quinta-feira, 18 de junho de 2015

Três novidades e um velho labirinto


O Papa vai investigar padres acusados de pedofilia e os bispos que os acobertaram. O abuso da inocência pelos representantes da pureza de Cristo é mais do que um crime: é um pecado revoltante. Uma abominação.

O Parlamento Europeu exige a saída imediata de Blatter. Aproveitar-se da nossa inocência de amantes do futebol — essa máquina de beleza e transparência — para ganhar milhões em propinas é uma outra abominação. Com tintas de legitimidade e um certo conforto porque, para muitos, não haveria moral no mercado e no capitalismo. Aguardamos os resultados com esperança. Aproveito o ensejo para retirar minha candidatura à presidência da Fifa. Estou com o Zico e não abro.

A terceira boa nova e, para o estilo brasileiro de ser, a mais importante, é o golpe desferido contra a nossa boa cultura da má-fé pela ministra Cármen Lúcia e seus colegas do STF. Os 9 a 0 contra o bloco dos que fizeram uma liga pró-censura renovam expectativas.

Mas o nosso velho labirinto permanece.

O labirinto, dizia um filosofo, é o paradoxo em forma de corredores. Na vida social temos labirintos exemplares. O delator premiado delata o outro delator; e um terceiro delator faz o mesmo com os dois primeiros. Outro exemplo: um sujeito falsifica uma obra de arte com tal perfeição que nem os peritos distinguem o falso do verdadeiro.

Existiria um governo que roube o país que governa de modo programado, levando-o à ruína? Não seria legítimo assaltar como governo, sendo o governo eleito pelo povo e irremovível porque o voto popular é sagrado? Mas democracia não seria poder também ter o direito de retirar pelo mesmo voto quem foi lá colocado e não honrou o papel público recebido e trabalhou mais para o partido, para os seus associados do que para a coletividade? Afinal, um governo que rouba sistematica e escandalosamente o seu país não é o mesmo que uma pessoa roubar a si mesma? Um viciado rouba de si mesmo o seu bem-estar. Devemos deixá-lo entregue à sua miséria moral ou chamá-lo às falas? Haveria governos e partidos vítimas de seus programas? Admitimos uma ladroagem oficial, institucional, legal e populista?

Se casamentos e negócios, tal como as amizades, podem ser desfeitos, por que não os ocupantes de cargos públicos? Quando o PT fez uma contundente campanha contra um Fernando Henrique Cardoso recém-eleito presidente, dando-lhe um simbólico “não”, foi um direito. Quando, entretanto, se faz o mesmo com a Dilma, é traição ilegitima? Do meu ponto de vista, recolher ocupantes de cargos eletivos por incompetência ou mendacidade é uma prerrogativa básica da vida igualitária e democrática. Se um jogador, eis um labirinto, trai o seu time, não é obrigação e dever tirá-lo de campo?

Alfred Kroeber, um dos primeiros antropologistas formados por Franz Boas, dizia que nós somos folhas de papel em branco nas quais a cultura (o nosso sistema cosmológico) se escreve. De tal maneira que até mesmo as nossas reações se fazem dentro dos limites estabelecidos pela nossa cultura. Numa aula, um aluno contestou invocando a liberdade individual. Eu, humilde, respondi que a própria ideia de liberdade é uma programação cultural e, como tal, ela tem que ser explicitada, construída e aprendida.

Existe a palavra liberdade em todas as línguas? Eu fiquei chocado quando descobri que, entre os apinayé, não havia palavra para o nosso zeloso: “muito obrigado”. Quem escreve quem? Somos todos textos ruins? Ou atores correndo atrás de personagens cuja densidade e nobreza nos escapa? Ou somos autores de nossas sociedades que, escritas por cada um nós, se transformam de acordo com nossos projetos?

Um labirinto óbvio é a recusa a tentar separar o falso do verdadeiro, o dissimulado do autêntico. A decisão do STF foi admirável porque ela resolveu uma questão. Biografias de quem tem fama e, eventualmente, talento — dentro das conhecidas incomensurabilidades existenciais e guardado o bom-senso e a má-fé — pertencem à sociedade. Todas as vidas têm a inscrição de um sistema. E todo sistema se exprime por meio de vidas. Não há como separar pessoas e grupos, a não ser por meio de um enorme (ou despótico e desonesto) esforço. Todos estamos no mesmo barco. Muitas vezes o abandonamos e esse abandono torna-se uma variante do sistema porque, cedo ou tarde, o sistema o recupera. Primeiro pela admoestação ou preconceito (o que o torna ainda mais forte) depois pela admissão (o que leva a sua diluição e normatização). Até, é claro, que aparece outra heresia ou desvio.

Outro labirinto.

Túnel do tempo




Quando um político mente destrói a base da democracia
José Saramago

Nasa: mundo está ficando sem suas principais fontes de água

Informações de satélite mostram que 21 dos 37 maiores aquíferos apresentam redução alarmante
Alter do Chão, maior aquífero do mundo em extensão de água,
 está localizado  na região que compreende Amazonas, Pará e Amapá
Dados fornecidos pelo satélite Grace, da Nasa, revelam que os principais aquíferos no mundo estão se esgotando dramaticamente. De acordo com a agência espacial americana, 21 entre 37 das maiores fontes de água subterrânea que abastecem centenas de milhões de pessoas no planeta apresentam redução alarmante, sendo que 13 delas estão em situação "calamitosa".

“A situação é muito crítica. Os aquíferos estão caindo em todo o mundo, não há reserva infinita de água” afirmou Jay Famiglietti, cientista da Nasa.
No Brasil, o satélite mostra três reservatórios: do Maranhão e da Amazônia, em boa situação, e, em posição um pouco menos confortável, o aquífero Guarani, o maior manancial de água doce subterrânea transfronteiriço do mundo, localizado entre Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. 


Segundo os dados do Grace, os aquíferos em pior situação estão nas regiões mais pobres e populosas do globo, como o Noroeste da Índia, Paquistão, e o Norte da África. O satélite analisou ainda territórios como Estados Unidos, China e França.

A degradação dos reservatórios está relacionada ao crescimento da população mundial, assim como às atividades da agricultura, da indústria e da mineração. Estima-se que aproximadamente 35% de toda água utilizada no mundo seja proveniente dos lençóis freáticos.

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Pilatos revivido


Se não tínhamos até então um registro sonoro e de imagem de Pôncio Pilatos durante o lava-mão no caso de Cristo, conseguiu-se séculos e séculos depois o registro fiel do acontecimento histórico, encenado pelo ministro José Eduardo Cardoso. Diante de uma platéia no Congresso reviveu Pilatos: o governo de 13 anos do PT reconhece que as prisões brasileiras são escolas do crime e nada fez, faz ou fará para reverter a situação. Em resumo, dane-se a população, conviva com a criminalidade como puder. Lavamos as mãos e crucifixe-se o Cristo da vez!

Cardoso protagonizou a maior cretinice nunca antes vista no país de um ministro da Justiça se eximir da responsabilidade de melhorar o sistema prisional por mero descaso. E não é a primeira vez! Insiste em criticar um sistema que está sob sua própria gestão e isso na maior cara de pau sem nunca demonstrar qualquer iniciativa para revertar a situação. Muitas vezes, como nas seguidas revoltas em Pedrinhas, No Maranhão, não deu um pio como se não fosse um ministro da pasta, mas um mero títere petista que realmente é.
O debate da maioridade penal tem exposto esse desinteresse do governo, com mais de uma década, em realmente impor justiça no país. O próprio Cardoso já protagonizou inúmeras bravatas em defesa da Presidência ou de seus comparsas. Também foi protagonista de ações nada éticas. Portanto, não se pode esperar de seu petismo que enfim aja como ministro da Justiça.

A questão foi mais uma vez desviada para que ninguém reclame do governo e Dilma e sua companheirada fiquem impunes de outros crimes deslavados: menosprezar a Justiça e se lixar para dotar o sistema carcerário de condições humanas. E para essa função foi escalado o pitbull Cardoso, que late muito, arreganha os dentes, mas nunca tomou as providências que deveria tomar para defender a população dos marginais e garantir os direitos humanos dos presidiários.

A "lógica" de Cardoso, vesga e marginal, só serve para proteger o desastre petista na administração judicial, nunca a Justiça que deveria ser para todos os brasileiros inclusive os presidiários e os jovens internos para a "salvadora" reeducação. 


São as vítimas, estúpido!


Ao fazer, mais uma vez, uma minuciosa confissão do seu próprio fracasso como responsável último por ele que é, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, fez mais um emocionado apelo esta tarde ao Congresso Nacional para que “não se coloquem jovens brasileiros dentro das hedionadas prisões do sistema prisional brasileiro, verdadeiras escolas do crime” por meio da redução da maioridade penal, e blá, e blá e blá…

Entre as dezenas de vezes que repetiu essa cena ao longo desta tarde, pelo menos uma vez a Globonews apresentou, na sequência, o secretário de Segurança Publica do Rio de Janeiro, Jose Mariano Beltrame, repetindo o seu mantra para que não haja retrocesso na política das UPPs, qual seja, a de levar a polícia aos morros cariocas que ficaram abandonados por décadas à lei do cão dos traficantes desde que Leonel Brizola fez um acordo com eles para conseguir se eleger. É que depois que os “ingleses” da Copa deixaram o Rio, o interesse das autoridades por aqueles “pretos“, “pobres” e “putas” só vem diminuindo…

Não peguei o discurso inteiro de Beltrame com som, mas quando aumentei o volume, ele falava daquele bom “jovem brasileiro” que, apenas para se divertir, esfaqueou na virilha e chacoalhou a faca, olhando-o nos olhos, aquele cardiologista que foi trucidado e sangrou até à morte na Lagoa Rodrigo de Freitas no mes passado, apenas porque resolveu pedalar duas ou tres voltas por esse “cartão postal” do Rio de Janeiro num belo entardecer. E o que dizia Beltrame sobre esse “jovem brasileiro” em especial? Que ele já tinha sido preso 15 vezes antes por sua polícia – isso mesmo, 15 vezes! – mas foi devolvido 15 vezes às ruas, de faca em punho, pelo sistema Judiciário e pelos códigos penais que o ministro da Justiça quer manter intactos, porque não ha lei neste país que possa tirar “jovens” como esse de circulação.

É claro que ninguém pensou jamais em mandar “jovens brasileiros” para esses presídios de fato hediondos apenas por esporte ou mesmo por excesso de zelo. Mas é que “São as vítimas, estúpido”!, diria o famoso marqueteiro de Bill Clinton.

Se não temos presídios melhores para encerrá-los, temos de escolher entre manter esses jovens na rua, de faca em punho, correndo atrás de nossos filhos e mães, apenas porque são “jovens”, ou enfiá-los onde quer que seja para que pessoas como o cardilogista trucidado e os outros 55.999 brasileiros que são assassinados nas ruas deste país todos os anos tenham uma chance a mais de sobreviver.

Nós todos adoraríamos que o senhor ministro e seu partido deixassem barato 2 ou 3% do que nos roubam para por os presídios brasileiros no melhor “padrão Fifa”. Eu, pessoalmente, acho que eles só serão arrumados quando os chefes do partido do próprio ministro e outros bandidos “excelentes” deixarem de ser recolhidos, quando flagrados com a mão na massa, em alas especialmente construidas para eles passarem o seu semestre sabático na Papuda e começarem a ser presos nos hediondos presídios que temos pelo mesmo prazo “dosimetrado” para seus comparsas “civis” no mesmo crime. Só com essa perspectiva no horizonte – a de que todo brasileiro que mereça ser preso seja julgado pelo mesmo tribunal, condenado às mesmas penas e preso na mesma prisão – veremos os correligionários do ministro, mais os seus “aliados” e os seus “adversários” na farsa que se encena em Brasilia, darem um jeito nas prisões que possam vir a frequentar.

Não tendo essa opção hoje, o jeito é mandar “jovens” que andam por aí esfaqueando gente para as prisões que houver, porque a prioridade deve ser dos esfaqueados e não dos esfaqueadores.

É das vítimas que se trata. Entendeu agora, “excelência”?

Do ponto de vista político...

https://media.zenfs.com/en/homerun/wp_tumblr_migration_provider_889/f216c0eebb3384b83269b2a872162a1f

Eu vou-vos dizer o que eu penso realmente sobre os políticos. Outra noite vi uns políticos na televisão a falar sobre o Vietname. Eu gostaria muito de ter atravessado o ecrã da televisão com um lança-chamas, queimar-lhes os olhos, mutilar-lhes as partes baixas, e depois perguntar-lhes como é que eles analisavam esta situação de um ponto de vista político
Harold Pinter

Somos coniventes ou idiotas?

A discussão sobre a propriedade ou não das doações privadas às campanhas eleitorais, muito motivadas pelos últimos escândalos que envolveram empresas fornecedoras da Petrobras, estão se desenvolvendo como se o que agora fora revelado fosse coisa inimaginável, um sinal dos tempos. Há décadas que as eleições no Brasil são financiadas dessa mesma forma, com empreiteiras, bancos, laboratórios, empresas multinacionais de variados setores destacando em seus orçamentos verbas consideráveis para transferir a candidatos e a seus partidos para custear a farra eleitoral. No capítulo das doações oficiais, esse é mais ou menos o quadro. Há também, sabe-se, de candidatos financiados pelo jogo do bicho, pelo tráfico de drogas e outros fora da lei, cujos valores doados, por razões óbvias, ficam apenas nos caderninhos que vez ou outra a polícia apreende e divulga. As prestações de contas, junto à Justiça Eleitoral, ou revelam generosos aportes quase sempre das mesmas empresas feitos a candidatos muitas vezes concorrentes aos mesmos cargos ou apresentam mágicas, de candidatos que conseguiram sua eleição sem quase gastarem um tostão. Elegem-se, dizem e eu acredito, com suas ideias, levadas pelo apoio de cabos eleitorais (isso ainda existe) e a eficácia do papelório com retratos, frases de compromisso e textos de farto lero-lero.


O país não suporta mais o custo de eleições a cada dois anos. Não pode se manter mais o funcionamento, como se dá, de câmaras municipais, de assembleias legislativas, da Câmara Federal e do Senado com salários imorais, verbas de representação e cerimoniais, desperdício permanente, uma conjugação de gastos e investimentos que desrespeitam princípios elementares de moralidade pública. Não tem sentido a quantidade de assessores, secretárias, prédios, material de escritório, equipamentos que são disponibilizados para muito pouco resultado. Todos sabem desses absurdos e nem no momento das eleições isso vem à tona. Simplesmente elegemos ou reelegemos os mesmos, aqueles que se nutrem e aos seus grupos dessas manobras. Uma criminosa podridão.

Cessaram os debates sobre o voto obrigatório, sobre a coincidência das eleições, sobre a obrigatoriedade de destinação fixa do orçamento nacional, dos Estados e municípios para o funcionamento dos legislativos. Não se falou mais sobre o voto distrital, sobre a representatividade dos partidos organizados às dúzias, sobre os tempos de TV e rádio para a propaganda eleitoral que viraram moeda. Isso mesmo: monetizou-se o direito dos partidos ao tempo da propaganda gratuita e por isso temos quase quarenta partidos recebendo dinheiro público do Fundo Partidário e nada se faz para acabar com essa impropriedade. Nada. Em 2016 teremos eleições, em 2018 também e assim seguiremos. Pagando e votando. Jogando dinheiro fora e aplaudindo. Que idiotas somos! 


Brasil cai em ranking da paz e eleva 'custo' mundial da violência

País gasta 255 bilhões de dólares por ano como consequência da violência

"O Brasil é um país pacífico e assim continuará”, afirmou a presidenta Dilma Rousseff no final do ano passado, durante uma cerimônia da Comissão Nacional da Verdade. O Índice Global da Paz, lançado nesta quarta-feira pelo Institute of Economics & Peace, no entanto, mostra um cenário diferente. De acordo com o relatório, o Brasil caiu 11 posições no ranking dos países mais pacíficos do mundo, e ocupa a 103a posição de um total de 162 nações - atrás de Haiti, Cuba, Argentina e Serra Leoa. O estudo leva em conta dezenas de variáveis, como acesso a armas, taxa de encarceramento da população, atividade terrorista, crimes violentos, desigualdade de gênero e PIB.

Os quatro países mais pacíficos do mundo, de acordo com o índice, seriam Islândia, Dinamarca, Áustria e Nova Zelândia, enquanto que no final da tabela estão Síria, Iraque, Afeganistão e Sudão do Sul. Na América do Sul, o Brasil só está à frente de Venezuela e Colômbia, que enfrentam, respectivamente, uma grave crise social e política e um conflito armado que já dura décadas entre o Exército e movimentos guerrilheiros ligados ao tráfico de drogas.

A alta taxa de homicídios no Brasil – 25,2 por 1000 habitantes -, a 12ª maior do mundo, ajudou a derrubar o país no ranking. Além do impacto humano e social que as mais de 50.000 mortes anuais têm, o estudo faz uma estimativa do custo da violência para os cofres públicos e para a economia brasileira, levando em conta despesas com o sistema de saúde, com aparato de segurança estatal e com o Judiciário. No total, o país gasta 255 bilhões de dólares (765 bilhões de reais) por ano como consequência da violência, o equivalente a 8% do valor do PIB nacional. O Brasil tem o quinto maior gasto global com a violência, atrás apenas dos Estados Unidos, China, Rússia e índia.

Para termos de comparação, em maio deste ano o ministro do Planejamento Nelson Barbosa anunciou um plano de austeridade que previa corte de 69 milhões no orçamento do Governo. Programas sociais como o Minha Casa Minha Vida e até obras do PAC tiveram verbas reduzidas. O valor gasto com a violência é mais de sete vezes maior do que orçamento da saúde, que é de 109 bilhões de reais. “A violência exige que investimentos sejam redirecionados de áreas produtivas como educação, infraestrutura e saúde para áreas de contenção da violência”, diz o texto, que cita grandes forças de segurança e encarceramento em massa como exemplos.

Em defesa do livro arbítrio (ou "Um grito de desabafo")


Em um país que falsamente se autodenomina laico e democrático, mas que se encontra inexoravelmente contaminado por leis arcaicas, fruto, sobretudo, de uma herança religiosa medieval, somos constantemente compelidos a refletir o quanto realmente nos encontramos em um triste estágio de subdesenvolvimento normativo.

O maior exemplo é a sublimação legal do mais importante direito que Deus nos deu: o livre arbítrio. Afinal, no estado da natureza, e pela mais importante concessão divina, o ser humano nasce livre para ser o único senhor do seu destino, fadado a dar satisfações unicamente a sua consciência.

Há algum tempo, um colega confidenciou ter experimentado, por determinação do destino, o mais dramático desafio a que um homem pode ser submetido, num dilema entre o amor e a consciência jurídica; entre o justo e o legal; entre o espiritual e o material.

Contou-me que sua mulher, incapacitada no leito do hospital, sentindo dores insuportáveis, com um câncer terminal que já havia retirado a dignidade de viver, implorou-lhe para que pusesse fim a seu martírio, mas não propriamente pela prática da eutanásia que lhe garantisse o direito de morrer com um mínimo de amor próprio, mas, sobretudo, pelo respeito a seu bem mais precioso: o livre-arbítrio.

Era uma mulher intelectualizada, com plena consciência de que não poderia contar com o Estado, que no Brasil não foi concebido para servir ao cidadão e sim para ser servido por este, ao contrário de outras nações, como a Suíça, onde existem até clínicas especializadas em viabilizar o legítimo desejo de uma morte digna (algo que os brasileiros só fazem com total naturalidade e amor, quanto se trata de um simples animal de estimação).

Restou a esta mulher, portanto, apenas recorrer àquele que lhe jurou amor eterno, até que a morte os separasse. E o desejo dele era atender ao pedido. Mas havia tantas implicações, que ficou mergulhado em dúvidas, não conseguia superar a rigidez da legislação criminal e o pesadíssimo sentimento de culpa que a formação religiosa atira sobre nossos ombros. Ele foi vacilando, se acovardou.

Mas ela insistia e foi assim até o final, quando o marido ainda conseguiu ouvi-la sussurrar as últimas palavras: ‘”Eu te perdoo, apesar de tudo”. Mas ele jamais conseguiu se perdoar.

Talvez fosse preferível optar pela ameaça de prisão injusta por um ato de amor (mas ainda assim por um tempo determinado), do que se sujeitar a uma condenação eterna por um ato de covardia.

Diante desse comovente relato, fiquei pensando que sempre é possível perdoar alguém, mas talvez seja realmente impossível perdoar-nos por qualquer ação ou omissão que tenha resultado em consequências graves. Com toda certeza, o perdão mais difícil é aquele que tentamos conceder a nós mesmos.

De toda maneira, o mais importante é que o Estado e a sociedade brasileira possam enfim amadurecer democraticamente, para propiciar aos cidadãos uma necessária evolução normativa que contemple o sublime respeito ao livre-arbítrio, elevando a dignidade humana ao patamar das conquistas mais preciosas a serem protegidas pelo nosso Direito, para que nenhum ser humano (apenas por ostentar a condição de brasileiro e se encontrar em solo pátrio) tenha de passar por tanto sofrimento, traduzido por uma dor que se encerra para aqueles que já se foram, mas nega a alegria da vida aos que ficaram.

Reis Friede

O PT e sua mentalidade do sítio

Deve-se ao repórter Luiz Antonio Novaes o registro de dois episódios ilustrativos da mentalidade do sítio que tomou conta do PT. Primeiro, eles tinham como inimigos os adversários políticos. Depois, a imprensa oligopolizada. Em seguida, a freguesia dessa mesma imprensa. Aos poucos, quase todo mundo.

Novaes estava no Congresso do PT em Salvador, onde só havia petistas, e narrou duas cenas.

Quando o governador da Bahia, Rui Costa, começou a falar, ouviram-se alguns gritos: “Cabula! Cabula!”. Costa foi um dos fundadores do partido na Bahia e Cabula é um bairro de Salvador onde, em fevereiro, a PM matou 12 pessoas (todos negros) e feriu outras seis. A tropa diz que eram traficantes que reagiram à chegada dos soldados. (Apenas um dos 12 mortos tinha antecedentes criminais.) Falando a uma plateia de PMs, o governador construiu uma metáfora comparando a ação dos policiais diante de malfeitores à do artilheiro na boca do gol, quando tem poucos segundos para decidir o que fazer e bateu o martelo: “Não há indícios de que teve atuação fora da lei nesse caso”. Portanto, os artilheiros da PM baiana fizeram 12 gols.

Quando Rui Costa começou a discursar, os gritos de “Cabula” pouco significavam para quem viera de outros estados, mas a lembrança da chacina era suficiente para irritar o comissariado do governador. O problema surgiu quando alguém ouviu “Papuda” no lugar de “Cabula”. Haveria petistas gritando o nome da penitenciária para onde foram mandados dois ex-presidentes do PT e seu ex-tesoureiro. Nessa hora, os companheiros estranharam-se, trocaram gritos e alguns empurrões. A confusão durou uma meia hora, exaltando ânimos que tanto podiam estar reagindo aos gritos de “Cabula”, de “Papuda” ou a ambos.

Pouco depois, como faltassem assentos no salão, vieram gritos de “Cadeira! Cadeira!”. Novamente, uns pediam cadeiras e outros ouviam “cadeia”. Dessa vez o mal-estar foi meramente auditivo.

Quem já ouviu milhares de pessoas gritando “Papuda” e “cadeia” na Avenida Paulista não tem por que se impressionar com cenas desse tipo. O episódio de Salvador mostrou que há petistas prontos para ouvir “Papuda” em vez de “Cabula” e “cadeia” no lugar de “cadeira” dentro de um congresso do partido. O inimigo, poderoso, conspirador e manipulativo, estaria em todos os lugares, inclusive lá. Coisa de quem está mal dos nervos, como o presidente americano George W. Bush quando viu uma deputada na Casa Branca com um botão onde leu “Osama”. Era “Obama”.

Gritar “Cabula” num evento onde discursava Rui Costa seria uma atitude agressiva, mas razoável para um petista desaparelhado que passa a vida defendendo os direitos do andar de baixo. Ouvir “Papuda” é coisa diversa, reação de alguém capaz de pensar que, a qualquer momento, inclusive durante uma reunião de petistas, poderá ser atazanado pela lembrança do mensalão e das petrorroubalheiras. Vai daí, “cadeira” vira “cadeia”.

A mentalidade do sítio colocou o PT no cubo de Marcel Marceau. Ele era um grande mímico e seu melhor numero era o de um cubo imaginário. A cada movimento que fazia, o cubo encolhia até que, de tão pequeno, não permitia que se movesse. O fato de um sujeito ser paranoico não impede que esteja sendo seguido, mas também o fato de ele estar sendo seguido não impede que ele seja paranoico.

Elio Gaspari