terça-feira, 4 de junho de 2019

Brasil que vê


Maia prevê o caos social. Para alguns, já chegou

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, declarou num par de entrevistas que "está faltando uma agenda para o Brasil." Atribuiu ao governo a responsabilidade por apresentar essa agenda. E afirmou que sem ela o país está caminhando muito rapidamente para um cenário de "colapso social". O mundo do Poder, do qual Rodrigo Maia faz parte, ainda não notou. Mas para o pedaço mais pobre do Brasil o colapso social já chegou.

Num instante em que todas as atenções estão voltadas para a reforma da Previdência, Rodrigo Maia reconhece em voz alta o que muitos apenas sussurram: a mexida no sistema previdenciário, essencial para atenuar o cenário de ruína fiscal, não produzirá sozinha o milagre da prosperidade. "A reforma previdenciária por si só não vai resolver nada", chegou a dizer Maia. Para evitar o colapso "o governo vai ter que ir muito além".


O presidente da Câmara menciona como pré-condição para o sucesso disso que ele chamou de "agenda para o Brasil" a celebração de uma aliança política. Sem mencionar o nome de Jair Bolsonaro, avesso a composições, Maia declarou: "Quem quer mudar o Brasil tem que ter a capacidade de compreender que só com um arco de aliança você consegue aprovar as emendas constitucionais que podem tirar o Brasil da linha do colapso social".

Parece incrível, mas o governo do capitão entrou no sexto mês e a política continua rodando como parafuso espanado. A conversa não muda. A única coisa que se altera é o tamanho do buraco. Os mais de 13 milhões de desempregados, os estudantes obrigados a conviver com um ministro que brinca de ator de musical, os doentes que definham em macas nos corredores dos hospitais públicos .... Esses brasileiros já foram apresentados ao colapso social.

Homenagem digna

Não faltam artistas brasileiros dignos de homenagem em 2019. Chico Buarque ganhou o Prêmio Camões; dois filmes brasileiros receberam premiação em Cannes. Do lado das perdas, neste 2019 que nem chegou à metade já faleceram a atriz Bibi Ferreira, o diretor de teatro Antunes Filho, o ator Caio Junqueira, o escritor João Carlos Marinho, a cantora Beth Carvalho, entre tantos outros que mereceriam lembrança. Nosso presidente, contudo, não parece ter dado muita bola a nenhum desses.

Quando decidiu espontaneamente homenagear um artista recém-falecido em seu Twitter (lembrem-se que este é um meio preferencial de comunicação da Presidência), o escolhido foi Tales Volpi, mais conhecido como MC Reaça, que cometeu suicídio neste sábado. Segundo o presidente, MC Reaça era alguém com o “sonho de mudar o país”, dotado de “grande talento” e que “será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor pelo Brasil”. Ao presidente, juntaram-se homenagens dos filhos Carlos e Eduardo, bem como do perfil de apoio ao governo “Isentões”, segundo o qual “Tales era um dos nossos! Um forte combatente na luta pela verdade”.

Afinal, ao que o “grande talento” de MC Reaça se prestara? Qual o seu exemplo admirável de patriotismo? Seus feitos se resumem a um só: ter composto o funk de propaganda eleitoral “Proibidão Bolsonaro”, que fez sucesso em passeatas a favor do candidato.

A letra é basicamente uma sequência de insultos e provocações a inimigos de Bolsonaro. Nada é construído ou proposto; há apenas ódio e ressentimento: a políticos de esquerda, intelectuais, ao feminismo, à suposta degeneração moral da juventude, etc. O ato de votar em Bolsonaro se transformava num ato de violência redentora, uma vingança imaginária, um insulto jubiloso contra todos esses perigos. “Dou pra CUT pão com mortadela/ E pras feministas, ração na tigela/ As mina de direita, são as top mais bela/ Enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela”. Eis o talento a que Bolsonaro se referia.

Em áreas importantes do governo, a mesma lógica desse funk parece operar. Não há, por exemplo, uma proposta clara para a educação. Mas sobra ressentimento contra um fantasma do comunismo que dominaria as universidades. É uma política puramente da destruição. O corte de verbas não é sentido como uma dura imposição orçamentária, mas celebrado como a desforra contra um sistema que promove “balbúrdia”. O Brasil paga a conta de tantos “talentos” que agora se vingam por jamais terem recebido o reconhecimento que julgavam merecer.

As circunstâncias da morte de MC Reaça tornam a homenagem ainda mais curiosa. Aparentemente (o caso ainda está sendo apurado), Volpi, que era casado, espancara sua amante —possivelmente ao descobrir que ela estava grávida—, deixando-a em sério risco de vida. Depois disso, desesperado, se matou.

Nem passa pela minha cabeça que o Presidente compactue com atos como a agressão a mulheres. A homenagem foi feita, ademais, antes que as circunstâncias fossem conhecidas. Mas fica mais esse paralelo com a realidade: sob a retórica agressiva de um suposto patriotismo e da regeneração moral da sociedade, fecha-se os olhos para práticas monstruosas.

A escolha do homenageado revela-se assim um símbolo do ethos do atual governo e de seus apoiadores mais aguerridos. Propaganda, ódio, ressentimento, ideologia e agressão: quem negará que a homenagem foi bem escolhida?

O verdadeiro ônus político

Uma parte do Congresso resiste a incluir Estados e municípios na reforma da Previdência. Esses parlamentares, segundo reportagem do Estado, estão temerosos em arcar com o “ônus político” da reforma, que, em sua opinião, deveria recair sobre governadores e prefeitos. Nesse cálculo parecem estar principalmente as eleições municipais do ano que vem, as primeiras em que provavelmente o impacto político da reforma se fará sentir.

É certo que políticos vivem de votos, e que aborrecer eleitores com temas impopulares às vésperas de eleições é receita quase certa para a derrota. Considerando-se que muitos dos atuais parlamentares dependem também do bom desempenho de aliados nas disputas regionais para alimentar suas bases, nada mais natural que a corrida eleitoral de 2020 seja elemento importante nas estratégias de deputados e senadores.


Assim, não surpreende que haja reticências no Congresso Nacional a patrocinar um aperto previdenciário nos Estados e municípios, que afetaria a influente categoria dos funcionários públicos. É a esse ônus que alguns parlamentares estão se referindo – e que eles preferem que seja assumido pelos Executivos locais, que teriam de lutar pela aprovação da reforma da Previdência nas respectivas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Se isso vier a acontecer, a reforma pode sofrer considerável atraso nos entes subnacionais, cujas contas, em vários casos, estão em estado crítico.

Ora, a esta altura está claro que o verdadeiro ônus político recairá sobre aqueles que dificultarem uma reforma que é condição indispensável para evitar o iminente colapso das contas públicas em todos os níveis. Se no caso da União a questão previdenciária assumiu contornos dramáticos, no caso dos Estados e municípios a situação é ainda pior, com potencial inclusive para prejudicar seriamente a prestação de serviços – como já vem acontecendo em algumas unidades da Federação.

Se nada for feito a respeito, o déficit previdenciário nos Estados, que hoje se aproxima de R$ 100 bilhões, deverá quadruplicar até 2060, já descontada a inflação, conforme estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. O mesmo estudo informa que o passivo previdenciário atual e futuro dos governos estaduais, o chamado déficit atuarial, chegava a R$ 5,2 trilhões em 2017. Como comparação, o relatório da IFI lembra que o saldo total da dívida dos Estados, incluindo o passivo junto à União, aos bancos e aos credores externos, era de R$ 776,3 bilhões naquele ano.

Além dos valores absolutos, o que chama a atenção é o ritmo do crescimento do déficit previdenciário estadual. O rombo passou de R$ 51,37 bilhões em 2006 para R$ 77,39 bilhões em 2015 – um aumento de 50,7%. Houve deterioração em quase todos os Estados.

Os dados mostram que o número de servidores inativos cresceu 37,9% de 2006 e 2015, enquanto o total de ativos recuou 3,4%. Além disso, o valor dos benefícios pagos aos servidores estaduais aposentados cresceu 32,7%, em termos reais. Enquanto isso, conforme a IFI, verifica-se uma constante queda no número de contribuintes em relação ao número de beneficiários, o que impõe desafios ainda maiores à manutenção do sistema previdenciário. O estudo indica que, nesse ritmo, seria necessário cobrar uma alíquota de mais de 50% de servidores ativos e inativos para equilibrar o sistema até 2050.

Os responsáveis pelo relatório da IFI lembram o óbvio: que o adiamento da reforma da Previdência nos Estados obrigará os governadores a pedirem novo socorro à União, pois a despesa previdenciária em pouco tempo consumirá a maior parte das receitas. Então, os governadores deveriam empenhar-se pela inclusão dos Estados na reforma, assim como o governo federal. Alguns governadores começaram a se movimentar, mas a equipe econômica do governo tem evitado assumir protagonismo nesse caso.

Todos parecem estar fazendo seus cálculos políticos. Na coluna de ganhos, estão alguns votos de servidores públicos agradecidos por ficarem de fora da reforma da Previdência; na coluna de perdas, estão os demais brasileiros, condenados a viver num País com as contas permanentemente em frangalhos.

Por que lembramos o 4 de junho

Lembramos o 4 de junho porque Jiang Jielian tinha 17 anos. Ele ainda tem 17 anos. Ele sempre terá 17 anos. Porque as pessoas que estão mortas não envelhecem.

Lembramos o 4 de junho porque as almas perdidas que assombraram Liu Xiaobo até ele morrer também nos assombrarão até morrermos.

Lembramos o 4 de junho porque a luz do fogo nas baionetas é algo que ninguém pode esquecer. Mesmo que ele próprio não a tenha visto.

Lembramos o 4 de junho porque ele nos revelou a verdadeira natureza do Partido Comunista da China. Nenhum livro, nenhum filme, nenhum museu poderia tê-lo feito de forma mais vívida.


Lembramos o 4 de junho por causa dos simples trabalhadores que morreram. Não recordamos os nomes da maioria deles, porque nunca soubemos os nomes da maioria deles. Mas lembramos deles como pessoas. E lembramos que nunca soubemos os seus nomes.

Lembramos o 4 de junho porque ele contém os piores lados da China – mas também os melhores lados da China.

Lembramos o 4 de junho porque houve um massacre – não apenas uma "batida", um "incidente", um "evento", um "shijian”, um "fengbo”.

Não foi uma revolta contrarrevolucionária. Não é uma memória distorcida. Ou, como uma criança na China de hoje talvez possa pensar, que este acontecimento sequer aconteceu. Foi um massacre.

Lembramos o 4 de junho, porque foi, como o professor chinês Fang Lizhi apontou com sua própria sabedoria, o único caso conhecido por ele em que uma nação atacou a si mesma.

Lembramos o 4 de junho porque queremos saber o que os soldados assassinos se lembram. Eles foram submetidos a uma lavagem cerebral nos arredores da cidade antes de cumprirem as ordens mortais. Então eles também foram vítimas. Não sabemos o que pensavam então. Mas lembramos disso porque queremos saber.

Lembramos o 4 de junho porque Ding Zilin ainda está viva. Ela tem 82 anos. Quando sai de casa, policiais com roupas civis a acompanham por segurança. Segurança para ela? Não, segurança para o Estado. Sim, é verdade: um regime com um PIB de 100 trilhões de yuanes e dois milhões de soldados tem de se proteger de uma mulher de 82 anos, das suas ideias. Devíamos sempre nos lembrar disso.

Lembramos o 4 de junho para apoiar outros que se lembram. Lembramos sozinhos. Mas também nos lembramos juntos.

Lembramos o 4 de junho porque a lembrança faz de nós pessoas melhores. A lembrança é do nosso próprio interesse. Quando os políticos falam de "interesses", referem-se a interesses materiais. Mas os interesses morais são igualmente importantes – não, são mais importantes. Mais importante do que ter um iate.

Lembramos o 4 de junho porque foi um ponto de guinada histórico para um quinto do mundo. Uma guinada numa direção assustadora. Esperamos que não tenha sido uma guinada desastrosa para o mundo inteiro. Mas isso não sabemos. Veremos.

Lembramos o 4 de junho porque, se não nos lembrássemos, não teríamos ideia. Poderíamos ter inventado isso? Não.

Lembramos o 4 de junho porque há pessoas que querem que nos lembremos dele. Para elas é confortante saber que estamos pensando nisso.

Lembramos o 4 de junho porque também há pessoas que querem que não nos lembremos dele. Querem que esqueçamos. Porque o esquecimento tem o seu poder político. Que jogo horrível! Temos de nos opor a este poder, mesmo que recordar o massacre seja a única forma de fazê-lo.

Lembramos o dia 4 de junho para que não nos esqueçamos de como o governo chinês mente para si próprio e para os outros. Ele diz que o povo chinês há muito tempo fez o "julgamento certo sobre a revolta contrarrevolucionária na Praça da Paz Celestial em 1989".

Mas todos os anos, no dia 4 de junho, a polícia com roupas civis impede as pessoas de entrar na praça. Por quê? Por quê? Se, como afirma o governo, os chineses acreditam em tudo isso, por que não deixar que o povo da praça condene os contrarrevolucionários? A presença da polícia mostra que o regime não acredita nas suas próprias mentiras.

Lembramos o 4 de junho porque tais eventos mexem com o cérebro humano durante muito tempo. Mesmo que tentemos, não podemos esquecer!
Perry Link

Pensamento do Dia


Começam a soar alarmes sobre a sustentabilidade da Presidência de Bolsonaro

O atual mandato presidencial no Brasil começou há pouco mais cinco meses, mas já começam a se escutar alarmes sobre a possibilidade de que Jair Bolsonaro não termine seu mandato. Não só porque ele aparece sem um projeto de país concreto, mas também porque o pouco já realizado é alvo de duras crítica até por parte de muitos que o elegeram e hoje não o fariam, conforme mostram todas as pesquisas em que, dos 57 milhões de votos conquistados nas urnas, apenas 30% continuam com ele. Esse contingente corresponde a um exército de radicais que desejaria devolver o Brasil aos tempos do pior obscurantismo, com uma política apoiada em messianismos alucinados, com suas preocupações fálicas e uma mórbida obsessão pelas armas.

Poderia parecer incrível num país normal que em cinco meses de Governo já se fale já abertamente na possibilidade de impeachment do presidente, não só pelo que ele não fez, mas também pelo que fez até agora, que está revelando uma forte desconfiança sobre sua capacidade de governar um Brasil-continente com 207 milhões de pessoas que já começaram a sair às ruas. E sobre como deseja conduzir o tema da educação, um ponto crucial deste país com ainda milhões de analfabetos funcionais e da qual depende também seu futuro econômico.


O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, acaba de dizer ao jornal O Globo que o Brasil “caminha para um colapso social” com o novo Governo, que ainda não soube apresentar um projeto para fazer frente às graves crises que o afligem e que poderia levá-lo a uma catástrofe econômica se em vez de apoiar as reformas urgentes acabar boicotando-as para favorecer propostas milagrosas e às vezes até patéticas.

Preocupa à sociedade democrática um presidente que parece alheio às reformas enquanto se perde em fantasia messiânicas, como quando afirma que ainda “não nasceu para ser presidente”, pois foi algo que Deus lhe impôs. E assim repete, às vezes chorando diante das câmeras de televisão, enquanto levanta a camisa e mostra as cicatrizes do atentado que sofreu durante a campanha eleitoral. Deus, segundo ele, está ao seu lado e o escolheu como um novo Messias.

Junto a esse messianismo profético, o presidente continua tão obcecado em armar os brasileiros que seu primeiro decreto foi para ampliar a posse de armas e seu porte para toda a sociedade, decreto contra o qual acabam de se manifestar 73% dos brasileiros, segundo a última pesquisa de Ibope. Multiplicar as armas nas mãos das pessoas deve parecer melhor para o país que multiplicar o pão nas mãos dos ainda milhões de pobres e as possibilidades para os jovens de um ensino que os prepare para se realizarem em liberdade e criatividade. E sem absurdas receitas de escolas sem partido, de alunos espiões e denunciantes de seus professores e o pavor de que nelas se possa falar de sexo, que é como proibir falar da vida.

Há uma história que revela o absurdo de uma presidência em seus temores relacionados com o sexo. Em abril passado, saindo do Ministério da Educação, coração do futuro nacional, o presidente confiou a um grupo de jornalistas uma de suas maiores preocupações no momento. Sobre o drama da educação no país? Não. “Temos por ano mil amputações de pênis por falta de água e sabão”, contou-lhes, e acrescentou: ”Quando se chega a este ponto, a gente vê que estamos no fundo do poço”. Essa preocupação com a higiene masculina e as proporções de suas genitálias perturba tanto o presidente que poderia ter criado uma crise diplomática com o Japão, ao dizer que naquele país “tudo é pequeno”, referindo-se ao órgão masculino.

A obsessão do presidente por tudo o que é fálico está preocupando até os psicólogos e psicanalistas, como Contardo Calligaris, que na Folha de S.Paulo, analisando estas obsessões fálicas do presidente, afirmou: “Não se pode entender uma posição repressora contra os outros, seja qual for, a não ser como um modo da pessoa reprimir e lutar com a sua própria dificuldade”.

Já João Luiz Mauad, do Instituto Liberal e colunista de vários jornais do país, escreveu que ainda não é hora de falar no impeachment do presidente, já que “improvisação, amadorismo, incompetência, idiotice e histrionismo não são, por si sós, suficientes para abrir um processo de impeachment contra um presidente”. Talvez seja verdade juridicamente, mas um presidente com todas essas “qualidades” não parece o mais bem preparado para conduzir o transatlântico Brasil, o quinto maior pais do mundo e com imensas riquezas naturais que, além disso, o presidente parece querer destruir.

No Brasil já se fala, sem meias palavras, que o presidente Bolsonaro e a maior parte de seu Governo parecem ineptos para confrontar os grandes desafios que têm pela frente. Até agora parece, entretanto, que Bolsonaro continua em campanha eleitoral, dialogando só com o grupo de radicais de extrema direita que permaneceram fiéis a ele, sem ainda demonstrar que é quer ser o presidente de todos os brasileiros, como exige a Constituição.

O presidente continua confundindo as redes sociais com a realidade viva do país e parece ter aterrissado de outra galáxia, sem entender que o Brasil é uma nação que importa no mundo e que já aceitou a modernidade faz muito tempo. E, pior ainda, está destruindo no exterior, com sua incapacidade de governar e suas obsessões de caráter messiânico e psiquiátrico, a imagem positiva e até invejável até ontem atrelada a este país, coração econômico do continente e cadinho de mil experiências culturais que estão sendo pisoteadas.

Paz, na bala

Se pudesse mandar, mandaria em primeiro lugar fuzilar uns 10 mil políticos e militares, para que pudéssemos ter um pouco de paz
Johannes Mario Simmel, " Por quantos ainda vamos chorar?"

Muita fala e pouco rumo

Por óbvio, o Parlamento parla e o Executivo executa. O presidente Jair Bolsonaro subverte essa lógica, ao executar pouco e estar se candidatando a ser o presidente mais falante da história da República, mas a principal questão nem é essa, é se Bolsonaro realmente tem um plano de governo para executar no País.

Até agora, lá se vão cinco meses de governo, o presidente aproveitou a oportunidade de ter os microfones e a caneta de presidente – muito mais poderosa do que a de Rodrigo Maia, como bem lembrou – para transformar em políticas de Estado as velhas crenças e convicções com as quais cresceu, educou seus filhos, bate papo com os amigos e vê o mundo.

Pode ser que haja pesquisas no Planalto, pode ser que não, mas o fato é que Bolsonaro exercita o prazer de sair por aí pensando alto, falando o que bem entende e repetindo a sua tão bem sucedida campanha presidencial, em que era o centro das atrações e dos aplausos e nunca apresentou um plano de governo real. Um homem comum que veio por desígnios de Deus para mudar o País.

É assim que Bolsonaro estimula manifestações a favor de seu governo e contra o Legislativo e o Judiciário, propõe dois dias depois um pacto aos presidentes dos dois outros Poderes e termina a semana acusando o Supremo de “legislar” na questão da homofobia. Ainda aproveita o ensejo – uma convenção religiosa em Goiânia – para defender (ou anunciar?) um ministro evangélico para a Corte.

Se há praticantes católicos, espíritas, muçulmanos, judeus ou umbandistas no Supremo, não se sabe ou não é importante saber, até porque o Estado é laico e o critério religião não cabe na nomeação de ministros, que devem ter alto saber jurídico, independência e respeitabilidade. Se as pessoas acham que um ou outro não tem, é outra história.

O presidente do STF, Dias Toffoli, muito hábil, é desses que está bem com todo mundo e tem boa química com Bolsonaro, a ponto de ser convidado para um café do presidente com a bancada feminina aliada. Um peixe fora d’água. Mas Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello reagiram à altura à fala sobre homofobia e “ministro evangélico”.

O PIB recua, o desemprego resiste e a estudantada volta às ruas, mas Bolsonaro atravessou a rua a pé até o plenário da Câmara, mantém os lives de internet sobre temas gerais e já traçou um rango em restaurante de estrada com caminhoneiros, uma das ameaças sobre o governo – e sobre a economia. E lá veio mais falação: “Estou comendo o pão que o diabo amassou”, lamentou-se o presidente, que estimulou os convivas não apenas a ter armas, como a usá-las.

Ao longo da semana, ele sinalizou que tende a vetar a proibição de cobrança para despachar malas em aviões, reconhecendo que, se vetar, os passageiros não vão gostar; se não vetar, as empresas é que vão reclamar. Ah, se os diabos perseguissem os presidentes por decisões tão simples…

Na mesma fala, um ato falho. Apesar de tentar corrigir, ele admitiu que pesa na sua decisão o fato de a volta da bagagem gratuita ter sido proposta pelo PT. E saiu-se com essa: “Os caras (do PT) são socialistas, comunistas, estatizantes e gostam de pobre. Quanto mais pobre tiver, melhor”.

Pena que a área de Humanas esteja em baixa, porque a declaração merece análise sociológica, filosófica, política, psicológica. Primeiro, porque a declaração é pró-PT. Segundo, porque “gostar de pobre” é um dever de governantes e políticos. Terceiro: pobre anda mesmo de avião?
Eliane Cantanhêde

Assim, as manchetes são ocupadas, de um lado, pela economia patinando e o desemprego assolando e, de outro, pelas falas de Bolsonaro sobre suas crenças, seus desabafos e seus “foras”. Aparentemente, o presidente gosta de todo o foco nele, não no governo e nas soluções para o País.

Os proprietários da miséria nacional

A crise é generalizada porque é uma crise dos fundamentos. O país perdeu a capacidade de identificar as referências básicas em relação às quais se posicionar. Uma das mais básicas dessas referências básicas é o direito de propriedade. A brasileira, como toda sociedade deseducada, tem apenas a si mesmo como referência. Age como se o mundo tivesse começado com ela. E como o Brasil começou com apenas 13 proprietários, a defesa da propriedade privada nunca foi popular por aqui.

Os 13 proprietários do Brasil eram, porem, apenas os prepostos do proprietário unico de Portugal e seu império ultramarino. Nas monarquias absolutistas “soberania” e “propriedade” (ou patrimônio) eram dois nomes da mesma coisa, ou melhor, da mesma pessoa. Tudo pertencia ao rei. O governante despótico não tinha de ir a uma assembléia de represetantes do povo para pedir dinheiro. A sociedade inteira é que tinha de ir a ele para suplicar que lhe deixasse as migalhas do pão que ela amassava.

A única exceção foi o rei inglês. Não é por questão de gosto que na Inglaterra os castelos são de pedra e madeira e os franceses, espanhóis, russos ou portuguêses são de ouro. Numa luta que vai fazer mil anos desde a Carta Magna de 1215, o rei inglês foi mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do Parlamento para manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de sua majestade por recursos foi negociado em troca de uma garantia a mais de proteção da propriedade de cada indivíduo da plebe sobre o resultado do seu trabalho contra o poder do rei e seus “nobres” de tomá-lo para si, até que, a partir de 1680, o Parlamento ganhasse a supremacia de que desfruta até hoje.


A propriedade e a liberdade individuais emergiram, portanto, de uma luta travada entre um corpo de representantes do povo, que só tinha de seu a sua capacidade de trabalho, e um déspota. Onde o rei ou seu equivalente foram compelidos a depender do parlamento ou seu equivalente como fonte de alimentação da sua renda, a propriedade individual foi ganhando proteção cada vez mas sólida e a liberdade floresceu. Onde aconteceu o contrário o resultado foi o inverso.

A propriedade dos meios de produção onde esse tipo de processo histórico ocorreu não é um privilégio, ao contrário, é uma responsabilidade que atrela o seu titular ao processo de produção. Os proprietários sem proteção de “reis” são compelidos pelo mercado a voltar a sua propriedade para a melhor satisfação dos consumidores, e os que forem lentos ou ineptos nesse processo, serão penalizados por prejuízos e, se não aprenderem a lição, pela perda dessa propriedade.

“Mas é precisamente dessa escravidão que é preciso libertar o homem”, dirá um francês ou um aluno dos franceses da USP dos tempos em que ela existia como universidade. A alternativa é a privilegiatura, esse nosso feudalismo remasterizado, lembrará este escriba. Não ha terceira via…

Hernando de Soto, no seu livro clássico “O mistério do Capital: porque o capitalismo triunfou no Ociente e falhou nos outros lugares”, deixou a teoria de lado e foi a campo fazer medições do valor da obra visivel dos contingentes mais pobres das populações do Cairo, Lima, Manila, Cidade do México e Port-au-Prince (Haiti). Os resultados foram surpreendentes. No Haiti o valor dos imóveis rurais e urbanos ocupados por essa população e as construções neles existentes montaram a 5,2 bilhões de dólares em valores de 1995, quatro vezes mais que os bens de todas as empresas operando legalmente no país, nove vezes o valor de todas as propriedades do governo e 158 vezes o valor de todos os investimentos estrangeiros diretos feitos no Haiti em toda a sua história. No Peru, os 74 bilhões de dolares medidos equivaliam a cinco vezes o valor de todas as empresas com ações na bolsa de Lima, 11 vezes o de todas as empresas privatizáveis do governo peruano, 14 vezes mais que todo o investimento estrangeiro feito no país ao longo de toda a sua história. Cairo, Cidade do Mexico e Manila deram resultados ainda mais astronômicos. O livro registra uma menção ao Brasil cuja industria imoboliária passava por uma forte crise naquele momento mas as vendas de cimento batiam recordes todos os meses. O “favelão nacional”, hoje de dimensão continental, estava em plena construção…

A conclusão é que não é a disponibilidade de recursos naturais, o espírito empreendedor ou a quantidade de trabalho investido que explica a diferença da riqueza das nações, mas sim o grau de proteção da propriedade privada de que cada uma desfruta. Onde ela é garantida, a obra de cada cidadão, rico ou pobre, menor ou maior, é “capital vivo” que serve, como no caso da residência de cada cidadão nos EUA, como garantia dos seus próximos investimentos que, por sua vez, garantirão os desenvolvimentos seguintes. Com o tempo, desenvolve-se uma padronização de linguagem e regulamentação e todos os bens ganham uma segunda dimensão “de representação” que pode ser transacionada sem as limitações de “portabilidade” do bem físico, enquanto nos países onde essas residências são favelas erguidas em terrenos que ninguém sabe de quem é ou será, a mesma quantidade de esforço investido transforma-se apenas em “capital morto” cuja propriedade não está garantida nem mesmo para quem a construiu pessoalmente e, portanto, não se desdobra em fruto nenhum.

A massa miserável precisa, portanto, da garantia da propriedade para apropriar-se do resultado do seu esforço e sair da miséria. A questão é identificar a ferramenta política capaz de transferir o poder das mãos de quem aparelha a força do estado para apropriar-se do resultado do trabalho alheio para as de quem precisa da proteção do estado contra esse tipo ancestral de rapinagem. E como o nosso Poder Judiciário demonstra todos os dias com “autos de fé” contra os hereges do “sistema” ou simplesmente pela força dos seus holerites, manda no estado quem tem o poder de contratar e, principalmente, de “demitir” políticos e funcionários públicos.