo Almeida Camargos
Vivemos em novos tempos e tempos curiosos, o capitalismo que antes era conhecido como sistema econômico, atualmente não se tornou somente uma ideologia, mas uma religião, onde fé e dominação caminham lado a lado. O neoliberalismo, é doutrina teológica do capital, canonizou os indivíduos e as sociedades, beatificou o empreendedorismo e excomungou os direitos dos mais necessitados Afinal, como dizem os novos apóstolos do capital: “quem tem direito, não tem mérito”
Nesse cenário, a precarização da vida não é um acidente de trajeto, mas sim uma causa consciente. É um projeto. É um dogma. É uma doutrina. A tal “liberdade econômica”, repetida em “missas” tecnocráticas por economistas ungidos nas cátedras do capital, não visa liberdade da pobreza ou da desigualdade, mas sim a purificação do sistema, de qualquer resquício de dignidade humana daqueles que “atrapalham” o desenvolvimento do mercado.
Na espiritualidade do capital, a desigualdade não é o problema, mas um sinal de conquista daqueles que “se esforçaram mais” nos lobbies realizados nos corredores da política, pois: “eu lutei pela minha fortuna não ser taxada, se você perdeu, foi porque não se esforçou bastante. A justiça social, se ousa existir, é tratada como um percalço no desenvolvimento econômico, uma heresia estatal. Jung Mo Sung denuncia com precisão essa lógica perversa em seu livro Idolatria do Dinheiro e Direitos Humanos:
“O ideal utópico do neoliberalismo é um mercado que seja totalmente livre das intervenções e limitações da parte do Estado e da sociedade. Para eles, quem tem direito não são todos os seres humanos, nem todos os cidadãos, mas os que têm capacidade de realizar seus direitos através da relação de compra e venda, isto é os consumidores que podem pagar no mercado. Os direitos fundamentais dos seres humanos não nasceriam de dignidade humana, mas sim do contrato de compra e venda no mercado.”
Ou seja, não somos sujeitos de direitos, mas clientes da existência. E só tem dignidade quem pode pagar por ela.
A lógica da acumulação se disfarça de racionalidade, eficiência, liberdade e meritocracia. Mas no fim das contas, é apenas a velha idolatria ao capital, ao dinheiro. Como já ironizava Pink Floyd em Money (1973):“Ah, don’t give me that do-goody-good bullshit I’m in the high-fidelity, first class travelling set And I think I need a Learjet”( “Ah, não me venha com essa de bonzinho, eu estou no grupo de viagens de alta fidelidade, primeira classe, e acho que preciso de um Learjet” )
Aqui, a ironia é crua e realista para aqueles que crêem na realidade: o valor da vida não está na sua humanidade, mas no acesso ao luxo, ao conforto privado, as cifras no branco. A espiritualidade do mercado promete ascensão e sucesso – desde que você suba pela escada da competitividade individual.
É nesse espírito que Jung So Mung e Josué Cândido da Silva nos propõe uma reflexão sobre o fetiche da riqueza em seu livro Conversando sobre ética e sociedade:
“Nas nossas sociedades modernas capitalistas, com o mito do progresso, a economia passou a ser um fim em si mesma. As pessoas não trabalham mais para viver, mas vivem para trabalhar e ganhar dinheiro. As pessoas se perguntam “como ganhar dinheiro”, mas dificilmente se pergunta, “para que ganhar dinheiro”. Diante dessa pergunta inconveniente, respondem que é para ganhar mais dinheiro ou para poder comprar muitas coisas. Mas comprar é trocar dinheiro por um outro tipo de riqueza. No fundo, continua no mesmo objetivo de acumular riquezas.”
Ademais, a vida se tornou um meio para o dinheiro, para o capital. Trabalha-se para consumir. Consome-se para justificar a própria existência. Acumula riqueza para demonstrar o valor da existência.
Os mesmo autores ainda lembram algo essencial:
“O que não podemos esquecer é que “consumidor” não é sinônimo de cidadão ou ser humano. Consumidor é o ser humano que tem dinheiro para entrar no mercado. Aqueles que não têm não são consumidores e estão fora do mercado. As mercadorias não são destinadas à satisfação, mas sim dos consumidores.”
O capital através do mercado, não apenas determina o que é valor, mas também quem é incluído nos seus cálculos e quem deverá ser excluído. A quem não prática essa religião chamada capitalismo, apenas resta a indignação.
Enquanto isso, os deuses da Faria Lima seguem nos observando do alto de suas salas envidraçadas e torcendo para que suas riquezas não sejam taxadas, pois o Estado Social já existe para eles.
Diogo Almeida Camargos
Ruh al-ruh ('Alma da minha alma')
Reem, de apenas três anos, era a menina dos olhos de Khaled Nabhan. Repetia seus gestos durante as orações, sentava-se no seu colo enquanto ele tomava o café da manhã e o espiava pela janela da casa em Deir al-Balah sempre que ele saía para sua caminhada vespertina.
O cerco traumatizou a pequena Reem, mas era nos braços do avô que ela encontrava abrigo durante os intensos bombardeios. O barulho dos ataques aéreos e o cenário de morte cercavam seu jovem corpo até que, em 28 de novembro de 2023, ele a levou consigo.
Khaled não estava em casa quando Reem adormeceu em seu descanso final. Um ataque aéreo israelense, lançado contra o campo de refugiados vizinho de Al-Nuseirat, atingiu a casa da família e tirou a vida da pequena Reem.
Khaled voltou para casa e encontrou o corpo inerte da neta. Ergueu Reem diante das câmeras e beijou sua pequena testa. “Ela era a alma da minha alma”, chorou o avô, segurando-a nos braços. Khaled e Reem compartilhavam o mesmo dia de aniversário.
Acariciando o corpo sem vida de Reem, Nabhan murmurou uma elegia comovente. Suas palavras, “ruh el-ruh”, expressão árabe que significa “a alma da minha alma”, ecoaram pelo mundo após o massacre.
Essas palavras se tornariam um grito de guerra. “Ela era a alma da minha alma”, repetiu ele, olhando para o rosto de Reem pela última vez antes de entregá-la a um estranho encarregado de encontrar seu local de sepultamento.
Os momentos finais deste avô palestino segurando o corpo sem vida e manchado de sangue de sua neta se espalharam amplamente pelas redes sociais, simbolizando a imensa dor que os palestinos suportam diariamente enquanto Israel continua bombardeando Gaza.
Khaled estava devastado, mas calmo, tomado pela dor de um avô que acabara de perder a neta. Ele não prometeu vingança, não gritou gritos de guerra nem demonstrou raiva diante das câmeras que o filmavam.
As memórias de Reem foram enterradas a dois metros de profundidade, sob os escombros de sua casa destruída. Mais tarde naquela semana, Khaled encontrou uma das bonecas dela nos escombros.
Enquanto falava com a CNN, ele a segurou nos braços como fazia com Reem. Em seguida, levantou o rosto da boneca para encontrá-lo e beijou-a na testa. “Eu costumava beijá-la nas bochechas, no nariz, e ela ria”, disse Khaled, segurando a boneca sem vida e lembrando-se da alma que perdeu.
Após o assassinato brutal de Reem, o “avô amado” continuava sendo visto entre as crianças de Gaza, brincando com elas e distribuindo pequenos presentes.
Segundo vizinhos, essa presença constante entre os pequenos era uma forma de catarse: uma tentativa de suavizar a dor esmagadora provocada pela perda de Reem.
Transformando o luto em gesto solidário, Khaled Nabhan tornou-se um símbolo de esperança viva. Ajudava socorristas e médicos no cuidado aos feridos — especialmente crianças — como se, em cada ato de cuidado, tentasse reconstruir aquilo que lhe fora arrancado.
Nas redes sociais, compartilhou vídeos comoventes mostrando ele e a mãe de Reem oferecendo ajuda e conforto aos moradores de Gaza em meio ao caos.
Em honra à neta, lançou a iniciativa humanitária “Reem: Soul of the Soul”, com o objetivo de levar um pouco de alegria às crianças palestinas por meio de brinquedos e presentes; um gesto de ternura contra a brutalidade da guerra.
Desde que sua despedida com Reem comoveu o mundo, Khaled passou a ser descrito, nas palavras de seu filho Diaa, como “uma agência humanitária de um homem só”. Mesmo faminto, fraco e desnutrido, seguia incansável em sua missão: transformar a dor em cuidado, a perda em compaixão ativa.
“Ele trabalhava duro… passava fome para que nós tivéssemos o suficiente para comer”, recorda Diaa, seu filho.
Desde então, inúmeros vídeos passaram a circular mostrando Khaled Nabhan enfrentando sua dor enquanto se dedicava a ajudar quem pudesse. Seu foco se voltou inteiramente para o alívio do sofrimento alheio. Acolhia pessoas, confortava desconhecidos e até atendia ligações de várias partes do mundo com palavras de consolo, mesmo ele sendo o enlutado.
Nas raras vezes em que se permitia desabafar, sua queixa não era sobre si mesmo, mas sobre a condição humilhante a que eram submetidas milhares de pessoas forçadas ao deslocamento, enquanto Israel seguia bloqueando a entrada da maior parte da ajuda humanitária em Gaza.
“Não há indignidade maior do que essa”, declarou Khaled, enquanto viajava na parte de trás de uma carroça puxada por cavalos, carregando os poucos pertences da família rumo a Rafah, seu segundo deslocamento forçado. Mais tarde, teriam de fugir de lá também.
A dor de Khaled Nabhan ressignificou o modo como o mundo enxerga os homens palestinos e a identidade muçulmana. Gentil, mas firme; piedoso, mas vulnerável, ele encarnava uma humanidade que tantas vezes foi invisibilizada. Através de sua figura, o mundo pôde vislumbrar a dignidade e a resiliência do povo de Gaza em meio à destruição.
Diante das câmeras, o que se via não era um “terrorista”, como tantas vezes se acostumaram a rotular palestinos por sua roupa, barba ou keffiyeh. Era um avô em luto, um homem devastado pela perda brutal de sua neta, vestindo sua túnica tradicional e carregando a dor de um povo inteiro no olhar.
Khaled se tornou um novo arquétipo palestino; não o do inimigo, mas o do humano ferido, capaz de amor e cuidado mesmo após o trauma. Ele alimentava gatos de rua, tão famintos e assustados quanto os civis de Gaza, brincava com seus netos sobreviventes, com sua filha caçula Ratil, de apenas 10 anos, e cuidava da mãe idosa.
Sua dor tornou-se uma lente: através dela, o mundo viu um homem comum, e viu, também, o que a guerra destrói.
A morte voltou a bater à porta em 16 de dezembro de 2024, pouco mais de um ano após o assassinato brutal de Reem. Desta vez, foi Khaled quem teve a vida ceifada por um ataque israelense. Imagens de seus corpos inertes e de seus sorrisos eternizados em vida espalharam-se rapidamente pela internet, provocando comoção global e uma onda de homenagens comoventes.
O mundo, que já havia chorado com Khaled, agora chorava por ele. Suas palavras dolorosamente sinceras tornaram-se um eco coletivo, um grito de humanidade diante da barbárie. A dor que carregava se tornou universal, e Khaled passou a simbolizar, com força ainda maior, a dignidade ferida, mas não vencida, do povo palestino.
Agora, seu corpo repousa ao lado de Reem no martírio, mas seu legado permanece vivo. Em meio à tragédia contínua em Gaza, Khaled e Reem tornaram-se ícones da humanidade inquebrantável de um povo que insiste em amar, resistir e sobreviver.
A única culpa de Khaled foi existir em Gaza. Primeiro, mataram sua neta “a alma da sua alma”. Depois, destruíram a casa da família. Por fim, o assassinaram em plena luz do dia, sob o véu da impunidade.
Ele era um homem sitiado que perdeu a alma no cerco. E, ao mesmo tempo, uma alma pela qual o mundo pôde enxergar o melhor da humanidade em meio às condições mais desumanas.
Ao longo desses mais de 600 dias de escuridão e genocídio, conhecemos vidas em Gaza que nunca esqueceremos. E aprendemos a amar muitas delas. Como a de Khaled Nabhan, o avô amoroso, cuja voz e cujo rosto se imprimiram em nossa memória. De tantas formas, eles se tornaram parte de nós.
Palestinos como Khaled já não nos parecem distantes. Tocaram nossos corações com seu amor pela terra, sua firmeza serena diante do horror, sua ternura intacta. Tornaram-se próximos. Presentes. Vizinhos de alma. Parentes que a dor nos ensinou a reconhecer.
“Alma da minha alma.” O mundo ouviu essas quatro palavras e, nelas, um abismo — e um chamado. Carregadas de dor e beleza, tornaram-se uma ode à vida que insiste, e à revolução íntima que um avô palestino despertou em todos nós.
Quatro palavras que revelam uma verdade brutal: o ocidente não trava apenas uma guerra contra um povo, mas contra tudo o que nele pulsa como humano.
Rima awada Zahra
O cerco traumatizou a pequena Reem, mas era nos braços do avô que ela encontrava abrigo durante os intensos bombardeios. O barulho dos ataques aéreos e o cenário de morte cercavam seu jovem corpo até que, em 28 de novembro de 2023, ele a levou consigo.
Khaled não estava em casa quando Reem adormeceu em seu descanso final. Um ataque aéreo israelense, lançado contra o campo de refugiados vizinho de Al-Nuseirat, atingiu a casa da família e tirou a vida da pequena Reem.
Khaled voltou para casa e encontrou o corpo inerte da neta. Ergueu Reem diante das câmeras e beijou sua pequena testa. “Ela era a alma da minha alma”, chorou o avô, segurando-a nos braços. Khaled e Reem compartilhavam o mesmo dia de aniversário.
Acariciando o corpo sem vida de Reem, Nabhan murmurou uma elegia comovente. Suas palavras, “ruh el-ruh”, expressão árabe que significa “a alma da minha alma”, ecoaram pelo mundo após o massacre.
Essas palavras se tornariam um grito de guerra. “Ela era a alma da minha alma”, repetiu ele, olhando para o rosto de Reem pela última vez antes de entregá-la a um estranho encarregado de encontrar seu local de sepultamento.
Os momentos finais deste avô palestino segurando o corpo sem vida e manchado de sangue de sua neta se espalharam amplamente pelas redes sociais, simbolizando a imensa dor que os palestinos suportam diariamente enquanto Israel continua bombardeando Gaza.
Khaled estava devastado, mas calmo, tomado pela dor de um avô que acabara de perder a neta. Ele não prometeu vingança, não gritou gritos de guerra nem demonstrou raiva diante das câmeras que o filmavam.
As memórias de Reem foram enterradas a dois metros de profundidade, sob os escombros de sua casa destruída. Mais tarde naquela semana, Khaled encontrou uma das bonecas dela nos escombros.
Enquanto falava com a CNN, ele a segurou nos braços como fazia com Reem. Em seguida, levantou o rosto da boneca para encontrá-lo e beijou-a na testa. “Eu costumava beijá-la nas bochechas, no nariz, e ela ria”, disse Khaled, segurando a boneca sem vida e lembrando-se da alma que perdeu.
Após o assassinato brutal de Reem, o “avô amado” continuava sendo visto entre as crianças de Gaza, brincando com elas e distribuindo pequenos presentes.
Segundo vizinhos, essa presença constante entre os pequenos era uma forma de catarse: uma tentativa de suavizar a dor esmagadora provocada pela perda de Reem.
Transformando o luto em gesto solidário, Khaled Nabhan tornou-se um símbolo de esperança viva. Ajudava socorristas e médicos no cuidado aos feridos — especialmente crianças — como se, em cada ato de cuidado, tentasse reconstruir aquilo que lhe fora arrancado.
Nas redes sociais, compartilhou vídeos comoventes mostrando ele e a mãe de Reem oferecendo ajuda e conforto aos moradores de Gaza em meio ao caos.
Em honra à neta, lançou a iniciativa humanitária “Reem: Soul of the Soul”, com o objetivo de levar um pouco de alegria às crianças palestinas por meio de brinquedos e presentes; um gesto de ternura contra a brutalidade da guerra.
Desde que sua despedida com Reem comoveu o mundo, Khaled passou a ser descrito, nas palavras de seu filho Diaa, como “uma agência humanitária de um homem só”. Mesmo faminto, fraco e desnutrido, seguia incansável em sua missão: transformar a dor em cuidado, a perda em compaixão ativa.
“Ele trabalhava duro… passava fome para que nós tivéssemos o suficiente para comer”, recorda Diaa, seu filho.
Desde então, inúmeros vídeos passaram a circular mostrando Khaled Nabhan enfrentando sua dor enquanto se dedicava a ajudar quem pudesse. Seu foco se voltou inteiramente para o alívio do sofrimento alheio. Acolhia pessoas, confortava desconhecidos e até atendia ligações de várias partes do mundo com palavras de consolo, mesmo ele sendo o enlutado.
Nas raras vezes em que se permitia desabafar, sua queixa não era sobre si mesmo, mas sobre a condição humilhante a que eram submetidas milhares de pessoas forçadas ao deslocamento, enquanto Israel seguia bloqueando a entrada da maior parte da ajuda humanitária em Gaza.
“Não há indignidade maior do que essa”, declarou Khaled, enquanto viajava na parte de trás de uma carroça puxada por cavalos, carregando os poucos pertences da família rumo a Rafah, seu segundo deslocamento forçado. Mais tarde, teriam de fugir de lá também.
A dor de Khaled Nabhan ressignificou o modo como o mundo enxerga os homens palestinos e a identidade muçulmana. Gentil, mas firme; piedoso, mas vulnerável, ele encarnava uma humanidade que tantas vezes foi invisibilizada. Através de sua figura, o mundo pôde vislumbrar a dignidade e a resiliência do povo de Gaza em meio à destruição.
Diante das câmeras, o que se via não era um “terrorista”, como tantas vezes se acostumaram a rotular palestinos por sua roupa, barba ou keffiyeh. Era um avô em luto, um homem devastado pela perda brutal de sua neta, vestindo sua túnica tradicional e carregando a dor de um povo inteiro no olhar.
Khaled se tornou um novo arquétipo palestino; não o do inimigo, mas o do humano ferido, capaz de amor e cuidado mesmo após o trauma. Ele alimentava gatos de rua, tão famintos e assustados quanto os civis de Gaza, brincava com seus netos sobreviventes, com sua filha caçula Ratil, de apenas 10 anos, e cuidava da mãe idosa.
Sua dor tornou-se uma lente: através dela, o mundo viu um homem comum, e viu, também, o que a guerra destrói.
A morte voltou a bater à porta em 16 de dezembro de 2024, pouco mais de um ano após o assassinato brutal de Reem. Desta vez, foi Khaled quem teve a vida ceifada por um ataque israelense. Imagens de seus corpos inertes e de seus sorrisos eternizados em vida espalharam-se rapidamente pela internet, provocando comoção global e uma onda de homenagens comoventes.
O mundo, que já havia chorado com Khaled, agora chorava por ele. Suas palavras dolorosamente sinceras tornaram-se um eco coletivo, um grito de humanidade diante da barbárie. A dor que carregava se tornou universal, e Khaled passou a simbolizar, com força ainda maior, a dignidade ferida, mas não vencida, do povo palestino.
Agora, seu corpo repousa ao lado de Reem no martírio, mas seu legado permanece vivo. Em meio à tragédia contínua em Gaza, Khaled e Reem tornaram-se ícones da humanidade inquebrantável de um povo que insiste em amar, resistir e sobreviver.
A única culpa de Khaled foi existir em Gaza. Primeiro, mataram sua neta “a alma da sua alma”. Depois, destruíram a casa da família. Por fim, o assassinaram em plena luz do dia, sob o véu da impunidade.
Ele era um homem sitiado que perdeu a alma no cerco. E, ao mesmo tempo, uma alma pela qual o mundo pôde enxergar o melhor da humanidade em meio às condições mais desumanas.
Ao longo desses mais de 600 dias de escuridão e genocídio, conhecemos vidas em Gaza que nunca esqueceremos. E aprendemos a amar muitas delas. Como a de Khaled Nabhan, o avô amoroso, cuja voz e cujo rosto se imprimiram em nossa memória. De tantas formas, eles se tornaram parte de nós.
Palestinos como Khaled já não nos parecem distantes. Tocaram nossos corações com seu amor pela terra, sua firmeza serena diante do horror, sua ternura intacta. Tornaram-se próximos. Presentes. Vizinhos de alma. Parentes que a dor nos ensinou a reconhecer.
“Alma da minha alma.” O mundo ouviu essas quatro palavras e, nelas, um abismo — e um chamado. Carregadas de dor e beleza, tornaram-se uma ode à vida que insiste, e à revolução íntima que um avô palestino despertou em todos nós.
Quatro palavras que revelam uma verdade brutal: o ocidente não trava apenas uma guerra contra um povo, mas contra tudo o que nele pulsa como humano.
Rima awada Zahra
Não chega de asnice?
Há que se desejar que a direita brasileira finalmente se liberte do seu encanto com o clã Bolsonaro. Afinal, os rumos do Brasil são mais importantes do que o destino de uma família que não sabe fazer outra coisa além de semear o caos. A cultura política brasileira se beneficiaria muito de uma força política de direita que se possa levar a sério.
Thomas Milz
Thomas Milz
Notícias de amanhã
Depois de décadas em que veículos de comunicação se vangloriavam em ser o “primeiro a dar as últimas”, é chegada a hora de publicar não as notícias que já ocorreram, mas sim as que acontecerão.
Impossível? Certamente que não. Há tendências que são claras, algumas inevitáveis, outras não. Por exemplo, a notícia “explodiu ontem a quinta bomba atômica disparada neste século XXI” seria falsa, hoje, mas é provável que se torne verdadeira. Afinal, envolve decisões de alguns dos loucos que comandam diversos países, decisões que – esperamos! – podem ser evitadas. Mas, pergunto: e amanhã, será mesmo evitável? Com os países mais ricos e atomicamente armados novamente empenhados na velha corrida armamentista, uns agredindo os outros e dizendo que são estes que agridem?
Evitar que tal “notícia” se torne verdadeira exige, dos dirigentes, sentimento de compaixão e humanidade, o que claramente lhes falta; de outra forma, já não apoiariam os assassinos que dirigem Israel e repetem, contra os palestinos, o holocausto que seus avós sofreram na Europa.
Outras notícias futuras já se anunciam. Por exemplo, “incêndios florestais como os que destruíram Los Angeles dizimaram Atenas e reduziram a cinzas a Acrópole”; “milhares de cariocas impedidos de subir os morros morreram afogados com a súbita elevação do nível do mar”. Que tal essa outra: “A seca na Amazônia neste ano quebrou todos os recordes; jamais havia ocorrido de o rio Amazonas se transformar num filete de água!”
Na sequência desta última possível notícia, veremos, talvez, essa outra: “Os royalties pagos aos governos da região amazônica com a exploração do petróleo na foz do rio não foram suficientes para alimentar a população local que não conseguiu fugir. A fome quase iguala o que sucedeu em Gaza”.
Outra possível notícia, que alguns verão como altamente positiva: “Sucesso de vendas no novo Trump Resort em Gaza: milionários disputam apartamentos com preço mínimo de US$10 milhões”. Associada à esta talvez venha outra: “Crescem os conflitos internos no Egito, Sudão e Arábia Saudita, para onde foram levados os sobreviventes dos campos de extermínio em Gaza”.
Menos provável, embora desejável, é recebermos a informação de que comprovadamente reapareceram neste planeta, vivinhos da silva, desmentidas todas as suspeitas de que isso fosse apenas um truque de inteligência artificial, Jesus, Maomé, Buda, Confúcio e líderes ou fundadores de todas as religiões, inclusive xamãs machos e fêmeas. Todos reunidos, colocaram-se de acordo, superaram divergências e terminaram todos os conflitos e ambições desmedidas, ponto um fim às desigualdades e às fronteiras entre credos e países, origem de ódios e divisões.
Também John Lennon reviveu cantando “imagine que não há paraíso, nem inferno; imagine todos vivendo para o presente; imagine que não há nada que justifique matar, nem morrer…. Imagine uma irmandade geral…”
Utópico? Sem utopia não há progresso real! Ou preferimos a distopia dos primeiros parágrafos?
Impossível? Certamente que não. Há tendências que são claras, algumas inevitáveis, outras não. Por exemplo, a notícia “explodiu ontem a quinta bomba atômica disparada neste século XXI” seria falsa, hoje, mas é provável que se torne verdadeira. Afinal, envolve decisões de alguns dos loucos que comandam diversos países, decisões que – esperamos! – podem ser evitadas. Mas, pergunto: e amanhã, será mesmo evitável? Com os países mais ricos e atomicamente armados novamente empenhados na velha corrida armamentista, uns agredindo os outros e dizendo que são estes que agridem?
Evitar que tal “notícia” se torne verdadeira exige, dos dirigentes, sentimento de compaixão e humanidade, o que claramente lhes falta; de outra forma, já não apoiariam os assassinos que dirigem Israel e repetem, contra os palestinos, o holocausto que seus avós sofreram na Europa.
Outras notícias futuras já se anunciam. Por exemplo, “incêndios florestais como os que destruíram Los Angeles dizimaram Atenas e reduziram a cinzas a Acrópole”; “milhares de cariocas impedidos de subir os morros morreram afogados com a súbita elevação do nível do mar”. Que tal essa outra: “A seca na Amazônia neste ano quebrou todos os recordes; jamais havia ocorrido de o rio Amazonas se transformar num filete de água!”
Na sequência desta última possível notícia, veremos, talvez, essa outra: “Os royalties pagos aos governos da região amazônica com a exploração do petróleo na foz do rio não foram suficientes para alimentar a população local que não conseguiu fugir. A fome quase iguala o que sucedeu em Gaza”.
Outra possível notícia, que alguns verão como altamente positiva: “Sucesso de vendas no novo Trump Resort em Gaza: milionários disputam apartamentos com preço mínimo de US$10 milhões”. Associada à esta talvez venha outra: “Crescem os conflitos internos no Egito, Sudão e Arábia Saudita, para onde foram levados os sobreviventes dos campos de extermínio em Gaza”.
Menos provável, embora desejável, é recebermos a informação de que comprovadamente reapareceram neste planeta, vivinhos da silva, desmentidas todas as suspeitas de que isso fosse apenas um truque de inteligência artificial, Jesus, Maomé, Buda, Confúcio e líderes ou fundadores de todas as religiões, inclusive xamãs machos e fêmeas. Todos reunidos, colocaram-se de acordo, superaram divergências e terminaram todos os conflitos e ambições desmedidas, ponto um fim às desigualdades e às fronteiras entre credos e países, origem de ódios e divisões.
Também John Lennon reviveu cantando “imagine que não há paraíso, nem inferno; imagine todos vivendo para o presente; imagine que não há nada que justifique matar, nem morrer…. Imagine uma irmandade geral…”
Utópico? Sem utopia não há progresso real! Ou preferimos a distopia dos primeiros parágrafos?
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